Introdução
Este artigo é um recorte de uma tese de doutorado2 desenvolvida entre 2012 e 2016 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus de Presidente Prudente.
O objetivo principal deste texto é discutir como se deu a penetração de alguns elementos nacionalistas na cultura escolar das primeiras escolas graduadas do extremo oeste paulista3. Para isto, foi procedida uma análise em obras relativas à implantação dos primeiros grupos escolares da referida região, em diversas fontes documentais além da utilização de relatos das professoras que atuaram nas cidades de Presidente Venceslau e Presidente Bernardes entre os anos de 1932 (instalação dos grupos escolares em ambas as cidades) e 1960 (inauguração do prédio do Grupo Escolar de Presidente Bernardes).
A pesquisa se respaldou nos referenciais teóricos-metodológicos da História Cultural4 e da História Regional, além de utilizar do aporte da História Oral5 para a análise das entrevistas procedidas. Foi realizado um mapeamento das/dos prováveis participantes6 da pesquisa nos arquivos das instituições de ensino que outrora abrigaram os grupos escolares. Após a realização do primeiro contato com essas pessoas, foi solicitado a elas que indicassem novos indivíduos e assim sucessivamente, até que as informações fornecidas pelos relatos deixassem de apresentar novos dados, indicando a saturação.
Assim, buscou-se exibir a partir de alguns elementos da cultura escolar dos grupos escolares (as festividades, o orfeão e a entoação dos hinos), como as práticas ufanistas de exaltação da pátria foram progressivamente introduzidas na faina diária e se incorporaram no cotidiano das/dos docentes e dos/das discentes.
A cultura escolar
No que tange ao referencial teórico dos estudos sobre cultura escolar, Vidal (2005), baseada principalmente em Chartier (2002) enfatiza que a materialidade é uma parte importante da escola, porém as relações pedagógicas se processam no âmbito da oralidade, que possui um caráter efêmero. Contudo, o elemento oral pode contribuir para a análise das interações dos indivíduos com a formalidade das práticas e com os objetos culturais, constituindo modos próprios de ação que não se enquadram dentro das normas pré-estabelecidas.
No campo dos estudos culturais as definições propostas por Dominique Julia e António Viñao Frago são as mais usualmente utilizadas. De acordo com Souza (2000), a formulação de Viñao Frago aborda a cotidianidade das práticas escolares, além de explorar os elementos simbólicos e a materialidade da escola. Enquanto que o conceito na perspectiva de Julia se refere mais à transmissão cultural da escola. Mas ambos os autores exibem um “[...] novo olhar que se desloca dos processos externos à escola para a análise dos aspectos internos” (SOUZA, 2000, p.4).
Gonçalves e Faria Filho (2005) ressaltam que existe uma tendência entre os/as pesquisadores/as em se estudar o funcionamento interno da escola, pois se entende que dentro da instituição escolar:
[...] existe uma cultura em processo de formação que, ainda que possa ser considerada particular, pela especificidade das variadas práticas dos sujeitos que ocupam esse espaço, articula-se com outras práticas culturais mais amplas da sociedade. [...] o olhar para as práticas cotidianas da escola fixa-se nos acontecimentos silenciosos do seu funcionamento interno. (GONÇALVES; FARIA FILHO, 2005, p. 32-33).
De acordo com Viñao Frago (1995), o interior da escola fornece aos indivíduos que a frequentam maneiras de pensar e de agir que eles desenvolverão tanto dentro quanto fora do espaço escolar. Portanto, o tempo e o espaço são objetos de análise desse autor: o espaço como sendo o lugar ocupado pela escola e o tempo que é entendido em sua multiplicidade.
Para Julia (2001, p. 10), a cultura pode ser definida como “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (grifos do autor). Essas normas devem ser analisadas levando-se em conta o contexto de sua produção, quais finalidades atendiam e como os sujeitos que estavam submetidos a elas se apropriavam e as praticavam ou não.
Assim, Viñao Frago e Julia promoveram um deslocamento das atenções que outrora estavam voltadas para o exterior da escola, e passaram a estudar o funcionamento interno da instituição. Viñao Frago (1995) possui uma visão abrangente da cultura escolar, incluindo em seu estudo toda a vivência e todas as relações que são travadas no seio da instituição.
inclui práticas e comportamentos, estilos de vida, hábitos e rituais - a história cotidiana do fazer escolar - objetos materiais - função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, introdução, transformação, desaparecimento... - e modos pensar, bem como significados e ideias compartilhadas. Alguém vai dizer: tudo. E sim, de fato, a cultura escolar é toda a vida escolar: fatos e ideias, mentes e corpos, objetos e comportamentos, modos de pensar, dizer e fazer. (VIÑAO FRAGO, 1995, p. 68-69).
As perspectivas apresentadas por Viñao Frago e por Julia são muito próximas, e apesar de serem distintas em alguns aspectos7, indicam que devemos nos atentar para as normas, as práticas, a materialidade, o tempo e o espaço escolar de modo a pensar que é na relação entre esses elementos que se construíram as culturas escolares ora abordadas.
Os grupos escolares de Presidente Bernardes e de Presidente Venceslau foram instalados no ano de 1932, sendo que este teve seu prédio inaugurado em 1957, e aquele, somente em 1960. Neste período, as professoras estavam iniciando as suas carreiras e tiveram que lidar com as dificuldades inerentes ao trabalho em si, em função de sua inexperiência, e a medida que entravam em contato com a rotina nas instituições aprendiam e ao mesmo tempo construíam as culturas escolares, influenciadas/os pelas diretrizes estatais que orientavam para a formação da infância com um acentuado caráter nacionalista.
Os nacionalismos
A diversidade de vertentes nacionalistas impede que se determine uma direção única8 que poderia ter orientado as legislações brasileiras e paulistas no recorte temporal adotado. Como afirma Moreira (1998, n.p), o nacionalismo entre as décadas de 1930 e 1960 surgiu como uma ideologia do Estado sendo “[...] associado não só ao populismo de Getúlio Vargas, mas também ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e ao reformismo social de João Goulart, isto é, às três mais importantes orientações políticas daquele período”. Neste sentido, é possível indicar a existência de três vertentes do nacionalismo estatal, diretamente relacionadas a essas lideranças políticas: o nacional-populismo, o nacional-desenvolvimentismo e o nacional-reformismo. (MOREIRA, 1998).
Apesar de o recorte temporal adotado enquadrar a pesquisa no contexto do nacional-populismo e do nacional-desenvolvimentismo, a presença de elementos do primeiro é mais evidente. Uma possível explicação para isso reside no fato de que “[...] o tipo de nacionalismo de Juscelino tinha como esteio a elite empresarial e a administração brasileira, e não um movimento de massa”. (SKIDMORE, 2010, p. 208). Assim, é sintomático que não se perceba ressonância desse pensamento nos grupos escolares do oeste paulista na década de 1950, porquanto se tratava de um nacionalismo essencialmente econômico (MOREIRA, 1998). Conforme assevera Skidmore (2010, p. 205) “o governo foi pragmático na execução de seu programa, ressaltando o crescimento das indústrias básicas, e decidindo na prática ignorar áreas como agricultura e educação, que tinham sido incluídas nominalmente no Plano de Metas”.
Nas décadas anteriores ao surgimento dos grupos escolares enfocados, Nagle (1976) descreve o surgimento de diversas organizações nacionalistas, como, por exemplo, a Liga de Defesa Nacional, a Liga Nacionalista do Brasil, a Liga Nacionalista de São Paulo, a revista Brazílea, a Propaganda Nativista, a Ação Social Nacionalista e a revista A Ordem. Dada a diversidade de grupos nacionalistas, a orientação ideológica não era unívoca9. No que se refere ao campo da educação, a disseminação de traços nacionalistas nesse período se deu principalmente por meio da difusão dos livros didáticos que possuíam um conteúdo moral, cívico e, sobretudo, patriótico.
A Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916 por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon, tinha entre seus objetivos “propagar a educação popular e profissional; difundir nas escolas o amor à justiça e o culto do patriotismo; combater o analfabetismo” (NAGLE, 1976, p. 45), e, ao defender “o serviço militar, para fazer frente ao perigo externo, e a instrução, para combater o perigo interno - a pregação nacionalista centralizar-se-á na formação da consciência nacional” (NAGLE, 1976, p.46).
Alguns elementos dessa preocupação da Liga permanecerão nas décadas seguintes. Malgrado a impossibilidade de uma definição única de nacionalismo, Almeida (2004) identifica duas características que marcam a vertente populista:
o nacionalismo populista insistia, sob variadas formas, na ideia de uma nação incipiente, incompleta, carente de uma identidade própria e, portanto, frágil. A segunda ideia-força aludida à necessidade de um Estado forte, dotado dos meios adequados para integrar o conjunto dos cidadãos na comunidade nacional e enfrentar, assim, os agentes corrosivos, internos e externos, que ameaçavam a nacionalidade e buscavam impedir sua marcha rumo à plena emancipação. (ALMEIDA, 2004, p.102-103).
Tendo em vista a complexidade do tema, este artigo não pretende esgotar a discussão sobre os nacionalismos, mas exibir algumas características que os governos buscaram implantar nas escolas primárias graduadas.
O orfeão e a entoação dos hinos
O orfeão foi uma das instituições auxiliares10 que se difundiram nas escolas primárias graduadas paulistas. Tratava-se do canto coral aplicado à formação escolar, haja vista que as músicas utilizadas traziam um conteúdo pedagógico e moral.
Inicialmente no Estado de São Paulo o orfeão era destinado apenas às crianças que frequentavam os terceiros e quartos anos dos grupos escolares (SOUZA, 2006). Na década de 1930, aproveitando-se do caráter nacionalista do canto orfeônico, uma vez que só deveriam ser executadas músicas nacionais nos ensaios e apresentações, Getúlio Vargas utilizou-se deste meio de disseminação dos valores tornando o orfeão obrigatório em todas as escolas brasileiras11. Neste sentido, o Código de Educação do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 1933) determinava:
Art. 90 - Em cada grupo escolar, escola secudaria, profissional ou normal, bem como no Instituto de Educação, haverá um orfeão, com o máximo de 60 figuras escolhidas, anualmente, dentre os melhores elementos musicais do estabelecimento.
Art. 91 Cada orfeão realisará anualmente uma audição, pelo menos, e não poderá tomar parte senão em festas escolares, salvo com licença do Departamento de Educação.
§ unico As musicas orfeônicas representarão, dentro da educação escolar, o melhor que se conheça em musica nacional ou estrangeira. (SÃO PAULO, 1933, p. 13).
Porém, mesmo com a exigência legal, o orfeão não era uma realidade em todos os grupos, sobretudo no extremo oeste paulista. A transcrição abaixo ilustra a diferença entre as escolas primárias graduadas das zonas mais antigas do Estado de São Paulo e os grupos das zonas pioneiras da região pesquisada. A Prof.ª Thereza de Camargo Vieira12, uma das entrevistadas para essa pesquisa, realizou a sua formação primária no grupo escolar do município de Tietê/SP, entre 1935 e 1939, instituição que possuía uma sala reservada para o orfeão e contava com material adequado para as aulas de canto. Quando a docente passou a lecionar em Presidente Bernardes/SP, já na década de 1950, tinha de recorrer ao improviso para que pudesse cumprir com as normatizações estabelecidas.
Cantava no orfeão. Tinha a sala onde nós nos reuníamos para cantar. No grupo em que eu estudei tinha o orfeão na sala, tinha um piano e a professora tocava para ensinar às crianças. Aqui não, como professora não, para a aula de canto nós reuníamos mais classes em uma sala e a mesma professora dava a aula. (THEREZA DE CAMARGO VIEIRA, 2013).
O orfeão do Grupo Escolar Alfredo Westin Júnior13 começou a funcionar somente no ano de 1957, conforme registro presente no Mapa do Grupo Escolar: “o orfeão do estabelecimento está a cargo das senhoras professoras Zilah Denari e Zuleika Denari de Oliveira, respectivamente regente e auxiliar. Início do orfeão dia 1/3/57”. (SÃO PAULO, 1957). E as estatísticas indicavam que em 1958 existiam 2.171 orfeões nos grupos escolares no Estado de São Paulo. (SOUZA, 2006).
Entretanto, poucas professoras relataram a existência do orfeão. De acordo com Souza (2006, p. 246), existiram grupos escolares que enfrentavam dificuldades para formar o seu orfeão, inclusive alguns “[...] delegados se queixavam da falta de piano ou harmônio para os ensaios, e professores especializados e de material didático adequado”.
Mas o fato de o orfeão não ter sido um elemento tão presente na cultura escolar dos grupos de Presidente Venceslau e de Presidente Bernardes, não impediu que a música fosse utilizada para a formação patriótica. Isto porque a partir de 1931 Vargas passou a se utilizar da educação como forma de exaltação do patriotismo e de valorização da Nação.14 Vários elementos ufanistas como o culto a bandeira e a obrigação de se cantar diariamente o Hino Nacional, passaram a fazer parte da rotina das escolas.15
Neste sentido, é elucidativo o relato de Terezinha Strazzer Tanus16 (2013), egressa do Grupo Escolar de Presidente Bernardes, quando enfatiza que a primeira atividade ao iniciar as aulas era a entoação de diversos hinos: “Tinha que cantar o hino. Não era bem o hino nacional, eram outros hinos que tinham: hino à bandeira, hino... Tinham vários hinos, né? E tinha um hino que falava que era ‘a vida campesina’.
A discente não exagerou quando afirmou que tinha que cantar o hino, porquanto, a prática era uma exigência legal. O Código de Educação do Estado de São Paulo (1933) determinava em seu Capítulo VII - Do Serviço de Música e Canto Coral que “No curso primario haverá diariamente canto em classe”. Além dessa determinação da legislação paulista, em 1936 o canto do hino nacional se tornou obrigatório por força de uma lei federal17. Assim, de acordo com o relato da professora Maria de Nazareth Miméssi Gonçalves18 (2013), na década de 1940: “Cantávamos o hino nacional todos os dias. Era fora da sala de aula, cantava-se o hino nacional e depois entrávamos”.
Essa prática denota a intenção de formar o cidadão republicano: alfabetizado e patriótico19. Na ata da reunião pedagógica realizada em 4 de outubro de 1939 no Grupo Escolar de Presidente Venceslau, o diretor deixa expressa a ordem para que as professoras dispusessem dísticos patrióticos em suas salas:
Os professores deverão se esforçar para que na classe, em lugar bem visível, haja dísticos, em cartolina, como êstes: “Quem nasce no Brasil ou é brasileiro ou é traidor”, “Conserva para teus filhos o Brasil de teus avós”, “Si não és reservista, ainda não és brasileiro”, “A bandeira é o símbolo vibrante da Pátria”, “O hino nacional é o canto simbólico da raça”, “O hino nacional é o canto forte da nacionalidade”, “O hino nacional e a bandeira, são os símbolos da grandeza de nossa Pátria e do valor de nossa gente”, “O hino nacional é a melodia do dinamismo brasileiro”, “Getúlio é a expressão maravilhosa da grandeza de uma raça”, “O Chefe do Estado Novo é o símbolo da liberdade nacional”, “A constituição de 10 de novembro é a concretisação dos ideais de Caxias” [...]. (SÃO PAULO, 1939, p. 11-12).
Na sequência, o diretor explica como deveriam ser dispostos estes dísticos e também a forma como as professoras deveriam abordá-los: “Essas sentenças deverão ser escritas em ótima letra e em tiras de cartolina ou papelão. No dia em que for colocada na sala, o prof. explicará aos alunos, em linguagem bem clara, o seu significado”. (SÃO PAULO, 1939, p. 11-12).
Essa imposição de representações às/aos professoras/es (que, por sua vez, deveriam repassá-las para as crianças) executada pelo diretor, era uma diretriz repassada pela Delegacia Regional de Ensino, como denotado no Relatório do Delegado do Ensino referente ao ano de 1940: “Continuamos a recomendar o CULTO À BANDEIRA, mensalmente por todos os grupos e escolas, inclusive municipais e particulares” (RELATÓRIO..., Presidente Prudente, 1941, p. 30, grifos do autor).
A exaltação dos símbolos pátrios estava presente em todo o currículo. Todas as disciplinas estavam ancoradas em um objetivo maior que as atravessava, qual seja, a construção de uma civilização20. E este traço nacionalista não era exclusividade da educação na Era Vargas, mas foi uma marca da educação brasileira durante o século XX.
Matérias como geografia, história, educação física, instrução moral e cívica deveriam desenvolver nas crianças o sentimento de patriotismo e nacionalismo; deveriam contribuir para a formação moral do povo e, no limite, para a construção da nacionalidade. Essa ênfase no nacionalismo atravessou o século XX embalada por diferentes ideologias e alimentada por distintos interesses. (SOUZA, 2006, p. 87).
Neste sentido, todas as docentes e os/as discentes entrevistadas/os possuem lembranças acerca da prática cotidiana de se entoar os hinos. Como se tratava de uma maneira de estimular o nacionalismo, os hinos, especialmente o nacional, eram cantados todos os dias com as crianças, como afirma a Prof.ª Maria de Nazareth: “Cantávamos o hino nacional todos os dias. Era fora da sala de aula, cantava-se o hino nacional e depois entrávamos. [...] Eu ensinava a cantar o hino nacional, hino à bandeira. No tempo da revolução de 32, o hino paulista” (MARIA DE NAZARETH MIMÉSSI GONÇALVES, 2013).
Essa feição que a música adquiriu no âmbito escolar fazia parte da imposição de uma representação de grandeza da nação que era disseminada pelo Estado e aplicada nos grupos escolares. Isto inclusive estava previsto na Constituição, quando Vargas promulgou o Decreto-lei nº 4.545, de 4 de setembro de 1942, que dispunha sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais. No Art. 20, estava expresso que a execução do hino nacional deveria se dar “na ocasião do hasteamento da Bandeira Nacional, nos estabelecimentos, públicos ou particulares, de qualquer ramo ou grau de ensino, pelo menos uma vez por semana”.
Contudo, apesar de ser uma prática que durou vários anos, a apropriação desta representação era algo individual (CHARTIER, 2002), e que, portanto, fugia ao controle estatal. Isto pode ser aferido nas palavras de quem era alvo destas representações, ou seja, os/as educandos/as. Zelmo Denari21, que estudou em uma turma para a qual a Prof.ª Maria de Nazareth lecionou, relembrou como se dava o início das aulas:
Na época, antes de entrar, todo mundo cantava o hino nacional, depois declamava uma poesia. Uma poesia de Coelho Neto: “Brasil, nessa casa de Educação e de ensino, constantemente pensamos em ti, no teu passado de glórias, no teu presente de realizações salutares e no teu glorioso porvir. Possas tu, Pátria amada lembrar-te desses filhos que te saúdam”.
Era um saco, né!? Decorei. Eu e meu irmão declamamos (relata o Sr. Zelmo em tom jocoso) juntos, eu falo: “Brasil...”; e ele fala: “Nessa casa...”; e as nossas mulheres já saem da mesa dizendo que estão com o “saco cheio” dessas patriotadas (Risos).
Era isso, foi talvez por causa da [II] Guerra [Mundial]. O nacionalismo de Getúlio, que é uma grande figura que admiro tanto, mas ele talvez achava que precisava disso. Despertar a nacionalidade, o orgulho de ser brasileiro. Ele sabia disso. (ZELMO DENARI, 2013).
Como visto, além dos hinos, poemas que remetessem ao sentimento patriótico também faziam parte da faina escolar diária. Mesmo com este reforço literário, o relato de Zelmo mostra uma apropriação do conteúdo estritamente em sua forma, porquanto o egresso relembrou de um trecho completo da poesia de Coelho Neto. Julia (2001) defende que assim como os/as professores/as não acatam tudo o que lhes é imposto de fora, os/as educandos/as também exercem certa resistência ao que lhes desagrada22. Assim, a mensagem nacionalista contida na entoação diária dos hinos e na declamação de poesias não somente deixou de ser assumida por Zelmo, como se tornou motivo de troça, sendo tomada como uma “patriotada”.
Em seguida, Zelmo afirmou que acreditava que a veiculação desse conteúdo de fundo nacionalista tinha ligação com as pretensões de Vargas no poder. Com isso, apesar dos esforços do Estado e da escola em se trabalhar a memória coletiva (RIOUX, 1998), o egresso demonstra em seu ato de rememoração que o passado não é estático, agindo sobre ele no presente (GALZERANI, 2004) ao afirmar que entendia a motivação para esse nacionalismo exacerbado.
Além deste conteúdo nacionalista que se intentava transmitir às futuras gerações, a prática da entoação diária dos hinos era um elemento que contribuía para a organização da rotina de estudos. Isto porque além de sinalizar para as crianças que a partir daquele momento se iniciaria a aula do dia, as professoras se utilizavam das canções como uma forma de acalmar as suas turmas, conforme relato da professora Maria Apparecida Lotto de Olyveira23:
Sempre das 12h30 às 16h30. Tinha o recreio, antes de entrar [na classe as crianças] cantavam o hino. Entravam em fila. Cantavam o hino ou senão cantavam uma musiquinha. Quando a classe estava muito barulhenta eu começava a cantar em minha sala para os pequenininhos. Eles ficavam quietinhos. (MARIA APPARECIDA LOTTO DE OLYVEIRA, 2013).
Essa estratégia da docente denota como a cultura escolar é construída no cotidiano, a partir das apropriações das normativas. Julia (2001) afirma que apesar de todo o discurso que pretende carregar nas influências que o ambiente externo exerce sobre a escola e das representações que são impostas para definir a instituição e enquadrar a atuação docente, as/os professoras/es, dentro do âmbito escolar e, mais especificamente, dentro de sua sala de aula, com a classe pela qual são responsáveis, possuem uma liberdade de ação, ditando os rumos que o ensino tomará. Por isso, “[...] a escola não é o lugar da rotina e da coação e o professor não é o agente de uma didática que lhe seria imposta de fora”. (JULIA, 2001, p. 33).
A professora Maura Pereira Estrela24 afirmou que conhecia a maioria dos hinos e que também procurava variar durante a semana, com outros tipos de músicas:
E tinha que cantar o hino nacional em todos os sábados, o hino à bandeira, o hino da Independência, eu sabia de cor, hein! O [hino] da República, o “já podeis”... Não sei se vocês sabem todos, o [hino] à bandeira era: “Salve lindo pendão...”.
Durante a semana cantávamos musiquinhas mais populares para criança, [cantiga] de roda. Mas todos tinham que cantar! Todos tinham que saber! (MAURA PEREIRA ESTRELA, 2013).
Thereza Vieira, educanda em 1935, tornou-se professora no ano de 1948 e na década de 1950 iniciou a sua carreira como docente no oeste do Estado de São Paulo. No caso desta docente é possível identificar também os efeitos do nacional-populismo estimulado por Vargas. Ao recordar o período em que realizou a sua formação básica na cidade de Tietê/SP, entre as décadas de 1930 e 1940 - estando, portanto, sob a égide das políticas educacionais de Capanema -, Thereza relatou as estratégias para a formação de cidadãs e cidadãos que exaltassem a pátria:
Eu me lembro que em meu tempo, para não faltar alunos, a classe que tivesse menos faltas na semana ficava com uma bandeira pequena hasteada dentro da sala. Era uma premiação. Eu me lembro que uma vez eu estava doente e foram em casa me buscar senão nós não ganharíamos a bandeira. (THEREZA DE CAMARGO VIEIRA, 2013).
A adesão à causa nacional começando pela formação das crianças era uma tática eficaz. Isso fica patente no caso da professora supracitada, no qual é possível notar como as representações impostas pelo Estado acerca do nacionalismo e do patriotismo eram apropriadas pelo corpo docente do grupo escolar que as moldava as transformando, nesse caso específico, em práticas que estimulassem, ao mesmo tempo, o nacionalismo e a frequência escolar.
Tal como tinha aprendido a exaltar a pátria durante a sua formação primária e ginasial em Tietê/SP, a partir do momento em que chegou a Presidente Bernardes como professora, passaria a ensinar nos moldes preconizados por Vargas. Deste modo, a professora afirma que a preparação das crianças para as festas envolvia “principalmente o hino nacional, o hino à bandeira, o hino da Proclamação da República, e todo mundo cantava. Antigamente antes de entrar para as aulas todos tinham que cantar o hino”. (THEREZA DE CAMARGO VIEIRA, 2013).
Assim, como será exibido no tópico subsequente, a entoação de hinos era parte integrante também de outra relevante dimensão das culturas escolares: as festividades.
As festividades
Desde o período da Primeira República os grupos escolares paulistas foram uma das principais instituições responsáveis por forjar a memória nacional através de uma série de práticas simbólicas, dentre as quais as festas nacionais representavam um grande auxílio. (SOUZA, 2006). Para isso, os diretores recebiam incentivos estatais para que as comemorações fossem celebradas, incluindo a “[...] festa de encerramento do ano letivo, seguida de exposição de trabalhos escolares, comemoração do dia das árvores e dos animais, do aniversário da escola, além das comemorações cívicas nas datas nacionais”. (SOUZA, 2006, p. 263).
Após o final do período republicano, as festividades foram ampliadas: “Nas décadas de 1930 e 1940, o calendário de festas escolares foi ampliado inserindo-se outras comemorações como a Semana da Criança, a Semana de Caxias e a Semana da Pátria”. (SOUZA, 2006, p. 263).
Miguel Omar Barreto, delegado regional do ensino, em seu relatório referente ao ano de 1940, descreveu as iniciativas tomadas na região de Presidente Prudente em relação às festas cívicas:
Tratamos das festas, como meio de divulgação da LINGUA PATRIA e trataremos agora da festa com a sua finalidade civica.
Despertar o interesse dos pais dos alunos ás festas escolares, previamente preparadas, tem sido a nossa preocupação. Infelizmente a falta de canções populares, poesias adequadas e a deficiência do ensino de música nas escolas Normais, têm embaraçado em parte nossa campanha de realizações de festas com perfeição.
A bôa vontade e o ardor civico de alguns diretores de grupo, tem suprido as faltas acima apontadas e vemos com prazer, esses estabelecimentos de ensino, atingirem o FIM DESEJADO. (RELATÓRIO..., Presidente Prudente, 1941, p. 16, grifos do autor).
Ainda sobre este tema, o delegado regional do ensino também relatou a existência das paradas:
Somos francamente entusiastas pelas paradas colegiais.
É digno de nota o interesse que desperta nas crianças um desfile em dia de Festa. Comparecem elas com suas roupinhas em ordem, cabelos, unhas e sapatos bem cuidados, não raro, duas ou mais horas antes da hora marcada.
Temos organisado diversas paradas de alunos das escolas urbanas e já reunimos, como o Sr. Dr. INTERVENTOR e dr. DIRETOR GERAL DO DEPARTAMENTO, tiveram oportunidade de observar, todas as crianças do municipio de Presidente Prudente, numa demonstração do desenvolvimento do ensino nesse distante recanto de SÃO PAULO.
São as paradas de grande utilidade e de real valor. (RELATÓRIO..., Presidente Prudente, 1941, p. 17, grifos do autor).
Neste sentido, é interessante mencionar o relato de Terezinha S. Tanus. A discente do Grupo Escolar de Presidente Bernardes descreveu como era a preparação das meninas para os desfiles em comemoração ao dia da Independência e ao dia da Proclamação da República, endossando o que foi descrito pelo delegado regional do ensino.
Em 7 de setembro e 15 de novembro nós fazíamos desfile. Até assim, naquele tempo, eram escolhidas algumas meninas que queriam desfilar. Então ao invés de elas colocarem a saia normal do uniforme, elas faziam uns calções, assim, da mesma cor azul marinho, com camisa branca e desfilavam com aquilo. Mas elas eram separadas das outras. As outras de uniforme e elas com aquele calção. (Risos)
Só que o desfile tinha banda de música, porque aqui tinha maestro e tinha banda. Era muito bonito. (TEREZINHA STRAZZER TANUS, 2013).
Desta forma, mais adiante, o Prof. Miguel Omar Barreto enfatizou que todas as comemorações cívicas foram festejadas pelas instituições escolares da região de Presidente Prudente:
Foram comemoradas festivamente pelos estabelecimentos da Região todas as DATAS NACIONAIS.
Dos programas sempre constaram numeros literarios, canto e esportivos.
O DIA DA PÁTRIA, 7 de SETEMBRO, mereceu especial carinho por todas as escolas, sendo realizado brilhantes comemorações.
Continuamos a recomendar o CULTO Á BANDEIRA, mensalmente por todos os grupos e escolas, inclusive municipais e particulares.
Na maioria dos Grupos Escolares do Distrito a entrega dos diplomas de conclusão de curso constituiu solenes festividades, organisando-se quadros de formatura, sessão solene, etc., em ambiente de grande entusiasmo e são patriotismo25. (RELATÓRIO..., Presidente Prudente, 1941, p. 30, grifos do autor).
Os quadros de formatura mencionados pelo delegado regional do ensino eram muito comuns no extremo oeste paulista. De acordo com Souza (2006), a partir da década de 1940 o quadro de formatura passou a ser utilizado para registrar a conclusão do quarto ano do curso primário, no qual figuravam os retratos de todos/as os/as formandos/as, contendo os seus nomes em legenda, bem como a fotografia das/dos docentes que lecionavam no último ano e do diretor.
Estes quadros também carregavam uma carga simbólica, geralmente com a representação de algum elemento gráfico que fizesse menção à cultura material do grupo ou mesmo ilustrações que remetessem ao patriotismo. Era comum também que a fotografia do diretor fosse maior do que a das/dos professoras/es e das/dos estudantes, intentando transmitir uma ideia de ordem, de hierarquia.
Para ilustrar, seguem abaixo alguns destes quadros que ainda hoje estão afixados nas paredes do antigo Grupo Escolar de Presidente Venceslau (atualmente E.M.E.F. “Dr. Álvaro Coelho”):
Primeiramente, é possível notar o aumento de crianças que concluíam a escolaridade primária quando se compara o quadro de 1939 com o de 1948, indicando o aumento da demanda. Outro elemento que se destaca é a estrutura e as ornamentações distintas que cada quadro possuía: no ano de 1939, como somente 25 crianças se formaram, além de seus nomes, estão grafadas as cidades de onde elas provinham, indicando que o município era formado por famílias imigrantes; por fim, no quadro 1948 existem representações que remetem à exaltação da pátria.
Apesar de toda pompa e rigorismo de que se revestiam os exames finais (cujos/as estudantes aprovados/as figurariam no quadro de formatura) no decurso da Primeira República, durante a Era Vargas eles por vezes eram até questionados. Pelo menos, na região de Presidente Prudente o delegado regional do ensino acreditava que esses exames finais não eram tão importantes:
Os exames finais foram realisados sem embaraço, tendo aqui quasi todas as Prefeituras concorrido com a parte da condução que solicitámos.
Somos de parecer que os exames finais nos grupos escolares, são desnecessários.
A apreciação do aproveitamento dos alunos deveria ser feita pelas provas mensais e médias dos boletins.
Nas escolas isoladas a dificuldade é ainda maior na execução dos horarios, devido ás classes reunidas. (RELATÓRIO, Presidente Prudente, 1941, p. 36).
Como é possível notar, além de asseverar que os exames finais eram desnecessários, Miguel Omar Barreto ainda alertava para a dificuldade encontrada para se realizar as provas nas escolas isoladas. Essa crítica pode ter sido motivada pela ampliação da rede escolar, o que impedia que todas as instituições fossem devidamente fiscalizadas.
Mas se os exames começavam a ser questionados, o mesmo não ocorreu com as festas cívicas. Lila Aoshi26 relatou que o desfile do grupo escolar era um acontecimento revestido de importância em Presidente Bernardes, no final de década de 1930, porquanto, não existiam outras instituições que pudessem promover tal festejo:
Tinham desfiles. O meu irmão, quando era moço ele estava no Tiro de Guerra e o grupo dele desfilava. Antigamente os desfiles eram mais animados do que os de hoje. Fazia-se até fantasias para o desfile. Como só havia o primário [na cidade], não existia o Ginásio, então era um acontecimento. (LILA AOSHI, 2013).
A responsabilidade pela organização das comemorações invariavelmente recaía sobre as professoras, como ficou expresso nos depoimentos das docentes que atuaram entre as décadas de 1930 e 1960 na região da Alta Sorocabana. De acordo com a professora Maria de Nazareth, “todo mundo cantava o hino nacional, hasteava a bandeira, todas as datas cívicas eram comemoradas. As professoras ensaiavam junto com as crianças, cantavam, iam todos em fila arrumadinho, organizado”. A docente asseverou ainda que “ensinava a cantar o hino nacional, hino à bandeira. No tempo da revolução de 32, [ensinava] o hino paulista”. (MARIA DE NAZARETH MIMÉSSI GONÇALVES, 2013).
Na realidade, a preparação para as comemorações cívicas ocorria durante todo o ano, tendo em vista a obrigatoriedade de se cantar o hino nacional diariamente nas escolas primárias graduadas. E essa formação permanente dos valores cívicos e patrióticos praticada nos grupos escolares, adquiria feições de espetáculo nas principais datas comemorativas (7 de setembro, 15 de novembro e no aniversário dos municípios), momento em que as/os docentes, os/as discentes e a direção das instituições escolares exibiam para a sociedade as bases sobre as quais estava assentado o seu trabalho de construção da nação. Em Presidente Venceslau, a professora Bernardina Aredes de Araújo27 rememorou a efusividade patriótica do diretor do Grupo Escolar “Dr. Álvaro Coelho”, Adamastor de Carvalho:
Tinham muitas festas e aqui, principalmente o Sr. Adamastor adorava uma festa. Qualquer coisa era motivo de festa para ele, com desfile e tudo. Em todos os Grupos em que eu estive existiu a fanfarra.
O sete de setembro era um colosso! Era na rua e cada um tinha que ir com a sua classe. As professoras organizavam a sala, ele dava a ordem e nós íamos. Ele ia junto, ele gostava. (BERNARDINA AREDES ARAÚJO, 2013).
Silvia de Carvalho Maximino28 também ressaltou a grandiosidade das festas e o entusiasmo com que Adamastor de Carvalho, seu irmão, as conduzia: “No tempo de meu irmão era uma festa de arromba! Ele fazia e os professores tomavam parte. Tinha a comemoração no grupo e era muito boa naquele tempo”. A docente também ressaltou que as professoras trabalhavam para a realização dos eventos, exemplificando qual tarefa lhe era designada: “Fazia no final do ano, nos desfiles nós tomávamos parte. Eu desenhava, fazia os cartazes”. (SILVIA DE CARVALHO MAXIMINO, 2013).
A professsora Arthuzina de Oliveira D’Incao ao evocar a memória de como se davam os desfiles, oferece uma descrição das comemorações que tinham à sua frente Adamastor de Carvalho:
E se formava então o desfile. A bandeira nacional abrindo-o. À sua esquerda, ou atrás, a paulista (aprimorávamos nas guardas de honra!). Em seguida a fanfarra (que sempre a tivemos razoável). Com o passar do tempo até umas balizazinhas apareceram.
Logo após os alunos. Formados em filas de quatro, classe por classe. Cada uma controlada por seu respectivo professor. Começávamos com os mais adiantados e terminávamos com os mais atrasados (primeiros anos).
[...] Depois de tudo formado, ele próprio, Adamastor, punha-se à frente do desfile, posição marcial, inflado de orgulho. Orgulho merecido e santo, precisamos reconhecer. (D’INCAO, 1982, p. 69).
A docente ressaltou ainda que mesmo diante da adversidade, a cerimônia de formatura não deixava de ser celebrada pelo diretor do grupo, mesmo que improvisada:
Um ano houve que se aproveitou até, para a entrega de diplomas, de um circo que por aqui passou. - No picadeiro, a mesa para as autoridades. Também os formandos, acomodados em cadeiras ladeando a improvisada passadeira, que levava do público até a mesa. - Teve a sua nota de pitoresco! Coisas de antanho. Mas que refletem o espírito de um lutador. (D’INCAO, 1982, p. 68).
A professora Maura Pereira Estrela (2013) evocou a memória da época em que participava da organização dos desfiles, enfatizando que as comemorações do aniversário do município eram as mais grandiosas:
No Álvaro Coelho de antigamente nós fazíamos a festa da cidade no dia 2 de setembro! O desfile? Era o [Grupo escolar] Álvaro Coelho que apresentava!
Essa [professora] Therezinha [de Granville Ponce Carvalheiro] era uma das que sabiam muito pintar cartazes [...] e era sempre ela que os fazia. Em nossos desfiles o [Grupo escolar] Álvaro Coelho brilhava! Todas as classes ofereciam meninas para apresentar baliza na frente.
No dia 7 de setembro era mais o exército [que se apresentava]. Mas no dia 2 de setembro que era bonito. Todas as escolas tomavam parte e o Sr. Adamastor obrigava todos os alunos a participarem. A fila todinha ia, quarenta, cinquenta, e a professora ao lado tomando conta.
De acordo com o relato a professora Maria Aparecida de Lourdes Fontana Pardo29, a comemoração dos feriados nacionais envolvia todas as escolas de Presidente Bernardes:
Mas no dia 7 de setembro era a comemoração. Então eram todas as escolas, mas a gente tinha que preparar. Eu, geralmente, dirigia o hino nacional. Se era a Independência, ficava responsável pelo hino da independência. Se era a República, era o hino da República. [...] nós fazíamos aquela leitura em grupo e havia muita participação dos alunos, eles recitavam, não era leitura, era recitação. Até hoje eu sei as poesias que eu recitei. Enquanto eu fui aluna do grupo eu recitei e quando eu passei a ser professora, ensinei tanto as músicas que aprendi como os textos. (MARIA APARECIDA DE LOURDES FONTANA PARDO, 2013, grifos nossos).
É interessante observar que essas festividades eram práticas que tinham um efeito duradouro na cultura escolar. Isto pode ser atestado no último trecho da fala de Maria A. de L. F. Pardo que, tendo frequentado o Grupo Escolar de Presidente Bernardes como discente, na década de 1940, utilizou-se dos mesmos textos e das mesmas músicas aprendidas naquela época, para aplicar posteriormente com seus/suas educandos/as quando se tornou docente da mesma instituição.
Deste modo, os festejos dos quais os grupos faziam parte construíam não apenas a cultura escolar das instituições, mas também cumpriam a função de ser uma espécie de vitrine através da qual o Estado expunha as condutas que esperava da sociedade, disseminando valores patrióticos e, ao mesmo tempo, indicando quais memórias deveriam ser preservadas.
Considerações finais
A partir dos exemplos apresentados ao longo do artigo, buscou-se exibir um panorama da difusão de alguns traços nacionalistas nos grupos escolares da região do extremo oeste do Estado de São Paulo. Para isso, foram destacados alguns elementos da organização e da rotina de trabalho presente nas fontes documentais e, mormente, relatados pelas profissionais e pelas/pelos discentes em suas entrevistas.
Procuramos mostrar como as docentes se apropriavam das representações que circulavam no âmbito escolar e que intentavam enquadrar a sua ação. A penetração nos meandros da faina diária permitiu revelar o trabalho executado pelas professoras, isto é, como a sua prática docente era realizada utilizando o que foi aprendido na Escola Normal e procedendo às adaptações necessárias ao contexto do extremo oeste paulista.
Conforme o depoimento fornecido pelas docentes, o orfeão não foi uma instituição que obteve grande êxito nos grupos da região, haja vista a necessidade de uma estrutura adequada para a sua prática, algo de que careciam os prédios das instituições. Contudo, essas professoras além de terem aprendido em sua formação a utilidade pedagógica do canto coral, eram instruídas e incentivadas pela legislação e pelas autoridades da Educação a entoar os hinos e demais canções que remetessem à exaltação da pátria, como parte de um plano de nacionalização e formação moral do povo.
As políticas de nacionalização incidiram na ação docente tanto na esfera estadual, com o Código de Educação do Estado de São Paulo (1933), quanto na federal (como, por exemplo, a Lei nº 259, de 1936, e o Decreto-lei nº 4.545, de 1942), disseminando representações que intentavam moldar o trabalho cotidiano. Algumas dessas representações foram apropriadas e trabalhadas por algumas docentes (como no caso da Prof.ª Thereza de Camargo Vieira que aprendeu a exaltar a pátria durante sua formação primária e prosseguiu com o trabalho nacionalista quando se tornou docente), diretores (a exemplo do trabalho de Adamastor de Carvalho nas festas cívicas) e delegados de ensino (com a recomendação ao “culto à bandeira”).
Contudo, mesmo com esse trabalho de inculcação de representações, as apropriações nem sempre ocorriam do modo como se planejava, o que ficou expresso no relato de Zelmo Denari, que relembrou os traços nacionalistas de sua formação como sendo “patriotadas”.
A diversidade presente na forma como cada educadora se apropriava das representações que lhes eram impostas, indicava atuações distintas dessas mulheres. O discurso estatal apregoava determinadas posturas, disseminando representações acerca do trabalho das docentes, que muitas vezes se restringia a um caráter prescritivo, sem um incentivo material. Essa situação forçava as docentes a utilizarem da improvisação para o cumprimento das exigências legais, o que no caso específico deste artigo, referia-se à condução do orfeão, à entoação dos hinos e à preparação para as festividades.
Assim, é possível afirmar que as professoras participaram de modo efetivo da construção das culturas escolares, interna e externamente ao âmbito escolar. Intramuros trabalhavam com as músicas como parte da formação e as representações que eram impostas pelo Estado na disseminação de atividades patrióticas, dentro do contexto do nacionalismo de vertente populista. Se internamente as músicas contribuíam com o trabalho docente cotidiano, as festividades eram a demonstração pública do ufanismo. Por meio dos festejos as docentes publicizavam as suas atividades escolares; era nos desfiles que as professoras e os grupos escolares educavam a população, exibindo os ritos, as personagens históricas e, consequentemente, os comportamentos que o Estado esperava de todos/as.
Enfim, os grupos escolares representavam um local privilegiado tanto para formar a infância, quanto para disseminar representações para a população, indicando quais memórias deveriam ser preservadas, quais deveriam ser prescindíveis e ainda que comportamentos eram esperados. Assim, no entrelaçamento entre as práticas e as normas, as docentes contribuíram para que as instituições abordadas incorporassem em suas culturas escolares o caráter nacionalista e patriótico requerido pelo Estado, apropriando-se das representações sobre a nação e difundindo-as a partir de suas limitações e de sua potencialidade.