O estudo do passado não é um guia seguro para predizer o futuro. Porém, ele nos prepara para o futuro, expandindo nossa experiência, fazendo com que possamos aumentar nossas habilidades, nossa energia - e se tudo for bem, nossa sabedoria.
John Lewis Gaddis
Considerações iniciais
Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa na qual lançamo-nos a investigar a formação de professores de Matemática e o currículo praticado para essa formação, na primeira instituição de ensino superior do Norte de Minas, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIL). Um de nossos propósitos foi dialogar com sujeitos que fizeram parte da trama histórica da formação de professores de Matemática em Montes Claros, na instituição que tornou-se a Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), e analisar aspectos de suas narrativas que apresentam indícios sobre o currículo adotado, o que se ensinava e aprendia no curso em foco e registrar nossas impressões sobre o tipo de professor de Matemática que se queria formar. Buscamos, ainda, analisar documentos coletados durante a investigação, a fim de identificar as concepções curriculares e estratégias presentes nesse contexto em relação à formação de professores. Neste texto, focalizaremos os olhares sobre o currículo desse curso, praticado no período compreendido entre os anos 1968 a 1978.
Nos diálogos empreendidos com os colaboradores de nossa investigação, consideramos fundamental analisar suas experiências, tendo em vista que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002).
De acordo com Larrosa (2005), a experiência não deve ser entendida como um modo inferior de conhecimento ou apenas como um ponto de partida para um conhecimento ou como um empecilho para um “conhecimento verdadeiro”. Há que se separar a palavra experiência de sua conotação empírica, ou seja, distingui-la de “experimento”. Também é necessário negar à experiência qualquer pretensão de autoridade ou dogmatismo e, ainda, distingui-la de prática, pensando-a “não a partir da ação, mas da paixão, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo do ponto de vista da paixão” (LARROSA, 2005, p. 4). Portanto, é importante evitar a tentação de fazer da experiência um conceito e somente tomá-la como “um modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência além de sua própria existência - corporal, finita, encarnada no tempo e no espaço - com outros” (LARROSA, 2005, p. 4).
As vozes2 que reconstituíram as experiências vividas e que nos forneceram indícios3 para o delineamento das concepções e práticas curriculares utilizadas na formação de professores à época são as das professoras fundadoras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIL), do primeiro professor de Matemática do curso, e de alguns daqueles que foram alunos e, posteriormente, atuaram como docentes do curso de Matemática.
Algumas indagações compuseram, inicialmente, nossa proposta de pesquisa, dentre as quais destacamos duas: Em que se baseavam as concepções curriculares praticadas no curso? Quais práticas compunham o ensino de Matemática da década de 1960 até o fim da década de 1970?
Consideramos que a abordagem histórica é significativa para a compreensão sobre os processos de formação de professores de Matemática e os currículos praticados nessa formação, haja vista que ela pode contribuir para o aprimoramento das práticas; para o compartilhamento de experiências; para campos de reflexão (ALMEIDA e GOMES, 2018).
Nesse sentido, Garnica (2004, p. 153) afirma que conhecer o passado da formação de professores
[...] ou as várias versões que constituem “o” passado [...] é uma das condições sine qua non para que possamos construir possibilidades de análise quanto ao que se transforma e ao que permanece, sem o que estaríamos continuamente a reinventar a roda.
A reconstituição dos cenários de formação de professores é essencial para presentificar ausências; identificar em que medida os saberes dos primeiros professores, bem como as prescrições curriculares, do curso que estudamos contribuíram para a formação de outros professores de Matemática; compreender as dificuldades e/ou facilidades encontradas nesse processo, dentre outros aspectos.
Temos a clareza de que o fazer historiográfico é marcado por continuidades e descontinuidades, e o lugar da construção histórica, conforme Benjamin (1993, p. 229), “não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”, de divergências e convergências, de transformações e permanências, do ser sujeito individual e coletivo, quebrando linearidades, compartimentalizações, hierarquizações dos saberes em diferentes tempos e lugares.
Ao analisar a proposta curricular para o curso de Matemática, elaborada em 1968 e os registros nos diários de classe dos professores dos anos 1968 a 1978, identificamos uma concepção de currículo no sentido empregado por Silva (2014, p. 16) ao discorrer sobre as “teorias tradicionais” que o envolvem e que se pretendem “neutras, científicas, desinteressadas”. Nessas teorias, os conhecimentos e os saberes dominantes concentram-se em questões técnicas. O foco das teorias tradicionais do currículo é a organização do conhecimento inquestionável. Nelas estão imbricadas relações de poder, conduzindo os sujeitos a verem a educação numa determinada perspectiva (SILVA, 2014).
Escolhas metodológicas
As fontes mobilizadas em nossa investigação são constituídas pelos depoimentos de sujeitos vinculados ao curso de Matemática da FAFIL, no período alvo da pesquisa, e por documentos e impressos. Para tanto, prestigiamos, em nosso trabalho, a metodologia da História Oral, com a preocupação de articular e fazer dialogar o oral e o escrito.
A História Oral surgiu em meados das décadas de 1960/70, por meio de uma abordagem do “acontecimento social” sem classificações prévias, sem o objetivo de factuá-lo, ao contrário, abrindo planos discursivos de memórias várias, atentando para as tensões entre as histórias particulares e a cultura que as contextualiza, “dando voz” ao sujeito que a si mesmo constitui-se nos exercícios narrativos - explicando e dando indícios - que possibilitarão a compreensão do contexto no qual está se constituindo (GARNICA, 2004).
Segundo Amado e Ferreira (2006), nos anos 1990, a História Oral ganhou notoriedade no Brasil e experimentou importante expansão por meio da criação, em 1994, da Associação Brasileira de História Oral. As autoras argumentam que a História Oral oportuniza a interligação da pesquisa empírica de campo e a reflexão teórico-metodológica, revelando que o objeto histórico é fruto de uma elaboração, ou seja, a história é sempre construção.
Amado e Ferreira (2006, p. xxii) afirmam que a passagem da década de 1970 para a de 1980 trouxe
[...] transformações expressivas nos diferentes campos da pesquisa histórica, revalorizando a análise qualitativa, resgatando a importância das experiências individuais, promovendo um renascimento do estudo do político e dando impulso à história cultural. Nesse novo cenário, os depoimentos, os relatos pessoais e as biografias também foram revalorizados, e muitos dos seus defeitos, relativizados. Argumentou-se em defesa da abordagem biográfica, que o relato pessoal pode assegurar a transmissão de uma experiência coletiva e constituir-se numa representação que espelha uma visão de mundo.
Nessa perspectiva, ao ouvir os relatos de nossos colaboradores, tivemos como alvo a recuperação da memória individual e coletiva, das informações sobre fatos não registrados, associando-os a eventos da vida pública e privada que nos revelam “visões” de mundo, dos lugares, da vida e da profissão. Tivemos a intenção de construir, conforme Garnica (2007, p. 21-22), “enunciações em perspectiva” por meio desses relatos, tendo a clareza de que, em nosso trabalho, a História Oral constitui-se em método de pesquisa qualitativa, permitindo-nos “trafegar por outras cercanias, ter outros interlocutores e vizinhos”.
Valendo-nos da História Oral como opção metodológica central e mobilizando, também, fontes escritas, constituímos uma análise narrativa em que intencionamos articular situações específicas do contexto socioeducacional e os aspectos marcantes do currículo para a formação de professores de Matemática na região.
Em nossa investigação não menosprezamos as fontes oficiais, buscando com elas construir articulações com as fontes orais. Todas as fontes foram igualmente analisadas, balizadas, “interrogadas”. Ao mobilizar, questionar e analisar todas as fontes orais e escritas, tivemos a perspectiva de Febvre (1998) de “fabricar o nosso mel”.
Salientamos que, em nosso trabalho, ao promover cruzamentos entre as fontes mobilizadas, consideramos a perspectiva de Garnica, Fernandes e Silva (2011, p. 237) quando afirmam que,
[...] os pontos de vista (as verdades do sujeito e das outras fontes disponíveis) são postos em diálogo, sem que uma fonte seja valorada de modo diferenciado, posto que cada um desses recursos abre a possibilidade de conhecer perspectivas alternativas, ainda que, não poucas vezes, conflitantes.
Avaliamos que, embora valiosas e essenciais a nosso trabalho, as fontes orais de per si não seriam suficientes para contextualizar em que circunstâncias e condições se deu o processo de formação dos professores graduados no curso em questão e as prescrições curriculares que permearam esse processo.
Nossas fontes apresentaram-se singulares, legítimas, no momento de sua produção e no momento da análise que desenvolvemos. Isso não implica, contudo, uma hierarquização de sua legitimidade ou importância, pois todas elas contribuíram, em seu conjunto e com suas potencialidades próprias, para situar, analisar e compreender nosso objeto de estudo.
Proposta curricular do curso de Matemática
A primeira proposta de estrutura curricular para o curso de Matemática foi elaborada em 1968, quando foi formalizado um requerimento ao Conselho Estadual de Educação, com data de 06/03/1968, pelo presidente da Fundação Universidade Norte Mineira. O currículo do curso a ser desenvolvido do 1º ao 4º ano está registrado na Figura 1.
Podemos observar, no registro anterior, que já era seguida a prescrição da época, quando não era mais admitido o esquema 3+1 - estabelecido pelo Decreto nº 1.190 de 1939, tanto para os cursos de licenciatura quanto para o curso de Pedagogia -, no qual os três primeiros anos do curso eram destinados a uma formação para o bacharelado e o último ano para a licenciatura.
Observa-se, no entanto, que a proposta apresentada ao Conselho Estadual de Educação concentrava nos três primeiros anos do curso as disciplinas específicas. No 3º ano, havia apenas uma disciplina pedagógica - Didática -, situando-se as demais no último ano. Nas palavras de Saviani (2009, p. 46), eram “três anos para o estudo das disciplinas específicas, vale dizer, os conteúdos cognitivos ou ‘os cursos de matérias’, na expressão de Anísio Teixeira”.
Com a extinção legal do modelo 3+1, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, houve a separação de bacharelado e licenciatura (CASTRO, 1974), registrada em pareceres do Conselho Federal de Educação nos quais “já não mais se admitia o esquema de três anos de bacharelado mais um de didática. Licenciatura e bacharelado passam a ser graus obtidos paralelamente, a partir de disciplinas comuns” (p. 638).
Essa recomendação pode ser verificada no número 10 da revista Documenta, em que os Pareceres registrados estabelecem o mínimo de disciplinas pedagógicas para as licenciaturas:
Psicologia da Educação; Adolescência, Aprendizagem.
Elementos de Administração Escolar.
Didática.
Prática de Ensino, sob forma de estágio supervisionado. (BRASIL, DOCUMENTA 10, 1962, p. 99)
Nesse mesmo documento, está registrada a seguinte diferenciação entre a formação do bacharel e a do licenciado:
A licenciatura é um grau equivalente ao bacharelado, e não igual a êste mais Didática, como acontece no conhecido esquema 3+1. [...] Assim, para obter os dois diplomas, terá o aluno de prolongar os estudos pelo tempo correspondente, conforme plano do estabelecimento, ao aprofundamento [...] [das] especialidades, se for inicialmente licenciado, ou para a sua preparação como professor, se fôr bacharel (BRASIL, DOCUMENTA 10, 1962, p. 99).
Também é estabelecido o currículo mínimo para a licenciatura em Matemática, ministrada em quatro anos:
Desenho Geométrico e Geometria Descritiva
Fundamentos de Matemática Elementar
Física Geral
Cálculo Diferencial e Integral
Geometria Analítica
Álgebra
Cálculo Numérico
Matérias pedagógicas de acôrdo com o Parecer n.o 292 aprovado em Nov. de 1962 (BRASIL, DOCUMENTA 10, 1962, p. 85-86).
Portanto, é possível afirmar que o primeiro curso de Matemática, na primeira instituição de ensino superior da região de Montes Claros, norte de Minas Gerais, seguiu ipsis litteris a recomendação legal para a elaboração de seu plano curricular.
Registros dos diários de classe
A análise de diários de classe4 dos anos de 1968 a 1978, como instrumento de registro do fazer pedagógico dos docentes em suas aulas, foi importante para identificarmos o conteúdo ou matéria lecionados (currículo) e, em certa medida, como eles desenvolviam suas práticas pedagógicas com o objetivo de formar bons professores de Matemática na perspectiva das teorias tradicionais do currículo. Tais teorias na concepção de Silva (2014, p. 16) se pretendem “neutras, científicas, desinteressadas”, concentrando os conhecimentos e os saberes em questões técnicas. Seu foco é a organização do conhecimento inquestionável. Nelas estão imbricadas relações de poder, conduzindo os sujeitos a verem a educação numa determinada perspectiva.
Em alguns diários observamos o detalhamento dos conceitos trabalhados e a ênfase nos exercícios. Há uma grande variedade na forma de preenchimento desses documentos, que são mais ou menos pormenorizados de acordo com o perfil do docente responsável pela disciplina. Como exemplo, apontamos o diário da disciplina “Fundamentos da Matemática”, de 1968, que traz um registro minucioso do conteúdo ministrado (Figura 2).
Fonte: Arquivo da Coordenação do Curso de Matemática - UNIMONTES (acondicionado no almoxarifado da instituição).
Nos registros do diário de 1968 da disciplina Fundamentos da Matemática há indícios, pelo menos nos cinco dias letivos mostrados na Figura 2, de que o professor apresentava os conceitos relacionados à disciplina e, posteriormente, a cada duas ou três aulas propunha problemas e/ou exercícios de verificação do conteúdo estudado. Essas anotações nos levam a crer em práticas de ensino tradicionais no sentido de se basearem no binômio transmissão do conteúdo-prática de exercícios.
Na acepção de Anastasiou (2004), no método tradicional, os passos seguidos visam ao registro do símbolo, via memorização, enfatizando a aula expositiva e os exercícios de repetição, ou questionários pontualmente corrigidos e decorados.
Podemos estabelecer uma relação entre os registros dos diários de classe analisados e o contexto histórico em que foram desenvolvidos. No Brasil pós-1964, o Sistema Nacional de Ensino é reorganizado tendo em vista a racionalização dos aspectos administrativo e pedagógico. A questão central do ensino passa a ser o planejamento cuidadoso de todas as tarefas a serem realizadas. Desse modo, o planejamento é desenvolvido numa perspectiva exclusivamente técnica e ocupa lugar de destaque nos manuais e programas de ensino. “A racionalização do processo aparece como necessidade básica para o alcance dos objetivos do ensino” (MARTINS, 1998, p. 148).
O aspecto da ênfase posta na realização de muitos exercícios e, por vezes, a concordância com a eficiência dessa prática para a aprendizagem estiveram muito presentes nas narrativas de nossos colaboradores. Como exemplos, transcrevemos a seguir trechos5 das falas da professora Mariza e do professor Sebastião.
Para aprender, mesmo, você tem que saber resolver os exercícios. No livro de Granville tinha cada exercício, que ficávamos dois, três dias para achar a solução... E isso demanda tempo e dedicação... E tínhamos que resolver os exercícios considerando a teoria dada pelo professor. Havia os livros, também... A gente tinha que estudar o Granville e outros livros para criar elementos suficientes para conseguir resolver os exercícios que eram propostos. E nas provas poderiam cair exercícios inéditos desse tipo... Se você não treinasse antes, não conseguiria fazer a prova (Professora Mariza Monteiro Guimarães).
Nós fazíamos muitos exercícios, utilizávamos a técnica de fazer as contas sem muita teoria (Professor Sebastião Alves de Souza).
Depois de formados e na condição de professores do curso, tanto Mariza como Sebastião mantiveram, em seus fazeres docentes, a prática de propor aos alunos muitos exercícios, exatamente como haviam feito seus professores. Esses docentes, no entanto, sublinharam sua preocupação, cada um à sua maneira, em aproximar os estudantes dos conceitos matemáticos.
Percebi que ficava melhor para eles aprenderem o conteúdo e depois aplicarem na prática, através dos exercícios. Eu sempre tive isso, de me preocupar em mostrar ao aluno a aplicação prática dos conteúdos. Primeiro eu mesma pensava... Como é que eu vou usar isso? Onde é que tem isso que a gente utiliza? Porque, realmente, tem gente que não gosta da Matemática por isso... Fala assim: “Pra que estudar isso? Eu nunca vou precisar disso, eu não vou entender!”. Então eu sempre pensei em falar sobre a aplicação da Matemática para os meus alunos (Professora Mariza Monteiro Guimarães).
Então, a aluna cometeu alguns equívocos nas continhas... A prova valia vinte. Ela tirou vinte, porque não é isso que estou cobrando... Conta até eu ia errar. Falo com eles... Exercícios do livro até eu não vou saber resolver... Há exercícios que pode ser que você não saiba resolver... Deve ser uma coisa natural. Tenho que resolver uma certa parte de exercícios, tenho que ter uma certa situação... Mas quando fui entrar na Universidade tive direito de errar 30%... O tempo de aprendizagem em Matemática, principalmente, acaba sendo mais longo por causa de nossa cultura de que matemática é fazer conta, é exata, numérica... (Professor Sebastião Alves de Souza).
Tais posturas mostram que, no jogo das interveniências mútuas, tanto alunos quanto professores são elementos essenciais na constituição do currículo e das disciplinas acadêmicas, pois mobilizam saberes e produzem experiências modificadoras dos processos de aprender e ensinar.
A partir da análise da proposta curricular, dos diários de classe e das entrevistas, reconhecemos uma concepção principal de formação de professores de Matemática presente na criação e implementação inicial do curso: a de que o curso de Matemática deveria ser difícil, com rigor teórico, buscando formar professores certificados e qualificados para atuar de forma eficiente na docência.
Considerações finais
Ao lançar olhares sobre o currículo praticado para a formação de professores no primeiro curso superior de Matemática no norte de Minas Gerais, entre 1968 a 1978, enxergamos duas vertentes, também presentes nos estudos de Moreira e Ferreira (2013), que esclarecem ser possível situar o modo de construir o currículo e conceber o conhecimento matemático na formação do professor de Matemática. Em uma delas privilegia-se a formação essencialmente conteudista e na outra dá-se atenção à mescla de conhecimentos relacionados ao ensino e à aprendizagem em geral - e da Matemática em particular -, à educação como processo social e à escola.
Em nossos estudos, verificamos que a primeira concepção vigorou desde a criação do curso. Conforme nossos depoentes, depois de formadas as primeiras turmas de professores, que buscavam uma certificação para uma atuação profissional já consolidada, o curso de Matemática atraiu alunos “fracos”, que desconheciam os conteúdos curriculares, e o resultado era que não conseguiam concluir o curso. Também era marcante a concepção de que o curso de Matemática era difícil, destinado a poucos. Nesse sentido, cabe trazer um trecho da narrativa do professor Edson Guimarães.
Havia um problema sério... Os novos alunos que saíram do segundo grau e ingressaram na Faculdade não tinham base nenhuma da Matemática. Tinha uns que não sabiam nem a tabuada. [...] Não podia nunca ter misturado a gente, que já era professor, com os novatos, a garotada... Todos eram alunos nossos... Tinha aluno que não sabia a tabuada quando começou... Mas o curso foi bom e a Fundação (FUNM) aprendeu muito com o próprio curso e com a responsabilidade dos professores. O curso era difícil... Poucas pessoas procuravam, somente os mais afoitos... Eles diziam “Ah, eu vou fazer Matemática! Eu gosto de Matemática!”. Mas o gosto era assim entre aspas, gostava mas não sabia, não tinha base. O curso era muito teórico. O problema era esse... Muito teórico (Professor Edson Guimarães).
As dificuldades e o “peso” do curso de Matemática estão presentes em outro depoimento, o da professora Dilma Silveira Mourão.
O curso de Matemática era muito pesado. No início, em minha turma, houve uma grande dificuldade porque havia pessoas que tinham feito o curso normal e outras o científico, que dava uma base melhor para fazer o curso de Matemática. Esses colegas nos amedrontavam dizendo que nós, que tínhamos feito o “Normal”, não daríamos conta, que não aguentaríamos, pois o curso era puxado demais para nós (Professora Dilma Silveira Mourão).
A concepção de que a Matemática é algo muito difícil, reservado a um número pequeno de pessoas, veiculada nas narrativas de nossos colaboradores, nos remete ao conceito de distinção tratado por Bourdieu (2007), no qual as práticas culturais incentivadas pela família e pela escola “distinguem” o que será reconhecido como gosto legítimo, ou seja, o gosto e as preferências são submetidos a uma lógica interna de um determinado grupo que deseja evidenciar seu pertencimento e seu status privilegiado em relação a outro.
As escolhas são modos de estabelecer distinções sociais, estratégias de marcar o lugar social e o grupo a que pertence cada indivíduo. Desse modo, alguns daqueles que concluíram o curso de Matemática da FAFIL proferem o discurso de que o curso era bom por ser difícil e conseguir formar poucas pessoas. Sobressaíam-se somente os mais inteligentes ou mais dedicados - justamente aqueles que concluíram o curso - nossos depoentes. Nas narrativas de nossos colaboradores, a evasão e a reprovação eram marcas da distinção do curso (BOURDIEU, 2007) e, consequentemente, de sua qualidade.
Como já foi comentado, os relatos apresentados por nossos entrevistados enfatizam que o curso de Matemática era considerado pesado, e que era preciso dedicar-se muito para obter a aprovação em todas as disciplinas ao fim de cada ano. Identificamos, em nosso estudo, a prática de um currículo calcado em concepções tradicionais, nos anos 1968 a 1978, com um foco conteudista voltado para a aquisição de habilidades intelectuais geradas pela prática de exercícios e da memorização de conceitos transmitidos pelo professor.
Um desses exemplos está na narrativa da professora Rosina Rabelo Nuzzi Ribeiro (graduada em 1977).
Quando ingressei no curso de Matemática, o objetivo do curso era uma formação para atuar na Educação Superior. O curso era muito pesado. Nós tínhamos uma formação básica para atuar como professores. O curso era de licenciatura mesmo! [...] Era um curso muito difícil, ninguém queria fazer Matemática. A cultura era muito direcionada... Era uma cultura de medo, de distância... O perfil das pessoas que procuravam o curso de Matemática era de professor.
Baseando-nos nas falas de nossos colaboradores, podemos concluir que o curso de Matemática continuou a ser considerado difícil, mesmo por alunos que o realizaram muito depois de sua criação.
Conforme depoimentos de nossos colaboradores, houve influência de seus ex-professores para a construção de seus fazeres e de suas concepções acerca do bom professor e sua prática. Foi destacada a utilização da exposição oral; a organização do contexto da aula e a explicitação dos conteúdos presentes na proposta curricular do curso; o uso de exemplos e de exercícios.
Segundo o professor Gil:
Para ser um bom professor de Matemática, é necessário ter dom. A pessoa tem que saber ensinar, saber transmitir. Eu tive um professor que era um espetáculo de matemático, mas uma porcaria de professor... Ele simplesmente não sabia transmitir. Era competentíssimo. Mas não sabia, nunca soube, nunca teve didática, nunca soube explicar uma coisa óbvia... [...] A maneira de você falar, de explicar conta muito... Agora isso você não aprende. Isso é dom de convencer as pessoas, de detalhar as coisas até elas entenderem (Professor Francisco Bastos Gil).
Convém destacar que há comportamentos enraizados e reproduzidos por esses professores, apreendidos na convivência com seus próprios professores, mas percebemos, também, a busca por uma educação melhor do que a que tiveram. Para alguns de nossos entrevistados, a ideia de “deve ser assim” foi construída no tempo, lugar e na sociedade, evocando conflitos, contradições e valores socioeducacionais.
Conforme Ponte (1992), as concepções dos professores acerca de seus saberes e fazeres diferenciam-se conforme os níveis de ensino em que exercem a atividade docente ou pautam-se por sua origem profissional - se atuantes na formação inicial, científica e pedagógica - e ainda por sua inserção social, opções ideológicas e educativas. Desse modo, tais concepções não são estáticas: elas modificam-se ao longo do exercício da função docente.
Em referência específica ao professor de Matemática, Garnica e Fernandes (2002) afirmam que as concepções de um docente sobre a Matemática, seu ensino e aprendizagem resultam de um amalgamado de outros significados atribuídos por ele a essa ciência, construídos em sua formação, determinantes da e determinados por sua ação em sala de aula. As narrativas de nossos entrevistados nos possibilitaram perceber a pertinência das considerações desses autores.
Portanto, concluímos, por meio da pesquisa realizada que, no período focalizado, os professores desenvolviam suas práticas pedagógicas com o objetivo de formar bons professores de Matemática na perspectiva das teorias tradicionais do currículo e que o modelo de formação adotado era calcado no rigor, revelando que o ensino e a aprendizagem da Matemática eram destinados aos bem dotados intelectualmente.