Estudos sobre propostas curriculares nacionais (Cheeseman et al., 2015, 2014; Samuelsson et al., 2006; Oberhuemer, 2005; Wood, 2004) desenvolvidos em diversos países, entre os quais Argentina, Austrália, Bélgica, Canadá, Chile, China, Escócia, França, Inglaterra, Nigéria, Nova Zelândia, Polônia e Suécia, têm reconhecido alguns fatores como fulcrais na mobilização do interesse de governos e de Agências Transnacionais (AT) e/ou Organismos Internacionais (OI)2 sobre os currículos para a educação de primeira infância. Entre eles, constam a inclusão da criança como sujeito de direitos em marcos regulatórios; a divulgação de estudos e pesquisas3 com evidências sobre a importância dessa etapa educativa no desenvolvimento social, emocional e cognitivo dos sujeitos; os efeitos positivos da frequência das crianças pequenas em creches e pré-escolas sobre o desempenho e a redução dos índices de retenção ao longo do período de escolarização obrigatória, entre outros. Este último, que figura como um dos mais recorrentes, evidencia a primazia de projetos formativos pautados em resultados, com desempenhos medidos por métricas subordinadas às políticas de corte neoliberal. Este conjunto de fatores nos põe em alerta em relação aos perigos da subordinação da educação de primeira infância à lógica da escolarização como uma demanda extrínseca.
Os mesmos estudos também indicam as duas últimas décadas do século XX como referência à ampliação do interesse dos governos e da produção mais acentuada de documentos curriculares oficiais, integrando a educação de primeira infância aos marcos das políticas do conhecimento oficial. Evidenciam que as propostas produzidas nesse marco temporal têm caráter mais abrangente, porquanto definem princípios e eixos pedagógicos norteadores mais gerais, com o objetivo de orientar a atuação docente. Neles, os sujeitos de destino, ou seja, os interlocutores principais do currículo, são os(as) professores(as). Os movimentos de revisão desses documentos ou mesmo de produção de novas propostas, nos últimos anos, têm revelado significativas mudanças nas agendas de atenção. Nos projetos formativos para a educação de primeira infância, o desempenho cognitivo das crianças assume centralidade, aproximando-os, cada vez mais, dos currículos historicamente delineados às etapas de escolaridade obrigatória.
Assim, conforme demonstram estudos de Durli (2019), embora discursivamente as propostas reconheçam a infância como uma condição do ser criança, compreendida no contexto das relações das quais faz parte em diferentes lugares históricos, geográficos e sociais (Kuhlmann Junior, 2001), parece haver aspectos que configuram um núcleo comum nos processos de revisão e/ou construção de currículos para a educação de infância, em contextos nacionais. No exercício de tentar apreendê-los, este artigo interroga as indicações das políticas educativas globais protagonizadas pelos organismos internacionais de formalização de currículos para crianças cada vez mais jovens, baseados na compreensão da infância como valor de fundo econômico para o desenvolvimento de uma nação. As reformas e/ou revisões em curso são tensionadas por propostas cada vez mais pautadas na “racionalidade neoliberal” (Dardot & Laval, 2016, p. 23), em mudanças na economia e no mercado global e menos centradas em especificidades sociais e culturais da infância.
Caracterizado como estudo exploratório, focado em pesquisa documental, considera quatro tipos de fontes na análise dos indicativos de internacionalização nos currículos para a educação de primeira infância no Brasil, a saber: (a) documentos de organismos internacionais nos quais constam considerações sobre a educação de primeira infância; (b) modelos de referência de outros países considerados no processo de construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC); (c) documentos resultantes de consultoria de organizações internacionais encomendados por ocasião da construção da BNCC contendo análises e indicações de mudanças nos textos de política curricular; (d) propostas de formação, provenientes do poder central, na direção de implantar as orientações de organismos internacionais na educação de primeira infância. Os documentos foram mapeados e coletados em ambientes e repositórios digitais nacionais e internacionais diversos, tais como sites e repositórios de documentos da Unesco, ONU, OMC, Banco Mundial, OCDE, King Baudouin Foundation, Ministério da Educação, Movimento Todos pela Base, Todos pela Educação além das bases de dados Scielo, Redalyc, Web of Science, entre outras.
O tratamento analítico dos dados levou em conta a permeabilidade do sistema educacional brasileiro ao movimento global da internacionalização (Thiesen, 2019a, 2019b) do currículo nas políticas curriculares mais recentes, ao que Ball (1994) denomina contexto de influência.
Este artigo está organizado em três seções. A primeira aborda indicativos de internacionalização do currículo da educação básica brasileira. A segunda se concentra nos desdobramentos da internacionalização sobre os currículos da educação de primeira infância no Brasil e, na terceira seção, são elencados alguns achados da análise documental apresentados como prenúncios de escolarização da educação de primeira infância.4
Indicativos de internacionalização do currículo da educação básica
Conforme Beech (2012, p. 415), para além do Estado como um ator fundamental na produção de textos sobre política educacional, também é necessário “considerar outros atores envolvidos na transferência de ideias educacionais entre contextos, como agências internacionais, consultores, universidades, corporações, agências de desenvolvimento, blocos regionais” e Organizações Não Governamentais (ONGs). Por exemplo, a disseminação de conhecimento educacional é considerada atualmente um dos principais papéis da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Banco Mundial (BM), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Comissão Europeia. Embora as propostas dessas agências sejam diferentes, o autor identificou uma série de pressupostos subjacentes comuns revelando um sistema geral de pensamento. Entre eles, aponta uma leitura similar do futuro e o emprego de princípios educacionais muito semelhantes para adaptar os sistemas educacionais à era da informação onde se pode identificar elementos convergentes para um único modelo universal de educação. Logo, por seu escopo espacial, pois a educação em todo o mundo é o seu objeto, as agências transnacionais estão produzindo um discurso educacional global.
É também um discurso global no sentido de tratar-se de uma teoria que, em nome de um verdadeiro conhecimento, e de algumas ideias sobre o que constitui uma boa educação, oferece um modelo universal de educação como estratégia global capaz de resolver a maioria dos problemas educacionais nos mais diferentes contextos locais. (Beech, 2012, p. 422)
Essas agências posicionam-se como especialistas que podem interpretar o discurso educacional global que, em geral, associado a um discurso acadêmico também global (Beech, 2012), é traduzido na forma de propostas educacionais de alcance universal.
Em estudos recentes Thiesen (2019a, 2019b) explora os possíveis alinhamentos da política curricular oficial ao projeto educativo que se hegemoniza em escala mundial e, ainda, das estratégias mobilizadas pelo Estado e pela iniciativa privada para alinhar o sistema educacional brasileiro aos requerimentos e expectativas da internacionalização. Argumenta que existe, atualmente, no “Brasil um conjunto de ações oficiais e não estatais mobilizadas com intenção de aproximar os currículos da Educação Básica aos requerimentos, demandas e expectativas da internacionalização (…)” (Thiesen, 2019, p. 421), assertiva também presente em estudos de Amorim (2012), Libâneo (2014), Sevilha (2014), Aguiar (2009), Silva Jr., Lucena e Ferreira (2011) e Souza (2016).
A internacionalização do currículo na educação básica constitui, conforme Thiesen (2017, p. 1003):
um movimento, ainda inicial, com motivações de natureza política e econômica, que se fortalece mobilizado predominantemente por influência de organismos estatais ou privados – os quais operam em espaços e instâncias transnacionais. Por distintas estratégias e instrumentos, induzem estados nacionais e sistemas educacionais a desencadearem formulação e implantação de reformas em seus currículos de Educação Básica alcançando, inclusive, espaços escolares. São processos que podem incluir desde a formulação de políticas curriculares mais amplas até reconfigurações, redesenhos, adaptações ou adequações curriculares, com foco nos conteúdos de conhecimento, nas aprendizagens dos estudantes, na avaliação e nas respectivas metodologias de ensino.
Em síntese, as pesquisas já desenvolvidas demonstram que o movimento de internacionalização em curso envolve estratégias diversas, tais como a criação ou reformulação de textos das políticas curriculares, reconfigurações ou adequações dos currículos escolares, ações de incentivo à formação inicial e continuada em contextos de cooperação internacional, programas específicos de incentivo à mobilidade de professores e estudantes, criação de escolas internacionais, fortalecimento de intercâmbios do tipo high school, além de outras (Thiesen, 2019b).
Embora essa racionalidade alcance com mais força a educação superior na ampla maioria dos estados nacionais, já se estende também à educação básica obrigatória, espraiando-se para a educação de primeira infância, especialmente, pela via da produção dos textos da política curricular oficial.
Nesse sentido, ademais de documentos internacionais clássicos contendo análises, sugestões e diretrizes à educação (ONU, 1989; European Commission, 19965), nos últimos anos a produção e a divulgação de estudos, relatórios e documentos orientadores sobre a qualidade dos serviços de cuidado e educação da primeira infância tem sido profícua no âmbito de Organismos Transnacionais (European Commission, 2014 e 2016, UNESCO, 2015; OECD, 2017). O documento “Proposta de princípios fundamentais de um Quadro de Qualidade para a Educação de Infância”6 elaborado no âmbito da Comissão Europeia (2014), pode ser considerado nesse escopo. Ele apresenta análise comparativa entre currículos de diversos países da abrangência geopolítica europeia, com o objetivo declarado de orientar a construção e/ou revisão de propostas em seu território. Com discurso contundente sobre o impacto da educação dos primeiros anos ao longo da vida, discorre:
Os primeiros anos, desde o nascimento até à idade da escolaridade obrigatória, são os mais formativos na vida das crianças e estabelecem os alicerces para o desenvolvimento das crianças ao longo da vida e os seus padrões de vida. Neste contexto, a educação e cuidados para a infância de elevada qualidade […] constitui uma base essencial para que todas as crianças tenham uma aprendizagem com sucesso ao longo da vida, para a integração social, o desenvolvimento pessoal e a empregabilidade futura. (European Commission, 2014, p. 4)
Com base em evidências internacionais produzidas por estudos comparados desenvolvidos em diversos países, versando sobre acesso, frequência, qualidade – estrutural, do processo e dos resultados –, orçamento e, também, pelo uso de dispositivos e instrumentos de avaliação, a Comissão Europeia tem sublinhado a importância do acesso a serviços de educação infantil inclusivos e de elevada qualidade. Tais dispositivos mobilizam um processo globalizado, orientado por pressões políticas e econômicas exercidas de fora para dentro e de cima para baixo, para que a educação infantil aumente o seu nível de qualidade, “focando-se na obtenção de resultados de aprendizagens úteis a uma escolarização bem sucedida, que assim espelhará os graus de eficácia e eficiência alcançados e os patamares de produtividade dos/as educadores/as” (Ferreira & Tomás, 2018, p. 70).
Ademais dos diversos documentos específicos, a educação de primeira infância também tem sido incluída em textos de organismos transnacionais que tratam da educação em geral, como por exemplo no “Educação 2030: Declaração de Incheon e Marco de Ação” (UNESCO, 2016). Este documento estabelece propostas de ação a serem desenvolvidas pelos países signatários para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS4)7 proposto pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015), qual seja: “Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. No ODS 4, a Meta 4.2, específica para a agenda da primeira infância, reconhece a educação como elemento-chave para atingir o pleno emprego e a erradicação da pobreza, e expressa: “Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos tenham acesso ao desenvolvimento de qualidade na primeira infância, cuidados e educação pré-primária, de modo que estejam preparados para a educação primária [ênfase adicionada]” (ONU, 2015, p. 23, UNESCO, 2016, p.14).
Merece destaque, na meta do ODS4, a concepção de educação de primeira infância como preparatória para fases ulteriores de formação, questão amplamente debatida e questionada por pesquisadores da área, justamente por ela se contrapor à defesa das especificidades tanto da infância como dos princípios pedagógicos dessa etapa educativa. Alinhada aos encaminhamentos de outros documentos na direção de promover reformas nos sistemas educativos, de modo a criar uma base global de conhecimentos, essa meta reforça práticas centradas em atividades escolarizadas para cumprir os anseios de alfabetização precoce. De fato, conforme salientam Sahlberg (2010), Moss (2015), Ferreira e Tomás (2018), há um conjunto de indicações que desenham, também para a educação de primeira infância, a tendência de estreitar o currículo pela prescrição de um recorte de cultura, de um corpo de conhecimento – nos campos da numeracia, literacia e ciência – chancelado por estratégias transnacionais de avaliação.
Os documentos dessas agências alcançam os países da América Latina e do Caribe de diversas formas e ganham respaldo nos processos internos de discussão e construção de propostas curriculares, conforme argumentamos na sequência.
Desdobramentos da internacionalização sobre o currículo da educação de primeira infância no Brasil
Para além da ação das agências transnacionais e da influência dos documentos já mencionados, as estratégias de internacionalização envolvem outros atores, operando com modelos de referência estrangeiros, estudos encomendados, consultoria de grupos internacionais, consultores de universidades, entre outros. O fluxo de ideias que constitui o espaço acadêmico global, conforme argumenta Beech (2012), materializa-se em diferentes tipos de suportes materiais, como periódicos acadêmicos e livros internacionais, conferências, movimentação de acadêmicos e estudantes universitários e projetos de pesquisas internacionais. Por meio desses atores e estratégias o conhecimento sobre educação e suas interfaces curriculares se movimenta entre contextos diversos, e, embora recontextualizado, conserva elementos de aproximação passíveis de mapeamento.
Os modelos de referência, por exemplo, são documentos curriculares (normativos ou de orientação) produzidos e implantados em países nos quais a educação responde aos parâmetros de qualidade compatíveis com as métricas estabelecidas por avaliações internacionais. Logo, são modelos focados no desempenho, inspirados na lógica neoliberal dos resultados.
No processo de elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil no Brasil, por exemplo, o Movimento pela Base (MPB)8, ao realizar uma leitura crítica9 da primeira versão (Brasil, 2015), considerou como referência de qualidade documentos curriculares da Austrália, Canadá e Cingapura. Como ação isolada de um grupo de cariz empresarial, essa análise poderia não ter representado nenhuma influência sobre o texto final aprovado em 2017. Porém, os integrantes desse movimento ganharam espaço no Ministério da Educação na transição de governos, entre os anos de 2016 e 2017, quando protagonizaram alterações significativas na terceira versão da Base (Brasil, 2017a), estruturada por objetivos operacionais já codificados para compor as matrizes de referência das avaliações estandardizadas e vinculados a um conjunto de competências gerais. Embora para a Educação Infantil tenham sido estabelecidos direitos de aprendizagem, eles foram obnubilados pela lógica das competências e pelos objetivos inspirados na taxonomia de Bloom (1956), que impõe uma linearidade de aprendizagem e desenvolvimento incompatível com as especificidades do trabalho nas creches e pré-escolas.
Outros documentos10 contendo análises das versões da BNCC produzidos pelo MPB, Movimento Todos pela Educação e Instituto Ayrton Senna, entraram em cena contendo estudos encomendados de grupos/instituições estrangeiras, tais como a Australian Curriculum, Assessment and Reporting Authority (Autoridade Australiana de Currículo Avaliação e Relatório, [Acara])11, Curriculum Foundation, Benchmarking Internacional, entre outras. Nesses documentos constam análises do conteúdo de áreas e/ou componentes curriculares específicos realizadas por especialistas redatores do Commom Core, tais como matemática e ciências. Nesse sentido, Beech (2012) alerta para a ação das corporações ou redes empresariais que prestam serviços educacionais naquilo que veem como um mercado global da educação como atores importantes nos processos de internacionalização dos currículos, atuando também para além dessa influência direta nos currículos. Nos documentos analisados, no que diz respeito à BNCC para a educação infantil, as indicações desses atores focalizaram especialmente os dois anos dedicados à pré-escola que qualificam como sendo de “aprendizagem prévia” à escolarização.
Outra expressão da influência dos empresários da educação na articulação com os pressupostos globais para orientar o projeto educativo nacional pela via do currículo tem sido a Fundação Lemann. Em 2013, por exemplo, uma delegação brasileira constituída por deputados, secretários estaduais de educação e empresários, participou, em caráter de Missão Oficial, a convite da Fundação Lemann, do Seminário Internacional “liderando Reformas Educacionais: Fortalecendo o Brasil para o Século XXI”, realizado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, já orientando a direção a ser dada a BNCC (Caetano, 2019). Em 2018, levou oito servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para os Estados Unidos a fim de aprender com a experiência dos americanos em avaliar a BNCC deles, o Common Core, e transferi-la ao Brasil (Freitas, 2018).
Ademais dessas influências, a proposta curricular da Itália12 foi referência ao trabalho da Comissão de Especialistas, conforme declarado no texto da segunda versão da Base, onde se lê:
A ideia de campos de experiências como organizadores do currículo da Educação Infantil também está presente em outros países. Na Itália, a organização curricular por campos de experiências está prevista no documento de Indicação Nacional Italiana (1991), posteriormente revisado na legislação de 2012. Nessa mesma direção, a BNCC estrutura-se a partir dos “Campos de Experiências”, reorganizando e ampliando, em cada um deles, os objetivos indicados no artigo 9° das DCNEI. (Brasil, 2016, p. 63)
Embora a menção à proposta italiana tenha sido excluída da versão homologada, é notória a influência da produção italiana sobre as decisões relativas ao currículo para a EI também na produção acadêmica dos consultores(as)13 que estiveram à frente dos trabalhos de elaboração da BNCC. Logo, conforme argumentamos, de variadas formas e com interesses diversos, as influências internacionais alcançam os documentos curriculares nacionais.
Prenúncios de escolarização no currículo da educação infantil no Brasil
O movimento de internacionalização de modelos curriculares, inicialmente focado na educação superior, vem avançando aceleradamente sobre a educação básica, alcançando mais recentemente as creches e as pré-escolas. Se ele tem orientado reformas nos estados nacionais ajustadas aos parâmetros de desempenho convergentes às demandas do modo de produção e das economias por trabalhadores adaptáveis, logo são as demandas extrínsecas ao desenvolvimento dos sujeitos que operam na delimitação dos currículos. Na contramão dessa lógica, estão as demandas intrínsecas, ou seja, as necessidades das crianças em relação ao desenvolvimento de suas capacidades (emocionais, físicas, sociais e cognitivas) que exigem a integralidade dos tempos e espaços curriculares. Nas reformas educacionais em curso, especialmente naquelas dedicadas à educação de primeira infância, essas duas lógicas de organização curricular estão em tensionamento.
Nesse sentido, consideramos que implantar modelos curriculares equiparáveis internacionalmente e com foco mais acentuado nas demandas extrínsecas pode gerar consequências com impactos ainda pouco analisadas na educação de primeira infância, tais como: (a) a produção de parâmetros de qualidade ajustados aos princípios da eficácia e do desempenho e, portanto, de uma qualidade descontextualizada social e localmente; (b) facilitar auferir padrões de socialização em espaços institucionalizados de educação e cuidado à serviço da homogeneização da infância; (c) induzir à organização do trabalho pedagógico espelhado na escolarização das demais etapas da educação, promovendo a homogeneidade de práticas orientadas por materiais padronizadas, a desconsideração das especificidades do desenvolvimento na infância e a escolarização precoce.
Conforme estudos de Durli (2019), Campos e Durli (2019) as intervenções operadas pelos empresários da educação (Freitas, 2018) na terceira versão da BNCC, responsivas aos interesses mercadológicos e alinhadas às orientações internacionais, dão suporte a ações que põem em curso tais consequências. No modelo curricular proposto, organizado por campos de experiências definidos como sendo multidisciplinares e abertos, os objetivos comportamentais, inspirados na taxonomia de Bloom (1956), adequados à lógica das competências, estabelecem um conjunto de habilidades a partir de uma infância e de um desenvolvimento universais. Ademais, a fragmentação dos objetivos em três faixas etárias com indicativos de complexificação e sequenciamento dos conhecimentos e habilidades pode induzir a um entendimento equivocado sobre a “normalidade” do desenvolvimento. Ainda em relação aos objetivos, observa-se maior concentração justamente nas áreas consideradas prioritárias pelos OI e propostas de avaliações internacionais.
Esse alinhamento também pode ser observado em algumas ações do governo central que alcançam as(os) professoras(es) da educação infantil, tais como a formação continuada e a produção de materiais didáticos. Uma ação de formação bastante emblemática para ilustrar essa questão, foi a inclusão dos professores da educação infantil no Pacto Nacional Pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), em 2017. O PNAIC, compromisso assumido pelos governos federal, dos estados, município e Distrito Federal, desde 2012, para atender à Meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece a obrigatoriedade de “Alfabetizar todas as crianças, até o final do 3° (terceiro) ano do ensino fundamental”, inicialmente atendia às professoras alfabetizadoras dos três primeiros anos do ensino fundamental. No ano de 2017, foram integradas ao programa professoras e coordenadoras pedagógicas de creches e pré-escolas em processo formativo baseado no material elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais, com foco no trabalho com a leitura e a escrita em creches e pré-escolas. A inclusão dessas professoras e coordenadoras em um programa historicamente dedicado à alfabetização, é ilustrativa do avanço da lógica da escolarização na educação de primeira infância.
Em relação aos materiais didáticos é notória a circulação nas escolas e secretarias de educação de manuais de orientação ao trabalho docente, cartilhas, livros didáticos e pacotes que incluem plataformas digitais com jogos, exercícios e possibilidades de interação, tudo com indicativo de vinculação à BNCC. Além disso, sites de institutos, Ongs e fundações, além de editoras e revistas14, disponibilizam materiais para o planejamento de aulas. A estratégia consta em oferecer alguns modelos de acesso livre que funcionam como chamariz para enredar o navegante à adesão ao material pretensamente mais elaborado vinculado ao pagamento de uma mensalidade para acesso irrestrito ou à compra de pequenas porções de planos de aula.
Considerações finais
Neste artigo, estudos mais amplos sobre as políticas do conhecimento oficial em contextos de internacionalização, interrogamos textos de políticas educativas globais sobre os objetivos norteadores da educação de primeira infância e seus possíveis desdobramentos na formalização de currículos no contexto brasileiro. Analisamos indicações e recomendações de organismos transnacionais que, em alguma medida, impactam sobre os currículos da educação básica brasileira e intencionam ao alinhamento da educação de primeira infância à lógica de escolarização.
Constatamos mudanças nas indicações e orientações dos organismos internacionais relativas ao currículo que, embora sutis, têm implicações significativas sobre as políticas curriculares nos contextos signatários. Sem negar a importância de orientações mais gerais, que oferecem suporte de natureza teórico-epistemológica para se pensar a concepção de educação, de criança, de currículo, de avaliação, dentre outros elementos centrais para a ação pedagógica, as indicações têm apresentado inclinação à padronização dos currículos e do ensino. Essa mudança, que transita de orientações mais gerais para o estabelecimento de “conhecimentos essenciais”, alcançou o currículo das creches e da pré-escola pela via da BNCC (Brasil, 2017b).
Porém, ao estabelecer um currículo nacional tão detalhado para a educação infantil, as atuais políticas curriculares brasileiras não atendem somente às indicações dos OI em relação à compreensão dessa etapa educativa como preparação às subsequentes, mas também respondem aos interesses de empresas de conhecimento de quem os governos e as próprias instituições educativas compram os chamados pacotes de conhecimento e soluções já alinhadas às orientações dos OI, posto que essa vinculação agrega valor às propostas como eficientes e eficazes na resolução dos problemas da educação. O currículo transformou-se em negócio, em mercadoria com valor definido, independentemente das particularidades culturais, econômicas e sociais de cada território e, ainda, e principalmente, alheio às dimensões implicadas na aprendizagem e no desenvolvimento de cada sujeito.