O conceito de cultura material escolar é enfocado neste artigo como uma maneira de entender a dinâmica de funcionamento de quatro escolas particulares luteranas da Serra dos Tapes-RS, entre o período de 1938 a 19711.
Neste estudo a cultura escolar é entendida a partir do conceito de materialidade escolar, pelo arcabouço teórico de Alcântara e Vidal (2018), que revelam que a materialidade da instituição escolar oferece pistas dos modelos e práticas pedagógicas, dos usos dos espaços e tempos escolares, como resultado dos elementos abstratos da cultura que se materializam.
Os estudos sobre cultura escolar abarcam as temáticas do tempo escolar, do espaço escolar, dos discursos e encontros de diferentes culturas, de distintas realidades econômicas, evidenciando as diferentes práticas existentes no interior da instituição e as características que compõem a instituição escolar em sua totalidade.
Este artigo2 tem o objetivo de identificar as características da cultura material escolar de escolas particulares luteranas que tiveram suas atividades desenvolvidas em comunidades étnicas luteranas na Serra dos Tapes, região meridional do estado brasileiro do Rio Grande do Sul.
Cabe contextualizar o leitor sobre o processo histórico de ocupação dessa região pelos imigrantes e descendentes de pomeranos, que quando chegaram ao Brasil receberam terras até então pouco habitadas para que pudessem construir suas moradias e estabelecer suas lavouras. Além disso, os imigrantes trouxeram as igrejas luteranas, e junto delas as escolas étnicas comunitárias, acontecimentos que contribuíram para a constituição de organizações religiosas e escolares no sul do Rio Grande do Sul. Na perspectiva de Weiduschadt (2007) esses imigrantes puderam constituir um modo de vida valorizando e recriando instituições existentes na Alemanha, como as escolas e igrejas, mas com novos arranjos e produzindo novas formas de constituí-las, desta maneira surge um modelo escolar específico.
Os pomeranos são um grupo imigratório proveniente do território da Pomerânia, região localizada no litoral do Mar Báltico, sendo descendentes de eslavos e wendes que trabalhavam principalmente na agricultura e na pesca (RÖLKE, 1996). É, desta forma, considerado um grupo étnico com características próprias e peculiares, mantendo língua e costumes diferenciados de outros grupos étnicos alemães (WEIDUSCHADT; TAMBARA, 2014). Possui características culturais, religiosas, educacionais diferenciadas dos demais, possuindo também uma língua própria.
Os princípios doutrinários luteranos advêm dos ideais defendidos por Martin Lutero, reformador da Igreja Luterana, o qual menciona, em suas obras selecionadas, sobre a educação, reforço no incentivo para que as crianças frequentassem as escolas (LUTERO, 2011). Nos mesmos escritos, Lutero reafirma que a escola é o espaço que destina a criança ao caminho de Deus.
Para que este estudo fosse possível de ser realizado foram delimitadas quatro instituições escolares particulares dessa área cultural. Assim, as instituições escolhidas foram: Escola Matias de Albuquerque (1) (Sociedade Religiosa Escolar da Favila), Escola Silveira Martins (2) (Comunidade Religiosa Independente do Cerrito) - ambas comunidades independentes3 -, Escola da Comunidade São Paulo do Capão Bonito (3) (IELB/Missouri4), e a Escola Visconde Ouro Preto (4), pertencente à igreja de Confissão Luterana Arroio do Padre II (IECLB5). Essas escolas estão localizadas em dois municípios da região sul, que são os municípios de Canguçu6 e Arroio do Padre7. As quatro instituições envolvidas no estudo estiveram vinculadas a essas três distintas vertentes luteranas. Seus prédios são apresentados na Figura 1.
Conforme Bosenbecker (2012, p. 45), que investigou edificações da arquitetura pomerana, as escolas luteranas tinham um “prédio simples, monocromático, com duas janelas de cada lado, uma porta de acesso, telhado de duas águas e uma cruz no oitão”, características que se assemelham com as das igrejas, como já observado em fotos deste artigo.
Evidencia-se também um mapa com a localização geográfica das quatro escolas analisadas no estudo (Figura 2).
Tendo sido feita a escolha das instituições escolares a serem estudadas, a seguir foi definida a metodologia do estudo, que conta com a análise documental e com história oral, com base em depoimentos de ex-alunos e pessoas que estiveram ligadas a essas instituições.
A história oral é aplicada com base em Verena Alberti (2005), que considera essa abordagem como um método de pesquisa, seja ela histórica, antropológica ou sociológica, que privilegia a realização de entrevistas com indivíduos que testemunharam acontecimentos, conjunturas, e possam expressar visões de mundo que possibilitem trazer dados que aproximem o pesquisador de seu objeto de estudo (ALBERTI, 2005).
No Quadro 1 são apresentados os sujeitos que foram entrevistados na pesquisa. Nele é possível observar a instituição religiosa, a escola, o período de escolarização de cada entrevistado, bem como o ano da realização da entrevista:
Nome do Entrevistado | Instituição Religiosa | Escola | Período de Escolarização | Ano de realização da entrevista |
---|---|---|---|---|
A. G8. | Independente | Matias de Albuquerque | 1950 a 1955 | 2019 |
R. P. | Independente | Matias de Albuquerque | 1952 a 1957 | 2019 |
C. P. | Sínodo Rio-Grandense | Visconde de Ouro Preto | 1942 a 1947 | 2020 |
O. M. | Independente | Silveira Martins e Matias de Albuquerque | 1941 a 1949 | 2020 |
W. V. | Independente | Silveira Martins | 1938 a 1944 | 2020 |
E. Q. | Sínodo de Missouri | São Paulo do Capão Bonito | 1959 a 1964 | 2020 |
B. H. S. | Sínodo de Missouri | São Paulo do Capão Bonito | 1952 a 1956 | 2020 |
ROSA (pseudônimo) | Sínodo Rio-Grandense | Visconde de Ouro Preto | 1952 a 1957 | 2013 |
HORTÊNCIA (pseudônimo) | Sínodo Rio-Grandense | Visconde de Ouro Preto | 1955 a - | 2013 |
Organização: autores, 2020.
No estudo, os principais documentos analisados são aqueles preservados pelas igrejas e pelas escolas particulares luteranas, documentos esses que em seus fragmentos revelam pistas dessas instituições e de suas práticas escolares e religiosas. Sobre os documentos religiosos, Bacellar (2008) aborda que os arquivos de natureza religiosa e escolar no Brasil são detentores de ricos e variados conjuntos documentais, compostos principalmente de registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, processos diversos, livros-tombo das paróquias e correspondências, livros de matrículas e frequência de alunos.
Cabe refletir, ainda, que os documentos são resultado de um trabalho humano que ao registrar mensagens emitidas por quem os criava podem traduzir os vestígios de fatos, de acontecimentos e experiências vividas (SAMARA, TUPY, 2010). Desta forma, esses vestígios do passado documentados nestes materiais foram úteis para a identificação da cultura escolar dessas escolas analisadas. Segue a organização de um quadro sobre as fontes analisadas no artigo (Quadro 2):
Descrição do Documento | Datas aproximadas dos registros |
---|---|
Estatuto de Criação da Sociedade Religiosa escolar da Favila (Matias de Albuquerque) - registrado em cartório | 1923 |
Ata da Associação Religiosa Escolar da Favila | 1941 - 1986 |
Caderno de estudos sociais de uma aluno da escola Silveira Martins | Aproximadamente 1944 |
Organização: autores, 2020.
Para contextualização teórica, também busca-se uma base sólida nos estudos clássicos de Julia (2001), que define a cultura escolar como: “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10). Esse conceito é importante para possibilitar o entendimento da dinâmica escolar, religiosa e cultural que envolve as instituições aqui estudadas.
Feitas essas considerações, apresenta-se a estrutura deste artigo: na primeira parte é discutida a perspectiva teórica da cultura escolar instituídas nas escolas particulares luteranas da Serra dos Tapes; em seguida, são analisados alguns pontos específicos dessas escolas, como: o tempo e espaço escolar, multisseriação, materiais escolares, temas estudados e seu regime de escola particular. Por fim, as considerações finais.
Escolas particulares luteranas sob a ótica da cultura escolar
Como diz Vidal (2009), olhar a escola pelas lentes da cultura escolar permite não apenas ampliar o entendimento sobre o funcionamento interno da instituição, como provoca o desejo de rever as relações estabelecidas historicamente entre escola, sociedade e cultura. Desta forma são identificados basicamente três elementos fundamentais que permeiam a cultura escolar das instituições estudadas, que são: o contexto de escola/igreja, a sociedade rural e o contexto cultural alemão/pomerano, que unidos formam a especificidade dessa organização escolar.
Ao trazer a discussão referente aos estudos sobre os processos no interior da escola e em seu entorno, Vidal (2009) diz que:
Invadir a “caixa-preta” da escola, tem significado também perscrutar as relações interpessoais constituídas no cotidiano da escola, seja em função das relações de poder ali estabelecidas, seja em razão das diversas culturas em contato (culturas infantis, juvenis e adultas, culturas familiares e religiosas, dentre outras) (VIDAL, 2009, p. 26).
Para conhecer a cultura escolar de determinada instituição deve-se entender sua dinâmica de funcionamento, seus contextos e suas lógicas. Como destaca Julia (2001, p. 12), “de fato, para evitar a ilusão de um total poder da escola, convém voltar ao funcionamento interno dela”, porque o desempenho interno da escola diz muito sobre a sua dinâmica. Inclusive, suas características demonstram fatos do contexto mais amplo em que a instituição estava inserida, trazendo pistas, do meio religioso e cultural no qual se insere.
Para compreender o processo que envolve a escolarização desses indivíduos, é necessário entender certos elementos que estão interligados com seu caráter multisseriado, particular, bem como com as características étnicas e comunitárias. Para a percepção deste cenário escolar, utiliza-se Weiduschadt (2007, p. 166), quando diz que as “escolas eram formadas ao lado das igrejas, eram vistas como escolas paroquiais. As escolas eram organizadas de forma multisseriada, e meninos e meninas as frequentavam juntos [...] as escolas ficavam dentro das comunidades”.
A própria organização comunitária contribuía para que a igreja e a escola tivessem suas atividades interligadas. Além disso, Kreutz a (1994, p. 149) ressalta que “o currículo dessas escolas estava organizado de forma que as crianças aprendessem o essencial para o bom entrosamento na vida das comunidades rurais, tanto sob o aspecto religioso e social, quanto do trabalho”. Para analisar a cultura escolar das instituições religiosas luteranas e suas respectivas escolas, foram definidos subtemas que possibilitaram o entendimento desse conceito norteador da pesquisa.
Tempo e Espaço Escolar
Viñao Frago (1988) discorre sobre o tempo e o espaço escolar. Reforça que as instituições escolares constituíram-se com projetos de construção própria ou adequados, sendo lugares onde os educandos vão durante os dias do ano e em horas concretas. O espaço físico, o lugar edificado, moldado e habilitado ao tipo de ensino/instrução para os alunos aprenderem, articula-se com o tempo escolar.
Luchese (2012) reforça essa assertiva em relação ao tempo escolar:
Na medida em que a escola se institucionaliza e passa a ser controlada pelo Estado e pela Igreja (no caso das escolas confessionais), vai, lentamente, impondo seu tempo e seu ritmo. Demarca o tempo de permanência nas aulas durante o período do dia, e quantos dias ao longo do ano. Tempos escolares são diversos, plurais e ritualizados (LUCHESE, 2012, p. 283).
Deste modo, entende-se que a escola era, na vida dos descendentes de pomeranos, também um momento cíclico, pois tinha o momento de início, os anos em que a frequentavam, e seu encerramento. Esse fechamento do ciclo escolar acontecia, preferencialmente, com a realização do ato do ritual confirmatório. Ou seja, havia uma idade para iniciar e terminar os estudos, datas essas que eram demarcadas pelas cerimônias e representações produzidas pelas comemorações de determinadas datas (LUCHESE, 2012).
Em uma das escolas da pesquisa, o entrevistado E. Q. (2020) salientou que o tempo de permanência girava em torno de cinco anos, e variava conforme os desejos dos alunos. Segundo ele, aqueles alunos que desejavam seguir nos estudos faziam o exame de admissão ao ginásio, e aqueles que não iriam seguir os estudos estudavam até a 4ª série ou até serem confirmados.
A idade para começar na escola era sete ou oito anos, isso para se ter um aprendizado inicial. Isto me parece que era um regulamento do governo. Ao todo havia quatro séries (anos) e o quinto ano para admissão ao Ginasial. Isto para quem aspirava avançar nos estudos (E. Q., 2020).
Essas escolas particulares luteranas, em sua grande maioria, realizavam suas atividades no período da manhã, para que, durante a tarde, esses alunos pudessem ajudar seus pais no trabalho da lavoura. Assim, E. Q. (2020) também confirma o horário de sua aula: “a aula começava às 8 horas e ia até meio dia, seja no inverno ou verão”. Outra entrevistada, C. P. (2020), diz que o próprio fato das aulas serem no período da manhã era favorável, para que na tarde os filhos pudessem ajudar suas famílias: “eu ia de manhã para escola e de tarde eu ajudava meus pais na lavoura capinando” (C. P., 2020).
Ainda em relação ao tempo de permanência na escola, a narrativa de W. V., 2020, menciona que o avanço do aluno de um ano para outro era determinado por seu desempenho na escola:
Era assim... eu fui só até a 4ª série, depois tinha que ir na escola na cidade, mas eu não fui, só estudei nessa escola da colônia (se refere a escola Silveira Martins). Naquela época o ensino era diferente do que hoje, se tinha um aluno mais inteligente na 1ª série, já passava direto para o 2ª ano, porque esses alunos eles não ficavam todo um ano no 1ª ano, eles já avançavam. Mas naquela época era assim, quem estava na 4ª série naquele tempo equivale ao 2ª grau de hoje. Hoje se estuda por etapas, mas naquela época quem era mais inteligente já avançava (W. V., 2020).
Neste trecho ele se refere aos alunos “mais inteligentes” como aqueles que se alfabetizavam mais rapidamente. Reforçando que, nas comunidades no meio rural, não havia a presença de escolas do ensino secundário, ou seja, o estudo nas escolas particulares de ensino primário eram a única opção dos filhos dos descendentes de pomeranos que viviam naquela região. Essa presença precária de escolas, e a localização geográfica distante dos centros urbanos, dificultava a ida das crianças para estudarem na cidade. Além disso, a vida na cidade era percebida como algo que poderia desvirtuar o caminho do jovem da vida camponesa, e por isso as famílias desejavam que seus filhos seguissem na atividade agrícola, profissão historicamente legitimada9 pela cultura pomerana e pela religião luterana.
É perceptível que, naquele período, as escolas não se preocupavam com o tempo do aluno, suas individualidades e reflexões sobre o processo da construção do conhecimento. Havia, majoritariamente, a presença da pedagogia diretiva (BECKER, 2001).
Sobre o espaço dessas escolas particulares luteranas, sabe-se que muitas delas funcionaram no mesmo prédio da igreja, mas isso foi sendo modificado ao longo dos anos, principalmente após a nacionalização do ensino. Percebe-se que os prédios das quatro escolas analisadas eram parecidos, todos tinham estilo simples, sua arquitetura lembrava a de uma igreja. Sobre esse tópico, Benito Escolano (2000) diz que:
La arquitectura escolar, además de diseñar espacios educativos desde presupuestos funcionales, ordenados a servir de soporte al conjunto de acciones que constituyen la mise en scène del proceso de enseñanza-aprendizaje, constituye en sí misma una escritura, esto es, un texto dotado de significaciones. En cuanto forma de escritura, la arquitectura puede ser examinada, a este respecto, como una textualidad conformada a ciertas reglas constructivas que comportan sentido en sus propias estructuras, o como un orden que transmite, a través de sus trazados y símbolos, una determinada semántica, es decir, una cultura (BENITO ESCOLANO, 2000, p. 5).
Nesse entendimento, a arquitetura escolar pode ser examinada como uma textualidade que envolve regras em sua estrutura, e por meio de seus traços e símbolos institui uma cultura específica.
No período estudado, o trajeto até a escola era feito geralmente a pé, os alunos caminhavam em grupos até chegarem na escola. Uma das narrativas reforça que: “nós, os alunos, íamos a pé para a escola, a gente caminhava com tamancas, a nossa turma caminhava junto, e nos dias que chovia nós não íamos para aula” (R. P., 2019). Percebe-se que nesse trajeto até a escola os vínculos comunitários se fortaleciam, ao percorrer o caminho as crianças conversavam, faziam amizades e aconteciam também os desentendimentos. Tanto esse trajeto até a escola quanto a organização escolar possibilitavam o convívio e a socialização das crianças (WEIDUSCHADT, 2007).
Desta forma, tratando-se do tempo em que os alunos permaneciam na escola particular luterana, percebe-se que as aulas eram no período da manhã, e que a escolarização dos sujeitos não ultrapassava o tempo de cinco anos, sendo a confirmação10, uma baliza cultural para a finalização dos estudos.
Multisseriação
Ao longo da pesquisa percebeu-se que uma das características da cultura escolar mais presente nessas escolas particulares luteranas era a da modalidade de classe multisseriada, pois as escolas de ensino primário no meio rural eram de condições precárias, pequenas e, por isso, abrangiam todas as séries em um único ambiente:
[...] na minha época éramos 53 alunos, divididos nas cinco séries. Primeira, segunda, terceira, quarta e quinta série. Depois denominado admissão final do ensino fundamental. Tudo isso, em uma sala de aula com uma professora. Tinha disciplina para todos. Um grupo não intervinha no outro, a professora dava aula tranquilamente para os pequeninos como para os maiores, nada atrapalhava (ROSA, 2013).
Com apenas um professor, todas as séries estudam juntas numa mesma sala de aula, onde reinventam-se espaços, dividindo-as por filas de carteiras, separando o quadro, e tendo esse profissional a função de ensinar todos os alunos de acordo com os níveis de aprendizagem (OLIVEIRA, 2016).
Nessa perspectiva, para Santos (2015), a escola multisseriada tem características rurais, e dessa forma é acompanhada pela cultura, subjetividade e contemporaneidade dos sujeitos que nela estudaram, bem como da comunidade com a qual se envolve. Outra narrativa traz, também, relatos sobre o regime multisseriado:
Era tudo na mesma sala, estudavam todos juntos, da 1º até a 5º série, depois que terminava tinha que seguir os estudos na cidade se caso quisesse, assim só alguns que seguiam os estudos em Pelotas, alguns chegaram a trabalhar em algum escritório, alguns não gostavam e acabam voltando para a lavoura (O. M., 2020).
Nesta afirmação, fica evidente que poucos seguiam os estudos, e que muitos deles ainda não obtinham sucesso, destacando que o refúgio predominante era o do trabalho familiar na agricultura, pois muitas gerações já haviam vivenciado esse trabalho, logo os mais jovens também se conformavam em seguir esse caminho.
Sobre a organização da sala de aula, B. H. S. (2020) relembra que: “a sala era dividida pelos bancos, em uma sala grande, as gurias11 sentavam de um lado e os rapazes de outro, os menores na frente e assim iam vindo para o fundo, e por último era a quinta classe (série), os alunos maiores, o professor tinha que ter uma boa organização”. Nessa narrativa aparece, também, a distinção de gênero dentro da escola.
Materiais escolares
Em relação aos materiais didáticos utilizados nas escolas comunitárias, sabe-se que os recursos também eram precários. Esse aspecto também foi analisado em pesquisas de Kreutz (1994a, p. 149), e assim, evidenciam-se suas palavras,
O currículo dessas escolas estava organizado de forma que as crianças aprendessem o essencial para o bom entrosamento na vida das comunidades rurais, tanto sob o aspecto religioso e social, quanto do trabalho. Havia a preocupação em se construir o conhecimento vinculado a realidade do aluno (KREUTZ, 1994a, p. 149).
Ao tratar sobre o material didático utilizado na escola particular luterana, uma das narrativas traz que:
todos os alunos tinham que ter livros. No início era bom, falava da uva, ovo, cachorro, mala, falava tudo bem direitinho (se refere às cartilhas) e tinha tudo desenhado e nós tinha que ler. Cada ano os livros ficavam mais difíceis [...] Também tinha um caderno para escrever, mas não tinha caneta, tinha uma pena de aço que nós tínhamos que molhar na tinta, as vezes derrubávamos a tinta na mesa, porque tinha que botar várias vezes no tinteiro porque secava rápido (R. P., 2019).
O trecho refere-se aos materiais didáticos utilizados nas aulas, menciona-se a presença e o uso de cartilhas e de livros. Revela, também, sobre os instrumentos utilizados na escola. Esses instrumentos, diferentes dos materiais utilizados atualmente nas escolas, demonstram a precariedade do ensino da época.
Reproduz-se na Figura 3 um caderno usado para os estudos sociais, que apresenta o mapa do Brasil da época, o que, de certa forma, enaltecia o pertencimento e valorização nacional12:
Os estudos de Geografia e História dessas escolas eram direcionados para uma uniformização do pensamento e pertencimento nacional, como aduz Ferreira (2008),
Ao uniformizar o ensino oficial e particular, o Estado pretendia padronizar comportamentos, atividades e interesses da juventude brasileira. O conhecimento do idioma, noções básicas de Geografia e História da Pátria, arte popular e folclore, formação cívica, moral e a consciência do bem coletivo sobreposto ao individual seriam a base da formação do cidadão político (FERREIRA, 2008, p. 22).
Ao traçar a memória escolar e religiosa, a entrevistada C. P. relata que:
Eu ia de manhã para escola e de tarde eu ajudava meus pais na lavoura capinando. De tarde, nós estudávamos até a hora do café, depois nós tínhamos que levar o café na lavoura, nós tomávamos café todo mundo sentado na lavoura, e depois nós ficávamos na lavoura ajudando a capinar [...] Na escola nós aprendíamos de tudo, fazer contas, ler e escrever. As coisas de ensino religioso era a parte da igreja. As atividades de ensino religioso não podiam ser na escola. As coisas para sermos confirmados, nós estudávamos só com o pastor (C. P., 2020).
Outro entrevistado narra que:
Nos primeiros anos não havia caderno de papel. Eu mesmo aprendi a, b, c, [se refere ao alfabeto] numa lousa de pedra grafite. Alguns livros didáticos e disciplinas como testes e exame final vinham do Estado. Outros materiais eram subsidiados pela Igreja, pela Congregação, ou, então pelos próprios pais (E. Q., 2020).
Também em relação aos materiais utilizados nessa escola, o entrevistado B. H. S. revela que:
Os alunos que estudaram antes de mim tinham a pedra para escrever, mas depois quando foi minha vez de ir na escola isso já tinha terminado, aí já tinham os cadernos. No caderno nós ‘escrevia’ com o lápis e também com tinta, cada um tinha um vidrinho de tinta e se deixasse cair tinta de mais, tinha que usar o mata borrão (B. H. S., 2020).
Ainda, ao descrever as características e os materiais utilizados, este entrevistado revela a forte ligação da escola com a igreja, salientando o laço entre a esfera religiosa e escolar ao perceber a preocupação da congregação em subsidiar a manutenção das atividades escolares. Do mesmo modo, revela E. Q. (2020) que “a escola funcionava na própria igreja, com bancos e classes de dois a três metros de comprimento, fornecidos pela Congregação”.
O estudo dos materiais usados na escola para o entendimento dos contextos escolares é explicado por Vidal (2009, p. 31) quando diz que “no entrecruzamento das fontes, com atenção aos aspectos materiais da escola, nos é possível acercar das práticas escolares e dos saberes produzidos no interior da escola”. Ou seja, a análise dos materiais utilizados no ambiente escolar, demonstra as características de suas materialidades.
Temas estudados
Nas narrativas surgiram muitos aspectos que determinam o cotidiano dessas escolas, demonstrando o envolvimento familiar, além do material didático utilizado nas aulas.
Por serem essas escolas localizadas junto da igreja, direta ou indiretamente a proximidade com a instituição religiosa interferia no processo de ensino e aprendizagem, bem como no próprio comportamento dos alunos. Assim, Weiduschadt e Castro (2015) dizem que:
As escolas denominadas confessionais, ou seja, aquelas organizadas por comunidades ligadas a uma instituição religiosa marcaram presença entre comunidades de imigração alemã, em especial, no Rio Grande do Sul. Na região meridional do Estado, as comunidades de imigrantes, em sua maioria constituídas por pomeranos, mantinham as formas de organização comunitária da escola relacionada com a religiosidade (WEIDUSCHADT; CASTRO, 2015, p.175).
Os narradores, ao serem questionados sobre o aprendizado na escola, revelam que as principais habilidades desenvolvidas eram: “Escrever, ler, falar a tabuada, brincar, bordar [...] Cada série tinha seu livro. Eram livros escritos em brasileiro. Tinha tudo em um livro só, ler e fazer as contas” (R. P., 2019). Ela enfatiza e reforça o estudo básico, que seria o necessário para a continuação na vida no meio rural, como ler, escrever e aprender matemática.
Nessa perspectiva, pode-se apoiar em investigações de Kuhn e Bayer (2016):
As escolas paroquiais luteranas estavam inseridas num projeto comunitário que buscava ensinar a língua materna, a matemática, valores culturais, sociais e, principalmente, religiosos. Tinham uma responsabilidade para com a comunidade no sentido de junto e com ela, promover o crescimento e o desenvolvimento pessoal de todos que a compõe, focando a cidadania. Se a escola formasse o ser humano com postura ética e moral exemplar, este poderia promover transformações sólidas em seu contexto social e seria um verdadeiro colaborador na seara de Deus e para o governo do mundo (KUHN & BAYER, 2016, p. 114).
A seguir, na mesma direção, referencia-se, também, Weiduschadt e Alves (2019, p. 284), que escrevem que “as escolas paroquiais comunitárias se localizavam na colônia, onde os aspectos valorizados são aqueles ligados ao trabalho agrícola. Nesse contexto, o currículo escolar para essa população visava à alfabetização letrada e a matemática, assim como à educação religiosa”. Ou seja, reforça-se novamente que o currículo dessas escolas estava centrado na formação da criança para atuar na propriedade agrícola da família. Como mencionado:
“Nós aprendemos a tabuada, ler, escrever fazer contas [...] um dia tinha tabuada, cada um tinha a tabuada escrita em um papel e daquele papel a gente estudava, a professora nos perguntava a tabuada [...] cada aluno copiava a tabuada, cada aluno tinha que estudar para saber quando a professora iria perguntar” (A. G., 2019).
Nesse trecho, salienta-se a importância que era atribuída à tabuada e, consequentemente, às operações matemáticas que deveriam ser aprendidas na escola. Verifica-se que as famílias de origem pomerana consideravam importante que seus filhos dominassem as operações de matemática, que estavam geralmente voltadas para os cálculos que seriam utilizados no dia a dia dos alunos. Weiduschadt e Alves (2019, p.284) argumentam que na escolarização formal das escolas e dos grupos étnicos alemães na Serra dos Tapes tinha destaque “o estímulo ao cálculo mental como uma habilidade a ser desenvolvida na escola, a fim de facilitar e ser usado em situações do dia a dia, mas atrelado ao cálculo escrito” (WEIDUSCHADT, ALVES, 2019, p.284).
Ainda em relação ao estudo da matemática nas escolas particulares luteranas, Kuhn (2015) afirma que:
As orientações didáticas para o ensino da Matemática nas escolas paroquiais luteranas enfatizavam a construção do conceito de número de forma intuitiva, a importância do desenvolvimento de habilidades para o cálculo escrito e o cálculo mental, e o uso do conhecimento formal da Matemática, com o objetivo de se desenvolver conhecimentos úteis para vida dos alunos (KUHN, 2015, p. 455-456).
Conforme Weiduschadt e Alves (2019), as aprendizagens, dentre elas o cálculo mental, das escolas paroquiais estavam direcionadas para a valorização dos saberes do cotidiano e as habilidades necessárias à vida na colônia. Eram realizadas nessas escolas operações de porcentagem, destinadas ao cálculo de milho e feijão, por exemplo, que eram produtos que circulavam nos comércios das colônias da época.
Outro aspecto revelado sobre os temas estudados enfatiza as práticas cívicas e nacionalistas. A. G. relata: [...] “cantávamos o hino nacional, isso era uma vez na semana. Era uma sala de aula, todas as séries na mesma sala” (A. G., 2019). Nessa afirmativa, é ressaltada a questão do nacionalismo e patriotismo derivados do período do governo de Getúlio Vargas, em que as escolas que, anteriormente, eram étnicas, passaram a ter características cívicas, cujas atividades eram voltadas para a veneração da pátria.
Essa valorização cívica e nacionalista foi um elemento que permeou essas escolas particulares luteranas, principalmente no período de 1938 a 1971, após a consolidação do Estado Novo e a estruturação de um ensino voltado para essas questões. Pires (2019) trata, em seu trabalho, que a principal preocupação do governo da época foi a influenciar na educação, atribuindo importância à moral e cívica, com intuito de trabalhar a formação do caráter do patriota brasileiro.
Percebe-se que esse cenário patriótico é característico deste período (1938-1971), fortemente marcado por uma ideia de consciência e identidade nacional. Foi um período que surgiu como uma maneira de dificultar essa ação cultural e tradicional alemã e pomerana, mas cabe destacar que muitos grupos encontraram maneiras de continuar praticando seus hábitos culturais, principalmente com a manutenção da língua e da religião. Como destaca Salamoni (1995), desde o período da colonização, os descendentes de pomeranos tiveram estratégias para manter sua religião e principalmente a sua língua.
No trecho a seguir, R.P. aborda sobre a divisão das atividades em diferentes dias da semana, onde se constatou que em cada dia haviam tarefas distintas a serem realizadas: “terça-feira era o dia da tabuada, sexta-feira era o dia de bordar, neste dia nós meninas não faltávamos” (R.P., 2019). Nesse trecho, é mencionada uma formação doméstica das meninas que frequentavam a escola, num sentido em que a instituição se preocupava em formar também as futuras donas de casa, fazendo uma distinção de gênero na aprendizagem.
Essa distinção entre o universo masculino e feminino foi também percebido no estudo de Albrecht (2019), que ao analisar cartilhas que eram usadas nos estudos das escolas luteranas, percebeu que essas cartilhas já eram pensadas e representadas para essa distinção de gênero:
Há uma intencionalidade em mostrar que existem certas atividades socialmente pensadas e articuladas de modo a parecer como destinadas ao sexo masculino, como, por exemplo, as que envolvem certa periculosidade ou uso da força física e do trabalho no campo. Enquanto que para as mulheres fica relegado o recato da apresentação ou da vida doméstica (ALBRECHT, 2019, p. 174).
O entrevistado B. H. S. revela também aspectos da organização curricular da escola:
Segunda-feira era o dia de estudar o catecismo e as histórias bíblicas, tinha o dia para escrever o ditado, também tinha o dia da caligrafia, nós tínhamos que escrever nos cadernos de caligrafia. Nas sextas-feiras depois do recreio as moças aprendiam tricô, bordado e crochê, e os rapazes tinham que trançar, fazer relhos para os cavalos, tudo na base da imbira13. E nas sextas-feiras também tinha que cantar os hinos nacionais e os hinos da igreja do hinário, cada aluno tinha um hinário que se levava junto para a escola (B. H. S. 2020).
Percebeu-se que as sextas-feiras eram destinadas para trabalhos manuais e práticos. Especificamente, aparecem aspectos que vão além da importância do civismo e da religião. Novamente, são mostradas as divisões das tarefas e ensinamentos entre os gêneros, em que as meninas eram direcionadas para aprender coisas diferentes dos meninos, elas eram preparadas para o trabalho no lar e eles para o trabalho na lavoura.
Essa distinção entre gêneros no trabalho pomerano era, dessa forma, reforçada desde a escola. A naturalização da distinção entre os gêneros é também descrita por Salamoni (1995), que salienta que as tarefas femininas consistiam nos afazeres ligados à casa, enquanto ao homem cabia a responsabilidade da manutenção econômica da família.
Hortência também aborda elementos ligados à organização curricular, como na declaração a seguir: “tinha aula de segunda até sábado, durante toda a semana, devido a esse método, sábado a gente tinha artes, depois a gente fazia trabalhos manuais, e depois do recreio era o ensino religioso” (HORTÊNCIA, 2013). Assim, reforça-se que cada dia da semana tinha atividades diferentes, inclusive para o ensino religioso.
Cabe reassegurar que a escolarização era importante para os descendentes de alemães e pomeranos justamente para a alfabetização, leitura, escrita e operações básicas de matemática, mas que as famílias não almejavam que os filhos se dedicassem para uma vida voltada aos estudos, pois desejavam que seus filhos ficassem no trabalho na lavoura e, consequentemente, mantivessem a tradição da dedicação ao meio rural, e as mulheres sendo preparadas para o trabalho doméstico.
As falas dos sujeitos da pesquisa deixaram claro que mesmo após a nacionalização do ensino as escolas continuaram atuando junto das igrejas, porém algumas não lecionavam o ensino religioso, ficando a critério de cada instituição. Por isso, ressalta-se que esse distanciamento entre igreja e escola pode ter sido relativo, dependendo de cada denominação e de cada contexto escolar. Assim, o entrevistado E.Q. destacou que havia uma ligação entre o que era pregado na igreja e o que era ensinado escola, pois temas religiosos faziam parte do cotidiano de aprendizagem da escola. Por meio de suas memórias, é revelado que:
No início se estudava: alfabetização, depois Geografia, História, Matemática, Catecismo, História Bíblica, cantos do hinário da igreja e também hino pátrios como do cancioneiro popular. Havia também um dia que, no recreio, eram aprendidas brincadeiras especiais, como brincadeiras de roda, etc. Não havia esportes como futebol, vôlei, etc. isso apareceu mais tarde. Um dia também era destinado para trabalhos manuais. Além disso havia um dia na semana que, após o recreio, era só canto - hinos pátrios, populares (da cartilha) e hinos da igreja (E. Q., 2020).
Observa-se que havia uma ligação entre os desejos da pátria e as instruções da igreja. Na mesma entrevista, ao ser questionado sobre a presença do ensino religioso nos estudos escolares, afirma que: “Havia o ensino religioso na escola, estudava-se o Catecismo e histórias bíblicas de um livrinho expedido pela Editora Concórdia14. Cantava-se todos os dias tanto no início da aula como no fim (saída) hinos do hinário luterano da IELB” (E. Q., 2020). Demonstrando, assim, que o instrumento do catecismo usado na preparação para a confirmação luterana já era utilizado nos estudos da escola.
Em relação ao uso da língua pomerana no ambiente escolar, o entrevistado S., B. H., mencionou que: “entre si as crianças falavam a língua pomerana, mas quando tinham que falar com o professor se comunicavam em português” (B. H. S., 2020).
Ao tratar sobre a aprendizagem da língua nessas escolas, Weiduschadt (2015) reforça que:
A organização escolar e religiosa desses imigrantes mantinha como objetivo central a unidade comunitária, ou seja, privilegiavam as relações sociais na comunidade, para se fortalecerem como grupo. A sua preocupação com a igreja e a escola se dava com a consolidação da língua alemã, que deveria ser aprendida na oralidade e na escrita, justamente com as noções de conhecimento básico do ensino secular (WEIDUSCHADT, 2015, p. 57).
O que se compreende finalmente é que, mesmo com os percalços políticos do período, essas escolas particulares mantiveram seu elo com a religião, como destacado por Weiduschadt e Alves (2019):
Nesse cenário, o grupo comunitário estimulava a ida à escola para o aprendizado da leitura, da escrita, dos cálculos básicos e dos saberes religiosos. Mesmo depois da nacionalização do ensino (década de 1940), essas escolas ainda mantinham vínculos estreitos com a comunidade e podiam gozar de certa autonomia na escolha dos conteúdos e na organização curricular. Assim, mesmo quando o processo de fiscalização por parte do governo municipal e estadual passou a exigir entrega da documentação e aplicação de provas pelo poder central, o currículo conservou estreita ligação com a realidade local (WEIDUSCHADT & ALVES, 2019, p. 288).
Desta forma, verifica-se que os temas estudados nas escolas particulares luteranas estavam, majoritariamente, ligados ao cotidiano do aluno e de sua família.
Regime de Escola particular
Para o entendimento da cultura escolar dessas instituições escolares particulares luteranas, deve-se, também, compreender seu sistema de pagamentos.
Esse sistema de pagamento da escola reforça a questão da importância dos descendentes de pomeranos enviarem seus filhos para a escola, isso é corroborado pelos estudos de Weiduschadt (2007, p. 169), que escreve: “o projeto escolar dentro da comunidade religiosa era marcante, a orientação e a obrigação de os pais enviarem os filhos à escola eram quase obrigatórias, com sanções econômicas e morais, caso não concordassem”.
A função do sustento das atividades escolares advém de algo naturalizado entre os pomeranos adeptos do luteranismo. De acordo com Altmann (1994),
Lutero enfatizou a demanda de que o sistema educacional deixasse de ser inacessível para a maioria da população e que sua abrangência fosse maior, nesse contexto enfatizou mesmo a importância de que os cidadãos financiassem as escolas. Asseverava que seria necessário não apenas que estes reconhecessem a necessidade da educação própria dos filhos e filhas, mas também a de sustentar economicamente as escolas (ALTMANN, 1994, p. 201).
Sobre essa afirmativa de Walter Altmann, entende-se que Lutero almejava acesso universal às escolas, de maneira que os pais pudessem oferecer os estudos com ajuda financeira. Porém, ao refletir sobre o contexto das comunidades pomeranas da Serra dos Tapes aqui estudadas, entende-se que o acesso à educação não era tão universal assim, pois somente as famílias que fossem membros das comunidades luteranas e que tivessem condições para realizar os pagamentos poderiam ter seus filhos estudando nas escolas da comunidade. Caso contrário, esse acesso à escola lhes era negado.
Para a análise do regime particular dessas escolas, toma-se como exemplo a escola particular da Sociedade Religiosa Escolar da Favila (Escola Matias de Albuquerque), que foi uma instituição organizada para prestar subsídio escolar e religioso para seus sócios. Desde a sua constituição, caracterizou-se como comunidade luterana independente, ou seja, sem vínculo com sínodos superiores. Essa sociedade religiosa e escolar surgiu, então, para subsidiar seus sócios no que tange à religião e à escolarização, como descrito na imagem da documentação (Figura 4).
Tratava-se de uma comunidade restrita a seus sócios, que funcionava com o pagamento trimestral, e tinha como regra estatutária que cada família pagaria um acréscimo financeiro por cada filho na escola, como reforça A. G. (2019): “Se pagava mais caro para a comunidade quando tinha filhos na escola” (A. G., 2019).
O processo de pagamentos da escola esteve relacionado com a nacionalização do ensino, pois foi após esse período que a instituição passou a se denominar como particular. O entrevistado W. V. (2020), da Escola Silveira Martins, traz que:
Eu sempre estudei nessa escola, ela se chamava Silveira Martins. Eram assim as escolas particulares, antes da nacionalização chamava de escola particular da Comunidade da colônia Cerrito, mas depois ela foi nacionalizada e eles trocaram o nome, aí ela se chamou Escola Silveira Martins de número 45, porque cada escola tinha um número. Ela foi nacionalizada em 1938. Neste período as escolas trocavam de nome (W. V., 2020).
Sua fala é bastante esclarecedora, ele discorre sobre o processo de transição da escola particular da comunidade para escola pública, sendo chamada, depois da nacionalização, por outro nome. Mesmo com essa descaracterização, as escolas mantiveram suas atividades vinculadas às comunidades. Como afirma Kreutz (1994b):
O período da nacionalização do ensino, especialmente na fase compulsória, trouxe dificuldades de adaptação, provocou acentuada queda no nível de ensino, mas não significou o fechamento das escolas teuto-brasileiras. Não é verdade que o governo fechasse as escolas pura e simplesmente. Obrigou-as, sim, a adaptarem a um nacionalismo bastante exacerbado. Num primeiro momento, grande parte dessas escolas recebeu a subvenção municipal, mantendo certa autonomia administrativa. Num segundo momento, estas escolas foram municipalizadas, isto é, tornaram-se públicas (KREUTZ, 1994b, p. 31).
Mesmo tendo continuado com suas atividades após a nacionalização, as escolas particulares luteranas enfraquecem com o tempo e a escola pública adentra as colônias de imigração alemã e pomerana. Por isso, Miritz (1986) traz que:
A escola funcionou porque é mantida e fiscalizada pela própria comunidade e era ensinado aquilo que era de interesse e necessidade da comunidade. Existia a autêntica escola comunitária. Com o passar dos anos e imitando exemplos de escolas públicas que, apesar de inicial descrédito, o pagamento de um melhor salário convidando o professor, aliviando a comunidade desta carga (MIRITZ, 1986, p. 249).
Entretanto, essas escolas comunitárias eram mantidas pelos membros das comunidades. As famílias pagavam essas escolas com o objetivo de formarem seus filhos na escola, a partir de conhecimentos que lhe eram necessários para a vida no campo e, ao mesmo tempo, manterem seus filhos juntos da igreja e dos ensinamentos comunitários.
Conclusão
Entende-se que essas escolas particulares luteranas, e as características de sua cultura material escolar, surgiram juntamente das igrejas luteranas que se constituíram na região da Serra dos Tapes. Essas escolas tinham o objetivo de uma formação religiosa e escolar básica dos sujeitos que a frequentavam. Após o período da nacionalização, essas escolas perderam suas características étnicas e passaram a caracterizar-se por uma identidade patriótica nacional. Assim continuaram suas atividades, fazendo com que os membros tivessem sua formação básica constituída.
A cultura escolar dessas escolas particulares luteranas, referendada pelos documentos e pela memória dos ex-alunos das instituições de análise, é marcada por um contexto específico, predominantemente pelas classes multisseriadas que valorizavam o ensino da matemática e dos momentos cívicos, como cantar o hino e realizar peças teatrais de cunho nacionalista na escola. Estas características patrióticas foram fruto do processo histórico da nacionalização, que impôs medidas restritivas para essas escolas, principalmente após o ano de 1938, que foi o marco temporal inicial do recorte de pesquisa. Com as modificações causadas pela nacionalização, as escolas paroquiais passaram a se reinventar, e muitas delas continuaram com suas atividades até meados da década de 1970.
Assim, entendeu-se que o trabalho na propriedade da família era legitimado em todas as etapas da vida do indivíduo, que as crianças deveriam se envolver em tarefas no meio rural, pois dessa maneira iriam conhecer e saber fazer as tarefas que a agricultura e que a propriedade da família exigia. Os aprendizados no mundo do trabalho agrícola acabam se tornando mais significativos que o conhecimento escolar, isso no interior das restritas relações comunitárias pomeranas.
Outro fato relevante é que os indivíduos, depois de serem confirmados, eram vistos perante a comunidade como adultos e não tinham mais a obrigação de frequentar a escola. Pode-se pensar que esses alunos interromperam seus estudos devido à falta de condições para a continuação da escolarização, já que não haviam escolas de ensino secundário próximas de suas casas. A cultura escolar dessas instituições era, também, demarcada por um encerramento de escolarização precoce.
Relacionado a isso, viu-se nas narrativas e nos registros documentais que nas escolas já eram estudados temas que seriam úteis na vida cotidiana dos alunos que as frequentavam. Estudavam principalmente cálculos de matemática, leitura e escrita. Desta forma, aquilo que era estudado no seu currículo constituía o básico para que esses alunos pudessem ler o catecismo, a Bíblia preparar-se para a confirmação, motivo pelo qual ao serem confirmados os pais não viam mais a necessidade de enviarem seus filhos à escola; a escola era entendida como um espaço de preparação para a confirmação e também de preparação para a vida como futuro agricultor e camponês.
Dessa forma, verifica-se que essas escolas particulares luteranas tinham a função de formar o cidadão para o trabalho na propriedade, ensinando-o a ler, escrever e a fazer operações básicas de matemática. Essas escolas eram multisseriadas e não ultrapassavam o ensino para a 4ª ou 5ª série. Essas instituições formativas eram de caráter particular e destinadas para a formação do indivíduo até seu ato de confirmação.
Assim, conclui-se que a cultura material escolar dessas instituições particulares luteranas e a memória desses ex-alunos são marcadas por um contexto de especificidades, caracterizado, por exemplo, pelo fato de serem classes multisseriadas que valorizavam o ensino da matemática, e pelos momentos cívicos, como cantar o hino e apresentar peças teatrais de cunho nacionalista na escola, dentre outros.