Considerações iniciais
Para Freire (1996), enquanto educadores, não podemos ignorar o que os educandos trazem consigo de compreensão de mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática social de que fazem parte: sua forma de se expressar, de contar, de calcular, seus saberes do chamado outro mundo (fora da escola) e suas crenças. É necessário evitar a dicotomia entre saberes ditos “populares” e os “eruditos”, ou seja, precisamos compreender e experimentar a dialética entre a “cultura primeira” e a “cultura elaborada” (Freire, 1996, p.44), o que tem sido o eixo fundamental da etnociência.
Ao nos questionarmos do por que não estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos, Freire destaca a necessidade de discutir as implicações sociais políticas e ideológicas que envolvem a escolha e a valorização/desvalorização desses saberes.
Em raciocínio próximo, D´Ambrosio (2009) destaca que a todo instante os indivíduos estão desenvolvendo atividades que abrangem saberes e fazeres próprios da cultura. Estão constantemente comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando, generalizando e utilizando instrumentos materiais e intelectuais que são provenientes de sua prática social. O desafio imposto aos educadores consiste na busca pela conciliação da necessidade de ensinar a “matemática dominante ao mesmo tempo dar reconhecimento para a etnomatemática e as tradições” (p.24) nas quais estão imersos esses indivíduos.
Esse conjunto de características da proposta do Programa Etnomatemática faz com que ele seja frequentemente sugerido como pressuposto teórico para o reconhecimento e valorização das diferentes práticas matemáticas que se apresentam vinculadas à vida cotidiana e ao trabalho dos alunos da EJA. Essa utilização que, em uma dimensão mais politizada, possibilitaria tornar visíveis os diferentes saberes culturais. E também o recorrente argumento de que a percepção do próprio aluno de seu entendimento dos conteúdos desenvolvidos nas práticas educativas em matemática aumentaria sua autoestima e influencia diretamente sua participação nessas mesmas atividades, assim como a continuidade de seus estudos.
Tais considerações são essenciais em se tratando do processo de ensino e aprendizagem relacionado à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em nossos dias, a EJA se apresenta como uma modalidade de ensino que atende a uma expressiva quantidade de estudantes com características muito peculiares. Segundo Rodrigues (2010), uma dessas características predominantes é o fato desses estudantes pertencerem a grupos que vivem simultaneamente em situação de exploração econômico-social e de discriminação cultural-valorativa, o que significa que enfrentam cotidianamente diversas formas de injustiça, inclusive o desrespeito quanto aos seus valores culturais. Um processo educacional mais eficaz nesses casos deve incluir intencionalidades orientadas ao reconhecimento e valorização das diferentes formas de manifestações culturais, seus conhecimentos anteriores e fortalecimento de sua inserção social.
Com o intuito de contribuir para o conhecimento e o enfrentamento deste e de outros grandes desafios da EJA, organizamos um estudo no modelo de estado da arte (GIL, 2009), com artigos publicados no período de 2000 a 2017 em periódicos que façam parte da Listagem Qualis (CAPES-MEC) na área de Ensino de Ciências e Matemática. O recorte que apresentamos neste artigo se refere ao período já finalizado, e compreende os dos anos 2000 a 2010. Desse período, tivemos contato com cerca de 16.000 produções, e, após aplicarmos delimitadores, selecionamos 147 artigos para o nosso estudo, que foram classificados dentro de quatro temas: I) Formação/Atuação do Professor/Alfabetizador da EJA; II) Práticas Pedagógicas na EJA; III) Currículo da EJA; e IV) Avaliação da EJA. No presente trabalho, lançaremos foco sobre um subtema do I, que denominamos de “influências e contribuições do Programa Etnomatemática sobre a formação/atuação de professores na EJA”.
Para a análise desses artigos, e posterior construção do metatexto, nos utilizamos da Análise Textual Discursiva (ATD) como forma de compreensão e descrição/ interpretação dos temas de análise. A opção pela ATD deve-se ao fato de suas características propiciarem uma pesquisa qualitativa envolvendo análises criteriosas de textos diversos, e a partir daí uma compreensão dos fenômenos investigados, para em seguida culminar no desenvolvimento de um metatexto que seja representativo desse movimento (Moraes e Galiazzi, 2006, 2011).
O que nos informam as pesquisas
Sob um olhar geral, podemos destacar como pontos comuns básicos das publicações analisados, a ampla defesa da necessidade de uma formação continuada que seja específica para o professor que atua em EJA, independente de sua área de formação. Em uma estreita relação entre a teoria e prática, essa formação deveria incentivar o diálogo como forma de proporcionar ao educador discutir suas atitudes e atos pedagógicos, reformulá-los e redirecioná-los para as complexidades, especificidades e anseios de seus alunos. Dessa forma, o professor torna-se agente de sua própria formação e amplia sua consciência crítica de seu papel social.
Entretanto, verificamos também pesquisas que apresentavam conclusões que nos alertam para a ainda pouca preocupação de cursos de licenciatura de matemática a respeito do tema, tais como a de Kessler (2006), que ressalta a existência de um número ainda expressivo de professores de matemática que entendem sua área como uma ciência neutra, o que significa também “acreditar na neutralidade da prática pedagógica e, portanto, vê-la como desvinculada de caráter político” (p.106). Estas e outras características levariam este profissional a uma postura distanciada de seu aluno, pois além da não compreensão do processo de construção do conhecimento, acabaria por desvalorizar os conhecimentos prévios desse educando. Essa pesquisa ressalta ainda a preocupação comum mais direcionada com o cumprimento do programa curricular do que com a própria aprendizagem dos alunos.
Apresentando também problemáticas relacionadas à EJA, Di Pierro (2005) mapeia as principais polêmicas relacionadas às políticas públicas que regem essa modalidade de ensino. Argumenta que, mesmo após três décadas da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (Lei n.9394/96), a cultura escolar brasileira encontra-se ainda impregnada pela concepção compensatória na educação direcionada aos jovens e adultos, levando a escola a moldar suas práticas tendo por base metodologias, tempos e espaços voltados para crianças, subestimando os alunos adultos e dificultando que os professores valorizem a cultura popular e reconheçam os conhecimentos primeiros desses estudantes. Neste quadro, diversas políticas contribuíram para a manutenção de seu menor status diante das outras modalidades educacionais, pois por muitas vezes “as demandas e necessidades educativas dos jovens e adultos, quando consideradas, foram abordadas com políticas marginais, de caráter emergencial e transitório, subsidiárias a programas de alívio da pobreza” (Di Pierro, 2005, p.1123).
Contudo, diversas outras pesquisas indicaram possíveis caminhos para a melhoria desse quadro, como por exemplo a de Rosa e Prado (2008), que investigou os princípios norteadores de uma formação que possibilite ao educador de EJA desenvolver um trabalho que seja coerente com as necessidades dos educandos, construindo na prática (não apenas no discurso) o processo educacional transformador e voltado para a autonomização dos educandos. Para isso, no educador deve ser estimulada a capacidade de solidarizar-se com os educandos, ter disposição de encarar dificuldades como desafios estimulantes e a confiança na capacidade de aprender e ensinar.
O estudo de Kleiman (2001) nos apresenta análises sobre a interação professor-aluno em classes de alfabetização da EJA. Entre as conclusões apresentadas, a verificação de que aprender a ler e escrever tem envolvido um processo de aculturação, acarretando “perda e a substituição de práticas discursivas orais que até esse momento eram funcionais para o aluno” (p. 274), o que pode culminar em uma rejeição por parte do aluno dessa aprendizagem e configurar-se em mais um motivo de abandono dos estudos. Nesses casos, caberia ao professor buscar integrar o estudante em um processo de construção conjunta de saberes, de diálogo constante, sem que houvesse desvalorização dos saberes tradicionais ou espaço para a omissão e reprodução de desigualdades e diferenças sociais dentro do ambiente escolar.
Verificamos algumas propostas envolvidas nestas concepções relacionadas à preocupação com a melhoria dos espaços formativos, tanto do professor quanto do aluno. Como no estudo de Bello (2006), referente à formação continuada ministrada a professores de matemática indígenas da Bolívia, que se utilizou especificamente da etnomatemática como referencial. Nessa perspectiva, foram identificadas práticas culturais e conhecimentos socializados pela comunidade indígena, tais como os relacionados às estimativas de quantidades de produtos, medição de trabalho e esforço, vantagens e desvantagens nas relações econômicas e predição do futuro e fenômenos naturais. Segundo o autor, dicotomizações como teoria e prática, científico e pré-científico passariam a soar como artificiais e só serviriam para distinguir práticas legítimas de não legítimas, culminando na sobreposição de culturas dominantes e dominadas.
Realizada no Brasil, na cidade de Natal (RN), a pesquisa de Melo e Passeggi (2006) analisou, nas aulas de professores de matemática atuantes em séries de ensino fundamental de EJA que funcionavam no interior de empresas de construção civil, se as estratégias de ensino e aprendizagem utilizadas possibilitavam relacionar a matemática do cotidiano dos alunos com a matemática escolar. As autoras verificaram que era justamente nas aulas de matemática em que a baixa estima de alunos de EJA se tornava mais acentuada e perceptível, pois em geral, não conseguiam resolver em aula as situações- problema utilizando-se do registro escrito. Entretanto, era comum conseguirem resolvê-las por meio de procedimentos de cálculos utilizados em seu dia a dia, operando mentalmente e com grande rapidez. A compreensão por parte do professor de que o educando cria seus próprios procedimentos de cálculo é um caminho para que perceba os possíveis erros ou equívocos decorrentes dos conhecimentos prévios de seus alunos e possa mediar a aprendizagem em matemática “propiciando a (re)elaboração desses conhecimentos e transformando-os em conhecimentos mais elaborados num processo permanente de equilíbrio entre a matemática do cotidiano e a matemática escolar” (p.25).
Focando sobre a formação continuada de professores de matemática em EJA, a produção de Fantinato e Vianna (2007) nos descreve a construção coletiva de textos de matemática para utilização como base teórico-metodológica na formação de professores pertencentes aos quadros da rede municipal do Rio de Janeiro (RJ). A perspectiva teórica eleita pelos professores participantes foi a da Etnomatemática, por analisarem que era a que mais se aproximava de suas práticas docentes e por considerarem ser um caminho para a inclusão de forma contextualizada do educando, e da construção da sua própria identidade enquanto educador da área de matemática.
Nesse mesmo município, Santana (2008) trabalhou em seu estudo com professores de EJA pertencentes à rede estadual e, assim como no anterior, elegeu o programa Etnomatemática como referencial contributivo para as práticas cotidianas desses professores. A autora argumenta que a transformação acadêmica de toda a instituição educacional passa necessariamente por uma “docência renovada e por um docente inovador” (p.14), o que significaria ensinar para a mudança, para a produção de conhecimentos, e não apenas para consumi-los. Sendo a orientação pedagógica do professor o reflexo de suas crenças e valores, a postura desse profissional seria a de compromisso com o saber institucional, com o saber local, e um compromisso político que “busca no processo educacional um espaço para vozes silenciadas diante de um saber institucional dominante” (p.19).
O estudo de Dellazzana, Vestena, Maraschini e Sathres (2006) acompanhou a realidade educacional da EJA em três municípios do Rio Grande do Sul (RS): Nova Palma, Faxinal do Soturno e Santa Maria, por meio de entrevistas realizadas com alunos e professores de comunidades escolares pertencentes a essas localidades. Conclui que, em nossos dias, a EJA reveste-se de uma exigência de justiça social em que devem ser oferecidas as oportunidades necessárias para diminuir o processo de exclusão por que passa uma significativa parcela da população. Para que isso aconteça, deve ser possibilitado ao estudante de EJA, além do desenvolvimento da competência de ler e escrever, dominar símbolos e operações matemáticas e outras relativas às demais áreas do conhecimento. Porém, a tarefa principal do professor de EJA “será sempre a integração do processo educativo às dimensões das práticas sociais, da construção da cidadania e, principalmente, da valorização dos jovens e adultos que se encontram desvinculados dos direitos sociais” (p.36). Ao professor que se encarrega dessa tarefa são exigidas, dentre outras características, às relacionados ao espírito de pesquisa, à prática pedagógica referencial para constante atualização. Em meio a alguns resultados apresentados, a verificação da predominância do sexo feminino atuando na EJA, e a demonstração por parte dos professores de possuírem grande interesse em se aperfeiçoarem, embora reclamem da falta de clareza das leis que regem a modalidade e da falta de uma maior oferta para a formação continuada.
Com foco maior em práticas pedagógicas, algumas pesquisas apresentaram convergências para a defesa de que a formação do professor da EJA deve indicar a necessidade da teoria em ação, o que geraria bons resultados educativos. Destacamos, por exemplo, o estudo de Zorzi e Franzoi (2010) que, sob esta concepção, defende uma relação diferenciada com os saberes no ambiente escolar, destacando a importância de deixar que os saberes e experiências dos alunos “invadam” o espaço escolar.
Considerações finais
Em nosso estudo, destacamos algumas pesquisas voltadas para a EJA publicadas em diferentes periódicos que por vezes apresentaram de forma mais direcionada, e em outras de forma indireta, bases filosóficas do programa Etnomatemática como proposta contributiva da Educação Matemática, a respeito da busca pela melhoria da qualidade de formação (inicial e continuada) do professor, assim como na sua própria atuação no ambiente escolar.
Essa perspectiva Etnomatemática envolve estreitas relações entre teoria e prática, incentivo ao diálogo e reformulação de atos pedagógicos mais críticos com relação ao papel social do docente, e que sejam direcionados para as complexidades, especificidades e anseios dos estudantes da EJA.
Pelo fato de a EJA revestir-se de uma exigência de justiça social, deve ser possibilitado ao seu estudante, além do desenvolvimento de competências relacionadas à leitura, escrita e domínio de símbolos e operações matemáticas, a percepção e a valorização das dimensões das práticas sociais e da construção da sua cidadania crítica.
Entretanto, em meio a diversas pesquisas propositivas e reflexivas a respeito desses novos paradigmas educacionais, foram verificados também estudos que nos dão conta do quanto os cursos formadores de professores ainda estão distantes de discussões envolvendo questões sociais, culturais e políticas.