Introdução
Neste texto, começo colocando a importância de identificar e de respeitar as especificidades éticas das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (CHS), apontando a importância da formação ética do pesquisador e de normas adequadas para essas pesquisas. Em seguida, apresento a atual composição da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e suas implicações. Na sequência, busco responder a seguinte questão: Será que as disputas próprias do campo científico, fortemente presentes na Conep, foram superadas e o texto da Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016, está sendo respeitado? Para responder a essa pergunta, a partir de material publicamente disponível, são analisadas as orientações fornecidas pela Conep aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).
A importância de identificar e de respeitar as especificidades éticas das pesquisas em CHS
As questões ontológicas, epistemológicas, metodológicas e éticas são indissociáveis (DENZIN; LINCOLN, 2000; ZITO-GUERRIERO, 2015) e a busca pela neutralidade, que implica a exclusão da subjetividade, resulta na exclusão da possibilidade de reflexão ética. A constatação dos efeitos ruins da pesquisa conduzida nessa exclusão foi determinante para justificar a necessidade de um sistema de revisão ética das pesquisas, que então fizesse a avaliação ética que o pesquisador, supostamente neutro, não poderia fazer. Instituem-se diretrizes e CEP para fazer essa avaliação, o que pode ser considerado um cuidado importante para essas pesquisas, em especial as da área Biomédica, que têm um histórico conhecido de desrespeito ao participante de pesquisa. Entretanto, nas pesquisas que assumem que o conhecimento é produzido na intersubjetividade, portanto assumindo a subjetividade do pesquisador e do participante, qual o lugar dessa avaliação externa? Para essa reflexão, é importante considerar que a elaboração e a aplicação de normas para a avaliação ética de projetos de pesquisa têm como contexto o campo científico (BOURDIEU, 2003), cujas questões epistemológicas e políticas são indissociáveis. Trata-se, portanto, de um campo em que as disputas pelo poder de definir o que é ciência estão sempre presentes.
A primeira preocupação seria que essas diretrizes viessem a substituir “[...] a atividade de pensamento e julgamento que formam o indivíduo autônomo” (SCHMIDT, 2008, p. 50), resultando na heteronomia que se define “[...] pela incapacidade do indivíduo dar-se regras, normas ou leis e pela necessidade de recebê-las de fora, respondendo às suas exigências de modo irrefletido e automático” (SCHMIDT, 2008, p. 50). Nessa mesma direção, Sobottka (2015) afirma que “[...] a centralidade da responsabilidade ético-profissional do pesquisador não pode ser substituída por procedimentos burocratizados e voluntaristas de controle externo”. Brooks, Riele e Maguire (2017, p. 5), nessa mesma direção, afirmam que a ética não deve ser esquecida, uma vez que a “[...] ‘aprovação ética’ foi garantida [...]”. Isso aponta para a importância da formação ética dos pesquisadores, para que, então, estejam aptos a realizar a avaliação com autonomia. Considero que tanto há lugar para a avaliação ética externa à equipe de pesquisa, desde que esse colegiado conheça e respeite a tradição de pesquisa à qual o pesquisador se filia, bem como a importância da formação ética do pesquisador, cuja responsabilidade ética é indelegável. Por isso, prefiro referir-me à revisão ética feita pelo Sistema CEP/Conep, pois o pesquisador já fez, ou deveria ter feito, essa avaliação durante a elaboração do projeto.
Nesse sentido, seria desejável que o sistema formado pelos CEP e pela Conep se mantenha em diálogo com os pesquisadores, identificando as questões éticas envolvidas naquela situação específica de pesquisa, em busca de fomentar a reflexão ética junto a eles, e não no lugar deles. Nesse contexto, as diretrizes são importantes, pois colocam princípios e procedimentos que alcançaram consenso suficiente para que tenham sido aprovadas.
A aprovação da Resolução No 510/2016 pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Ministério da Saúde (MS) (BRASIL, 2016a) foi um avanço importante, pois foi a primeira a tratar das metodologias próprias das CHS, que é o foco neste texto. Contudo, essa não é a única condição para que as revisões éticas das pesquisas em CHS realizadas se transformem na prática do Sistema CEP/Conep (DUARTE, 2014; GUERRIERO; BOSI, 2015). Fui membro titular da Conep por 12 anos e, nessa situação, coordenei o grupo de trabalho (GT) das CHS da Conep (GT CHS/Conep), que elaborou a minuta da Resolução No 510. Vivi diretamente a situação de explicitar especificidades das pesquisas CHS em um ambiente fortemente biomédico e que toma para si a responsabilidade da avaliação ética de todas as áreas do conhecimento. A multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, que merecem discussão séria e cuidadosa, são termos usados indistintamente na Conep (GUERRIERO; BOSI, 2015) e parecem não ter nenhuma implicação prática durante o processo de revisão ética de projetos de pesquisa, nem na elaboração das resoluções e das normas que pautam o trabalho do Sistema CEP/Conep. Durante minha vivência na Conep, havia uma concepção de ciência positivista estabelecida, tida como a única verdadeiramente científica e que embasava todo o trabalho. A Resolução No 510/2016 é a primeira Resolução do CNS que reconhece a diversidade existente no campo científico, logo nos seus “considerandos”, o que se constitui em um grande avanço (GUERRIERO; MINAYO, 2019). Segundo um dos “considerandos” da Resolução No 510/2016,
[...] as Ciências Humanas e Sociais têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência da qual decorre a adoção de múltiplas perspectivas teórico-metodológicas, bem como lidam com atribuições de significado, práticas e representações, sem intervenção direta no corpo humano, com natureza e grau de risco específico [...]. (BRASIL, 2016a, p. 1).
Composição da Conep
No Art. 33 da Resolução No 510/2016, lê-se:
A composição da CONEP respeitará a equidade dos membros titulares e suplentes indicados pelos CEP entre a área de Ciências Humanas e Sociais e as demais áreas que a compõem, garantindo a representação equilibrada das diferentes áreas na elaboração de normas e no gerenciamento do Sistema CEP/CONEP. (BRASIL, 2016a, p. 10).
Isso é fundamental, pois a formação de um pesquisador em CHS exige preparo e quem não é da área possivelmente não tenha conhecimento suficiente para avaliar questões éticas envolvidas nesses projetos. Então, importa verificar como está a composição atual da Conep em relação a isso.
O site da Conep informa que essa Comissão, em 8 de novembro de 2022, era composta por 27 membros titulares, cinco suplentes e 25 ad hoc (CONEP, 2022). A Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013) estabelece que a Conep deve ser composta por 30 membros titulares, sendo oito indicados diretamente pelo CNS, sendo quatro representantes de usuários, dois dos trabalhadores e dois pela Secretaria de Ciência e Tecnologia do MS. O que motivaria essa composição com três membros a menos? Não foi localizada, no site, nenhuma referência a isso. Os outros 22 membros, que na atual composição são 19, devem ser selecionados entre as indicações dos CEP e, atualmente, têm a seguinte formação: sete membros das CHS (Psicologia (dois), Ciências Sociais (dois), Geografia, Jornalismo e Pedagogia, Jornalismo e Filosofia). Cabe ressaltar que uma pessoa tem formação em Jornalismo e Pedagogia, e outra, em Jornalismo e Filosofia. Na área Biomédica, há 12 membros, sendo: quatro médicos, um farmacêutico, um enfermeiro, um fisioterapeuta, dois das Ciências Biológicas, uma da área da Genética, um engenheiro químico (que trabalha com Genética) e uma da Saúde Coletiva. Fica evidente que essa composição não atende ao disposto na Resolução No 510/2016, mantendo-se a hegemonia biomédica na Conep. Esses membros trabalham voluntariamente, devendo ser liberados do trabalho na sua instituição de origem para realizar as atividades da Conep.
A Conep conta também com 65 assessores, dos quais 21 atuam na análise de protocolos, 15 na gestão de comitês de ética, cinco na acreditação de comitês de ética, sete na qualificação e no monitoramento do Sistema CEP/Conep, quatro na produção de conteúdo, seis na Plataforma Brasil, um no Observatório Plataforma Brasil e seis no suporte administrativo.1
O texto da Resolução No 510/2016 está sendo respeitado?
Neste momento, estando em uma posição diferente, como alguém que não atua no Sistema CEP/Conep desde 2020, busco responder a essa questão analisando o material que está disponível publicamente no site da Conep e em eventos online e públicos organizados pela Conep. Chama atenção a grande quantidade de material disponível online, produzido pela Conep: a série de podcasts “Com ciência e com respeito”, “Diálogo em pílulas”, “Jornadas do Sistema CEP/Conep”, “Webinar”, “PB2 responde”, além de seminários e lives sobre diferentes temas. E, ainda, os 15 cursos online elaborados em parceria com o Hospital Moinhos de Vento, via Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS). Neste texto, analiso aspectos dos episódios 3, 5, 11, 20 e 23 da série de podcast “Com Ciência e com respeito”, na qual os assessores da Conep fazem as apresentações; a 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep, cujo tema foi “Aspectos Éticos em Pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais” e os apresentadores eram todos membros da Instância CHS/Conep e tinham formação em áreas das CHS, e o curso “Marcos regulatórios do Sistema CEP/Conep para o processo de análise ética de projetos de pesquisa”, realizado em parceria com o Hospital Moinhos de Vento. Busquei nesses materiais os que tratavam diretamente da pesquisa em CHS e que faziam orientações contrárias ao texto da Resolução No 510/2016. Não houve, porém, a intenção de analisar todo o material publicamente disponível no site da Conep.
Em várias situações, os membros da Conep ou os assessores dessa Comissão orientaram os CEP, os pesquisadores e os demais interessados a seguirem o texto das normas. Minha escolha, aqui, foi pelo “lapso”, aquilo que fugiu à norma, para trazer à tona um pouco do discurso não oficial, que explica formas de pensar importantes no trabalho cotidiano da Conep, tanto na elaboração de normas quanto na avaliação dos projetos3.
Questionamento sobre a relevância da Resolução No 510/2016
No podcast “Com Ciência e com respeito”, Episódio 5, ouve-se que: “[...] embora as pesquisas estejam cada vez mais complexas, e isso dificulte cada vez mais classificá-las, o sistema CEP/Conep divide entre biomédicas e aquelas que usam metodologias das ciências humanas e sociais” (COM CIÊNCIA..., 2021b, n.p.). Pelo tom em que foi dito, parecia defender a inutilidade ou mesmo a inadequação da Resolução No 510/2016. É com surpresa que ouvi essa afirmação, pois, durante meus anos na Conep, nunca presenciei o menor movimento em direção à busca pela interdisciplinaridade ou à transdisciplinaridade. Muito pelo contrário, havia uma concepção de ciência positivista estabelecida, e, a partir dessa visão, tudo era avaliado.4
Mais no final da minha participação, aproximadamente em 2019, quando interessou à área biomédica utilizar o que estava previsto na Resolução No 510/2016, então havia um questionamento sobre metodologias qualitativas, e a intenção parecia ser a de compreender para construir uma justificativa para aplicar, também, nas pesquisas biomédicas. Ainda assim, a sensação era de um pesquisador sério perguntando para “crianças” (entre as quais eu me incluía) e avaliando se considerava adequado ou não. Não havia um diálogo entre pessoas adultas com concepções diferentes. Essa situação lembra uma afirmação de Howard S. Becker citada por van den Hoonaard (2014):
Pesquisadores quantitativos sempre querem saber as respostas que os pesquisadores qualitativos têm para as questões deles [...]. Eles não discutem como eles poderiam discutir as questões que os pesquisadores qualitativos colocam [...]. Eles querem que a discussão ocorra na linguagem e nos padrões deles e querem que o trabalho qualitativo seja traduzido na linguagem que eles utilizam.5 (BECKER, 2001, p. 239 apudVAN DEN HOONAARD, 2014, p. 176, tradução nossa).
Parece-me, portanto, que a intenção é exatamente manter essa situação de exercício de poder de uma área sobre a outra, e não a busca pela inter/transdisciplinaridade que pressupõe reconhecer diferenças, respeitá-las e buscar uma aproximação visando contribuir para a melhor compreensão de situações complexas, como são as questões relativas à saúde. Citar esse exemplo não foi casual, pois a Conep é uma das comissões do CNS, que, por sua vez, é parte integrante do MS. Lamentavelmente, a Resolução No 510/2016 vem sendo utilizada indistintamente para a área Biomédica, no que é considerado uma flexibilização, e que a Resolução No 466/2012 tem sido aplicada também às CHS, em um esforço contínuo para escamotear diferenças e tratar pesquisas de diferentes áreas do conhecimento como se envolvessem as mesmas questões éticas, apesar de trabalharem em paradigmas diversos e terem procedimentos completamente diferentes.
Resolução CNS Nº 466/2012 para as CHS
O curso “Marcos regulatórios do Sistema CEP/Conep para o processo de análise ética de projetos de pesquisa” foi organizado pelo Hospital Moinhos de Ventos em parceria com a Conep e o com a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do MS, por meio do Proadi-SUS6. Nele, encontramos a orientação clara de que a Resolução No 466/2012 (BRASIL, 2013) é a referência a ser seguida por todas as áreas do conhecimento e a Resolução No 510/2016 (BRASIL, 2016a) aparece entre várias outras resoluções. A intenção durante o processo de construção da Resolução No 510/2016 foi de que ela seja a única Resolução utilizada para as CHS, acrescida apenas da Resolução No 304, de 9 de agosto de 2000 (BRASIL, 2000), se envolver povos indígenas, e a Resolução No 292, de 8 de julho de 1999 (BRASIL, 1999), se houver cooperação internacional. Isso fica explícito no Art. 32 da Resolução No 510/2016, que afirma: “Aplica-se o disposto nos itens VII, VIII, IX e X, da Resolução CNS no 466, de 12, de dezembro de 2012, no que couber e quando não houver prejuízo ao disposto nesta Resolução” (BRASIL, 2016a, p. 10).
A Resolução No 510/2016 não é, portanto, complementar à Resolução No 466/2012, mas é a Resolução que deve ser usada para revisar as pesquisas em CHS. Segundo os colegas da área jurídica, membros do GT CHS/Conep, como são duas resoluções aprovadas pelo mesmo órgão, uma não é superior a outra, e, sendo uma específica, esta deve ser observada nas pesquisas em CHS. A Minuta da Resolução No 510/2016 foi elaborada pelo GT CHS/Conep, em um processo de trabalho minucioso e competente, realizado durante três anos (GUERRIERO, 2016). Causa estranheza ver que coube a um hospital a responsabilidade pela elaboração do curso sobre a referida Resolução, sem nenhuma consulta ao Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA) ou as associações CHS, em especial as que participaram do GT CHS/Conep e que se sentem coautoras da Resolução No 510/2016 (DUARTE, 2017). Essa exclusão preocupa, pois esse material está disponível online e teve ampla capilaridade em todo o país. Segundo os dados dos módulos Educação a Distância (EAD) do Projeto Qualificação dos Comitês de Ética em Pesquisa (EAD Q-CEP), disponível no site da Conep7, até 27 de dezembro de 2021, 47.395 pessoas participaram ou se matricularam (não está especificado o critério utilizado) dos 15 cursos que foram elaborados pelo Hospital Moinho de Ventos, no Rio Grande do Sul (RS), no contexto do Q-CEP. A análise desse conteúdo aponta que a Conep está orientando a utilização da Resolução No 510/2016 de maneira diferente do que consta em seu texto, ao que parece, retomando os mesmos argumentos utilizados nos embates entre o GT CHS e outros GT e a coordenação da Conep, que foram superados no texto, mas que não estão sendo efetivados na prática.
Estímulo à submissão de pesquisas teóricas
No Episódio 3 do podcast “Com Ciência e com respeito”, ouve-se que “[...] muitas pesquisas teóricas também passam pelo CEP porque o pesquisador reconhece que é difícil fazer ciência sobre as pessoas, sem dados de pessoas concretas” (COM CIÊNCIA..., 2021a, n.p.). O que seriam pesquisas teóricas? Considerando que toda pesquisa deve ter um embasamento teórico, o que seriam pesquisas teóricas nessa afirmação? E as que visam “fazer ciência sobre seres humanos”? Há bastante discussão sobre a produção de conhecimento em seres humanos e com seres humanos, havendo, nas CHS, uma ênfase nessa segunda opção. Ao evitar essa discussão, a orientação não explicita diferenças, que são importantes para identificar as questões éticas efetivamente envolvidas em cada projeto. Além disso, como não está especificado no Episódio 3 do podcast, pode resultar no estímulo à submissão ao Sistema CEP/Conep de projetos que são excluídos dessa análise pela Resolução No 510/2016, Art. 1º, Parágrafo único:
VI - pesquisa realizada exclusivamente com textos científicos para revisão de literatura cientifica;
VII - pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito [...]. (BRASIL, 2016a, p. 2).
Considerando a diversidade de membros atuantes nos 881 CEP8 localizados em todo o país, seria importante explicar o que se inclui nesses dois itens citados. O comentário no Episódio 3 do podcast do “Com Ciência e com respeito” parece orientar em um sentido diferente do que consta na norma. Além da Resolução No 510/2016, a Conep emitiu o Ofício Circular Nº 17/2022/Conep/SECNS9/MS, em 5 de julho de 2022, orientado sobre a utilização do Art. 1° dessa Resolução (BRASIL, 2022).
Trabalhar exclusivamente com textos publicados é trabalhar com material publicamente disponível e não citar as referências pode ser considerado plágio. Seria apropriar-se indevidamente do texto de outros autores; não tem sentido, assim, fazer isso para proteger o anonimato. Além disso, não é exigida apreciação de CEP, pois os autores decidem o que publicar, e as avaliações acadêmicas medem, cada vez mais, o número de vezes que um texto é citado, portanto interessa aos autores que seus textos sejam referidos. Qual seria a função de um CEP, que trabalha de acordo com a normativa atual, ao avaliar pesquisas que trabalham exclusivamente a partir de textos já publicados?
Com relação ao Inciso VII da Resolução No 510/2016, se o texto está sendo escrito a partir da prática profissional, que foi realizada sem nenhum procedimento de pesquisa, tal como questionário, entrevista, inclusão de pergunta/s visando pesquisa, mas a partir do trabalho usual, não havendo projeto de pesquisa elaborado previamente, o que seria submetido ao Sistema CEP/Conep? Um exemplo pode ajudar: imagine um médico tentando tratar pacientes histéricas, quando não havia tratamento comprovado para isso, e as tentativas não chegavam a bons resultados. Para isso, ele utilizou uma técnica conhecida na época como “cura pela fala”, e, ao longo do trabalho, foi escrevendo o processo de trabalho, o que observava nas pacientes e em si mesmo, e, na busca pela melhora da paciente e no diálogo com outros autores, começasse a criar teoria para explicar o que estava acontecendo. Em que momento isso seria submetido ao Sistema CEP/Conep? Pois é, foi esse, grosso modo, o início do trabalho de Freud, que resultou na Psicanálise. Se há um projeto de pesquisa, que esse seja submetido ao CEP, mas se não há, não faz sentindo impedir as pessoas de pensarem e de construírem teorias a partir de sua prática cotidiana. Em vez de beneficiar as pessoas, levaria a prejudicá-las, na medida em que impediria a construção de conhecimento que pode ser relevante para todos. Em uma discussão mais ampla sobre a aplicação da Resolução No 510/2016, inclui esse exemplo (ver GUERRIERO; MINAYO, 2019).
Ausência de informação sobre a obrigatoriedade de membros das CHS nos CEP
Ainda no Episódio 3 do podcast do “Com Ciência e com respeito”, ao discutir-se a organização de um CEP, há referência à Resolução No 370, de 8 de março de 2007 (BRASIL, 2007), e enfatiza-se a importância da multidisciplinaridade e o papel do representante de usuário, mas não há nenhuma referência à Resolução No 510/2016, Art. 30, no qual consta: “Deverá ser estimulado o ingresso de pesquisadores e demais profissionais atuantes nas CHS nos colegiados dos CEP existentes, assim como a criação de novos CEP, mantendo-se a interdisciplinaridade em sua composição” (BRASIL, 2016a, p. 10). Apenas estimula a inclusão de membros com formação em CHS nos CEP, refere a possibilidade de haver um CEP-CHS e afirma a necessidade de manter a interdisciplinaridade (COM CIÊNCIA..., 2021a) - sem, entretanto, explicitar o sentido dessa afirmação. Um CEP formado por um pedagogo, uma psicóloga, um historiador, uma assistente social, um antropólogo, uma advogada e um representante dos participantes de pesquisa, para citar um exemplo, parece-me possibilitar uma discussão interdisciplinar. Presencialmente na Conep, essa afirmação insinuava que necessariamente tinha de ter a participação de um médico, o que evidencia, mais uma vez, o exercício de poder de uma área sobre as outras, uma vez que os projetos a serem revisados por um CEP-CHS são específicos dessas áreas, e, se em alguma situação for necessário, é possível solicitar um parecer ad hoc - que poderia ser de um médico ou de qualquer outro pesquisador ou profissional cuja área não esteja incluída no CEP.
Cabe destacar que um levantamento realizado pela Conep, no contexto da organização do Encontro Nacional de Comitês de Ética em Pesquisa (Encep) de 2019, identificou 60 CEP que revisavam apenas pesquisas em CHS. Seria muito importante ouvir a experiencia desses CEP, bem como conhecer sua composição e seu processo de trabalho.
Definição probabilística de vulnerabilidade
No Episódio 5 do podcast do “Com Ciência e com respeito”, que trata da decisão de ser ou não participante de pesquisa, ouve-se a seguinte definição de vulnerabilidade: “[...] é a probabilidade de sofrer dano ou ser prejudicado” (COM CIÊNCIA..., 2021b, n.p.). Seria cabível aplicar essa abordagem probabilística para definir vulnerabilidade? Parece-me adequado utilizar a definição que consta no Art. 2º, Inciso XXVI, da Resolução No 510/2016: “[...] situação na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e opor resistência na situação de pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos” (BRASIL, 2016a, p. 4). Isso não é um apego à letra da norma, mas uma questão epistemológica importante, pois, ao definir vulnerabilidade como uma probabilidade, mantém-se a hegemonia positivista reinante na Conep. Cabe lembrar Bosi (2015) ao discutir risco, pois esse mesmo argumento também se aplica aqui. A definição de vulnerabilidade a partir de probabilidade negligencia “[...] dimensões fundamentais em situações onde a incerteza e a imprevisibilidade inerentes aos processos escapam ao cálculo e à mensuração, como no caso de parcela expressiva das pesquisas em CHS” (BOSI, 2015, p. 2675). Vale destacar, aqui, a reflexão de van den Hoonaard (2014):
A linguagem constitui-se em um sinal cultural significante. É importante para a participação cultural e a identidade. [...] quando duas culturas disciplinares se encontram, uma das diferenças mais profundas é a linguagem. Então, qual seria a linguagem a ser utilizada? [...] utilizar a linguagem deles não tem embasamento epistemológico nem lógico, mas baseia-se na organização social hierárquica e na diferença de poder entre dois sistemas de pensamento.10 (VAN DEN HOONAARD, 2014, p. 176, tradução nossa).
A linguagem, como está vinculada a referenciais teórico-metodológicos específicos, deve ser utilizada com precisão e cautela, para que não seja colonizada por outras tradições científicas. Durante o trabalho do GT CHS/Conep, deparamo-nos com essa questão, mas relativa à palavra-conceito-risco, que, como discute Bosi (2015), não é adequada para pesquisas em CHS. Acabamos mantendo esse termo no texto, visando acomodar a Minuta da Resolução No 510/2016 ao trabalho dos outros GT da Conep. Tenho sérias dúvidas se fizemos uma boa opção.
Registro de consentimento e de assentimento
Ainda no Episódio 5 do podcast do “Com Ciência e com respeito”, outra definição que chama atenção, por não constar em nenhuma norma e não fazer referência a nenhum autor, é utilizar o termo “registro” para todas as áreas e afirmar que “quando é por escrito é TCLE11” (COM CIÊNCIA..., 2021b, n.p.). Durante a elaboração da Minuta da Resolução No 510/2016, o GT CHS/Conep teve o cuidado de não utilizar a palavra “Termo”, justamente para explicitar diferenças, especificidades. Portanto, um podcast da Conep “explicar” que, quando o registro é por escrito, é um TCLE, não encontra respaldo em nenhuma norma e age contrário ao texto da Resolução No 510/2016, que é um documento em vigência aprovado pelo CNS. Encontro duas possíveis explicações para isso: ou a pessoa que fez essa afirmação desconhece a história, e isso é possível, pois ela não era parte da Conep quando a Resolução No 510/2016 estava em elaboração; ou intencionalmente retoma um tema que foi cuidadosamente discutido no GT CHS/Conep e que foi motivo de disputas entre os GT Conep e com a coordenação da Conep, e que, como tantos outros, após a aprovação da Resolução No 510/2016, volta a discutir os mesmos pontos que perdeu na argumentação e na aprovação dessa Resolução pelo CNS, mas agora se vale do seu poder de (des)informação. Esse poder nunca lhe foi concedido pelas áreas das CHS, haja vista o grande número de publicações das áreas das CHS sobre o tema (DUARTE, 2014, 2015, 2017; LEITÃO; FALCÃO; MALUF, 2015; MAINARDES, 2017a, 2017b; SARTI, 2015; SOBOTTKA, 2015, para citar alguns autores brasileiros).
Na referência ao Termo de Assentimento Livre Esclarecido (TALE), informa-se que “[...] deve ser escrito na língua materna e ser assinado ou reconhecido pela criança, sem a presença dos pais ou responsáveis legais” (COM CIÊNCIA..., 2021b, n.p.). Novamente, onde estaria previsto isso nas normas? E qual o sentido de que a criança necessariamente não esteja perto dos seus pais ou responsáveis legais?
Quando se trata da pesquisa online, a orientação é que “[...] há duas opções: assinar o TCLE e digitalizar ou utilizar plataforma digital ou gravação de voz, nesse caso precisa arquivar e recolher o TCLE físico assim que possível” (COM CIÊNCIA..., 2021b, n.p.) mas não há nenhuma diferenciação por área do conhecimento. Quem não conhece as normas, entende que isso está previsto nelas, mas não está. Pelo contrário, na Resolução No 510/2016, Art. 15, no Parágrafo primeiro, lê-se: “Quando não houver registro de consentimento e de assentimento, o pesquisador deverá entregar documento ao participante que contemple as informações previstas para o consentimento livre e esclarecido sobre a pesquisa” (BRASIL, 2016a, p. 7). Assim, tendo registro em plataforma digital ou em gravação de voz, não é necessário a entrega do documento, certo? Essa mesma orientação sobre ter de entregar uma via aparece, novamente, no Episódio 11 do podcast “Com Ciência e com respeito” (COM CIÊNCIA..., 2021c).
Falsa dicotomia entre identificar diferentes concepções de pesquisa e a proteção do participante
Na 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep, cujo tema foi aspectos éticos das pesquisas em CHS, salientou-se que o foco é cuidar do participante de pesquisa, o que corrobora as Resoluções CNS sobre ética em pesquisa, bem como a ampla literatura nacional e internacional. Entretanto, complementou-se: “[...] há valorização imensa de procedimento de pesquisa e deixa de lado o participante que deveria estar na centralidade” (informação verbal)12. Parece-me que, aqui, temos uma falsa dicotomia. É justamente para fazer uma revisão ética, que efetivamente coloque o participante como foco, que é indispensável entender quais são os pressupostos da pesquisa, o que de fato está em questão, se há procedimento de pesquisa ou se é uma análise das situações cotidianas, entre muitos aspectos que poderiam ser pensados aqui, para efetivamente identificar quais são as questões éticas envolvidas e se elas estão sendo adequadamente cuidadas.
Importância de conhecer o contexto e o referencial teórico-metodológico
Cabe destacar as questões relativas à pesquisa em Educação que foram postadas no chat da 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep: Pesquisa em unidade escolar: Para quem pedir autorização? E se for mais de uma escola, pode-se solicitar anuência de um órgão como a Secretaria Municipal/ Estadual de Educação? Se sim, bastaria anuência da Secretaria? A resposta da Conep foi que, em geral, basta a da Secretaria, mas, dependendo da situação, a Conep solicita também da escola. Certamente, caberia uma discussão mais detalhada sobre quem pode dar anuência institucional para a realização de uma pesquisa, porém convido a refletir sobre a posição de quem faz essas perguntas, que diz respeito à pessoa que está vivenciando diretamente a realização de pesquisas e seus desafios, além da importância de que as normas considerem o contexto específico de cada pesquisa para que as questões éticas sejam adequadamente identificadas e tratadas.
No Brasil, as normas têm sido produzidas “de cima para baixo” (ISRAEL, 2015), em busca de normalizar toda situação de pesquisa, como se houvesse uma única maneira de produzir ciência, o que pode se transformar em uma camisa de força para quem está próximo ao contexto da efetiva realização do estudo. Os CEP, por serem sediados nas instituições e, portanto, mais próximos dos contextos em que as pesquisas serão realizadas, têm melhor condição de trabalho. Seria importante trabalhar para que a regulamentação sobre ética em pesquisa invertesse o que vem sendo feito hoje no país, e passasse a ter um movimento de “baixo para cima”, das situações contextualizadas para a definição de normas, invertendo a lógica atual, na qual uma única concepção de ciência determina quais são as questões éticas para todas as pesquisas envolvendo seres humanos - denominação que evita discutir se a pesquisa é em ou com seres humanos, que é central para a adequada revisão ética (ELLIS, 2007; GUERRIERO; DALLARI, 2008; OLIVEIRA, 2004). As Resoluções referem-se a “participantes da pesquisa” para “designar” o “outro” incluído nas pesquisas, sem explicitar que a escolha desse termo implica uma determinada postura epistemológica. Oliveira (2004) considera que a pesquisa em seres humanos coloca o participante, geralmente sujeito a uma intervenção, em uma “condição de cobaia”. Na pesquisa com seres humanos, por sua vez, o participante da pesquisa “deixa a condição de cobaia (ou de objeto da intervenção) para assumir o papel de ator (ou de sujeito da interlocução)” (OLIVEIRA, 2004, p. 33-34).
Na mesma direção, Caroso (2004, p. 140) afirma que “[...] os sujeitos da pesquisa são concebidos e tratados como pessoas, entidades socioculturais, e não apenas como seres humanos, isto é, entidades biológicas”. Schmidt (2003) avança ainda mais ao apresentar três termos diferentes para designar esse “outro”, a saber: informante, interlocutor ou colaborador; e alerta que cada um deles está associado a uma maneira específica de conceber os lugares ocupados, tanto pelo pesquisador quanto pelo pesquisado. A autora explicita o contexto em que o termo “interlocutor” é utilizado: “[...] o interlocutor põe em cena a necessidade de negociar explicitamente os interesses comuns e divergentes do pesquisador e do grupo ou indivíduos que participam da pesquisa. [...]. O diálogo é o veículo da construção de um conhecimento cuja autoria e propriedade é também compartilhada” (SCHMIDT, 2003, p. 62). Dessa forma, explicitam-se as consequências éticas relacionadas à maneira como esse “outro” é entendido no contexto de cada pesquisa. Além da Conep não reconhecer isso, ela se coloca como modelo para os CEP, disseminando esse desconhecimento. O Episódio 20 do podcast “Com ciência e com respeito” afirma a importância de “[...] harmonizar a análise do CEP com o padrão da Conep” (COM CIÊNCIA..., 2021d, n.p.). A rigor, isso está previsto na Resolução No 506, de 3 de fevereiro de 2016 (BRASIL, 2016b), que trata do processo de acreditação dos CEP que compõem o Sistema CEP/Conep. O Art. 12 da Resolução No 506/2016 explicita essa situação:
Durante o período de treinamento e acompanhamento, haverá:
I. Análise ética simultânea e distinta pelo CEP em acreditação e pela Conep. Apenas o parecer da Conep será válido e emitido ao pesquisador durante o período de pré-acreditação;
II. Análise qualitativa pela Conep, por comparação, dos pareceres consubstanciados correspondentes da Conep e do CEP em acreditação, em conformidade com as normativas do CNS. (BRASIL, 2016b, p. 6, grifo nosso).
Desqualificação do GT CHS/Conep
Na 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep, ouviu-se: “[...] tenho certeza que quem elaborou a 510 não tem ideia do que aparece nos projetos” (informação verbal)13. Essa é uma afirmação que não se sustenta se consultarmos a composição do GT CHS/Conep (ver GUERRIERO, 2016). É uma afirmação que merece registro, mas que não exige discussão. Convido os leitores a fazer essa avaliação.
Pesquisa de opinião pública
Sobre a pesquisa de opinião pública, que não precisa ser revisada pelo Sistema CEP/Conep, conforme o Art. 1º, Inciso I, da Resolução No 510/2016 (BRASIL, 2016a), cita-se, como exemplo, a pesquisa com alunos e funcionários de uma escola mencionada na 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep). Vejamos a definição de pesquisa de opinião pública que consta na Resolução No 510/2016, Art. 2º, Inciso XIV:
[...] consulta verbal ou escrita de caráter pontual, realizada por meio de metodologia específica, através da qual o participante é convidado a expressar sua preferência, avaliação ou sentido que atribui a temas, atuação de pessoas e organizações, ou a produtos e serviços; sem a possibilidade de identificação do participante. (BRASIL, 2016a, p. 3, grifo nosso).
Em uma pesquisa realizada no ambiente escolar, o pesquisador sabe o nome das pessoas, e tem o dever ético de manter o anonimato, ou a correta identificação dos participantes (Resolução No 510/2016, Art. 17, Inciso IV), portanto esse exemplo, ao contrário do que foi (des)informado, não está isento de registro no Sistema CEP/Conep.
Relatório parcial
Chama atenção a referência à apresentação de relatório parcial feita na 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep e no Episódio 23 do podcast “Com ciência e com respeito” (COM CIÊNCIA..., 2022), pois isso não está previsto. Na Resolução No 510/2016, Art. 28, Inciso V, lê-se: “Apresentar no relatório final que o projeto foi desenvolvido conforme delineado, justificando, quando ocorridas, a sua mudança ou interrupção” (BRASIL, 2016a, p. 9).
Essa questão foi discutida cuidadosamente durante a elaboração do texto da Resolução No 510/2016, e foi consensual que, nas CHS, não é pertinente e, muitas vezes, não é possível a elaboração de relatórios parciais. Nas palavras de Duarte (2014):
Uma coisa são as previsões e declarações formais que, na melhor boa-fé, se pode fazer no momento de planejamento de uma pesquisa, outra são aquelas que efetivamente se apresentam na dinâmica concreta. [...] nas CHS o caráter processual é intrínseco, permanente, já que a experiência da interlocução de campo é fonte contínua de retroalimentação do projeto, que “aprende” justamente no “caráter processual e dialógico” da pesquisa [...]. Não há como comunicar alterações dos procedimentos de pesquisa, porque o próprio desenho da pesquisa prevê que eles sejam alterados ao longo do seu curso. (DUARTE, 2014, p. 19).
Por isso, constitui-se em uma grave (des)informação a Conep orientar que os pesquisadores das CHS devem apresentar relatório parcial, uma vez que não há na Resolução No 510/2016 nenhuma menção em relação a isso.
Plataforma Brasil
Embora a coordenação da Conep tenha firmado o compromisso de que a Plataforma Brasil teria dois ramos: um para as CHS e outro para a Biomédica, e que apenas as informações básicas do pesquisador e o título do projeto teriam a mesma entrada, nenhuma alteração nesse sentido foi feita até o momento em que escrevo este texto. Nem mesmo houve a inclusão da pergunta “esse projeto é CHS?”. A justificativa tem sido a falta de recursos financeiros, que, entretanto, não se sustenta, pois, nesse período, foram feitas outras alterações na Plataforma Brasil. Na ausência de acesso ao orçamento da Conep, que solicitei presencialmente e por e-mail algumas vezes, porém sem recebê-lo, não é possível sequer discutir essa justificativa. Sendo custeada com dinheiro público, mais especificamente da verba destinada ao SUS, seria fundamental que esse orçamento estivesse disponível no próprio site da Conep, dado que a transparência na gestão dos recursos públicos é de interesse de toda a sociedade.
Durante as perguntas feitas na 5ª Jornada do Sistema CEP/Conep, surgiu a informação de que há CEP solicitando que o pesquisador informe, na Plataforma Brasil, o número de possíveis participantes, o que nem sempre é possível de ser estimado. Nesse caso, parece-me adequado utilizar a orientação da Carta Circular No 110-SEI/2017-CONEP/SECNS/MS, que orienta o preenchimento da Plataforma Brasil para pesquisas em CHS, na qual se lê, no item “e”:
No item “informe o número de indivíduos abordados pessoalmente, recrutados, ou que sofrerão algum tipo de intervenção neste centro de pesquisa”, quando da impossibilidade de estimativa do número de participantes, o pesquisador deverá inserir o número “0” neste campo, número este que deve estar de acordo com o preenchimento do item “Tamanho da Amostra no Brasil”. (BRASIL, 2017, p. 2, grifo do autor).
Considerações finais
O tempo passa, mas a Conep continua a mesma. Sua hegemonia positivista, representada pela ampla maioria biomédica, resulta em orientações contraditórias sobre a utilização da Resolução No 510/2016, em termos de composição dos CEP e da apreciação ética dos projetos de pesquisa.
Durante minha prática reflexiva, senti, em vários momentos da minha atuação na Conep, a necessidade de me adequar ao padrão dominante dessa Comissão, um desejo de pertencer. Isso me levava a questionar aspectos importantes do meu trabalho, em especial sobre o que é ciência e quais são as metodologias válidas. Isso me ajuda agora a pensar no que poderia levar membros da Conep com formação nas CHS - já que todos que fizeram apresentações na 5ª Jornada têm formação CHS - a seguir a lógica biomédica majoritária, em um processo semelhante à vítima que se identifica com o agressor. No esforço para ser aceito e respeitado nesse contexto, abre-se mão de questões básicas da sua área de conhecimento e do respeito à Resolução No 510/2016, tão arduamente conquistada.
É preocupante ouvir esse vasto material produzido pela Conep, pois ela divulga uma determinada concepção do que é ética e do que é ciência, sem em nenhum momento alertar que o poder de definir o que é ciência é próprio do campo científico, marcado por questões políticas e epistemológicas. Sem esse alerta, o ouvinte desavisado encanta-se pelo discurso da proteção do participante, como se fosse um canto de sereia. No mito da Iara, a sereia cantava tão lindamente que atraia os marinheiros para o mar, e eles nunca mais eram vistos. Será que corremos o risco de que isso aconteça com qualquer concepção de ciência que não se baseie no positivismo? Será que, após o encantamento inicial, perceberemos que, em nome da proteção do participante, se subordina toda pesquisa que não cabe na concepção positivista? Discuti anteriormente essa questão com cuidado (ver ZITO-GUERRIERO, 2015).
Van den Hoonaard (2006) e Van den Hoonaard e Connolly (2006) escreveram dois textos importantes mostrando as alterações identificadas nos Mestrados em Sociologia e em Antropologia após a publicação das normas de ética em pesquisa no Canadá. Lá, como aqui, na época em que esses artigos foram escritos, a diretriz vigente era totalmente baseada na pesquisa Biomédica. Assusta, também, o tamanho atual da Conep, que conta hoje com 65 assessores, que, em geral, são contratados por projeto, o que implica que, periodicamente, seus contratos vencem e, se não forem renovados, a pessoa fica sem emprego. Nesse caso, um emprego bem remunerado. Questiona-se quem faz a seleção desses profissionais, pois nessa situação há a possibilidade de criar uma lealdade, uma necessidade de retribuição por ter sido selecionado. Levei anos para perceber que as informações de trabalho fluíam rapidamente do GT CHS/Conep para outros membros da Conep, mas, se algum de nós perguntasse sobre o andamento de outro GT, estávamos sempre correndo o risco de ouvir que não seria ético passar a informação. O discurso do que é ou não é ético na Conep muda dependendo dos interesses em questão.
Essa imensa estrutura centraliza todo o processo de revisão ética, seja porque é responsável pelo registro, pelo monitoramento e, se necessário, pela suspensão dos CEP, seja porque elabora as normas sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil. Essa centralização e a imposição de uma única concepção do que é ética e pesquisa resultam em um total alijamento dos pesquisadores das CHS dos processos decisórios, cabendo-lhes tão somente o papel de usuários do sistema CEP/Conep, ou, para uma parcela bem menor, membros desse sistema. No entanto, são membros que não gozam do mesmo prestígio que os colegas, também membros, da área Biomédica. Até quando aceitaremos essa situação? Em especial se considerarmos o custo da manutenção dessa estrutura, que, de tão pesada, é muito cara. Pior, utiliza verba do SUS para sua manutenção. O discurso do risco está muito presente no material (des)educativo elaborado pela Conep, e isso é absolutamente necessário para criar medo e convencer a todos quão perigosas são as pesquisas envolvendo seres humanos. Tão perigosas que justificam que a sociedade brasileira retire parte do dinheiro destinado ao SUS para pagar suas despesas, cujo montante não é divulgado publicamente, mas que facilmente se percebe que é alta.
A falta de transparência é uma característica da Conep, seja na ausência da apresentação de seu orçamento, seja no seu processo de trabalho. Em 2013, na primeira reunião do GT CHS/Conep, solicitamos que a existência desse GT, os nomes, as instituições representadas e a missão fossem colocados na página da Conep. Isso nunca foi feito. Que outros grupos estariam trabalhando nesse momento, qual sua composição e seu propósito? Não sabemos. A estratégia de blindagem é continuamente reforçada. O podcast 25 informa que tudo que é dito em uma reunião deliberativa, seja no CEP ou na Conep, não pode ser divulgado (COM CIÊNCIA…, 2022). Justifica-se com três razões essa orientação: a primeira para proteção do participante de pesquisa; a segunda pela proteção do membro relator; e a terceira para proteção do direito autoral do projeto. As duas últimas parecem-me justificar que nada que se teve acesso sobre os projetos pode ser divulgado, nem a identidade do relator de cada projeto específico. Contudo, a primeira justificativa não faz sentido nenhum, pois, pelas normas, a pesquisa não pode começar antes da aprovação do sistema CEP/Conep. Desse modo, não tem sentido não divulgar o que foi dito na reunião para proteger o anonimato do participante de pesquisa, uma vez que não há participantes incluídos nas pesquisas em discussão14.
Parece-me que a estratégia de manter tudo em segredo, em especial os gastos e os processos de trabalho visam manter a hegemonia positivista, no âmbito mais amplo; e os interesses pessoais de alguns que se mantém há anos na Conep. Se essas intenções forem apresentadas, creio que poucos de nós concordaríamos em arcar com um orçamento tão alto. A situação é séria e exige providências. É importante perguntar quem controla o controlador? Como a Conep passou de algo em torno de seis assessores (durante meu primeiro mandato, 2003-2007), para os atuais 65? Após tantos anos atuando nesse sistema, e com tanta dedicação, percebo quão inadequada é essa situação e parabenizo a iniciativa do FCHSSALLA pela elaboração da “Nota pela retirada do Artigo 73 do PL 7082/2017” 15. De toda maneira, é importante aprofundar essa análise para que se evite cometer os mesmos erros em outro lugar.
A aprovação da Resolução No 510/2016 foi um marco importante e seu conteúdo tem especial relevância por ser a única norma que trata das pesquisas em CHS, o que indica a competência do GT CHS/Conep e a sensibilidade da coordenação do CNS, bem como de sua mesa diretora durante o período de elaboração da Resolução No 510/2016, entre 2013 e 2016. É importante defendê-la em seu texto e trabalhar para um sistema de revisão ética em que haja valorização da experiência contextualizada, quem sabe invertendo essa lógica “de cima para baixo” e superando a hegemonia de que uma única definição de pesquisa e de ética “serve” para todas as áreas. A elaboração de um documento específico para área de Educação, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) (MAINARDES, 2017a) avança nessa direção.