Introdução
A emergência da infância como um acontecimento visível da modernidade faz com que a criança passe a ser falada, dita, explicada, caracterizada como um ser inocente, diferente do adulto, que precisa de cuidado, proteção e escolarização. Podemos verificar nas investigações de Corazza (2000, 2002a, 2002b), Narodowski (2001), Bujes (2002a, 2002b), Dornelles (2005) estudos genealógicos da infância, os quais partem de sua emergência ou de sua entrada em cena.
A ideia de infância esboçada e problematizada por esses autores e que foi consolidada na modernidade coloca-a como campo fértil na produção de discursos que partem de concepções científicas e estratégias que podem regulá-las e controlá-las. Assim, foram produzidas concepções advindas das ciências da criança normal (educada/alfabetizada, cristanizada, heterossexual), que deve ser objetivada através de estratégias de governo que irão patologizar aquelas que se desviam de tal normalidade.
As crianças desviantes (não aprendem o código da língua escrita, por exemplo, são ditas e rotuladas com déficits linguísticos e/ou culturais, indisciplinadas, com dificuldades de aprendizagem, crianças problemáticas, fracassadas) devem ser, portanto, corrigidas, medicalizadas, alfabetizadas, escolarizadas, formadas, portanto, governadas. Conforme aponta Dornelles,
À medida que a criança passa a ser produzida como um ser frágil e carente de cuidados, ela adquire o status de infantil. É como um ser dependente, incapaz de governar-se por si mesma, de controlar-se, que a infância emerge como objeto de saberes específicos, como objeto de conhecimentos necessários à sua gestão e governo. E, também a infância por ser povoada por seres muitas vezes “impossíveis” e “rebeldes”, precisa ser governada porque resiste (DORNELLES, 2005, p. 15-16).
Muitas vezes as crianças resistem às tecnologias de governo, que na atualidade são imperativas e estão presentes principalmente no processo de escolarização. O sujeito adulto pensa a criança como potência molar, de controle, domínio, mas, a criança é potência esquizo1, que se esquiva, escapa, resiste, cria linhas de fuga. O olhar esquizo [analítico] “nos lembra o olhar da criança, olhar que vê o mundo com uma mistura de estupefação, admiração, estranhamento e curiosidade insaciável, dissolvendo a ordem estabelecida do convencional e do habitual” (DINIS, 2008, p. 355-356).
Desse modo, podemos perceber que historicamente é cada vez mais central nos estudos e pesquisas científicas a evocação de um discurso que reconhece e valoriza a infância como uma etapa fundamental para o bom desenvolvimento do sujeito e na formação do futuro cidadão. São inúmeras as percepções e concepções que se tem sobre o significado da infância. Mas como se configuram os estudos da infância, suas conexões com as relações de saber, poder e racismo? A partir deste questionamento, o estudo intenciona trazer ao debate e reflexão os regimes de verdade, os jogos de saber e poder que circundam a infância, os discursos que são produzidos na esfera educacional e os desafios emergentes para constituição de uma educação antirracista.
Para capturar e governar a infância: jogos de saber-poder
As discussões da temática da infância ocupam um lugar significativo nos estudos e pesquisas educacionais nas diversas áreas do conhecimento científico: Educação, Psicologia, Filosofia, História, Sociologia, Antropologia, dentre outras, o que se apresenta como um campo multidisciplinar, no qual o significado e as concepções que damos a elas relacionam-se com os contextos sociais, culturais, econômicos, históricos, políticos e institucionais. Esses estudos ampliam e redimensionam cada vez mais o olhar sobre a infância como uma categoria social, e, as crianças são vistas como sujeitos históricos e sociais ativos que participam e influenciam os contextos e espaços em que estão inseridas.
É inegável que tais estudos contribuíram para a definição da infância como uma esfera da vida social, bem como a importância de se pensar as questões de raça, gênero, sexualidade e classe social. Urge colocarmos em movimento a vontade de saber sobre a infância para que possamos problematizá-la e ir além dos saberes produzidos pela Pedagogia e Psicologia, “afinal, talvez mais do que nunca, é preciso explorar a transgressão [...], olhar com mais atenção para as relações entre o poder e o saber” (VEIGA-NETO, 2005, p. 17), pois,
A infância parece ter gerado um amplo leque de discursos que a contextuam axiologicamente, perfilam-na eticamente, explicam-na cientificamente, predizem-na de acordo com esses cânones [...]. A infância atual é visualizada frequentemente ligada, enquanto infância culturalmente normal, à atividade escolar e então outros discursos ainda mais específicos contextualizam, pautam, explicam e predizem: os da psicologia da criança escolarmente normal; a psicologia educacional; a pedagogia; a psicopedagogia; a didática (NARODOWSKI, 2001, p. 22).
As crianças passam a não ser consideradas passivas, pois apesar de sofrer os impactos estruturais da modernidade que produz desigualdades econômicas, sociais e culturais, suas ações podem ser estruturantes de uma lógica que questiona a colonização do seu mundo pelos adultos. Mas, paradoxalmente, a criança e seu modo infantil (imaturo, dócil, inocente, delicado, o futuro) foram capturados na sua infantilidade pela racionalidade, cientificidade e tecnologias do poder adulto. Para Corazza (2000) “apenas um poder capaz de causar a vida ou devolver à morte poderia ter engendrado, como um de seus dispositivos, esse de infantilidade” (p. 21).
Mas como podemos relacionar as concepções de infância vigentes com o atual contexto social? Estaríamos fadados ao esquecimento ou desaparecimento da infância como etapa importante da vida? Os estudos de Postman (1999) apresentam a ideia de desaparecimento da infância a partir do século XVII, bem como os obstáculos enfrentados em sua jornada, que vão desde uma crise conceitual de cultura infantil que ganhou uma nova conotação na sociedade contemporânea, até as mudanças em suas próprias características, como a sua alimentação, a linguagem, a vestimenta e as brincadeiras.
A nosso ver, não há um desaparecimento da infância, mas sim mudanças no processo de operacionalização e de controle da infantilidade feito pelos adultos, pois,
Investidas pelo biopoder em seus corpos sujeitados ‘as crianças’ serão seres vivos, cuja vida se calculará e cujo fato de viver cairá no campo de controle do saber e de intervenção do poder, os quais se deixarão implicar em sua saúde, alimentação, condições de existência, necessidades, interesses, desejos, identidade (CORAZZA, 2000, p. 22).
Diante das mutações e transformações advindas da modernidade que impactam concepções de infância e o jeito de ser e viver das crianças, os modos de educar e controlar a educação torna-se relevante problematizar como essa infância historicamente foi agenciada pelo dispositivo da infantilidade2, no qual foi fixada a
Ideia e os pontos pelos quais todos os infantis deverão passar para atingir suas próprias inteligibilidade e identidade; os quais todos precisarão esmiuçar, perseguir nos sonhos, suspeitar por trás dos pequenos sintomas cotidianos, sussurrar no escuro pegajoso do confessionário e no lusco-fusco tépido do divã, comprovar nas grandes loucuras e nos crimes hediondos; ao mesmo tempo em que tal ideia e ponto vão tornando-se temas de operações políticas, de intervenções econômicas, de campanhas ideológicas de moralização e de escolarização: índices de força de uma sociedade, que revelam tanto sua energia política, quanto seu vigor biológico (CORAZZA, 2000, p. 22).
Consideramos que as políticas públicas de estado para educação contemporânea colocam em marcha e com avidez o governo pedagógico da infância, pois a configuração e consolidação da escola moderna foi, sem dúvida, um dos espaços mais significativos para a formação cultural dos sujeitos e, ao mesmo tempo, o mais propício para o exercício das relações de saber, poder, controle e dominação.
É, pois, na instituição escolar que se articulam com eficiência as relações de saber e poder. Michel Foucault é o filósofo que traz importante contribuição para análise da relação poder-saber, especificamente quando transpomos essa reflexão no campo educacional. Para esse autor poder e saber não são idênticos, mas estão implicados:
Temos antes que admitir que o poder produz sabe [...]; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. [...] Resumindo, não é a atividade do sujeito do conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 1987, p. 27).
Vale também lembrar que, no projeto civilizatório moderno, a escola é uma das instituições encarregadas de operar as individualizações disciplinares e a acomodação dos corpos e das mentes. Também é prudente assinalar que historicamente foram produzidos discursos que apontam a escola como a instituição especializada em produzir adultos, educá-los, formá-los, humanizá-los e a infância se constitui o corolário para o domínio da teoria e prática escolar.
De igual modo, a criança passa a ser “a base para construir teoricamente o aluno. A criança é o pressuposto universal para a produção pedagógica, pressuposto de identidade irrefutável como cimento privilegiado da educação escolar” (NARODOWSKI, 2001, p. 24). Esse pressuposto está pautado, sobretudo, na concepção de uma imagem de criança universal, essencializada e determinada biológica e psicologicamente.
Consideramos que a ideia de escolarização nas políticas de estado modernas é parte constituinte de uma tecnologia de governo e produção de subjetividades, a qual opera tácita e taticamente para subverter qualquer processo de resistência. A partir dessa tecnologia educacional cria-se a concepção de que:
A necessidade de escolarização é, ao mesmo tempo, uma advertência, um mandato e uma consolação e apela à liberdade de opção de quem a escuta. A escolarização da criança encontra-se em conexão com a missão de humanizar o que é infantil. É uma forma pública dos Estados, famílias, adultos expressarem sua profissão de fé na humanização da população e dos indivíduos infantis. Pela escola, o infantil é libertado de suas carências racionais, morais, sociais [...]. A escolarização é uma prática que exige fé, enquanto entrega total da criança à humanidade, com seu poder institucionalizado de pedagogizar (CORAZZA, 2002b, p. 184-185).
Destaca-se que o processo de alfabetização como parte do processo de escolarização ao constituir-se como um dispositivo pedagógico de controle e objetivação/subjetivação dos docentes e infantis, transforma-se em uma tecnologia de governo (disciplinares e da experiência de si) que busca nomear, descrever, explicar, normalizar e controlar o ensino dos docentes e a aprendizagem das crianças.
A criança torna-se um território a ser colonizado e a linguagem constitui-se um caminho proficiente, pois pela palavra do Outro - da escola, do currículo, dos gestores, do adulto da Pedagogia3, da professora, das atividades escolares - ela vai ser nomeada, categorizada (menino/menina, homem/mulher, criança/adolescente/adulto/idoso, branco/negro/pardo), submetida a uma racionalidade que se expressa no aprendizado de uma língua, códigos escritos, costumes, modos de ser, viver e estar no mundo. A linguagem é, portanto, ato da nomeação. E nomear é um ato de invenção e significação.
Conforme aponta Corazza (2002b) é no processo de aquisição da linguagem que começa a produção da vida como o outro do adulto, colocada sob a égide da menoridade, dependência, carência, inferioridade, necessidade de suplência. Pois, se não são, ainda, moralmente autônomas e racionais, deverão vir a ser por esforços da pedagogização.
Embora Foucault não tenha escrito especificamente sobre a temática da infância, há, em seus estudos, muitas possibilidades para se pensar a infância, e uma delas localiza-se na obra Vigiar e Punir, na qual o autor analisa os sistemas penais, o novo poder de julgar e os métodos punitivos como uma “‘economia política’ do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 25). Propomos, então, pensar o corpo dessa criança, que é usado por diversas políticas e práticas educativas como forma de disciplinamento, objetivando transformá-lo em um corpo dócil, e a criança negra, em um corpo branqueado.
Os estudos foucaultianos podem nos ajudar a opor-nos a uma concepção essencialista de infância e à noção de que a natureza biológica e psicológica é que determina os processos de constituição de subjetividades. As análises vão mostrar que, para compreendermos as diferentes formas de se tornar sujeito, faz-se necessário estudar os discursos e as práticas que, ao longo da história, deram origem a tais processos (BUJES, 2002a).
A obra de Foucault apresenta-se como ruptura e transgressão a saberes e poderes instituídos, ao discutir a autoridade dos discursos, entendidos como práticas de descrever e entender as coisas às quais elas se referem. O discurso não é apenas um texto, mas um dispositivo que se caracteriza como uma rede de elementos.
Foucault (1988, p. 111-112) vê o discurso como
Uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável [...]. Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras.
O dispositivo estabelece essa rede de relações entre vários elementos de forma discursiva. À luz desses conceitos, não devemos conceber a criança de forma fragmentada, pois ela se constitui num “produto, ao mesmo tempo dos saberes, dos poderes e da ética” (VEIGA-NETO, 2005, p. 82). A infância deve ser vista como uma construção histórica e social, não de forma contínua, linear e processual, mas de maneira descontínua, com possibilidade de criação de novas formas e de diferentes sujeitos e em diferentes momentos históricos.
A educação, a infância, a relação de gênero, a pessoa negra são invenções da humanidade. Os discursos de autoridades fomentam relações de saber-poder, as quais se constituem em processos de lutas permanentes. Portanto, não existem conceitos, ideias, saberes seguros. O conhecimento não é linear e pronto, os conceitos não são predeterminados; eles são produtos dos saberes instituídos discursivamente.
Alguns aspectos da análise foucaultiana relacionam-se com as transformações de certas práticas institucionais, como prisão, hospital, hospício e escola, denominadas, por ele, “instituições de sequestro”. Essas instituições fabricam saber-poder por meio do disciplinamento, tornando os corpos dóceis. Nessa perspectiva, Foucault traça “uma genealogia das relações entre o poder e o saber, para mapear a ontologia do presente, em temos de ser-poder” (VEIGA-NETO, 2005, p. 65), em que a disciplina não destrói, mas fabrica corpos delicados e fáceis de manipular. Por esse olhar, desenha-se a criança como alguém que precisa ser educada, lapidada, e isso requer vigilância.
Para Narodowski (1993), a principal tática dessa estratégia disciplinar é a vigilância constante do corpo infantil pelo/a professor/a, o qual constrói seu próprio lugar na instituição educacional em virtude dessa tática. A vigilância panóptica (que abarca tudo com o olhar de controle) gera ordem e é onipotente, é capaz de controle na presença e na distância, e se institui, nessa nova ordem, uma cadeia de vigilância, desde o/a professor/a, até o/a diretor/a; todos passam a ser responsáveis pelo êxito de suas ações educativas.
Sobre esse aspecto, Foucault (1987, p. 117) argumenta que “corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” torna-se dispositivo de novos mecanismos de poder e novas formas de saber numa correlação de lutas. Fabricar corpos dóceis não significa ter obediência cega às leis e disciplinamentos; significa produzir corpos maleáveis que podem ser moldados e manipulados.
Falando de disciplina e corpo, sublinha-se que o corpo humano
Entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina [...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (FOUCAULT,1987, p. 119).
O espaço escolar passa a funcionar como uma máquina de ensinar, vigiar, hierarquizar e recompensar os/as alunos/as e profissionais da educação pelos seus feitos e o “treinamento dos escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais - sinos, palmas, gestos” (ibid., p. 140).
As escolas passaram a ser vistas como espaços disciplinadores que foram criados para produzir saber-poder. Buscou-se uma escolarização que promovesse a separação das crianças e dos jovens do mundo adulto, enclausurando-os em um espaço tido como adequado na constituição de sujeitos “normais” e disciplinados. Essa disciplina se torna uma operação de vigilância, na qual o sujeito infantil não só é vigiado, mas vigia a si mesmo, tornando-se o princípio de sua própria sujeição.
O poder que se manifesta na instituição educativa não se caracteriza como essencialmente repressivo, uma vez que o disciplinamento, controle e as práticas normativas fabricam sujeitos mais dóceis e produtivos.
Essas relações de poder se iniciam nas creches, denominadas por Deleuze (1992), campos de iniciação, que buscam a normatividade, e, nas instituições educativas, onde afloram hierarquias de poder (professores/as, diretores/as, coordenadores/as). A escola controla o espaço, o tempo, olha, classifica e atribui nota - gera saber. A escola, na visão foucaultiana, impõe às crianças uma ortopedia moral por meio da vigilância constante, que, docemente benévola, amável e respeitosa, fabrica o sujeito moral.
Foucault (1988) não propôs a criação de uma teoria do poder4, mas uma analítica do poder. Conforme essa visão, mexe-se com todas as instâncias (escola, família, igreja, hospitais, Estado), pois o poder não é localizável, não é uma receita, não vem de cima para baixo; ele se dá numa correlação de força que se explicita em toda parte. Por esse ângulo, não há uma teoria geral do poder, pois teoria é provisória. O poder é uma máquina social que se dissemina por toda a estrutura social. O poder, desse ponto de vista, não trabalha por repressão nem por ideologia, mas capacita, agiliza e potencia.
Temos uma concepção de poder ligado ao direito, à lei e à soberania, uma forma externa, homogênea e negativa, em que um manda, e o outro obedece, um fala, e o outro escuta - a clássica relação que cria binarismos, dominante versus dominado/a, patrão/ao versus empregado/a, professor/a versus aluno/a, homem versus mulher, adulto versus criança, negro/a versus branco/a. No modelo liberal ou jurídico, o poder é concebido como uma mercadoria, algo que pode ser possuído e negociado, como se negocia uma mercadoria. Contra essa concepção, Foucault (1988) assevera que o poder só existe quando exercido e penetra profunda e sutilmente na trama, formando uma rede densa que atravessa o conjunto da sociedade.
Na obra História da Sexualidade: a vontade de saber, Foucault (1988) alega que o poder não é exclusivamente repressor e que há inúmeras relações de poder que se tramam lateralmente e de baixo para cima, localizados nos saberes acerca do indivíduo, seu corpo, seu comportamento, numa rede instável de práticas. A resistência, sendo inerente às relações de poder, é parte dessas práticas e de suas dinâmicas.
Ademais, entendemos que a educação, a infância, a raça e a etnia, tais como a sexualidade, são construções históricas e sociais sobre os modos de sentir e experimentar o corpo, os desejos e as relações. Mediante uma difusão de regimes de verdade e olhares sobre o sujeito, esses elementos tornam-se dispositivos de controle de corpos, de saber-poder e de modos de existência dos indivíduos. Aqui se vislumbram as relações de poder existentes no cotidiano.
No diálogo entre Foucault e Deleuze no texto Os intelectuais e o poder, Foucault (1979) discute o poder e a prisão, enfatizando a maneira arcaica, pueril e infantil do exercício do poder ao deixar alguém a pão e água. Nessa interlocução, Deleuze defende que o inverso também é verdadeiro, ou seja, “não apenas os prisioneiros são tratados como crianças, mas as crianças o são como prisioneiras. As crianças sofrem uma infantilização, que não é delas. Verdade que as escolas se parecem um pouco com as prisões” (DELEUZE, 1979, p. 73) e acrescenta que “muitos profissionais vão exercer funções policiais” (ibid., p. 74).
A disciplina, o controle são dispositivos que armam estratégias de relações de força, localizados nos discursos pedagógicos, psicológicos, médicos, higienistas, em todos aqueles saberes que, ao se dirigirem ao indivíduo, acabam tendo o efeito de poder, no sentido de discipliná-lo, corrigi-lo, encaixá-lo numa norma que pedagogiza a criança e psiquiatriza os ditos anormais e “pervertidos”. Em suma, patologiza-se o indivíduo em normal e anormal, “qualificando-o a partir de dois valores opostos: do bem e do mal, do adequado e do inadequado. Essa distribuição se faz por um pólo positivo e outro negativo” (BUJES, 2002a, p. 129).
Esta é a realidade de muitas instituições de ensino, espaços de controle e disciplinamento, cujos/as professores/as, muitas vezes, comportam-se como polícia para impor a ordem e fazer render mais atividades, mais lições, mais resultados. Independente de existirem esses ordenamentos, podemos visualizar relações de micropoderes nesses espaços, como quando a criança inventa dores de barriga para ir ao banheiro, a todo o momento, para fugir da aula, quando diz que não vai fazer a atividade porque não está com vontade, desestabilizando a “autoridade”, o poder do/a professor/a. A criança é governada pelos mais diversos dispositivos, e o adulto tende a excluir tudo o que há de infantil e de diferença nas instituições, promovendo uma ortopedia pedagógica que tende a corrigir tudo o que foge aos padrões considerados normais.
Ainda que a criança siga novos itinerários sociais, oriente-se segundo novos valores, estabeleça novos modelos formativos, não deixa de haver outros discursos, outras formas de controle e disciplinamento. Nessa perspectiva, é visível que são inúmeras as maneiras com que o racismo aflora nas instituições escolares, em especial nas creches e pré-escolas, ou seja, na educação infantil. As atitudes racistas e discriminatórias costumam ser silenciadas ou dissimuladas, tornando-se quase naturais no cotidiano do espaço escolar, contribuindo para firmar e confirmar mentalidades etnocêntricas. Essa infância aparece como o outro, o diferente, que rompe a lógica hegemônica da sociedade. Nessa sequência, nos questionamos: é possível uma pedagogia descolonizadora e uma infância descolonizada? Na medida em que se busca uma descolonização, outras colonizações não estão sendo praticadas?
Esse quadro demonstra que não se deve silenciar, pois assim reforça outra forma, até mais eficiente, de racismo, pois, na acepção popular, “racista é quem fala do racismo ou enuncia a identidade do discriminado; a atitude não-racista é o silêncio” (NASCIMENTO, 2003, p. 23). Quando se defende que é melhor ficar em silêncio, está se reforçando a ideia de que o racismo não existe ou que é fruto da cabeça da própria pessoa negra, que não se aceita.
Os discursos produzidos em relação à infância, raça e etnia se torna em um jogo de luta de forças, o que comprova o quanto estão imbricadas relações de saber, poder, discurso, verdade e racismo.
Infância, racismo e poder
No nosso dia a dia, ao ligarmos a TV, nos deparamos com diversas manifestações de preconceito e racismo. Ao sairmos às ruas, encontramos situações semelhantes, além da extrema violência. Ao acessarmos a Internet, os casos de intolerância (religiosa, sexual, racial, de gênero) não têm limites. O extremismo e o fascismo tomaram conta da população, podendo até acrescentar que os conflitos passaram a fazer parte do contexto escolar, espaço em que a diversidade e a diferença se fazem presentes. Fischer (2012, p. 62) assegura que, “em nome de uma urgência biológica e histórica, justificaram-se oficialmente todos os tipos de racismo; degenerados, bastardos e ‘tarados’ deviam ser de alguma forma eliminados ou, pelo menos, controlados, mas não sem antes confessar sua vida infame”.
Por outro lado, somos marcados por profundas transformações sociais e políticas, de lutas e de conquistas, e há uma corrida por melhores condições para os chamados grupos minoritários5. Se, por um lado, se propagam situações de preconceito e discriminação, por outro, há movimentos, denúncias, processos e prisões decorrentes de atos de racismo, embora de forma tímida. Tudo isso confirma que a nossa sociedade nunca foi e não é harmoniosa, mas, sim, conflitiva. E dentro das instituições de ensino, onde há uma multiplicidade de relações, esses conflitos têm se agigantado, já que coexistem realidades étnico-raciais diversas.
Ao discutir a conjuntura sócio-histórica de produção, circulação e consumo de discursos raciais no Brasil, como o país que mais importou pessoas africanas para serem escravizadas, Silva e Rosemberg expõem alguns elementos que merecem destaques:
[...] fomos o último país a abolir a escravidão negra [...]; somos a segunda maior população negra mundial - depois, apenas, da Nigéria [...]; acalentamos o mito (ou ideologia) de que as relações raciais no país são cordiais ou democráticas ao mesmo tempo em que convivemos com intensa dominação branca sobre segmentos étnico-raciais no acesso a bens materiais e simbólicos (SILVA; ROSEMBERG, 2014, p. 73).
Acrescentamos a esse quadro que a Bahia é um dos estados com o maior contingente de pessoas negras, e Salvador, a capital que abriga a maior população negra do Brasil6. O Brasil, no entanto, se apresenta como uma sociedade racista, na medida em que nele predomina uma suposta superioridade de pessoas brancas sobre as negras.
Nesse cenário, analisar a relação entre as experiências da infância e as questões étnico-raciais possibilita compreender os jogos de poder-saber, as classificações e hierarquizações nas construções subjetivas dos sujeitos infantis e permite pensar as crianças brancas, negras, amarelas, indígenas existentes nas nossas escolas. Se a escola pretende pensar a infância de forma plural e sensível à diferença, “se ela não quer ser totalitária, arrogante, e tola com relação à infância, é preciso quebrar essa linha que pensa a infância apenas como possibilidades, como inferioridade, como outro excluído ou como matéria dos sonhos políticos” (KOHAN, 2005, p. 246).
Para Bujes (2005, p. 189), essa infância de que tanto ouvimos falar se funda no “efeito dos discursos que se constituíram/constituem sobre ela [...], as verdades a seu respeito não correspondem a um ser abstrato e incorpóreo, ou ao portador de um eu profundo, ou a um sujeito epistêmico universal”, mas como resultado de um processo de construção social.
Para Kohan (2005, p. 252),
A infância é a possibilidade de um devir múltiplo, de uma produtividade sem mediação, a afirmação do ainda não-previsto, não nomeado, não existente, a asseveração de que não há nenhum caminho pré-determinado que uma criança (ou um adulto) deva seguir, que não há nenhuma coisa que ela (ou ele) deva se tornar: a infância é “apenas” um exercício imanente de forças.
Ao discutir o conhecimento, na Aula sobre Nietzsche, Foucault (2014, p. 183) destaca que o conhecimento, por ser uma invenção, “não está inserido na natureza humana, que não constitui o mais antigo instinto do homem [...] que sua possibilidade não é definida por sua própria forma”. Desse modo, a invenção da infância se apresenta segundo esta discussão, pois “não há mapas suficientes para perfazer sua cartografia”, já que “novos encontros exigem outras cartografias”. Nesse panorama, o devir7-criança constitui “resistência permanente aos agenciamentos”, ou, como afiança o autor, como “potência devindo” (KATZ, 1996, p.91-93).
Corroborando essas temáticas, Corazza (2000, p. 163) sugere que o chamado “‘mundo infantil’ ainda é o mundo das mulheres, dos plebeus, dos rústicos, dos sem-razão, dos pecadores, dos despudorados, dos débeis”, das pessoas negras, das crianças negras, “um mundo no qual a natureza dessas singularidades e totalizações por pouco não é a mesma dos animais”.
Tendo em vista os pontos discutidos, questionamos os saberes e poderes produzidos em torno da criança negra. Tanto a invenção da infância quanto a invenção da pessoa negra se deram por meio dos discursos por uma vontade de poder-saber sobre os sujeitos infantis e sobre as pessoas negras. A diferença, aquilo que fica fora da norma, o heterogêneo, passa a ser “considerada como uma anomia que precisa ser normatizada, incluída na regra, integrada na ordem, já que ninguém pode ser excluído (da norma, da ordem)” (DORNELLES, 2005, p. 55).
A constituição da infância, “mais pobre e mais rica, infâncias do Terceiro Mundo e dos países mais ricos, infâncias da tecnologia e a dos buracos e esgotos, infâncias superprotegidas, abandonadas, socorridas, atendidas, desamadas, amadas e armadas” (DORNELLES, 2005, p. 71), se funda em uma trama histórica e social e, como tal, deve-se levar em conta sua cultura, sua raça e sua etnia. A valorização dos aspectos culturais, das suas referências individuais e coletivas, do seu reconhecimento como parte de um grupo social contribuirá para a subjetivação da infância. Discutir a infância e as relações étnico-raciais no campo dos estudos culturais, das relações de saber-poder e da produção discursiva, eis o grande desafio, pois significa desterritorializar, desconstruir e descolonizar o saber como essência e abrir caminhos para o diferente, para o outro.
Desse modo, as crianças, os selvagens continuam a ameaçar, com sua diferença, a racionalidade de um povo dito civilizado, a escola e o mundo adulto. A alteridade na infância permite pensá-la na sua singularidade, esta singularidade entendida na perspectiva que designa um modo de existência que não é universal (conceitual) e muito menos particular (individual), mas que pensa e age consoante outra lógica, pois “[...] uma criança é algo absolutamente novo que dissolve a solidez de nosso mundo e que suspende a certeza que nós temos de nós mesmos” (LARROSA, 2006, p. 187).
A escola aparece como construtora de um futuro excelente, de um porvir e, para isso, precisa dominar as crianças e as pessoas negras com suas formas de saber e poder, instituindo verdade sobre elas e para elas.
O que fazer quando a diferença persiste ou quando a criança e a pessoa negra traçam linhas de fuga? É preciso desconstruir e desnaturalizar os mundos cristalizados da criança e negra e da pessoa negra. Descolonizar as nossas concepções de mundo, de infância, de gênero, de raça e de etnia e construir uma pedagogia da escuta e das diferenças a partir de uma visão positiva da diversidade. É preciso descolonizar, em primeiro lugar, o nosso olhar e os nossos discursos e nos colocarmos no lugar de aprendizes. O que podemos aprender com as crianças, com as pessoas negras? Que tipo de criança se produz nas escolas?
As práticas educativas, na condição de práticas sociais, têm uma dimensão cultural dependente de significados, haja vista que não há educação que não esteja imersa na cultura, e a cultura da infância nos impulsiona a
Rever o absolutismo do pensamento, a intolerância das práticas discriminatórias, a considerar as possibilidades de um trânsito entre competências e sujeitos diversos, mas, nem por isso, hierarquizáveis e desiguais, apenas consoantes a outras práticas e a outros sujeitos que a um só tempo se fazem como nosso outro e um mesmo, no estar junto e no fazer da própria sociedade (GUSMÃO, 1999, p. 52).
E reconhecer a conexão da diversidade cultural e as relações de poder que permeiam as diferentes culturas, poderá romper com uma educação em que o diferente deve ser transformado num igual e se submeta a um modo cultural que se acredita natural, universal e mais humano (idem).
Uma pedagogia de invisibilidade ou de silenciamento do preconceito racial na escola favorece o racismo e dificulta o pluralismo cultural, social e étnico no âmbito escolar. Para que haja uma educação antirracista, faz-se necessário potencializar ações que visem à conscientização sobre a igualdade subjacente às cores, etnias e raças.
Está mais do que na hora de promover esta discussão em sala de aula com crianças da educação infantil e ampliar os espaços e práticas de formação docente. Uma discussão franca e aberta com as crianças pequenas seria o início para a promoção do respeito e valorização da identidade étnico-racial. De outro lado, ao se trabalhar com a identidade étnico-racial deve-se tomar cuidado para não apagar a diferença, para não segregar a criança, mas unir no respeito mútuo, cada um se aceitando, nas suas características físicas, culturais, sociais, econômicas e valorizando a diferença do outro.
Considerações finais
Diante da multiplicidade de influências étnicas, raciais e sociais na escola, a construção da subjetividade da criança precisa ser levada a sério. A criança se forma com experiências que são vividas, construídas e internalizadas mediante o contato com seus pares e com os adultos. A relação desta criança com o seu pertencimento racial e o estabelecimento de relações inter-raciais de forma positiva pode provocar mudanças significativas nesta construção.
A subjetivação se dá pela ordem normativa, racista e preconceituosa, referendada e fundada nas relações de poder que circulam na escola, ao adestrar corpo e mente da criança para a cultura do branqueamento. Na análise de Silva (2015, p.173), “Numa sociedade em que preconceitos e racismo minam as relações entre as pessoas, a vida nas escolas pode contribuir para desconectar estudantes, desde muito crianças, de suas comunidades originárias, de suas raízes étnico-raciais”.
As relações sociais, raciais e étnicas estabelecidas pelos indivíduos desempenham forte influência na formação identitária da criança de grupos raciais distintos. É nessa construção de relações positivas no ambiente escolar e na arrumação do seu espaço que a imagem da pessoa negra vai sendo construída e valorizada de maneira positiva. “As escolas tanto podem favorecer relações de dominação, atualizar racismos, discriminações entre grupos e pessoas, como podem, se houver sincero empenho para tanto, se educar no sentido do respeito, reconhecimento, valorização, convívio construtivo” (SILVA, 2015, p. 169). É papel da escola construir um discurso e efetivar ações que combatam o racismo.
Este espaço privilegiado para a construção da cultura afro-brasileira, que é a escola, tende a concentrar-se em mudar imaginários racistas que emergem da diversidade étnico-racial e cultural nos espaços e ambientes educativos, nas relações entre alunos e profissionais, na cultura imagética, no livro didático e, sobretudo, na cultura e formação docente.
A falta de problematização dos temas diversidade, discriminação e racismo no dia a dia da escola e o comportamento silencioso e acrítico dos adultos diante das situações discriminatórias podem levar muitas crianças a cristalizar aprendizagens. É preciso educar para a tolerância e o respeito à diversidade étnico-racial, buscando uma “pedagogia multirracial” (ARROYO, 2007), pois é dever da escola eliminar toda forma de racismo instituído.
No espaço de educação infantil, não é diferente. As creches e pré-escolas se constituem em ambientes ricos para observarmos como as crianças pequenas formam a sua identidade étnico-racial. A educação infantil tem o papel de possibilitar à criança o desenvolvimento do senso crítico, para que possa experimentar outros valores, respeitar a pluralidade étnico-racial. O racismo e os processos discriminatórios devem ser colocados em discussão diuturnamente.