Introdução
A história da educação formal no sul do Brasil foi tema de algumas pesquisas (Santos, 2012, 2014; Kreutz, 2000, 2013; Seyferth, 2017), que lançaram luz sobre um processo peculiar de escolarização e organização social e política produzido por ocasião da imigração europeia no século XIX. O cerne da discussão desses estudos centra-se no conceito de etnicidade, no qual elementos culturais apresentam-se como fundantes de certa comunidade. De fato, a imigração alemã no sul do Brasil caracteriza-se pela manifestação e defesa da germanidade (Deutschtum), que pode ser definida por elementos que remetem à identidade alemã como, por exemplo, língua, raça, usos, costumes, instituições e cultura (Seyferth, 1994) e, a partir disso, são construídos valores de pertença de grupo. É na alteridade, portanto, que os grupos percebem os outros grupos étnicos, conforme Barth “[...] possui um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como se constituísse uma categoria diferencial de outras categorias do mesmo tipo” (Barth, 1998, p. 190). Dessa forma, o conceito de grupo étnico é dinâmico e marcado pelas relações sociais. Segundo ele, a manutenção das fronteiras étnicas se dá pela interação de grupos distintos, fortalecendo valores justamente pelo contato com língua e cultura diversa da sua própria.
[...] as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito, ao contrário, freqüentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em um sistema social como este não leva a seu desaparecimento por mudança [...] as diferenças culturais podem persistir apesar do contato interétnico e da interdependência entre etnias (Barth, 1998, p. 188).
Assim sendo, o contato entre culturas imprime dinamicidade às interações sociais, nas quais podem ocorrer ressignificações de ambas. Essas podem se reelaborar a partir dos contatos estabelecidos, possibilitando imprimir novos significados aos processos culturais. Barth considera o conceito relacional de etnicidade, de modo que a etnia não é um atributo imutável de um indivíduo a um grupo. Nesse sentido, os sujeitos portam múltiplas identidades, que são negociadas de acordo com o contexto vivenciado. Uma identidade manifesta-se a partir do sentimento de pertencimento a um grupo, através da percepção da diferença, em relação ao outro grupo, ou seja, em uma relação de distinção. Como indica Hall (2005), existem diferentes identidades que, se relacionam, se agregam, se desarmonizam e se reinterpretam continuamente em um mesmo grupo social ou entre grupos sociais.
Kreutz (2000) analisa no Rio Grande do Sul e Santos (2012) em Santa Catarina, como se deu a construção de um sistema de ensino pautado na etnicidade, que ficou conhecido como ‘escolas alemãs’ ou ‘teuto-brasileiro’. Evidenciam a forma de organização social das comunidades de imigrantes nos dois estados tendo como foco principal as escolas comunitárias e a educação das crianças das colônias. Kreutz (2013) ainda destaca uma diferenciação entre as escolas da zona urbana e as da zona rural, caracterizadas por uma tradição associativa e como parte de uma rede de valores étnicos, como a igreja, associações recreativas, comércio etc. Para o autor, foi essencialmente na zona rural que os valores relacionados à germanidade aparecem mais fortemente, unindo os indivíduos do grupo em torno de objetivos comuns e, de certa forma, de sobrevivência. Já Santos (2014) analisa o processo educacional desencadeado pelo assentamento de imigrantes promovido pela Companhia Colonizadora Hanseática nas regiões Norte e Nordeste de Santa Catarina, compreendendo vários municípios do estado. O autor apresenta a relação simbiótica entre educação e germanidade expressas nas práticas educativas das escolas. Também ressalta o papel significativo da igreja, principalmente a evangélica luterana, no incentivo à educação formal. Ao analisar o currículo das escolas rurais da colonização Hansa, o estudo enfatiza o idioma alemão como um dos elementos centrais de etnicidade, pelo qual a comunidade se organizou como tal. Demonstra que, paralelo a um currículo com disciplinas fundamentadas na tradição escolar alemã, também figuram disciplinas que comprovam a necessidade de inserção/negociação na e com a sociedade brasileira, como, por exemplo, por meio do ensino da língua portuguesa. A língua alemã foi um dos elementos de germanidade que mais identificou os imigrantes e seus descendentes e também foi aquele que sofreu mais perseguição nas Campanhas de Nacionalização do Estado brasileiro (1911-1914; 1937-1945). Esse fato desencadeou a mais dura repressão contra os imigrantes e seus descendentes, inclusive com fechamento das escolas, igreja e imprensa em língua alemã nas zonas de colonização (Mailer, 2003). A língua alemã, a única que os imigrantes conheciam, foi a língua veicular e de instrução nos núcleos de colonização, visto que não houve, por parte do Estado brasileiro, uma política de imigração com ações visando a inserção dessas populações na sociedade brasileira e tampouco uma política educacional para as colônias.
Assim sendo, este estudo investiga a relação entre educação e etnicidade por meio da inclusão da língua portuguesa nas orientações aos professores nos registros do periódico da Associação de Professores e Sociedades Escolares de Santa Catarina (sul do Brasil) - Mitteilungen des Deutschen Schulvereins für St. Catharina (Südbrasilien)1, publicado em alemão na antiga colônia Blumenau de 1906 a 1917, no qual é possível constatar o papel central da educação para a comunidade de imigrantes na região, passando a constituir, assim, em elemento indispensável à organização local, desde os primeiros assentamentos de colonos na região do Vale do Itajaí. Em vista disso, as escolas comunitárias constituem, sem dúvida, uma das características mais marcantes de etnicidade ao lado da língua. A publicação de um jornal mensal que buscou normatizar o ensino, o currículo da escola primária e ainda trazer orientações didático-metodológicas aos professores das escolas, visando à inserção dos imigrantes na sociedade brasileira, reflete as representações materiais e simbólicas da cultura e valores trazidos da Europa e reconhecidos como identitários, como se observam nos objetivos publicados no primeiro exemplar de janeiro de 1906.
Abordando o uso de fonte impressa para os estudos de educação (Luca, 2006), de acordo com Carvalho, os impressos como fonte das pesquisas sobre a história cultural das práticas educativas, dispõem um duplo sentido: “[...] como dispositivo de normatização pedagógica, mas também como suporte material das práticas escolares” (Carvalho, 1998, p. 33). Dessa forma, a pertinência da utilização dos impressos ocorre pela concretude dos procedimentos de produção, circulação, imposição e apropriação dos saberes pedagógicos. Logo, o jornal Mitteilungenconstitui-se uma fonte privilegiada para perceber o modelo de funcionamento do campo educacional das escolas étnicas ‘alemãs’, principalmente no que concerne à formação dos professores.
Segundo Ferreira da Silva (1977), a relevância da análise desse periódico, o jornal Mitteilungen, centra-se em retratar matérias de grande interesse para a classe dos professores ligados à associação, disseminando orientações pedagógicas, constituindo, assim, em fonte de pesquisa para compreender a formação do sistema de ensino do Vale do Itajaí.
Para situar o leitor em relação à relevância do surgimento desse periódico blumenauense para as escolas do Vale do Itajaí inicia-se o artigo com uma breve contextualização da imigração alemã na região. Em sequência, descreve-se sucintamente a trajetória da organização escolar no município de Blumenau e região, desde o surgimento das primeiras instituições. Por fim, apresenta-se parte do conteúdo do periódico da associação, relacionando-o à formação dos professores e à normatização do ensino nas escolas étnicas.
O contexto educacional do Vale do Itajaí nos primórdios do século XX
Após a Revolução Industrial e a transição para os novos processos de manufaturas e mudanças na economia mundial por ela acarretados, parte da população da Europa sentiu necessidade de migrar em busca de novas condições de vida, fugindo do cenário de miséria que assolava o continente e também da repreensão política, étnica e religiosa. Essa necessidade migratória foi, em grande parte, fomentada pelo governo imperial brasileiro, que necessitava substituir a mão de obra escrava, em constante declínio, por mão de obra ‘livre’ (Seyferth, 1994).
Para garantir a política imigratória, o governo imperial propôs um sistema de colonização a partir da distribuição de lotes de terras localizados em vazios demográficos, compondo uma classe média rural e branca, para, segundo Seyferth (1994), branquear a população brasileira, considerada negra demais para se desenvolver. Dessa forma, o imigrante europeu encaixou-se perfeitamente neste objetivo, sendo considerado um bom trabalhador, agricultor e principalmente, branco. Seyferth (1994) defende a ideia de que a política imigratória teve concepções racistas, cujo principal objetivo era diminuir a população negra do país, no que ela denominou ideologia do branqueamento, ou seja, o caldeamento dos imigrantes com a população mestiça e negra buscava o que a autora denomina de ‘limpeza étnica’ (Seyferth, 1996). Hebe Mattos (2000) atesta que desde o final do século XIX, ainda no Império, principalmente com o fim da escravidão e com o advento da República, os debates em torno da elaboração da ‘nação brasileira’ orbitavam em torno da questão racial.
Estima-se que o Brasil tenha recebido no século XIX e até a primeira metade do século XX cerca de 170.000 mil imigrantes alemães. Por volta de novembro de 1828, chegaram a Santa Catarina dois veleiros com 635 imigrantes a bordo em cada um deles. Os imigrantes foram, primeiramente, alojados na Colônia de São Pedro de Alcântara e, mais tarde, distribuídos e enviados a seus respectivos lotes (Willems, 1980).
Já em meados de 1850, chegaram ao Brasil Hermann Blumenau e sua comitiva de 17 imigrantes e estabeleceram-se no Vale do Itajaí, iniciando o processo de fundação de uma nova colônia a partir das terras cedidas pelo governo provincial, a colônia agrícola que levou seu nome. Blumenau permaneceu no cargo de administrador da colônia até a elevação da mesma à categoria de município, em 1880.
Pouco a pouco, os imigrantes desenvolveram as áreas às quais foram designados e construíram ali não apenas novas comunidades, mas novas perspectivas de vida, fundamentadas nos princípios, costumes e religiões, nos quais foram criados. Construíram, por iniciativa própria, casas, comércios, igrejas e, posteriormente, escolas, uma vez que, na época, o país pouco investia no âmbito educacional (Seyferth, 1994).
Desde a chegada dos primeiros imigrantes ao Vale do Itajaí a preocupação com escolas para as crianças fazia parte da vida dos habitantes da colônia. A escola pública já era obrigatória em vários estados alemães na segunda metade do século XIX, data em que chegaram aqui os primeiros imigrantes (Seyferth, 1994). Assim, de acordo com Kreutz (2000), pautar os currículos das escolas étnicas comunitárias na tradição escolar alemã foi consequência, visto que as políticas educacionais no Brasil não tinham dispositivos legais para normatizar currículos e a formação de professores a partir das especificidades do contexto escolar formal em regiões com processos de imigração. O autor destaca ainda que no final do século XIX o Brasil contava “[...] com uma população de mais de 80% de analfabetos” (Kreutz, 2000, p. 161).
Nesse contexto, vários pedidos foram feitos ao governo imperial para criação de escolas nas zonas de colonização. Em vão, pois o governo imperial não atendeu às reivindicações dos colonos e os incentivou a se organizar para prover a colônia de educação básica (Seyferth, 1994).
Dessa forma, surge o que ficou conhecido como o sistema teuto-brasileiro de ensino (Willems, 1980; Kreutz, 1994; Seyferth, 2017). Uma forma de organização de escolas particulares comunitárias que deram conta de alfabetizar e letrar as crianças da colônia.
As escolas comunitárias foram criadas com a colaboração dos pais, que se juntavam para pagar os custos do salário dos professores e da manutenção da escola, e ainda prestavam serviços pessoais, como pintura e consertos que a escola necessitava. Na falta de um professor formado contratava-se alguém que pudesse, de certa forma, exercer esta função, como um pastor ou um imigrante com mais instrução. Kreutz ressalta também que além das escolas comunitárias,
[...] houve um número significativo de escolas particulares mantidas por congregações religiosas, masculinas e femininas, geralmente em área urbana, mantendo especificidades étnicas do país de origem da mantenedora. Os imigrantes também tiveram escolas étnicas particulares laicas, em área urbana, mas em menor número [...] (Kreutz, 2000, p. 159).
Por volta de 1903, o município de Blumenau2 contava com 112 escolas, frequentadas por cerca de 4.000 alunos, dos quais cerca de 150 eram alunos da Neue Deutsche Schule, hoje EEB Pedro II, 157 das quatro escolas públicas, 140 da escola São Paulo, hoje Bom Jesus/Santo Antônio e do Colégio Sagrada Família e 3.553 das escolas particulares comunitárias espalhadas pelo interior do município. Somente nas quatro escolas públicas estaduais o ensino era ministrado em português (Mailer, 2003).
Por esses dados pode-se constatar a nova constelação linguística que se apresentava no Vale do Itajaí. Passam a conviver, ao lado do português, outras línguas alóctones como alemão, italiano e polonês, em função da colonização europeia, e levando em conta as populações indígenas nativas da região, temos um cenário não só plurilíngue como também multicultural. Os dados também comprovam a relevância da língua alemã como língua de instrução na comunidade. Foi por meio dela também que o grupo se estruturou, o que demonstra ter sido um dos mais fortes elementos de manutenção e identificação da germanidade ao lado das escolas e da religião. Contudo, a presença da língua portuguesa no currículo das escolas aparece como estratégia de reafirmação de identidade étnica, um processo de negociação com a cultura local, tendo como consequência a reelaboração de suas próprias categorias étnicas. Dessa forma, a língua alemã como língua materna do grupo e de instrução nas escolas e o ensino da língua portuguesa, concebido como língua estrangeira constituem-se por um lado, em reafirmação da identidade de grupo e, por outro, em incorporação de uma nova organização da comunidade perpassada pela educação.
O grande número de escolas particulares comunitárias em Blumenau levou à fundação, em abril de 1900, da Associação das Escolas e Professores de Blumenau (Lehrer- und Schulverein der Kolonie Blumenau), que objetivou a unificação das normas de ensino e a orientação pedagógica aos professores, bem como facilidade na compra de material escolar e a assistência aos professores doentes e idosos. Em 1904, ampliou-se para todo o estado, transformando-se nas Sociedades Escolares de Santa Catarina (Deutscher Schulverein für St. Catharina). Em 1906, saiu o primeiro número do jornal da Associação de Professores e Sociedades Escolares que conquistou muita influência, chegando em 1912 a reunir 173 professores particulares, sendo 150 só do município de Blumenau. Foram consideradas escolas étnicas por adotarem proposta curricular que enfatizava os valores e cultura de origem, além da história e da língua. O jornal publicou diversas diretrizes curriculares para os anos iniciais do ensino fundamental, com disciplinas e período de aulas para cada um dos diversos níveis de ensino, uma vez que se tratavam de classes multisseriadas.
No governo de Vidal Ramos (1910-1914), contudo, ocorreu de maneira sistemática a primeira campanha de nacionalização do ensino, sob o comando do professor paulista Orestes Guimarães. O programa de Orestes Guimarães em 1911 fundamentou-se basicamente na criação de grupos escolares, aumentando o número de escolas públicas isoladas com fins de assimilar o grupo de imigrantes (Luna, 2000). Contudo, enfrentou grande dificuldade de encontrar professores com competência linguística para o português nas zonas de imigração. Nas escolas públicas que se iam abrindo, foram contratados professores que não dominavam a língua dos alunos, o que tornou o ensino, muitas vezes, ineficiente e levou ao descrédito dos pais em relação à escola pública, por não conseguir ensinar português às crianças. Orestes Guimarães introduziu, então, o ensino bilíngue, respaldado pelos decretos de 1911 e 1926. Não obstante, a educação bilíngue, defendida por Orestes Guimarães, visou tão somente à assimilação dos teuto-brasileiros, com total abandono à sua língua materna, para o monolinguismo em português. Segundo concepções nacionalistas da época, só era brasileiro quem falasse português (Mailer, 2003; Luna, 2000).
Em novembro de 1917, com o estado de guerra, foram fechadas todas as escolas comunitárias particulares, que já eram 113. Como o número de escolas públicas era insuficiente, oito, além do Grupo Escolar Luís Delfino, muitas crianças teuto-brasileiras ficaram sem escola. As Sociedades Escolares e igualmente a Associação de Professores Particulares interromperam suas atividades, e o jornal Mitteilungen deixou de ser publicado em 1917 (Silva, 1988).
A partir daí, começaram a surgir medidas legais para promover o ensino em português nas escolas comunitárias que, para sua reabertura, tiveram que se adequar às exigências do governo do estado, muitas vezes impossíveis de cumprir, como, por exemplo, que o professor falasse corretamente a língua portuguesa. Mesmo assim, as escolas foram reabrindo uma a uma e, em 1918, contavam-se 30; em 1920, eram 40; em 1925, já eram 109, com 5.745 alunos e, em 1.937, chegaram a 173 (Silva, 1988).
A forte presença das escolas comunitárias nas regiões de imigração e a língua alemã como língua de instrução demonstram uma forma de organização social fundamentada no pertencimento étnico, uma vez que valores simbólicos trazidos da antiga pátria eram ali ressaltados e reinterpretados. A presença da língua portuguesa nas propostas curriculares publicadas no jornal Mitteilungen causa, por assim dizer, um abalo nas percepções de grupo, já que tinham que levar em conta agora, também nas escolas, um elemento de cultura alheio aos seus. A presença do português dá início a um processo de ressignificação e reelaboração dos processos culturais, principalmente no que tange ao foco central do nosso estudo, a organização dos currículos e a formação dos professores das escolas étnicas ‘alemãs’ no Vale do Itajaí.
O jornal Mitteilungen des Deutschen Schulvereins für Santa Catharina (Südbrasilien)
A partir do ano de 1906, a Associação de Professores e Sociedades Escolares de Santa Catharina iniciou a publicação do periódico denominado Mitteilungen des Deutschen Schulvereins für St. Catharina (Südbrasilien), com o objetivo de dar suporte metodológico e unificar o grupo de professores das escolas comunitárias no estado. Nos primeiros exemplares não há informação sobre os redatores ou editores. Somente no exemplar de janeiro de 1908 (número 7) aparecem pela primeira vez os redatores-chefe: Rektor (diretor) Strothmann (Blumenau), Lehrer (professor) Fuhrmann (Itoupava Zentral). Já em setembro de 1913, Ano VIII, número 9, aparece como redator-chefe o diretor Mangelsdorf. Em 1915, assumiu a redação do jornal o professor Georg A. Büchler. Em 1917 encerraram-se as publicações, em outubro, sob a direção de Herbert Koch.
Publicado em alemão gótico, nas oficinas do jornal Der Urwaldsbote, tinha periodicidade mensal com cerca de quatro páginas, divididas em duas colunas, intituladas e subintituladas, tratando de assuntos de importância e interesse à classe de professores. No total, o periódico conta com 111 exemplares nos 11 anos em que circulou. Desses, 33 exemplares foram destruídos, inclusive edições especiais comemorativas do periódico, no incêndio que assolou o prédio do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva em Blumenau, Santa Catarina, no ano de 1975. Em 1914 não há registro da publicação do jornal, possivelmente em virtude do início da primeira guerra.
O cabeçalho é composto do nome do jornal enfatizando o termo Mitteilungen (Comunicações) em fonte maior e o restante des Deutschen Schulvereins für St. Catharina (da Sociedade Escolar Alemã de Santa Catarina) em fonte menor e entre aspas. Entre dois traços o número do exemplar, a data e o ano, conforme figura 1.
Em várias edições do periódico observa-se pelo menos uma seção dedicada a questões didáticas, como nos títulos: Fragen und Anworten in der Schule (Perguntas e respostas na escola) (agosto de 1906) que trata de indicações metodológicas sobre a construção sintática de perguntas e respostas em língua alemã, die Verwendung des Lehrbuchs im Volkschulunterricht (Utilização do livro didático na escola primária) (maio de 1907), onde se apresentam sugestões de utilização do livro didático das escolas primárias, die Fertigkeiten im Deutschen (Competências na língua alemã) que abordam as competências linguísticas a serem atingidas pelos alunos em língua alemã, e assim por diante. Tais instruções didáticas contemplam diversas áreas do conhecimento. Percebe-se que em alguns números do jornal há atenção específica para os conteúdos de matemática, geografia e artes.
Há também seções que sugerem o trabalho de leitura e produção de diferentes gêneros textuais, tais como a redação e a narrativa. Tal prática ainda ganha enfoque nos dias de hoje em educação, quando levadas em conta as teorias que se baseiam nos conceitos de letramento.
O primeiro exemplar de janeiro de 1906 trata de sua fundação e expõe os objetivos do jornal.
É apropriado iniciar esta nova empreitada com algumas palavras e caracterizar os objetivos que lhe foram fixados. A Associação de Professores e Escolas da Colônia de Blumenau, fundada em 18 de abril de 1900, sofreu uma alteração e se expandiu em 5 de setembro de 1904, estendendo-se a todo o estado sob o nome de ‘Sociedade Escolar Alemã de Santa Catarina’. Os objetivos que a Sociedade estabeleceu estão, por exemplo, resumido nas palavras: Aperfeiçoamento geral do professor com nossos próprios recursos, material de ensino regular para todos os professores envolvidos, troca de ideias sobre as condições de cada comunidade, inspeção de cada escola por um supervisor a ser eleito de dentro da associação, estabelecimento de tempo de serviço entre os professores, nomeação de professores pela autoridade da supervisão acima mencionada, afiliação a grandes associações já existentes de escolas ou professores, criação de uma caixa de apoio mútuo aos professores em caso de doença e adição de um ou dois conselheiros a cada escola afiliada à associação. Nas reuniões da Sociedade, os objetivos e tarefas da Associação foram expressos nas seguintes frases: elevar a profissão de professor de forma intelectual e material e dar-lhe respeito e reconhecimento na vida cívica; o fortalecimento do sentimento de grupo e promoção de uma uniformidade no método de ensino, para alcançar uma base frutífera através de métodos e materiais uniformes de ensino; por meio de encontros regulares, nos quais são realizados ensinamentos e palestras do campo da pedagogia, fundar uma biblioteca, na qual estejam representadas principalmente obras pedagógicas [...] (Mitteilungen, 1906, tradução nossa)3.
É pertinente destacar que, a partir de fevereiro de 1908, inicia-se uma seção sobre o ensino de português. Neste ano, são publicadas mensalmente até o mês de outubro orientações aos professores sobre o ensino da língua, vista como estrangeira, uma vez que o alemão era a língua materna das crianças da colônia. A autoria das matérias ficou a cargo de Georg August Büchler, professor da Neue Deutsche Schule (hoje Escola de Educação Básica Pedro II) em Blumenau e autor de inúmeros livros, entre eles Portugiesisches Sprachbuch für Kolonieschulen (Curso de Português para Escolas de Colônia) destinado ao ensino de português para imigrantes alemães, publicado em 1914 e reeditado em 1924, pela tipografia de G. A. Koehler. Além da gramática, Büchler publicou ainda Aritmética Elementar, em três livros; O melhor método de desenvolver o ensino primário no Brasil (1923); Guia de conjugação (1924), Conjugação em português (1935) também pela tipografia Koehler, entre outros. Büchler foi um disseminador de conhecimento na colônia, de formação generalista, frequentou na Alemanha o Seminário de Formação de Professores (Dynnikov, 2016).
Nas nove matérias publicadas por Büchler, em 1908, sobre o ensino de português, observam-se desde concepções teóricas de ensino de língua estrangeira com aproximações ao estruturalismo saussureano4, críticas ao método gramática e tradução, a preocupação em trazer a realidade do estudante para sala de aula tratando de temas que fossem significativos para ele e até mesmo sugerindo layout da sala de aula quanto à disposição das carteiras e do professor de frente para todos, a fim de facilitar a visualização do modo de articulação dos fonemas. Büchler apresentou no jornal seu método de ensino de língua, fruto de suas experiências como docente na Neue Deutsche Schule. Em outubro, ele divulgou uma proposta curricular para os anos iniciais com 12 áreas temáticas, distribuição de conteúdos e competências gramaticais a serem alcançadas nos segundos e terceiros anos (IIb) em um período de dois anos. Como ele mesmo ressalta: “A minha intenção principal foi fazer uma proposta de normalização no que diz respeito ao material e métodos de ensino, e é por isso que estou também a anexar aqui uma distribuição de conteúdo programático” (Büchler, 1908, p. 2-4). A proposta de Büchler para salas multisseriadas compreendia ainda um quadro de horário e rodízio de atividades de oralidade e escrita com as turmas de quarto, quinto e sexto ano.
Realizamos a tradução do alemão gótico para o português na tabela 1 abaixo por sua relevância na discussão do presente texto, a fim de trazer o conjunto de procedimentos, unidades e os conteúdos para o ensino do português; nesse percebe-se a importância em se introduzir a língua portuguesa nas escolas:
Unidade | Conteúdo A | Resultado gramatical | Conteúdo B | Resultado gramatical |
---|---|---|---|---|
1. | O corpo humano. Partes, benefícios. | Interrogação, afirmação, negação. Pronúncia de sons simples ô, ó, â, é etc. | Os estudantes, os seus nomes, Os familiares | Pronúncia. Interrogação, Afirmação. Pronome pessoal e demonstrativo. |
2. | Os objetos do estudante | Adjetivos; Verbos no presente. Singular, plural. Pronúncia de lha, nha, an, um, etc. Numeral | Os parentes. Os habitantes da comunidade e a sua ocupação. | Pronúncia. Verbos no presente. Adjetivo |
3. | A sala de aula e o equipamento escolar. | Adjetivo. Verbo Preposições e, também. Singular e Plural. Pronúncia de oi, ão etc e Numeral | A colônia, edifícios, terreno, moradores. | Adjetivo; Verbo; Singular e plural; Pronúncia Numeral |
4. | Prédio da escola e edifício residencial. | Adjetivo; Verbo; Substantivo e substantivo derivado. Ortografia. | Os animais de estimação, benefícios dos mesmos. | Adjetivo; Verbo. Advérbio; Formação plural. Ortografia. |
5. | A família | Adjetivo; Verbo. Pronome pessoal e possessivo; Conjunção: mas. Ortografia | Utensílios domésticos, seu uso, fabricação. | Adjetivo; Verbo; Conjunção. Derivação de palavras. Ortografia |
6. | O jardim e as plantas. | Adjetivo; Verbo no tempo presente e no imperativo; Pronome; Formação de plural; Numeral | O relógio e o calendário. | Adjetivo; Verbo nos tempos presente e passado e futuro. Numeral. Pronúncia e Ortografia |
7. | O tempo e a sua divisão | Verbo nos tempos presente, passado e futuro. Advérbio de tempo. Numeral Pronome relativo. | O que o aluno faz na escola, em casa, na rua e o seu comportamento perante seus pais. | Adjetivo; Verbo no modo imperativo. Advérbio. Preposição e artigo; Numeral. Pronome possessivo |
8. | Compra, venda, dinheiro. | Adjetivo; Verbo Advérbio. Preposição e artigo. Numeral; Formação de plural | A construção da casa. O construtor Material de construção. | Adjetivo no grau comparativo; Verbo; Advérbio; Derivação de palavras. Formação de plural |
9. | Mamíferos, aves, peixes, insetos | Adjetivo. Verbo. Advérbio e contração do artigo (crase). Sentenças simples | No campo e na floresta. Animais, plantas, fenômenos naturais. Clima. | Adjetivo. Verbo nos 3 tempos Advérbio. Frases exclamativas. Substantivos. Sentenças simples. |
10. | Montanha, vale, rio, floresta, campo. | Adjetivo no grau comparativo. Verbo. Advérbio. Preposição. Substantivo (nomes próprios). Pronome demonstrativo. Frases exclamativas. | Moradia e vestuário | Adjetivo. Verbo. Advérbio. Preposição. Substantivo (Derivação). Pronome relativo. Sentenças simples. |
11. | Os agricultores e os construtores | Adjetivo. Verbo. Preposição. Advérbio. Pronome. Sentenças simples. Orações coordenadas | Fruta, comida. A cozinha. | Adjetivo. Verbo. Substantivo. Preposição. Advérbio. Pronome. Sentenças simples. Orações coordenadas |
12. | A Sociedade: a locomoção de Pessoas entre si | Adjetivo. Verbo. Preposição. Advérbio. Pronome. Sentenças simples. Complementos da sentença | No centro da cidade de Blumenau, o Itajahy, afluentes, porto, veículos, Locomoção. | Adjetivo. Verbo. Substantivo (nomes próprios). Preposição. Advérbio. Pronome. Sentenças simples. Complementos da sentença |
Fonte: Büchler (1908).
As matérias publicadas no jornal sobre o ensino de português demonstram a preocupação dos imigrantes em se inserir na sociedade local, ressignificando as características étnicas de grupo. Ou seja, por meio do contato com os brasileiros de outras etnias ocorrem processos de reelaboração da cultura de grupo próprios da etnicidade. Dessa forma, assim como postula Barth (1998), a interação dos imigrantes com os habitantes locais, nesse caso os luso-brasileiros, ocasionou um processo de negociação, resultando na reafirmação da identidade étnica, bem como modulou, de certa forma, novos valores simbólicos e culturais. Essas publicações demonstram a imbricada relação entre língua e educação, manifestados como elementos de germanidade, identificação e pertencimento de grupo. Ao conceder espaço no jornal para o ensino de português os imigrantes adentram ao estágio de ajuste dos valores culturais trazidos da Europa com os da nova pátria. Esse processo resultou em forte reafirmação da germanidade no qual a língua alemã foi o elemento cultural mais significativo e, por outro lado, de inserção na sociedade brasileira reconhecendo a importância da língua portuguesa. Dessa forma, o ensino de português nas escolas comunitárias no Vale do Itajaí representa, sem dúvida, a complexidade das relações interétnicas pautada pela língua e pela educação, dois dos valores mais intensos de expressão da germanidade.
Outro elemento a se destacar, com relação ao sentimento de grupo, pode-se observar nos objetivos do jornal e também na matéria de fevereiro de 1908 sobre o ensino de português. Em ambos há a preocupação de unificar e fortalecer o grupo por meio das associações, em nosso caso de professores, a fim de buscar certa uniformidade em termos de postura e metodologia. Mesmo em relação ao ensino de português, esse objetivo é perseguido como se observa no excerto: “Se entrego este trabalho ao público, não é com o intuito de criticar o ensino de português, mas apenas de conseguir uniformidade nessa área em termos de conteúdo didático e, portanto, também de métodos de ensino” (Büchler, 1908, p. 4).
Nos objetivos da fundação do jornal também aparece a mesma preocupação: “[...] o fortalecimento do sentimento de grupo e promoção de uma uniformidade no método de ensino [...]” (Mitteilungen..., 1906). Essas passagens também atestam a relação de pertencimento ao grupo, uma vez que da associação só participava quem sabia o idioma alemão e era professor nas escolas comunitárias. Os demais estavam excluídos pela própria barreira da língua. A forte influência da Associação de Professores na educação local, organizando e orientando as ações pedagógicas e de postura profissional, bem como propondo diretrizes curriculares às escolas consolidou a identidade do grupo de imigrantes da colônia em torno da língua alemã. Contudo, pode também ter acarretado uma reelaboração da metodologia e das práticas educativas a partir do ensino do português, além do próprio contexto local e regional em que outras comunidades igualmente se organizavam diante do processo de imigração, como, por exemplo, educação dos italianos, poloneses e outros (Figura 2).
Para comprovar a importância das escolas para a comunidade de imigrantes destacam-se publicações de relatórios anuais no jornal referentes às escolas, nos quais constam o número de alunos e a frequência oferecendo um panorama do ensino, dos exames escolares, ainda os dias de aula por ano e as razões das ausências dos alunos, sempre enfatizando aos pais a importância de manter seus filhos na escola.
O relatório expresso na figura 3 é um exemplo de registro da situação das escolas em Blumenau. Foi elaborado em 1905 pelo superintendente do município, Alwin Schrader, que esteve à frente do governo de 1902 a 1914. No texto observam-se, entre outras informações, o número das escolas e a língua de instrução delas. A língua alemã correspondia a 81 escolas de um total de 112. Ao lado do alemão também havia escolas que ensinavam em italiano (17); português somente (4); português e alemão (5); polonês e alemão (4); italiano e alemão (1). Segundo a estatística, o português era ensinado em 13 escolas. Pelos dados constata-se que a região era composta por um cenário plurilíngue e multicultural e isso não parecia ser um problema para os imigrantes, como foi para o estado brasileiro posteriormente. Ressalta-se, contudo, que as populações indígenas não são consideradas e nem mesmo referenciadas em qualquer seção nos exemplares de 1906 a 19175. Essa invisibilidade permanece ainda hoje no contexto local.
Além de informações sobre a língua, a estatística de Schrader também demonstra a quantidade de crianças atendidas: 3.972 entre meninos e meninas. E também traz a quantidade de crianças por escola, a quantidade de escolas criadas anualmente desde 1864 até 1905, a situação do território onde se localizam, se em terreno particular, do governo, da própria comunidade etc. O valor da construção do prédio escolar e o salário dos professores, que também recebiam um valor em milho por realizar enterros, cultos, leitura e batizados.
Considerações finais
O jornal Mitteilungen des Deutschen Schulvereins für St. Catharina foi um suporte material e propagador de elementos dos saberes pedagógicos destinados aos professores das escolas étnicas ‘alemãs’. Além de unificar o grupo em torno de questões didáticas ofereceu um panorama das representações da sociedade da época. Ao objetivar orientar os professores sobre metodologia, conteúdo e currículo, tornou-se um importante veículo de formação docente pautando saberes e postura dos educadores no período em que circulou. As instruções, as mais diversas, refletem as concepções em relação não só à educação, mas também à vida em sociedade. Constituiu-se ainda em importante informativo entre os próprios professores, no que se refere à avaliação da aprendizagem das crianças nas escolas, decisões das assembleias de professores e até mesmo vagas de emprego na colônia.
Por meio desse periódico pedagógico foi possível constatar, além da construção do processo de educação formal no Vale do Itajaí com as escolas comunitárias norteadas pela etnicidade, o cenário plurilíngue e multicultural da região. Passaram a conviver neste território várias etnias oriundas das políticas imigratórias de branqueamento da sociedade brasileira, conforme Seyferth (1994). Essa diversidade étnica, na qual línguas, religiões e costumes diversos se defrontaram ocasionou relevantes processos de adaptação ou tradução (Hall, 2005) das identidades locais. Nesse sentido, com a interação dos diferentes grupos étnicos ocorre não só a reafirmação da cultura de grupo, mas também a reelaboração desses elementos culturais em face do contato com o outro e com um contexto diverso de seu local de origem. Compreende-se a inserção do ensino de português entre as matérias do jornal como um desses processos. Ao normatizar as práticas dos professores pretendeu-se criar um currículo e, portanto, escolas étnicas que reproduzissem características da educação empreendida na Alemanha, mas também introduzir elementos das culturas escolares do Brasil. Isso demonstra que se construiu uma nova organização escolar negociando signos de culturas diferentes, ao mesmo tempo, em que se pretendia manter um suposto conjunto de valores pré-elaborados na cultura teuto-brasileira. O ensino da língua portuguesa no jornal da Associação de Professores e Sociedades Escolares das escolas comunitárias reflete a complexidade e dinamismo das relações interétnicas, cujos desafios podem resultar em ressignificação de seus próprios valores culturais, além disso, essa prática pode ser interpretada como um procedimento para a uniformização do modelo de organização escolar nas escolas étnicas do Vale do Itajaí. A inserção do português no currículo escolar representou, em parte, a transformação do padrão de referência das escolas sinalizando para uma diretriz que paulatinamente irá reconhecer e integrar o contexto local, normatizando o ensino. Essa afirmação pode ser comprovada na matéria de outubro de 1908, na qual Büchler encerra sua proposta para os anos iniciais quanto ao ensino de português:
Entrego o meu modesto trabalho à crítica dos meus colegas da colônia e coloco-me disponível para qualquer outra informação por via oral ou escrita. Por último, gostaria de dizer que só evitaremos profundas decepções, introduzindo nas escolas urgente um planejamento sólido de ensino do português (Büchler, 1908).