Introdução [1]
As bases da obutchénie [2] e do ensino desenvolvimental estão intimamente atreladas ao enfoque histórico-cultural da psicologia. O psicólogo bielorrusso L. S. Vigotski foi o primeiro, no interior dessa perspectiva, a estabelecer os dois problemas fundamentais sobre a relação recíproca entre os processos de obutchénie e de desenvolvimento do psiquismo humano: por um lado, compreender essa relação em geral desde uma óptica dialética, pelo outro, identificar as características específicas dessa inter-relação na idade escolar (Vigotski, 2005). Sobre essa questão Vigotski (1933/34-2007) escreveu:
A questão da obutchénie e do desenvolvimento das crianças em idade escolar é o aspecto mais central e fundamental, sem o qual os problemas da psicologia pedagógica [...] não podem, não só, ser adequadamente resolvidos, mas definidos (p. 1) (Destaque nosso).
Vigotski formula também, com base em resultados de pesquisa, uma nova concepção para a solução correta dos dois problemas anteriormente examinados: a teoria da área de desenvolvimento potencial, a qual parte do pressuposto de que se existe uma relação entre determinado nível de desenvolvimento e a capacidade potencial da obutchénie quando se pretende definir a efetiva relação entre esses processos não se pode limitar a um único nível de desenvolvimento. É preciso determinar, pelo menos, dois níveis, do contrário não será possível identificar essa inter-relação em cada caso específico. O primeiro desses níveis é: o nível de desenvolvimento efetivo, entendido como o nível real de desenvolvimento das funções psicológicas superiores que se conseguiu como resultado de um processo específico já realizado. O segundo dos níveis é: a área ou zona de desenvolvimento potencial, que diz respeito a aquilo que a criança pode fazer hoje com o auxílio dos professores e amanhã por si só (Vigotski, 2005).
Além disso, Vigotski elaborou a tese teórica sobre o papel da obutchénie e da educação no desenvolvimento psíquico humano. Considerou ineficaz a obutchénie orientada até uma etapa do desenvolvimento já alcançado porque não é capaz de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. Defendeu a ideia de que a obutchénie e a educação não apenas estimulam, favorecem ou retardam o desenvolvimento humano, mas o determinam, quando se adianta a ele. Chegou a considerar que a obutchénie adequada era o aspecto internamente essencial e universal do processo de desenvolvimento das características humanas, pelo que “a pedagogia não deve orientar-se em direção do passado, mas na direção do futuro (do amanhã), do desenvolvimento” (Vigotski, 2010, p. 114).
Na sua última obra, Pensamento e Fala, Vigotski (1934/2007) voltou a reiterar sua tese sobre o problema da vinculação entre os sistemas de obutchénie/educação e o desenvolvimento da mente da criança. A esse respeito Vigotski (1934/2017) escreveu:
[...] o período de escolaridade como um todo é o período ótimo para a obutchénie de operações que exigem consciência e controle deliberado; a obutchénie destas operações impulsiona ao máximo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores na altura da sua maturação (p. 103) (Destaque nosso).
Contudo, Vigotski não chegou a conferir, no plano prático, o papel e o efeito real que a obutchénie exerce no desenvolvimento. A definição, o conteúdo, a estrutura, o processo de formação e o papel da “obutchénie adequada”, como elemento essencial do processo de desenvolvimento, ficariam apenas colocados na forma de hipótese a ser resolvida experimentalmente por psicólogos e didatas no futuro. Zaparozhets (1905-1981), quase trinta anos mais tarde, seria um dos primeiros a afirmar o tipo de obutchénie e de educação capaz de gerar o desenvolvimento desejado. De acordo com esse autor, a influência da obutchénie no desenvolvimento humano dependia, por um lado, do modo (conteúdo e método) como se realizava essa influência, pelo outro, do desenvolvimento real atingido pelo sujeito até o presente momento. A esse respeito escreveu que “o efeito dos agentes externos, a influência da educação e da obutchénie, dependem de como se realizam estas influências e do terreno formado já anteriormente sobre o qual recaem" (Zaporozhets, 1961, p.498).
Colocada do ponto de vista teórico a questão de que a educação era capaz de impulsionar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores quando a obutchénie é adequada para esses fins, surgia então um novo desafio: mediante qual modelo didático se alcança o resultado ótimo no desenvolvimento dos escolares?
Ensino Desenvolvimental da Atividade
Na verdade, só mais de vinte anos depois de elaboradas as teses teóricas de Vigotski sobre o papel da obutchénie/educação no desenvolvimento psíquico humano é que foi colocado e assumido o desafio de descobrir com qual modelo didático se poderia alcançar o resultado ótimo no desenvolvimento dos escolares. A partir da segunda metade da década de 1950, iniciaram-se pesquisas experimentais com o objetivo de testar na prática aquelas teses vigotskianas e encontrar o sistema didático adequado.
Foi preciso que um conjunto de fatores objetivos e subjetivos estivesse constituído e agisse como premissa desse processo para que o trabalho de estabelecimento dos fundamentos teóricos e metodológicos de um ensino desenvolvimental tivesse início. Entre os fatores mais importantes estão: a) o encontro conjunto entre os membros da Academia de Ciências da URSS e a Academia de Ciências Médicas, que passou a ser conhecido com o nome de “sessão Pavlov”, que fez com que um novo “giro fisiologista” fosse oficialmente assumido como definidor do carácter marxista da psicologia (González Rey, 2016b, p.46) e, por consequência, também didático; b) o estreito vínculo que sempre existiu entre a Psicologia e a Didática soviéticas históricoculturais, que preparou o terreno para a consolidação de uma vertente fecunda da psicologia, conhecida com o nome de Psicologia Pedagógica, ocupada em estudar, como tema central, as condições que dão maior efeito ao desenvolvimento (Talízina, 2000); c) a morte de J. V. Stalin (1953), que põe fim a um longo período de censura e repressão a obras e autores importantes; d) a publicação das principais obras de L. S. Vigotski, inclusive trabalhos inéditos, em alguns dos quais se aborda a relação entre obutchénie e desenvolvimento (essas obras começaram a ser divulgadas em 1956); e) o abrupto surgimento entre os psicólogos, até o momento ocupados com outros assuntos, de um explícito interesse por temáticas relacionadas com a obutchénie e o desenvolvimento, bem como com a natureza das leis objetivas da relação entre a obutchénie e o progresso paulatino do desenvolvimento global das crianças da escola primária (cf. Puentes & Longarezi, 2017b).
O passo inicial na direção de uma nova didática foi dado pelo eminente psicólogo e educador L. V. Zankov [3] (1901-1977), aluno, colaborador e seguidor de L. S. Vigotski, no começo do curso escolar 1957/58, na Escola n. 172 de Moscou. Depois dele, e quase que de imediato e muito paralelamente, outros psicólogos e didatas soviéticos, vinculados diretamente a Vigotski, tais como, P. Ya. Galperin e D. B. Elkonin iniciaram por separado, com grupos de trabalhos próprios estudos muito similares em laboratórios (Galperin e sua seguidora N. F. Talizina) ou em escolas experimentas e públicas de massa (Elkonin e seus seguidores, principalmente, V. V. Davidov, em Moscou, e V. V. Repkin, em Kharkov).
Essas pesquisas rapidamente se estenderam para além das fronteiras da Escola n.172, dos limites da cidade de Moscou, da República Federativa Russa, espalhando-se por instituições escolares de outras repúblicas, em cidades, tais como, Leningrado (hoje São Petersburgo), Tula, Kalinin, Riazan, Riga, Kiev, Kharkov, Baku, Kazan, Gorki, Omsk, Alma-Ata, Novosibirsk, Abakan, Krasnoiarsk, etc. (Aquino, 2013; Guseva, 2015), para chegar a atingir, na segunda metade da década de 1990, aproximadamente 10% do sistema de ensino público.
Surgia assim o que temos optado em chamar de Ensino Desenvolvimental da Atividade (Puentes, 2017; Puentes & Longarezi, 2017a), integrada não apenas por um único sistema didático adequado, tal e como parecia sugerir Zankov (1975/84) [4] , mas por um número maior de diferentes sistemas, entre os que têm se sobressaído os sistemas Zankoviano (cf. Aquino, 2013; Guseva, 2015), Galperin-Talízina e Elkonin-Davidov (cf. Puentes, 2017).
O Ensino Desenvolvimental da Atividade, ao mesmo tempo em que dispõe de uma matriz teórica comum que se inspira na obra de L. S. Vigotski (1956, 1960, 1982, 1983, 1984, 1996), S. L. Rubinstein (1946, 1958, 1976) e A. N. Leontiev (1959, 1983), entre outros, interpreta de maneiras diferentes alguns dos principais postulados desses autores, sobretudo de Vigotski. Propicia, com isso, o surgimento de posicionamentos epistemológicos diversos, acentuadas divergências teóricas e críticas explícitas entre os representantes, que ficaram mais claras, entre Elkonin e Zankov. Mas, geraram, sobretudo, um volume tal de produção intelectual, científica e acadêmica de uma riqueza conceitual, epistemológica e metodológica que não tem igual na história da didática contemporânea.
Esse é o motivo pelo qual é possível afirmar que o Ensino Desenvolvimental da Atividade ainda representa o movimento pedagógico mais genuíno engendrado no interior do enfoque histórico-cultural da psicologia e da didática marxista, sem que, por isso, se omitam as limitações teóricas e metodológicas a ela associadas próprias de um determinado momento histórico e de um determinado nível de desenvolvimento da ciência. Para que se tenha uma ideia, os três principais sistemas didáticos mencionados elaboraram, ao todo, mais de dez teorias diferentes de enorme relevância e atualidade [5] , entre as que podem ser mencionadas, as seguintes: 1) teoria da formação por etapas das ações mentais e os conceitos, 2) teoria psicológica da atividade de estudo, 3) teoria didática da atividade de estudo, 4) teoria da generalização substantiva, 5) teoria da modelagem genética, 6) teoria da transição de um nível para outro, 7) teoria do diagnóstico da atividade de estudo, 8) teoria da cooperação, 9) teoria do movimento de ascensão do abstrato ao concreto, etc.
Contudo, o termo Ensino Desenvolvimental tem provocado não poucas confusões no ocidente, inclusive, no Brasil. O mesmo tem sido empregado a maior parte das vezes de modo errôneo e reiterado para identificar apenas uma parte significativa, mas parcial, dos verdadeiros idealizadores dessa concepção. No Brasil, é comum que seja associado ao sistema Elkonin-Davidov, em especial à Teoria da Atividade de Estudo e, mais especificamente, à obra de V. V. Davidov. Com isso, tem prevalecido uma visão fundamentalmente incompleta, moscovita e, sobretudo, davidoviana do termo Ensino Desenvolvimental. Para agravar ainda mais a situação, soma-se a isso a enorme dificuldade que enfrentam os pesquisadores para acessar a produção científica em língua russa, o que obriga a consultar traduções efetuadas muitas vezes por nativos que dominam o português, mas que desconhecem a teoria, ou por estrangeiros que manifestam um profundo domínio da teoria, mas que por algum motivo, fizeram cortes drásticos e comprometedores em algumas das obras e trabalhos por eles traduzidos.
Entre os méritos que atribuem a Davidov, fora da Rússia, está em haver introduzido pela primeira vez, em 1986, o termo de Ensino Desenvolvimental na psicologia do desenvolvimento e pedagógica, na didática e nas metodologias do ensino com a publicação de seu livro mais conhecido internacionalmente Проблемы развивающего обучения: Опыт теоретического и экспериментального психологического исследования (Problemas do ensino desenvolvimental: a experiência de pesquisa teórica e experimental na psicologia, (1986)), onde o termo é amplamente utilizado a começar pelo título. [6]
O certo é que não há como atribuir categoricamente a Davidov a paternidade do termo sem que uma pesquisa a respeito seja produzida. Além disso, o mesmo vem sendo utilizado pelo menos desde o começo da década de 1980, por tanto, antes da publicação do livro Problemas do ensino desenvolvimental (1986). A referência mais antiga que se tem do termo Ensino Desenvolvimental está associada a uma obra da qual Davidov aparece como autor principal, cujo título é Учебная деятельность и моделирование (Atividade de estudo e modelagem, em coautoria com A. U. Vardanian, (1981).
Depois da publicação da obra Atividade de estudo e modelagem (1981), o termo passou a ser de uso sistemático em palestras, artigos e livros, não só de Davidov, mas também por outros autores[7]. Por outra parte, antes do uso do termo, no período que se estende entre 1957-1981, tanto seu significado como seu sentido estavam presentes no aparelho conceptual, epistemológico e metodológico de autores que procuravam, seguindo as pegadas de Vigostki (1933/34, 1956, 1960, 1982, 1983, 1984, 2005, 2007, 2010), Rubinstein (1946, 1958, 1976) e Leontiev (1959, 1983), encontrar as condições didáticas adequadas que aproveitassem ao máximo o potencial do ensino-aprendizagem para o desenvolvimento psíquico humano.
L. V. Zankov, criador do sistema Zankoviano, que parece não ter usado a expressão em sua obra, também estava imbuído do espírito que diz respeito a uma obutchénie que conduz à obtenção de um desenvolvimento geral ótimo no ser humano. No livro Obutchénie e desenvolvimento, Zankov (1975/1984) afirma:
O objeto do estudo consiste em evidenciar a lógica pedagógica objetiva na correspondência entre obutchénie e desenvolvimento. Quando a correspondência entre obutchénie e o desenvolvimento se estuda como problema pedagógico, adquire uma importância primordial a busca e a fundamentação das vias da obutchénie que conduzem à obtenção de um desenvolvimento geral ótimo. (Zankov, 1975/1984, p. 15, tradução e destaque nosso).
A estrutura de nosso sistema didático experimental se orienta para um desenvolvimento geral ótimo dos estudantes, parte do postulado acerca do papel determinante do caráter da obutchénie sobre o desenvolvimento geral do escolar (p. 212) (tradução e destaque nosso).
Galperin e Talizina, sobretudo o primeiro, também parecem não ter usado o termo Ensino Desenvolvimental. Contudo, assim como Zankov, comungavam de igual modo dos mesmos princípios que Elkonin e Davidov. Talizina (2000) chegou a escrever:
[...] o processo de aquisição da experiência social desempenha um papel decisivo no desenvolvimento do indivíduo. A obutchénie é um dos tipos dessa aquisição. Qualquer tipo de obutchénie se dirige à mudança do indivíduo e ao incremento de suas possibilidades, isto é, a seu desenvolvimento. (p. 305) (tradução e destaque nosso).
A obutchénie que proporciona a formação de novas formações psicológicas é desenvolvimental. A ciência que cria as condições objetivas e subjetivas para esse tipo específico de obutchénie é a didática desenvolvimental. E quanto a isso não parece haverem controvérsias entre os três sistemas mencionados.
Sistema Zankoviano (1957-1977)
O presente texto trata especificamente do sistema Zankoviano, mas não o esgota. Pelo contrário, apenas cria as condições para seu estudo futuro ao localizar e analisar: 1) as principais etapas no processo de gênese, estruturação e consolidação do mesmo; 2) os diversos grupos que o constituem, suas especificidades, as parcerias entre eles estabelecidas, bem como seus representantes; 3) as teorias desenvolvidas ao longo de décadas de pesquisa e experimentação didática; 4) as frentes de trabalho mais importantes; 5) as numerosas e valiosas obras concebidas, elaboradas e publicadas, individuais e coletivas, como resultados desse trabalho; 6) as contribuições teóricas e metodológicas realizadas, bem como suas limitações, em especial, aquelas relacionadas com o período de 1957 a 1977.
Para a realização da pesquisa, contou-se, em primeiro lugar, com fontes nos idiomas russo, inglês e espanhol, a maior parte delas pouco conhecidas no ocidente, sobretudo, no Brasil; em segundo, com o apoio valioso de numerosos pesquisadores brasileiros, cubanos e russos; em terceiro, os estudos precedentes sobre a obra de Zankov (Aquino, 2013; Guseva, 2017). Do ponto de vista metodológico, o estudo foi organizado da seguinte maneira: 1)-localizaram-se os principais representantes do sistema; 2)-identificaram-se e ordenaram-se cronologicamente as obras mais relevantes elaboradas no interior do sistema; 3)-acessou-se uma parte da produção científica em russo, ainda que pequena, disponível gratuitamente na internet em versão on-line.
O sistema Zankoviano completou sessenta anos em setembro de 2017. As teses fundamentais desse sistema foram desenvolvidas por L. V. Zankov, em colaboração com um grupo de cientistas (I. I. Arguinskaia, T. Berkman, I. Budnitskaia, N. Y. Dmitrieva, R. Zhuravliova, M. Zvereva, N. Indik, M. Krasnova, U. Kuznetsova, G. Kumarina, N. V. Nechaieva, A. V. Poliakova, Z. Romanovskaia, M. Studenkin, I. Tovpinets, Galina S. Rigina, N. A. Tsirulik e N. Chutko, entre outros) e professores das cidades de Moscou,
Leningrado (hoje São Petersburgo), Tula, Kalinin, Riazan, Riga, Kiev, Kharkov, Baku, Kazan, Gorki, Omsk, Alma-Ata, Novosibirsk, Abakan, Krasnoiarsk, Vorkuta, Vologda, Tiumen, Penza, Frunza, entre outras. Os trabalhos tiveram como base pesquisas teórico-experimentais desenvolvidas ao longo de décadas de estudo ininterrupto e colaborativo (Zankov, 1975/84).
Entre a segunda metade das décadas de 1950 e segunda metade de 1970, L. V. Zankov criou um laboratório de pesquisa, constituiu seu grupo de trabalho, definiu linhas de estudo, realizou experimentos formativos em escolas de ensino público primário e divulgou o resultado das descobertas. A maior parte do tempo Zankov trabalhou sozinho com seu grupo de pesquisa. Não se conhecem textos seus escritos em parceria com nenhum dos outros grandes psicólogos e didatas contemporâneos com os quais conviveu e trabalhou anteriormente, diferentemente das parcerias duradouras estabelecidas no interior dos sistemas Elkonin-Davidov e Galperin-Talízina, bem como entre esses sistemas.
Enquanto os sistemas Elkonin-Davidov e Galperin-Talízina tiveram como principais referências teóricas no campo da psicologia, além de L. S. Vigotski, os representantes da escola de Moscou (A. N. Leontiev, P. Ya. Galperin, D. B. Elkonin, etc.) centrada no estudo da atividade, definindo as funções psicológicas como formas internas de atividade (González Rey, 2016a); o sistema Zankoviano orientou-se com base nos trabalhos de L. S. Vigotski e A. N. Leontiev, mas também de K. Ushinski, L. S. Rubinstein e seu grupo (que enfatizavam o estudo da organização psicológica da consciência e da personalidade), tal qual dos representantes da escola de Leningrado (sobretudo, B. G. Ananiev (1935, 1945, 1968, 1977, 1980a, 1980b, 1996, 2007) que definiam o foco de seus trabalhos no estudo da personalidade, da comunicação, das instituições sociais e no desenvolvimento da criança no processo de educação e obutchénie.
A proximidade intelectual entre Zankov e Ananiev parece ter sido muito maior do que era suposto até o momento. Dmitriev (1997) afirma que esta interação começou na década de 1950, quando ambos iniciaram na cidade de Leningrado, provavelmente juntos, um trabalho de pesquisa voltado para o estudo dos efeitos da obutchénie/ educação no desenvolvimento das crianças. A obra escrita de Ananiev foi uma referência importante nas pesquisas realizadas por Zankov e seu grupo. Um total de 7 (sete) trabalhos de Ananiev [8] foram citados no livro Ensino e desenvolvimento (1975), contra 4 (quatro) de Ushinski e apenas 1 (um) de Leontiev.
Pelo contrário, o sistema Elkonin-Davidov, que criou o maior número de escolas experimentais em toda a União Soviética, no contexto do Ensino Desenvolvimental da Atividade, não criou grupos em Leningrado. Além disso, a citação da obra de Ananiev, entre os principais representantes desse sistema, é muito escassa e não diz respeito à assunção de pressupostos teóricos importantes.
O modo como foi lida a obra de Vigotski, junto a influência do pensamento de Ushinski (1857, 1908), de Rubinstein (1976) e seus seguidores, bem como dos membros da escola de Leningrado, deram um rumo muito particular ao sistema Zankoviano. Mais do que isso, geraram numerosas e marcadas discrepâncias teórico-metodológicas entre ele e os demais sistemas didáticos, não apenas no que concerne ao foco de seus estudos, mas também em relação aos pressupostos elaborados e defendidos. Esses aspectos merecem ser estudados futuramente com maior profundidade.
Contudo, essas divergências de caráter teórico e metodológico levaram à confrontos críticos que, com relação a D. B. Elkonin chegaram a ser públicos, explícitos e acentuados. A literatura científica divulgada até hoje no ocidente não retrata fielmente essa realidade, porque obras sobre a temática sofreram censura na década de 1980 com o objetivo de evitar estimular diferentes compreensões do pensamento de L. S. Vigotski[9]. Esse é um dos motivos pelo qual questões do tipo se desconheçam e as marcadas diferenças existentes entre os sistemas citados não são levadas em consideração do modo como deveriam.
Levar esses aspectos em consideração é importante para entender, na hora de se conceber uma nova concepção didática integradora a necessidade de esclarecer as conexões existentes entre a teoria da Atividade de Estudo à outras teorias existentes, de desenvolver uma teoria unificada com base na noção de "atividade" que absorva os aspectos positivos das teorias já existentes (Davidov, 1991). As ideias e teses formuladas no interior dos diferentes sistemas didáticos desenvolvimentais nem se sobrepõem umas às outras e nem são consensuais, pelo contrário, elas se complementam. Daí seu enorme potencial integrador.
Por isso, é preciso reconhecer que o rumo tomado pelo sistema Zankoviano, em relação aos sistemas restantes, se expressa num conjunto de períodos ou etapas que manifestam a diversidade, intensidade e a natureza dos acontecimentos vividos, bem como o efeito dos fatores internos e externos no processo de concepção e consolidação de uma proposta didática de caráter desenvolvimental. Nessa periodização podem ser identificadas quatro etapas diferentes: a)-Etapa I – Gênese e implementação do sistema Zankoviano (1957-1962); b)-Etapa II – Expansão e consolidação do sistema Zankoviano (1962-1977); c)-Etapa III – Dissolução do sistema Zankoviano (1977-1993); d)-Etapa IV – Revitalização e oficialização do sistema Zankoviano (1993-2018).
A seguir, procura-se analisar e avaliar de maneira detalhada e crítica o lugar ocupado, o papel desempenhado e a evolução experimentada pelo sistema Zankoviano ao longo das duas primeiras etapas (vinte anos iniciais). Tal estudo será realizado, quando possível, em relação com os outros dois sistemas didáticos desenvolvimentais das atividades mencionadas (sistemas Galperin-Talizina e Elkonin-Davidov). A escolha das duas primeiras etapas de desenvolvimento do sistema tem a ver com os seguintes aspectos: 1) são, do ponto de vista de contribuições teóricas e metodológicas, as duas etapas mais importantes do sistema;, 2) as melhores sistematizadas até o presente momento por quem têm se destinado a estudar esse sistema ou a obra de seu criador; 3) as de maior volume gerado de produção científica.
Etapa I – Gênese e implementação do sistema Zankoviano (1957-1962)
O sistema Zankoviano, e com ele todo o Ensino Desenvolvimental da Atividade, nasceu da iniciativa do psicólogo e didata L. V. Zankov de realizar, no começo do curso escolar 1957/58, os primeiros estudos experimentais comparados entre salas de aula com modelos expositivos e com recursos visuais. [10]
O objetivo inicial era analisar a relação existente entre a obutchénie e o desenvolvimento. O problema de pesquisa ficaria formulado da seguinte forma: revelar a natureza das leis objetivas que determinam o vínculo entre a obutchénie nos anos iniciais da educação escolar e o desenvolvimento integral dos alunos (Zankov, 1975/84).
O propósito era determinar, especificamente, a natureza e o grau de influência dos métodos didáticos sobre o desenvolvimento geral em estudantes jovens. Aqui radica uma das principais diferenças entre os sistemas Zankoviano e ElkoninDavidov. Enquanto o primeiro sistema acreditava que a relação entre a obutchénie e o desenvolvimento se determinava, no ensino fundamental, pelo tipo de métodos específicos que se utilizam para o tratamento dos conteúdos em sala de aula por parte dos estudantes, o segundo sistema considerava que essa relação dependia do tipo de conteúdo que integra o currículo escolar dos quais os métodos eram apenas uma derivação. (Elkonin, 1966).
Antes das pesquisas zankovianas, não houve na psicologia cognitiva comparações científicas entre a “obutchénie para estimular o desenvolvimento” e a “obutchénie baseada no desenvolvimento alcançado” (Guseva, 2017). Em um artigo publicado, no começo da década de 1960, Zankov (1963) formulou claramente as circunstâncias que tinham levado o grupo ao problema de pesquisa. A esse respeito Zankov (1963) escreveu:
As nossas observações e estudos especiais sugerem que a obtenção de conhecimentos e habilidades de boa qualidade nas séries iniciais, não é acompanhado por um progresso significativo no desenvolvimento mental dos alunos (p. 20).
De acordo com Zankov, os estudos tinham comprovado que a escola não utilizava métodos suficientemente eficazes e, por tanto, não explorava ao máximo as reservas psíquicas dos alunos para seu desenvolvimento, em especial, as mentais, tais como, a atividade de observação, pensamento e uma atitude positiva para o processo de obutchénie. Zankov, também questionou as informações teóricas dos manuais pedagógicos, ao afirmar que, a escola não só poderia fornecer conhecimentos, mas também desenvolver os alunos.
O sistema Zankoviano também tem o mérito de ter sido o primeiro em comprovar experimentalmente a incapacidade do modelo tradicional de educação de explorar as reservas psíquicas das crianças. De acordo com esses estudos, a didática tradicional não era capaz de operar no limite das possibilidades intelectuais dos alunos, motivo pelo qual os conteúdos eram ineficazes para o desenvolvimento mental. Essas constatações foram reconhecidas e levadas em consideração pelos representantes do sistema Elkonin-Davidov na hora de estabelecer as bases da teoria da Atividade de Estudo (Davidov, 1997).
Com o propósito de criar as condições objetivas necessárias para o estudo piloto, foi fundado um laboratório pedagógico. Integrado por uma sala de aula onde estudavam os alunos do grupo experimental, e vários cômodos para os pesquisadores e colaboradores, bem como para todo o equipamento científico (câmera fotográfica, material sinóptico de diferentes tipos, biblioteca de livros infantis, obras dos autores clássicos, reproduções de quadros, álbuns de fotos e monografias sobre artistas). A sala de aula e os outros cômodos objetivavam facilitar a observação do grupo experimental através de uma janela especial; além disso, foi instalado um gravador nos cômodos dos pesquisadores para facilitar o registro auditivo das aulas.
As contribuições mais importantes dessa primeira etapa foram, em primeiro lugar, a elaboração, a partir do estudo piloto da versão inicial do sistema de princípios para a nova concepção didática; em segundo, a proposição de um método de pesquisa pedagógica experimental. O sistema de princípios didáticos, ainda que na época não tivesse tomado sua forma definitiva, teria o papel de orientação e regulação do processo de obutchénie que iria sendo concebido. Tratava-se apenas de dois princípios: 1) A obutchénie do material a um alto nível de dificuldade e a um ritmo acelerado; 2) Enfatizar os conhecimentos teóricos no processo de obutchénie.
O primeiro princípio se baseava na ideia de K. Ushinski sobre a importância da luta com os obstáculos no processo de estudo, “pois o trabalho sem dificuldade não é possível”. Esse princípio procura evidenciar as forças espirituais da criança enquanto resolve problemas, e provocar processos peculiares da atividade psíquica no domínio dos conhecimentos. A esse respeito Zankov et al. (1975/84) afirmaram
Se o material escolar e os métodos de estudo do mesmo são tais que não apresentam dificuldades as crianças que precisam ser superadas, o desenvolvimento se opera de um modo débil e apagado [...] O essencial consiste em que a assimilação de determinados conceitos, ao passar a serem de domínio do estudante, conduzem ao próprio tempo a sua recapacitação em um curso posterior do conhecimento. Assim se opera a sistematização dos conhecimentos que têm uma estrutura complexa (p.30) (tradução nossa).
Por sua vez, a obutchénie a um alto nível de dificuldade exigia que esse processo acontecesse num ritmo acelerado. A ideia era que o estudo de maneira morosa e monótona criava obstáculos e tornava impossível o processo de obutchénie. O essencial estava em que o aluno resolvesse, durante a aula, o maior número possível de problemas e de exercícios. Dessa maneira, teria lugar o enriquecimento permanente do intelecto com conteúdos diversos que criassem as condições favoráveis à uma compreensão mais profunda dos dados obtidos. A esse respeito Zankov et al (1975/84, p.32) afirmam que:
o avançar a grande ritmo não significa apressurar-se no estudo do conteúdo, nem proporcionar com pressa e correndo o maior número de dados aos escolares. O apressamento e a busca de recordes são profundamente distantes de nosso sistema experimental. São igualmente inadmissíveis as múltiplas e chatas repetições. Um rápido ritmo de estudo permite evidenciar as diversas facetas dos conhecimentos adquiridos, aprofundá-los e vinculá-los. Este princípio tem mais um caráter qualitativo que quantitativo.
O segundo princípio, isto é, a ênfase nos conhecimentos teóricos no processo de obutchénie, guarda uma estreita relação com o primeiro. Com outras palavras, não se tem apenas preocupação com o alto nível de dificuldade, mas também com o fato de que essa dificuldade deve consistir no conhecimento da “interdependência dos fenômenos, sua ligação interna substancial”. Zankov et al. (1975/84) escreveu:
[...] não reduz a importância da formação das destrezas e os hábitos dos estudantes dos primeiros níveis. No processo de obutchénie experimental se confere grande importância aos hábitos. No que concerne a sua formação, esta se realiza sobre a base do desenvolvimento geral, da compreensão mais profunda dos conceitos, das relações e dependências. (p.31).
Talvez esse segundo princípio seja uns dos pontos que mais aproxima o sistema Zankoviano aos sistemas Galperin-Talízina e Elkonin-Davidov. Em todos eles prevaleceu a ideia de que o conteúdo reitor do ensino desenvolvimental era o conhecimento teórico. Davidov (1997) reconheceu essa questão do sistema Zankoviano como um de seus aspectos mais positivos. Segundo o autor, o princípio do domínio dos conhecimentos predominantemente teóricos previa a introdução de novos métodos de obutchénie, bem como mudanças importantes no conteúdo do ensino primário da época.
Entretanto, também é verdade que no interior do sistema Zankoviano não existiu um interesse explícito em fundamentar do ponto de vista lógico-psicológico, nem os conhecimentos científicos, nem os conceitos e nem o pensamento teórico. Na verdade, como foi afirmado antes, uma fundamentação da mudança no conteúdo curricular do ensino primário esteve ausente nesse sistema didático. Davidov (1997) escreve “tal conceito – refere-se ao conceito de Atividade de Estudo - e uma compreensão detalhada da essência do conhecimento teórico nesse sistema não pode ser encontrado” (p. 7).
Enquanto que para o sistema Zankoviano interessava o modo (o método) como os conhecimentos teóricos se ensinavam; para o sistema Elkonin-Davidov importava tanto o tipo de conhecimento teórico que deveria integrar o conteúdo escolar, - isto é os conceitos científicos e modos generalizados de ação - bem como a sua aprendizagem. Essa é a razão pela qual o sistema Zankoviano não propôs alterações significativas no conteúdo curricular do ensino fundamental, bem diferente do que fez o sistema Elkonin-Davidov.
Em relação com o método de pesquisa pedagógico experimental, suas bases já tinham sido elaboradas a princípios da década de 1950, a partir dos estudos realizados sobre educação geral, entre 1952-1956, pelo Laboratório de Zankov (Zvereva, s/n). Nesses anos ficou comprovado o valor do experimento pedagógico como método de pesquisa. A partir de 1957, com as pesquisas voltadas para o estudo da relação entre obutchénie e desenvolvimento, o método foi sendo aprimorado, a partir dos pressupostos do materialismo histórico-dialético, da teoria fisiológica da atividade nervosa superior de Pavlov (1972), das teses psicológicas de Vigotski (1933/34) sobre educação e aprendizagem, da teoria da atividade de Rubinstein (1946) e Leontiev (1959), e das primeiras descobertas empíricas.
Entre os postulados fundamentais do método de pesquisa estão: 1) a necessidade de empregar o experimento, na qualidade de método científico geral, que permite estudar as relações de determinadas facetas do processo e encontrar as causas que condicionam a necessidade que surja o fenômeno dado; 2) a necessidade de estudar o objeto no seu movimento, no processo de sua constituição e ao longo de seu desenvolvimento; 3) a necessidade do estudo comparado de sistemas de ensino que se diferenciam por sua estrutura e eficácia e, por tanto, a criação de grupos experimentais e grupos correntes; [11] 4) a necessidade de estudar a lógica objetiva do processo de obutchénie, através da revelação das vias que permitem que sejam alcançados os resultados desejados no desenvolvimento dos estudantes; 5) a necessidade de analisar o estado da prática geral do ensino primário e das características próprias do ensino tradicional; 6) a necessidade de aplicar o método estrutural funcional de estudo dos objetivos que leva ao tratamento das funções que são próprias a estrutura do um sistema de ensino desconhecido; 7) a necessidade de estudar a atividade psíquica dos estudantes em lugar do procedimento contemplativo; 8) a necessidade de estudar o desenvolvimento integral ou geral dos alunos com base na ideia da correlação entre o tudo e as partes, dando preponderância ao tudo; 9) a necessidade de estudar o desenvolvimento integral dos alunos a partir de um sistema integrado de ações pedagógicas, sobre a base de que o sistema de processos internos é condicionado por certo sistema de ações externas; 10) a necessidade de estudar o desenvolvimento integral do aluno a partir do papel que desempenha a assimilação dos conceitos científicos em um sistema de conceitos; 11) a necessidade de estudar não somente algumas disciplinas, métodos ou procedimentos isolados, mas um sistema didático integrado que abarca todo o ensino primário; 12) a necessidade de estudar o papel da educação no desenvolvimento, tendo por base o papel determinante e regulador dos princípios didáticos no concernente a metodologia do ensino; 13) a necessidade de levar em consideração a importância determinante que o princípio da pesquisa multifacetária desempenha no estudo do problema do ensino, a educação e o desenvolvimento (a ideia de estudar todos os aspectos do objeto.
Com a formulação, ainda que provisória, do sistema de princípios didáticos e do método de pesquisa pedagógico experimental poderia se dar por encerrada a primeira etapa de desenvolvimento do sistema Zankoviano e o estudo piloto que se realizava na Escola Fundamental nº 172 de Moscou. Referindo-se ao resultado dessa primeira etapa os membros do laboratório pedagógico afirmaram anos depois
que ainda quando as premissas teóricas, as tarefas e os métodos de pesquisa e as bases da estrutura das novas vias da obutchénie tinham sido estabelecidas antes de iniciar o trabalho na sala de aula experimental, serviu de importante elo durante todo o processo de pesquisa. Teria sido errado iniciar o experimento desde o começo num número grande de salas. Era essencialmente importante o fato de que, na primeira etapa, no processo de trabalho prático instrutivo-educativo, fosse previamente reestruturada e depois analisada cada etapa do processo didático. Ao mesmo tempo, ao longo dos quatro anos, estudou-se a vida da coletividade da sala no conjunto e de cada estudante em sua peculiaridade individual. (Zankov et al.1975/84) p.24-25).
Ressalta-se nessa citação a importância concedida na primeira etapa ao estudo piloto antes da pesquisa em grande escala, com o objetivo de aprimoramento do método, dos instrumentos e, sobretudo, dos pressupostos teóricos. Evidencia-se também a importância concedida por esse sistema ao estudo comparado da evolução dos estudantes ao longo de períodos de tempo significativos, tanto do ponto de vista do sujeito social e como do sujeito individual.
Etapa II – Expansão do sistema: a realização do experimento em condições diversas (1962-1977)
A segunda etapa do sistema Zankoviano se caracterizou pela sua expansão em nível nacional, chegando as escolas urbanas e rurais, tanto russas quanto bilíngues, no caso de antigas repúblicas soviéticas. Durante esses quinze anos o experimento didático passou a ser aplicado em contextos escolares em diferentes condições. Dois aspectos fundamentais do período foram o desenvolvimento definitivo da versão inicial do sistema de princípios didáticos e a elaboração de programas escolares, materiais, currículos e livros didáticos com base nesse sistema de princípios.
Durante o ano escolar 1962-63, o sistema Zankoviano foi adotado por trinta e uma escolas nas cidades de Kalinin e Tula e em 1964, conseguiu apoio oficial do governo da União Soviética espalhando sua metodologia por todo o sistema escolar primário soviético.
Um ano depois, mais de 100 salas usavam o sistema experimental em trinta e sete cidades distintas onde se criaram institutos de pesquisa. No curso escolar 1966/67 mais de 1.200 salas de aula em repúblicas independentes e autônomas, territórios e regiões da União Soviética se juntaram ao experimento (Zvereva; Indik, 1991, p. 110). Em 1968, o Laboratório de Educação Social e Desenvolvimento de Zankov, passou a ser nomeado de Laboratório para os Problemas de Ensino e Desenvolvimento Escolar (Guseva, 2017).
Nessa segunda etapa, Zankov et al. (1975) se depararam com a inesperada descoberta de que o desenvolvimento dos alunos nos anos iniciais era surpreendentemente lento. Pesquisas posteriores sobre esta observação indicaram que os fatores que mais contribuíam para tal situação eram o escopo limitado do currículo escolar e a prática monótona da repetição. A expansão nacional foi aproveitada, então, para dar a conhecer a um número grande de professores de diversas cidades e regiões o novo sistema experimental e mostrar que existiam outras vias diferentes da metodologia tradicional que poderiam ajudar no desenvolvimento integral dos alunos.
Na primeira parte da etapa, com a ausência de livros didáticos, os estudantes dos grupos experimentais utilizavam o material do ano correspondente e seguinte, o que significa que avançavam em relação ao grupo corrente.
Os professores eram formados sistematicamente a partir de reuniões de trabalho realizadas trimestralmente em cidades específicas (Moscou, Tula, Kalinin etc.). Os pesquisadores colaboradores observavam as aulas dos professores e as debatiam coletivamente. Eram ministradas palestras, organizavam-se seminários, ofereciam-se assessorias, dirigiam-se as atividades de comprovação do controle que se recebia do laboratório de pesquisa, efetuavam-se as primeiras análises e os institutos de pesquisa apresentavam ao laboratório relatórios relacionados com o trabalho experimental. Ao final, as aulas do próximo trimestre eram planejadas coletivamente. De acordo com as publicações do grupo, Zankov et al. (1975/84) escreveram:
Com a intervenção dos professores se traçavam as exigências que deviam ser apresentadas em quanto ao caráter e a ordem das tarefas e exercícios e, correspondentemente, procedia-se a elaboração posterior dos novos materiais de ensino (p. 26).
Desses encontros trimestrais foram nascendo os programas do ciclo trienal de ensino primário, os manuais didáticos experimentais e os livros metodológicos para os professores. O resultado desse processo de reconstrução foi que “muitas técnicas e metodologias de obutchénie para áreas específicas foram alteradas e muitos novos métodos foram desenvolvidos”. (Zankov et al., 1965/84, p. 8). É importante que pesquisas futuras se destinem a estudar a efetividade teórica e prática desses métodos.
O material pedagógico da segunda etapa deu lugar ao maior e mais rico acervo científico-literário do sistema Zankoviano. Durante quinze anos de trabalho, mais de duzentas publicações significativas foram realizadas, na maior parte livros didáticos. [12] Contudo, três foram relevantes: Дидактика и жизнь (Didática e vida, 1968), Беседы с учителями (Conversas com Professores, 1970) e Обучение и развитие: экспериментально-педагогическое исследование .Obutchénie e desenvolvimento: investigação pedagógica experimental, 1975).
Com base nas novas pesquisas realizadas, encerrou-se o ciclo teórico de elaboração do sistema de princípios didáticos zankovianos. Aos dois princípios iniciais, somaramse outros três ficando o sistema da seguinte maneira: 1) A obutchénie a um alto grau de dificuldade; 2) Enfatizar o conhecimento de conceitos teóricos; 3) Manter um ritmo rápido no cumprimento do currículo; 4) Provocar, no aluno, a consciência de seu próprio processo de obutchénie; 5) Planejar cuidadosamente as aulas para promover a obutchénie de cada aluno em particular. Seus biógrafos russos e brasileiros (Guseva, 2017; Aquino, 2013), abordam com riqueza de detalhes esses novos aspectos importantes do sistema de princípios didáticos Zankoviano, o que evitamos retomar por uma questão de espaço.
Gostaríamos de focar a nossa análise em três questões de extrema relevância que caracterizam a proposta do sistema nessa segunda etapa: 1) o papel atribuído à cooperação; 2) a visão zankoviana da teoria da zona de desenvolvimento próximo; 3) o lugar atribuído às emoções no desenvolvimento do pensamento. Essas questões estão intimamente relacionadas ao entendimento que se tinha da obra de Vigotski, ao resultado obtido a partir das pesquisas experimentais realizadas e ao sistema de princípios didáticos.
Em primeiro lugar, de acordo com Zankov (1963) a essência das teses teóricas de Vigotski é que o desenvolvimento da atividade mental da criança é genuinamente social por natureza, por tanto, a obutchénie era uma condição decisiva desse processo. Sendo assim, a questão da relação entre o professor e os alunos no âmbito pedagógico se resolveria por intermédio da criação e utilização de métodos didáticos altamente eficazes, tarefa que foi assumida com significativa disciplina e prontidão, sobretudo, para o ensino de matemática, língua russa, música, criação literária, conhecimentos sobre natureza, etc.
Em segundo lugar, Zankov (1963) concluiria, a partir do material factual obtido no decorrer das pesquisas, que a chamada zona de desenvolvimento próximo não representava a única alternativa viável (como tinha sido sugerido por Vigotski (1933/34) da obutchénie afetar o desenvolvimento mental das crianças. Pelo contrário, o papel específico da obutchénie poderia agir no desenvolvimento ainda naquelas situações em que a imitação do professor por parte da criança é descartada, isto é, no processo de solução independente das questões didáticas colocadas. Desse modo, o sistema Zankoviano, ainda reconhecendo a importância da cooperação da criança com os adultos (o professor) na zona de desenvolvimento próximo, ao mesmo tempo, “transfere o centro de gravidade para a aprendizagem na forma de atividade autônoma dos estudantes”, e limita com isso “o papel da cooperação do professor no desenvolvimento” (Elkonin, 1966, p. 30). Do ponto de vista de Zankov, a consideração de “outras formas”, revela a diversidade de formas de inter-relação entre a obutchénie e o desenvolvimento (Davidov, 1997, p. 67).
Em terceiro lugar, as pesquisas efetuadas pelos membros do sistema permitiram revelar o alto papel ativo dos métodos em relação com a esfera da emoção e da vontade dos estudantes, às suas necessidades espirituais. As pesquisas foram utilizadas para comprovar a relação intrínseca entre a formação do pensamento independente e as emoções. Há abundantes referências a esses aspectos ao longo da obra publicada.
Nenhum dos outros sistemas didáticos manifestou uma preocupação explícita por estudar a relação entre os aspectos cognitivos e emocionais no processo de desenvolvimento integral das crianças. O foco sempre esteve no desenvolvimento das funções cognitivas, especialmente o pensamento, e no modo como o desenvolvimento dessas funções conduzem a formação das emoções, afetos e sentimentos.
No caso do sistema Zankoviano, observa-se um interesse explícito por envolver aspectos da personalidade dos estudantes no processo pedagógico. Toma-se em conta a caracterização geral das emoções e define-se da seguinte maneira: “A emoção se caracteriza como a atitude do homem perante o mundo, na direção daquilo que experimenta e realiza na forma de sentimento direto” (Zankov et al., 1975/84, p. 63) (Tradução nossa).
Entretanto, ainda falta nessa análise da relação entre o pensamento e as emoções um enfoque verdadeiramente dialético. Aqui as emoções são vistas, como era muito comum na época, como força propulsora do pensamento. A esse respeito se diz: “As emoções têm uma força motivadora. Podem elevar ou reduzir a atividade vital; nisso está sua importância dinâmica” (Zankov et al. 1975/84, p. 63) (Tradução nossa). De acordo com González Rey (2017):
Aqui zankov se aproxima ao emocional da mesma forma em que o fez Piaget ao final de sua obra. O emocional como combustível da operação intelectual, mas não como algo intrínseco a ela. E é precisamente a configuração subjetiva do pensamento a que faz desse um processo simbólico que não se esgota no intelectual (p. 4).
Considerações finais
Independentemente do progresso alcançado pelo sistema Zankoviano ao longo das duas primeiras etapas de desenvolvimento, a morte de L. V. Zankov, em 1977, praticamente colapsou o mesmo. A perca de força foi repentina. O laboratório pedagógico foi imediatamente dissolvido e todas as classes experimentais fechadas.
Nas décadas seguintes, o sistema passou a ser praticado somente em algumas salas de aula experimentais e um período de “estagnação” tomou conta dele. Nos anos 1980-1990 o trabalho continuou a ser realizado a partir do esforço individual dos membros do sistema, a equipe do laboratório dando andamento à atividade de desenvolvimento do sistema pedagógico de obutchénie no nível primário e os professores efetuando as aulas experimentais sem recompensação financeira.
Só dezesseis anos depois, em 1993, o Ministério da Educação da Rússia retomou o programa concebido por Zankov com a criação do Centro de Pesquisa Metodológica da Federação Russa L. V. Zankov, para o qual foi chamada a maior parte de seus discípulos e antigos colaboradores. O grupo retomou os trabalhos práticos sobre a identificação das condições para o desenvolvimento das crianças. O resultado dessas pesquisas gerou mais de 500 publicações no total e, a partir de 1996 o sistema passou a ser, junto com o sistema Elkonin-Davidov, oficialmente reconhecido pelo Ministério da Educação e recebeu vários prémios pela qualidade do material didático elaborado.
O foco do sistema Zankoviano esteve e ainda está na proposição de métodos adequados de obutchénie para a formação do pensamento nas crianças das séries iniciais. O modelo está baseado no pressuposto de que os métodos didáticos apropriados estimulam o desenvolvimento integral dos alunos. Zankov elegeu a metodologia criada sob a direção de Vigotski cujo sentido consiste em “descobrir o papel da palavra e o caráter de seu emprego funcional no processo de formação do conceito” (Zankov, 1975/84, p. 103).
O caráter introdutório do presente artigo impede que aspectos fundamentais do sistema Zankoviano sejam abordados com mais profundidade. Esse desafio fica colocado para estudos futuros.