Introdução
Proponho uma pesquisa na qual se conheça o papel histórico da Igreja Católica na educação do atual estado do Rio de Janeiro, o que compreende a antiga Província e o Município Neutro, ou Corte, no século XIX, durante o Segundo Império. Determinei, para uma pesquisa mais longa, uma divisão temporal que vai de 1850 a 1934, composta de três tempos ou de quatro momentos distintos subsumidos à história da educação brasileira e à história da Igreja Católica. Essa temporalização diz respeito à escolarização católica e suas aproximações e afastamentos do Estado (Martins, 2021).
O primeiro período corresponde ao de vigência da reforma Couto Ferraz a qual se fez, em 1849, na Província e, em 1854, na Corte. Esse período, marcado pela união entre Igreja e Estado, foi abalado, a partir de 1870, pela desconfiança de setores da Igreja aos gabinetes liberais, pelo Manifesto Republicano e, sobretudo, pela ‘Questão Religiosa’ que culminou com a prisão de dois bispos, dando lugar a um discurso de ‘perseguição contra a Igreja’, o que lançou a hierarquia católica em semelhante narrativa havida na Europa, especialmente no Vaticano. Essa virada também se relaciona com o movimento da ‘reforma católica’ das dioceses realizada pelos bispos. Essa ‘reforma’ passou a ser denominada ‘ultramontana’ a partir do Concílio Vaticano I. Os ultramontanos defendiam maior centralização da Igreja na figura do Papa e na hierarquia.
O segundo período, iniciado na década de 1870, tem um desdobramento em um segundo momento, marcado pela Proclamação da República, cuja realidade para a Igreja foi modificada na separação com o Estado e na maior liberdade de ação, mantendo-se os mesmos fundamentos narrativos e atividades educacionais já iniciadas na década de 1870. Nesse período, temos duas importantes reformas da instrução pública, primeiro na província do Rio de Janeiro (1869) e, posteriormente, na capital imperial (1879), pelas quais, em cada jurisdição, se desoficializou o ensino, deixando livre a atuação das escolas particulares, o que favoreceu o florescimento da escola católica, dentre outras.
Um terceiro período, iniciado na década de 1920 e consolidado a partir dos primeiros anos de Vargas, especialmente com a Constituição de 1934, tem a Igreja como forte combatente e com um projeto organizado de escolarização em oposição ao projeto público de controle da educação.
O presente texto é um recorte sobre essa temporalização. O estudo sobre a origem do Liceu de Angra dos Reis é uma tentativa de compreensão do papel do catolicismo na formulação do projeto educacional da origem do Império, especificamente naquilo que se convencionou chamar de ‘consolidação do Estado brasileiro’, após o Ato Adicional de 1834 à Constituição Imperial. O estudo baliza a marcação temporal daquele primeiro período da escola católica, dito acima, destacado pela história da educação como o primeiro projeto de educação sob controle total do Estado no Brasil, que foi a Reforma Couto Ferraz, em 1849 na Província do Rio de Janeiro e, em 1854, no Município Neutro. Portanto, localiza-se na história das experiências que estão na base dessa reforma.
Procurei dar destaque a três questões, não necessariamente nessa ordem, em torno da constituição do Liceu Provincial de Angra dos Reis: a primeira seria sua origem em um seminário católico e a presença de professores padres no ensino secundário provincial; a segunda, sobre a escolha do município da Ilha Grande para a sede; a terceira, a relação ideológica e eclesial que dá origem à instrução seminarística e o interesse da política e gestão pública nessa ‘formulação religiosa’ havida nos fundadores do Seminário.
Para a consecução da pesquisa, o recurso utilizado foi o material bibliográfico e documental, tomando como base os relatórios dos Presidentes da Província, os Anais da Assembleia Provincial do Rio de Janeiro e publicações periódicas disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Parte da bibliografia apresentada corresponde à produção já publicada da pesquisa geral mencionada anteriormente e serve para contextualizar o presente tema naquele contexto.
Teoricamente, há uma vinculação com a filosofia da história de Paul Ricoeur (2010). Nessa filosofia, marcada por um componente existencial, persegue-se na história o fazer próprio dos homens em sua sina e ação sobre o mundo. Nela, as relações se constituem no tempo e no espaço, marcados pela tradição vinda do passado, ou nele próprio encerrada, e pela experiência presente, formuladora de horizontes de construção do futuro. A história é uma ciência do presente do historiador que se abre a compreender aquele tempo vivido por nossos antecessores. A ênfase na questão da ‘temporalidade’, cujos marcadores são trazidos do tempo vivido para o tempo crônico para permitir uma narrativa histórica2, possibilita o diálogo com a compreensão elaborada por uma obra, já clássica da historiografia do Império brasileiro, O tempo Saquarema, de Ilmar Mattos (1987), justamente pela consecução de uma temporalidade histórica indicada no próprio título, ainda que a despeito de seu fundamento teórico ser de outra matriz, qual seja, Gramsci.
Origem do Seminário de Jacuecanga
Jacuecanga é uma vila no atual município de Angra dos Reis - RJ. Foi ali que um misterioso Terceiro franciscano (Ordem Terceira da Penitência), andarilho, criou um asilo para meninos pobres, posteriormente transformado em seminário. O Irmão Joaquim Francisco do Livramento é praticamente uma figura mitológica. Colocado no Panteão dos Heróis da Pátria em 20183, temos sobre ele apenas relatos repetidos de cunho hagiológicos que procuram identificá-lo a um santo4. Esses relatos, apesar de lhe atribuírem o qualificativo de o ‘São Vicente de Paulo brasileiro’, o relacionam a São Francisco de Assis5. De certo, ambos qualificativos o associam ao serviço dos pobres, no sentido da mais tradicional atuação católica desde a Idade Média.
O Irmão Joaquim Francisco do Livramento fundou irmandades em Desterro, atual Florianópolis (1789), onde nasceu, e posteriormente em Porto Alegre (1803). Em ambas as cidades, as irmandades eram responsáveis pelas respectivas Santas Casas. Em Salvador, Bahia, criou a Casa dos Órfãos São Joaquim (1798) para meninos. No Rio de Janeiro e em São Paulo, criou três seminários: em Jacuecanga (Casa Pia da Santíssima Trindade - 1809), em Itu (Seminário de Nossa Senhora do Bom Conselho - 1821) e em São Paulo (Seminário de Sant’Ana - 1824) (Couto, 2015). Ele é identificado por vários autores como um ermitão, embora não vivesse num eremitério, ao contrário, era andarilho, portanto, não cabe o termo. Ainda mais, porque frequentava os ambientes do poder. As narrativas tratam de três idas suas a Lisboa a fim de obter fundos para suas obras; na terceira viagem, teria morrido, em Marselha, França, a caminho de Roma. Também há relatos de encontros com D. João VI e Pedro I no Rio de Janeiro.
A percepção de que o Irmão Joaquim criava as obras, mas dava a outros para cuidarem, pode ser sentida nas marcas de sua passagem junto aos poderes públicos. O arquivo público da Câmara dos Deputados guarda o pedido de subvenção à Assembleia Constituinte, de 1823, para o Seminário de Itu, para o qual obteve 200$000 anuais6 (Brasil, 1823). Segundo os documentos, era um pequeno seminário. Também há o relato de Francisco de Assis Vieira Bueno (1999), um ex-aluno do Seminário de Santana, fundado em uma antiga fazenda dos jesuítas. Esse foi concluído por outro confrade devido ao falecimento do Irmão Joaquim em sua viagem a Roma para obter professores para seus estabelecimentos de formação de religiosos. De acordo com o registro memorialístico, o Seminário de Santana era subvencionado pela província de São Paulo, em 1830.
Na Resolução nº 3, de 14 de janeiro de 1814, o Príncipe Regente D. João VI concedia licença para a fundação e dotação dos bens herdados do tenente-coronel Manoel da Cunha de Carvalho para o Seminário de Jacuecanga, sucessor de uma casa pia para meninos pobres criada em 1808 (Araújo, 1820)7, provavelmente um consórcio entre o Irmão Joaquim e o Tenente Coronel8.
A mesma Resolução nº 3 (1814) declarava e permitia a posse dos bens de raiz9, assim como dispensava o Seminário do ônus instituído pela lei de amortização na posse desses bens, por ser instituição de utilidade pública na educação de meninos pobres e desvalidos. A herança, constituidora dos bens de raiz, era a Fazenda de Jacuecanga, com sua sede, a capela do Santíssimo Sacramento, e suas casas de vivenda, além de outras sete casas localizadas na Vila de Angra dos Reis. Essas propriedades passaram para o patrimônio do Seminário e foram avaliadas em 741$200 (setecentos e quarenta e um mil e duzentos réis). No entanto, deveria o Irmão Joaquim aprovar o Estatuto junto à Mesa de Desembargo e aceitar a fiscalização desta por um Magistrado para tal fim designado. Aparentemente, nunca foi feito um tal Estatuto e, no período em que o Seminário esteve com os padres lazaristas, utilizavam o Regulamento do Colégio do Caraça, de Minas Gerais, como faziam em todas as suas casas no Brasil.
Posteriormente, o Seminário de Jacuecanga recebeu uma subvenção de 100$000 (cem mil réis) em julho de 1819 (Brasil 1823). O texto citado dá indicação da ligação mais imediata entre D. João VI e o Irmão Joaquim do Livramento, benefício que apontou Fernandes Pinheiro (1862, p. 98) como característica do Rei para com religiosos do tipo.
O Seminário de Jacuecanga, fundado pelo Irmão Joaquim do Livramento, foi reorganizado pelo Padre Antônio Ferreira Viçoso, da Congregação da Missão (Lazaristas), em 1822, alguns anos mais tarde, portanto. O padre Viçoso veio a ser bispo da diocese de Mariana, Minas Gerais, algum tempo depois de ter deixado Jacuecanga.
Os lazaristas Antônio Viçoso e Leandro Rabelo Peixoto e Castro vieram ao Brasil para a missão no Mato Grosso. Porém, quando desembarcaram no país, o posto já estava ocupado pelos capuchinhos. Foram, então, enviados para Minas Gerais, onde fundaram um Colégio na Serra do Caraça, em um eremitério que havia sido entregue à coroa para tal finalidade. Durante a estada na Corte, o Irmão Joaquim do Livramento conheceu os lazaristas e se interessou especialmente pelo Padre Viçoso. Teria pedido, meses mais tarde, ao Príncipe Regente, Pedro I, para que trouxesse o padre para seu seminário em Jacuecanga, no que foi atendido (Pimenta, 1920).
O Colégio do Caraça foi referência para todas as obras de caráter escolar dos padres lazaristas do século XIX. Dessa forma, a experiência do Caraça se desdobrou para Congonhas do Campo, depois para Jacuecanga, para o Colégio Pedro II e outros, como o Seminário de Mariana. Essa capilaridade era conhecida e valorizada no Império.
A pedagogia irradiada pelos lazaristas, a partir do Caraça, foi considerada por Carrato (1974) uma pedagogia jansenista, em referência à pedagogia emanada, na França, da Abadia de Port-Royal. Essa relação entre os lazaristas do século XIX com uma pedagogia e espiritualidade do século XVIII foi responsável por um rígido controle estabelecido nos colégios por seus superiores. Essa ‘espiritualidade’ exigia uma relação forte com os sacramentos, principalmente a confissão, forte ligação com a tradição religiosa dos primeiros padres, valorização da humildade evangélica, da pobreza, busca das manifestações da vontade divina, encontro pessoal/íntimo com Deus, relativo isolamento social e outros. Quanto à educação, a vigilância e a correção eram aspectos de uma severidade no trato das questões morais (Martins, 2022). A única referência encontrada a respeito desse tema no Seminário de Jacuecanga é sobre a ação do Padre Viçoso:
Com ser tão carinhoso com os meninos não era menos exato no manter a disciplina e regularidade dos estudos, nem menos diligente em corrigir suas falhas, e mais em as prevenir, para não ter ocasião de castigar, não deixando de usar de severidade, quando o caso a exigia, para exemplo dos outros e emenda do delinquente; suposto que de maravilha empregava rigor, pela raridade dos casos em que o havia mister (Pimenta 1920, p. 35).
A ‘espiritualidade’10 citada pode ser o fator de aproximação entre o Irmão Joaquim do Livramento e o Padre Viçoso. O Irmão Joaquim teria convivido algum tempo com os Padres do Patrocínio em Itu, a ‘Port-Royal brasileira’, segundo Fernandes Pinheiro (1862), e onde fundou um seminário, como já dito. Os padres do Patrocínio eram conhecidos por sua ‘espiritualidade’ jansenista, embora não reconhecidos como hereges, apesar de o jansenismo ser declarado uma heresia pela Igreja (Martins, 2022). Especificamente no plano político, essa postura pedagógica, de uma moral rígida, de controle, era apreciada pelos políticos do Partido Conservador em seu processo de construção de um Estado forte e centralizador, como o vislumbrado por Ilmar Mattos (1987) em O tempo Saquarema11. Além disso, os lazaristas eram do tipo que veio a ser conhecido como ultramontanos, fortes opositores dos regalistas do Império. D. Viçoso foi um dos primeiros bispos reformadores de espírito ultramontano (Azzi, 1974)12. O empenho dos Saquaremas junto aos Padres da Congregação da Missão ficou expresso no relatório presidencial de 1838, de Paulino José Soares de Souza13:
Quaisquer que sejam os preconceitos que possam existir contra semelhantes Congregados, devo francamente confessar que nos que tem dirigido o Seminário de Jacuecanga sempre encontrei o maior desinteresse e dedicação ao ensino da mocidade e aos interesses daquele estabelecimento, que, se não fora a sua constância e zelo, há muito certamente já não existiria (Souza, 1838, p. 14).
Esse interesse pelos padres da Congregação extrapola o governo da Província de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Um político oriundo de Minas Gerais, também considerado um político ‘Saquarema’, Bernardo Pereira de Vasconcellos, tornou-se Ministro do Império, em 1837, tendo criado naquele mesmo ano o Colégio Pedro II a partir do Seminário de São Joaquim. Aberto em 1838, esse Colégio tinha o bispo de Anemúria, D. Frei Antônio de Arrábida14, como Reitor. No ano seguinte, Bernardo Vasconcellos ‘interceptou’ o Padre Leandro Rabelo Peixoto e Castro, um dos fundadores do Caraça junto com o Pe. Viçoso, e o fez vice-reitor do Colégio Pedro II. O Pe. Leandro Rabelo ia para Jacuecanga assumir como reitor indicado pelo superior da Ordem no Brasil e nomeado pelo presidente da Província (Souza, 1851a, p. 36). Pe. Leandro se tornou, efetivamente, o reitor do Colégio Pedro II, já que D. Arrábida, idoso, estava doente.
O Seminário e a política educacional Provincial
Segundo Mendes (2006), nos meados do século XVIII, não havia seminários diocesanos no Brasil. Toda a formação sacerdotal era feita pelos jesuítas: a partir de 1739, começando pelo Rio de Janeiro, os bispos criaram seminários buscando atender aos decretos do Concílio de Trento realizado no século XVI. Os seminários abertos por essa ocasião eram entregues aos jesuítas, e todos foram fechados, em 1759, com a expulsão deles. Exceção foi o Seminário de São Joaquim do Rio de Janeiro, pois não estava sob os cuidados dos jesuítas e permaneceu funcionando até sua conversão no Colégio Pedro II. A partir de 1799, novos seminários foram criados e alguns antigos reabertos. Até o último quartel do XIX, quase todas as dioceses brasileiras já tinham seus seminários. Mas, como demonstrou Teixeira (2018), os seminários do século XIX eram, em muitas províncias, escolas secundárias públicas. E assim o foram até a criação dos Liceus nas respectivas províncias15. Na Província do Rio de Janeiro, o Liceu de Angra foi criado por lei em 1839, enquanto na Corte, o Colégio Pedro II foi criado no final de 1837, ambos por transformação de um seminário em escola pública.
Nota-se, nessa conjugação entre Seminários e Liceus/Colégios, um projeto comum de formação média para elites e meninos pobres, pois os seminários buscavam seguir as orientações do Concílio de Trento, do século XVI, que previam a idade mínima de 12 anos, preferência para meninos pobres alfabetizados e, ainda, uma proximidade da instituição com a catedral, para maior controle pelo bispo. Os seminaristas deviam ter missas diárias, confissões mensais e comunhão conforme indicado. Seriam divididos por idade e rendimento nas disciplinas eclesiásticas e deveriam receber tonsura e hábito. O currículo deveria ser dividido em duas etapas: a primeira com canto, gramática, estudos humanísticos e deveres eclesiásticos; a segunda etapa com estudo das escrituras, livros eclesiásticos e homilias dos santos padres. (Mendes, 2006). Essa mistura entre formação sacerdotal e estudos propedêuticos públicos criava alguns problemas e os bispos reformadores da segunda metade do século XIX procuraram separar os seminaristas dos estudantes laicos.
Nogueira e Paula (2018) procuram explicar como se deu a ampliação do espaço público no Brasil pela atuação dos presidentes de província e a instrução pública. Enquanto os presidentes promoviam um alargamento ou estreitamento desse espaço, a instrução pública atuava no convencimento e na organização desse mesmo espaço por meio de procedimentos éticos-morais. Nesse sentido, esses autores, apoiados na bibliografia, afirmam que a escolarização permite uma homogeneização das relações sociais e, portanto, valorizava-se alguma inserção do pobre nesse processo.
O interesse pela administração pública no Seminário de Jacuecanga foi indicado imediatamente no primeiro relatório do primeiro presidente da Província, após a separação do Município Neutro e da instituição de sua primeira Assembleia Provincial, no início de 1835. O Presidente Joaquim José Rodrigues Torres16 assim se referiu à necessidade de instituir o ensino secundário na província, se mantivesse gratuito o ensino das matérias:
[...] conviera reunir em Colégios, e em três ou quatro diferentes pontos da Província, todas as Cadeiras já criadas e que houverem de criar. Assim, tornava-se mais fácil a disciplina destes estabelecimentos e a despesa com que o Estado deve carregar, achar-se-á mais módica e profícua (Torres, 1835, p. 4-5)17.
A primeira referência específica sobre essas ‘cadeiras’ ou ‘aulas maiores’ se deu no relatório de 1839, através de uma tabela com o orçamento para aquele exercício financeiro. Nele, das sete aulas existentes na província, seis estavam providas nos municípios de Campos com aulas de Gramática latina e Geometria; Paraty, Cabo Frio, Angra dos Reis e Niterói com uma aula de Gramática latina, em cada vila. Em Rezende, a cadeira de Gramática latina estava vaga. Constam, ainda, no quadro, três professores aposentados. Dos seis professores ativos, três eram padres e, dos três aposentados, dois eram padres. Todas as cadeiras providas o foram por lei de 1837, sendo apenas a cadeira de Geometria de Campos, mais antiga, provida em 1833 (Souza, 1851a).
Em 1835, ao abrir os trabalhos da Assembleia Provincial, Torres vislumbrava, no Seminário de Jacuecanga, a possiblidade de inauguração do ensino secundário. Supondo que os bens desse seminário passariam ao Estado pelo regime de mão morta, o Pe. Viçoso o mantinha funcionando como vinha fazendo já há 9 anos. O prédio do seminário passava por uma reforma demorada por falta de verbas e, por um período, funcionou na Vila de Angra dos Reis, no Convento de São Bernardino de Sena, pertencente aos franciscanos18. O governo imperial havia empenhado verbas nessa reforma denotando, portanto, interesse em sua continuidade, o que se manteve com a Província que lhe dotou com 2:000$000 (dois contos de réis) para a conclusão da reforma. Além do Estado, contribuíam particulares para essa manutenção. Sobre esse tema, Mattos (1987) expõe a relação entre o privado e o estatal nas obras de interesse público como uma tensão e uma complementariedade entre aquilo que denominou ‘governo da casa’ e ‘administração centralizada’, ou entre as práticas dos Liberais (os Luzias) e as dos Conservadores (os Saquaremas). Isso representa a relação dialética entre o local e o central e uma possibilidade de controle pelo Estado centralizado sobre as sociedades locais, política explorada pelos Saquaremas.
Um terceiro elemento de financiamento do seminário, além do citado apoio de particulares e verbas públicas, são os ‘bens de raiz’: as casas de Angra pertencentes ao Seminário, já mencionadas acima. A existência de uma fonte fixa de renda para os empreendimentos pios era uma orientação do Concílio de Trento, como bem fez haver o Irmão Joaquim do Livramento, e era mantido, como possível, pelo Pe. Viçoso. Sobre esse fator, a Fala do Presidente da Província, em 1835, revela que “[...] os rendimentos deste estabelecimento, provenientes de duas moradas de casas, que lhe são próprias, sobem apenas à minguada quantia de 360$ [mil] reis” (Torres, 1835, p. 4).
A proposta do presidente seria, mais tarde, a transformação do Seminário em Liceu público:
Infelizmente este zeloso Padre pedira e insta por sua demissão, alegando cansaço e impossibilidade de satisfazer a todos os encargos de que fora e está incumbido; e se convém, como parece averiguado, que semelhante estabelecimento continue a existir, e se leve ao estado de prestar toda a utilidade que dele pode tirar-se, necessidade é, não consignar para o seu completo acabamento a quantia de 2:000$000 de réis, em que lhe é orçado, mas ainda a prestação mensal indispensável para ordenados aos Mestres e Empregados do Seminário (Torres, 1835, p. 5).
O argumento do presidente tinha em conta, ainda, a quantidade de alunos atendidos pelo Seminário e o número que seria possível atender:
Na parte do edifício que se acha reedificado, acomodam-se 20 alunos que ali existem, dos quais 5 ou 6 são sustentados pelos diminutos rendimentos do Seminário. O edifício, depois de acabado, pode contar (conforme a informa o atual Reitor) 50 colegiais” (Torres, 1835, p. 5).
Em 1838, esse número era de 70 alunos, sendo 64 internos e 6 externos. Oito internos eram gratuitos, mantidos com os rendimentos dos bens de raiz do seminário (Souza, 1838).
Os incessantes pedidos do Pe. Viçoso por demissão da reitoria do seminário davam ao presidente mais ênfase na busca por tomar o rumo da instrução secundária pela província a partir dessa instituição. Por duas vezes, a demissão do Pe. Viçoso foi aceita e, na primeira, foi desfeita, segundo o relatório, por manifestação pública dos moradores da localidade de Jacuecanga em seus apelos para que o padre ficasse. O Pe. João Hygino Bittencourt19 chegou a ser nomeado por indicação do próprio Pe. Viçoso nas duas vezes, sendo que, na segunda, declinou. O Pe. João Hygino era um dos professores do seminário (Torres, 1836). Finalmente em 1837, o vice-presidente da Província, José Ignácio Vaz Vieira (1837), dava notícias da nomeação do Pe. Manoel Joaquim de Miranda Reis, lazarista, formado no Caraça20.
O segundo presidente da Província, Paulino José Soares de Souza, em 1836, dava o mesmo tom em sua Fala à Assembleia. Contudo, foi mais enfático em seu apelo:
Para que não se extinga o único estabelecimento desse gênero que ora possui a Província, e que já tem derivado bastante proveito, e a fim de que sejam aproveitadas as somas avultadas que, para ajudar a construção do edifício, tem despendido a Fazenda Pública, torna-se necessária e urgente uma medida legislativa, que lhe dê organização regular e aplique para a sua sustentação as necessárias quantias (Souza, 1836, p. 5).
Esse tipo de apelo à Assembleia Provincial se repetiu nos anos seguintes, sobretudo porque Paulino de Souza foi o Presidente de Província com o maior mandato, quando o mais comum era maior rotatividade. Os presidentes de província eram nomeados pelo Imperador e representavam o poder central nas províncias (Mattos, 1987).
O Seminário convertido em Liceu Provincial e sua difícil instalação
Em 13 de abril de 1839, por lei, a Assembleia Provincial criou o Liceu de Angra dos Reis por meio da conversão do Seminário de Jacuecanga e sua transferência para a Vila de Angra dos Reis, especificamente para o Convento Franciscano de São Bernardino de Sene.
A escolha desse prédio tem relação com a passagem do Seminário por aquele local. Mendes (1991) indicou a decadência do prédio e do Convento de S. Bernardino a partir de 1831. Se a Presidência da Província e a Assembleia Provincial faziam tal escolha, é possível supor que o prédio do Convento estivesse em melhores condições que o Seminário.
As discussões em torno da conversão do Seminário em Liceu Provincial estavam em trâmite desde 1835 (Rio de Janeiro, 1835a)21, mas só foram concluídas quatro anos depois e percorreram todo o período da presidência de Paulino de Souza. O projeto de criação dos liceus estava ligado a um encerramento das aulas maiores ou aulas públicas. Desse modo, uma comissão da Assembleia propôs uma lei que deixaria sem provimento as cadeiras vagas (Rio de Janeiro, 1835b). Em 18 de março de 1839, foi proposta e aprovada uma emenda ao projeto de lei que criaria o Liceu, incluindo ao artigo 2º, que tratava das cadeiras a serem providas, a obrigação de nomear os professores já existentes nas proximidades do lugar.
Somente em 1839, o projeto foi aprovado em segunda discussão, tendo retornado em terceira discussão por algumas vezes e como objeto de ‘renhidos’ debates, conforme anotado pelo taquígrafo. Destaco três questões: a primeira, a admissão de pobres; a segunda, a verba para a instalação e terceira, a mudança para o Convento dos franciscanos em Angra dos Reis.
A versão da redação legislativa aprovada em 04 de março de 1839 dizia sobre a admissão de alunos pobres:
Art. 14. Cinco sextas partes dos alunos pagarão a pensão que for arbitrada, e o Liceu fornecerá gratuitamente a parte restante o ensino e o sustento.
§ 1. Só poderão ser admitidos à segunda classe os menores de quatorze anos, pertencentes a famílias pouco abastadas, que tiverem dado em concurso, provas de grande aptidão para as letras.
§ 2. Em circunstâncias iguais, se dará a preferência àqueles cujos pais tiverem servido ao Estado
§ 3. Não se apresentando concorrentes, ou não se encontrando entre eles justos de esperanças, se conservarão vagos os lugares de segunda classe, para serem preenchidos nos anos seguintes (Rio de Janeiro, 1839a).
Na sessão do dia seguinte, foram propostas quatro emendas sobre esse tema: a primeira, de Honório Hermeto Carneiro Leão22, incluía que alunos pobres só seriam admitidos como gratuitos se provassem orfandade ou ter pai pobre, e seriam tantos quanto fosse possível a renda do Seminário. Essa ressalva certamente se referia às rendas dos ‘bens de raiz’ de que o seminário possuía desde sua criação. Ora, os rendimentos do seminário eram pequenos e foram admitidos pelo presidente Paulino José Soares de Souza outras vezes em seus relatórios. Essas emendas foram rejeitadas pela Assembleia. Outras duas emendas, que procuravam aumentar o número de estudantes pobres no futuro Liceu, foram retiradas (Rio de Janeiro, 1839b).
Esse embate continuou na legislatura seguinte, mesmo sendo aprovada a lei. Em sessão de 03 de abril de 1840 (Rio de Janeiro, 1840a), deu-se um debate entre os representantes Saquaremas e seus aliados com aqueles deputados alinhados aos liberais. Esse debate trouxe uma riqueza em se vislumbrar a visão de cada um dos lados quanto à questão da gratuidade do ensino secundário daquele momento. O tema veio à tona quando se discutia o orçamento público para o próximo ano legislativo e o problema sobre o uso errado da verba pública pelo Reitor do Seminário de Jacuecanga23. O deputado [João Caldas] Vianna, alinhado aos Saquaremas, que também veio a ser presidente da província, levantou o tema da gratuidade afirmando que a Província não precisava de muitos doutores e que, noutras palavras, os meninos pobres ficariam melhor aprendendo artes mecânicas. Acudido pelo Deputado [Joaquim José Rodrigues] Torres, que incluiu crer não ser necessário financiar o ensino superior, havendo mais necessidade no industrial.
O deputado Gomes dos Santos, estranhando esse discurso, protestou dizendo:
Eu hei de repelir com todas as minhas forças, que se faça um monopólio da ciência. Já descemos a tal ponto que estejamos muito inferiores ao despotismo! Quando éramos colônia, havia Seminários para pobres, o da Lapa, S. José, S Joaquim, onde os pobres adquiram luzes; agora que temos uma Constituição e um Ato Adicional, não se quer dar ciência aos pobres? Isto é mais que desumanidade! Querer-se-á monopolizar a ciência em favor de uma classe? (Rio de Janeiro, 1840a, p. 3).
O deputado Torres respondeu querer a instrução primária, prevista na Constituição; para ele, quem quisesse estudar além, deveria fazê-lo às suas próprias custas. Ele tomou a Inglaterra e os Estados Unidos como exemplo e questionou a necessidade de um ensino superior (refere-se à superior à instrução primária) quando sequer havia estradas para escoar a produção na Província.
O debate continuou na sessão seguinte, quando o Deputado [José] Clemente Pereira tomou a palavra em defesa dos feitos do Deputado Torres pela instrução pública da Província quando foi seu primeiro presidente (Rio de Janeiro, 1840b). Aparentemente, as abordagens entre Saquaremas e Luzias estavam trocadas, mas o discurso de Torres24 naquela sessão revela o projeto centralizador inspirado em Thomas Hobbes, a pecha do utilitarismo de Jeremy Bentham (Maraschi, 2015) e a vertente educacional baseada em Guizot (Conceição, 2020).
Clemente Pereira explicou que, ao propor na lei a existência de alunos gratuitos, não se queria que a Província os financiassem, mas respeitar a vontade dos instituidores do Seminário que “[...] tinham votado bens a favor dos meninos pobres e nós quisemos então respeitar essas vontades” (Rio de Janeiro, 1840b, p. 2). Em seguida, o deputado [José Augusto] Cesar de Menezes, opondo-se novamente às falas dos deputados Vianna e Torres, expôs sua tese, balizando-se na Constituição, na qual seria dever dar todos os níveis de instrução e que não se opunha a que houvesse mais doutores. A essa intervenção, seguiu-se a fala do deputado Torres que parece ter dado fim à discussão. Para esse deputado, não havia oposição ao ensino secundário, senão que fosse pago por aqueles que o quisessem, pois não se podia sacrificar os cofres públicos, uma vez que a instrução primária deveria ser, essa sim, para todo o povo:
O que disse o nobre Deputado e eu, foi que a Constituição garante a instrução primária, que queremos que ela seja o objeto de nosso desvelo; que a Assembleia Provincial trate de organizar um sistema que se faça difundir em toda Província. Queremos mesmo que se instituam Colégios de ciência superior à custa dos Cofres, mas que quem estuda pague ao menos a despesa que se fizer com isso (Rio de Janeiro, 1840b, p. 3).
Nesse debate, à defesa liberal da liberdade individual e de um iluminismo do tipo francês, opõem-se os Saquaremas, por buscar uma centralização na qual o Estado se torne forte. Nesse sentido, a ‘moralização’ do povo, através da escola primária, também seria um instrumento da ilustração, porém de corte conservadora, pois fortalecedora da soberania do Imperador. Essa visão dos Conservadores, explicou Maraschi (2015), tem origem na vertente ilustrada pombalina, via intelectuais italianos e não franceses ou ingleses. Assim, para um Saquarema, a existência assimétrica dos cidadãos garantiria certa convivência, impedindo a volta do ‘estado de todos contra todos’. Ao passo que, para os Luzias, a liberdade se daria numa igualdade geral, na qual os homens se põem a competir e, nessa competição, o progresso iria se instalando. Essa ideia aparece no debate citado, quando o deputado Cezar Meneses defende não ser problema a superabundância de ‘doutores’ para as funções públicas e outras.
É na defesa baseada no utilitarismo que Torres se esquiva dos adversários ao questionar se um pobre, obtendo os saberes secundários de línguas, retórica, lógica etc., estaria apto a desempenhar algum trabalho que lhe desse subsistência. O Estado, poderíamos dizer, garante uma felicidade geral, e não individual; seria essa a raiz do utilitarismo de Bentham expresso no discurso de Torres:
Eu declarei-me contra a multiplicidade de Colégios de ordem superior, por ver uma instrução que não é necessária aos habitantes de nossa Província; quero a instrução primária, talvez de maneira diferente daquela porque tem entendido a Assembleia Provincial e a Geral; quero que o povo seja instruído de maneira que desenvolva sua inteligência e fortifique o seu corpo; que tenha aptidão para se empregar no trabalho de indústria, quer agrícola, quer fabril. Desejava muito a instrução da Prússia. Todo mundo sabe que a Prússia é talvez o país do mundo onde mais se tenha feito a favor da instrução popular e mais no sentido que eu quero. A instrução pública é negócio do Estado e o Estado obriga mesmo todos os pais a mandarem seus filhos instruírem-se nas escolas, uma vez que não mostrem que os educam em suas casas, e só pelas regras estabelecidas. E o que se ensina? A ler, escrever, contar, princípios gerais de Lógica, Geometria, Física e os mais princípios com aplicação aos usos da vida; as artes, e conhecimentos de agricultara, a religião etc. (Rio de Janeiro, 1840b, p. 3).
Vai-se notar, também, que a noção de cidadania está hierarquizada entre cidadãos ativos e inativos, e isso se lastreia pelo fator ‘propriedade’ e ‘instrução’. Nota-se em ambos os discursos, de um lado e de outro, uma cidadania sobre a instrução, numa hierarquia por competição dos Liberais ou uma cidadania de controle dos Conservadores.
Em outro plano, a centralização projetada pelo Estado é também projetada para uma educação centralizada e de atuação estatal, como o projetado contemporaneamente a esses deputados, por Guizot, na reforma do ensino primário na França: a prevalência da instrução primária para o povo sobre a instrução secundária ou superior. Como na defesa realizada por Torres, competia conciliar a liberdade individual com a ordem, a autonomia com a autoridade (Conceição, 2020, p. 17).
Para encerrar esse tópico, destaco a diferença entre esses dois discursos sobre a escolarização do pobre e o fundamento caritativo-religioso dos fundadores do Seminário. Há uma mudança substancial na ratio definidora e fundamentação da ação. Trata-se somente, para o caso Saquarema, de respeito à tradição estabelecida sem uma implicação para além de sua manutenção enquanto já existente, não como projeto. O mesmo se poderia inferir da vertente Luzia, na qual o movimento local, ‘da casa’, como inferiu Mattos (1987), estaria mais fértil com a inclusão de mais ilustrados. Para o perfil pretendido pela Igreja ao sacerdócio, meninos pobres, a introdução de pagantes no Seminário contribuía para a manutenção daqueles, tornando economicamente viável a estrutura.
A segunda questão que apresento é a da consignação de verbas para a execução da própria lei que converteu o Seminário em Liceu Provincial. Na versão aprovada em segunda discussão, constava no artigo 16: “O presidente da província é igualmente autorizado a despender a soma que for preciso para o acabamento do Liceu, mobília das casas e compra dos utensílios necessários ao ensino” (Rio de Janeiro, 1839a). Porém, em terceira discussão, no dia 18 de março, esse artigo foi suprimido por emenda de Clemente Pereira (Rio de Janeiro, 1839c).
Sobre esse tema, o Presidente da Província, Paulino de Souza, reclamava em seu relatório, de 1840, a falta de meios para a conversão do Seminário em Liceu e sua transferência para Angra dos Reis:
Suposto a lei provincial de 13 de abril do ano passado sob nº 10, convertendo em liceu provincial o seminário de Jacuecanga, houvesse dado todas as necessárias providências para montá-lo como fora solicitado nos relatórios anteriores, não pôde todavia o governo dar-lhe execução por não haver para isso consignado o orçamento os fundos precisos, apesar de ser posterior àquela lei. E por quanto o mesmo orçamento decretou a quantia de 2:000$000 réis para ser despendida com o dito seminário, enquanto não fosse convertido em liceu, parece evidente que fora da sua intenção adiar essa conversão, e portanto a execução da lei de 13 de abril acima citada (Souza, 1851b, p. 19).
Como fez questão de frisar, percebia o presidente alguma manobra política para atrasar a conversão, já que a Assembleia havia supressa, na lei, a autorização para realizar as despesas e, posteriormente, não consignou qualquer valor para tal iniciativa. Em contraposição a esse destaque, o presidente procurou mostrar, em seu relatório, a decadência do Seminário enquanto não se tomavam as devidas providências, anunciando, para tanto, ter colocado para o orçamento do ano seguinte as verbas necessárias e solicitando sua aprovação, “[...] muito principalmente porque, sem essa providência, é muito para recear que o seminário atual se não possa manter até a vossa primeira reunião” (Souza, 1851b, p. 19). Certamente, esse movimento revela um desgaste do governo de Paulino José Soares de Souza, no cargo desde 1836, situação atípica, já que a regra geral era alta rotatividade dos presidentes de província, nomeados, então, pelo Imperador Pedro II. Concorreu ainda mais para esse desgaste o evento do mau uso da verba mencionada pelo padre reitor naquele ano, a qual já foi aludida na questão anterior. Além disso, haveria uma crise da arrecadação da província, destacada pelo Presidente Manuel José de Souza França (1841) no exercício imediatamente posterior, ao informar à Assembleia do agravamento da situação do Seminário.
A lei não sendo imediatamente cumprida, o Liceu só foi instalado em 1842, em cinco casas contíguas, alugadas pela Província em Angra dos Reis. O novo presidente Honório Hermeto Carneiro Leão, futuro Marquês do Paraná, fez questão de registrar no Relatório o cumprimento do dispositivo legal que mandava transferir o Liceu de Jacuecanga para Angra dos Reis, embora não para o Convento de S. Bernardino (Leão, 1842).
A mudança do Liceu para Angra dos Reis fora aprovada em emendas ao projeto de lei pelo deputado Coutinho nas quais autorizava o presidente a tratar de uma permuta daquele prédio com o do Seminário de Jacuecanga (Rio de Janeiro, 1839c). Mas as dificuldades já causavam alteração de postura entre os Saquaremas, como a exposta por Carneiro Leão no relatório em 1842, indicando a preferência de se instalar o Liceu Provincial em Niterói devido às dificuldades, especialmente a de provimento das cadeiras. Para ele, só se justificaria ter um liceu em Angra dos Reis se a província pudesse manter três desses estabelecimentos, sendo um na Capital, outro em Campos e, então, nessa condição, em Angra dos Reis (Leão, 1842). Essa perspectiva não era nova. Em 1839, quando a Assembleia aprovou a lei, em Campos, levantou-se o temor de ficarem sem as aulas maiores. Também se questionou, no jornal Diário do Rio de Janeiro (X. L., 1939), sua instalação em Angra e não em Niterói, capital. Já mencionamos que o argumento contrário a essa tese era de que a Capital estava ao lado da Corte, onde havia muitos colégios disponíveis, além do próprio Colégio Pedro II. Esse foi o argumento utilizado pelo presidente João Caldas Vianna (1851), um campista, em 1843, pedindo para criar o Liceu de Campos, o que se deu nesse mesmo ano.
Os franciscanos obstaram o quanto puderam a instalação do Liceu em seu Convento. Segundo Mendes (1991), o assédio sobre o convento era antigo e se acirrou com sua decadência a partir de 1831. Ele já abrigara o Seminário de Jacuecanga. Em 1836, a Câmara de Angra dos Reis havia sugerido à Assembleia a troca durante as primeiras discussões da lei que criou o Liceu (Rio de Janeiro, 1919). Os franciscanos haviam recusado essa troca de prédio. Em 1843, aceitaram um aluguel de 1:300$000 pelo edifício e tentaram desfazê-lo, em 1849, devido ao pedido do Padre Guardião que reclamava não obter mais esmolas por conta do aluguel. O que se depreende desses fatos é a falta de utilidade do prédio, como registou o jornal O Despertador, em 1841, em duas correspondências pouco sutis ou educadas: “[...] por que motivo se há de tolerar que os religiosos franciscanos, não tendo frades que mandem para o espaçoso convento de Angra dos Reis, não o cedam, nem por aluguel, para nele se estabelecer o Liceu Provincial, tão útil àquele e outros municípios?”, perguntava um dos dois escritos, ambos citando ratos e um ‘preto velho’ que eram os habitantes daquele lugar (Correspondências, 1841, p. 4). Clamavam por medidas autoritárias para reverter a situação. Já no Diário do Rio de Janeiro, embora em tom polido, um leitor não fazia menores exigências ou diferentes observações (O Melekisedech, 1841).
Em 1842, a Assembleia votou um regulamento geral dos liceus. Mas, em 1850, como sustentou o vice-presidente João Pereira Darrigue Faro, o Liceu de Angra estava em franca decadência, com apenas 11 alunos. A proposta daquela presidência, comandada por Couto Ferraz, era um sistema geral de autorização e fiscalização das escolas (Faro, 1850), como se fez nesse mesmo ano na Província e, em 1854, na Corte, conhecida como Reforma Couto Ferraz. Desde 1837, a província possuía um sistema de controle sobre o ensino primário público, mas não sobre o secundário. A reforma de Couto Ferraz na província, em 1849, criava um sistema centralizado e coerente de funcionamento do ensino secundário, incluindo os liceus, através de um diretor e uma congregação25 e por meio da presidência e inspetores de comarcas para os liceus e escolas particulares desse ramo de ensino (Rio de Janeiro, 1850).
No relatório de 1850, o vice-presidente João Pereira Darrigue Faro reclamava do magistério público em geral e apontava a inspeção como uma solução26. É no elogio aos fundadores do Seminário de Jacuecanga que será possível perceber o modelo do professor requerido, sem o qual aquele Liceu não produziu os frutos esperados pela gestão pública e que já havia oferecido à Província:
Este seminário teve a fortuna de ser dirigido por homens ilustrados e zelosos, que tomavam a peito a educação da mocidade e o incremento do estabelecimento; e aqui releva que vos lembre o nome de um desses homens, que não pode ser repetido senão com grande respeito e veneração, falo do Exmo. Bispo atual de Mariana, que regeu aquele instituto gratuitamente por 13 anos. Por este modo, sem ter estatutos peculiares ou artigos escritos, o seminário de Jacuecanga, seguindo o mesmo sistema econômico e profissional dos do Caraça e Congonhas em Minas Gerais, prestou serviços de valia à província e foi sempre frequentado com proveito por grande número de alunos (Faro, 1850, p. 50).
Em 1858, o Liceu foi definitivamente fechado em decorrência da constante redução do número de matrículas. O declínio do porto de Angra dos Reis e de outros portos da região com a abertura de novas rotas de escoamento do café direto ao porto do Rio de Janeiro pode ser apontado como um dos motivos da diminuição desse fluxo de pessoas para aquela região. O café, que antes ia para os portos de Parati, Angra dos Reis e Mangaratiba, vindos do Vale do Paraíba, por diversificadas estradas (Mambucaba, Frade, São João Marcos, Caramujos e outras), podia descer pelas estradas que se aperfeiçoavam pelo rio dos Macacos e pela Serra do Tinguá (Comércio, Polícia, Werneck e Presidente Pedreira), caminhos que aproximavam o Vale da capital imperial, cujo porto era usado para a exportação do café (Novaes, 2008). Dados apresentados por Gouveia (2008) denotam a diminuição das rendas municipais em Angra dos Reis, Mangaratiba, Capivari e pequena oscilação em Parati e Rio Claro no período de 1838 a 185227. Nos municípios cafeicultores, essa renda subia mais fortemente: no período de 1839 a 1859, a arrecadação geral de impostos sobre o café e o total da arrecadação da província triplicaram. Na mesma obra, quando se observa o crescimento da população, com dados de 1840, 1851 e 1878, nota-se que Angra dos Reis e Mangaratiba tiveram redução de sua população no geral, inclusive na de escravizados.
Além disso, os exames exigidos para acesso aos cursos superiores estavam também na cidade do Rio de Janeiro, dando pouco valor à certificação dos diversos liceus provinciais existentes não apenas na província do Rio de Janeiro, mas também em várias outras províncias. Somente a partir de 1873, as capitais das províncias que não possuíam faculdades passaram a ter exames de acesso ao curso superior. Niterói foi listada como exceção, certamente pela proximidade com o Rio de Janeiro (Decreto nº 5.429, 1873).
Considerações finais
Nota-se, no enredo que envolve a criação de um seminário por religiosos, posteriormente encampado pelo setor público, um movimento típico dessa temporalidade histórica que resultou na construção do Estado brasileiro. A origem particular dos empreendimentos, iniciativas populares, sociais etc. era típica desse momento. Semelhante evento ocorre em relação à Igreja, a qual, vinculada que estava ao Estado, encampava, através da caridade, as instituições chamadas de ‘pias’. Inexistindo seminários diocesanos mantidos e acompanhados pelos bispos, alguns padres e religiosos, com apoio da população, criaram instituições para a formação dos futuros sacerdotes e outros elementos mais escolarizados para o desenvolvimento político-social das localidades. Esses seminários, autorizados e, em certa medida, fiscalizados pelo poder público central, entregavam seus candidatos ao sacerdócio à avaliação dos bispos para, se aceitos e aprovados, serem ordenados. Surgiram, portanto, no vácuo criado pela expulsão dos jesuítas no século anterior.
O projeto do Irmão Joaquim do Livramento consolidou-se na ação do Pe. Viçoso. Do ponto de vista religioso, podemos dizê-lo pelos desdobramentos posteriores, observados na diocese de Mariana, Minas Gerais, quando esse sacerdote ‘reformou’ a diocese como seu bispo. Do ponto de vista pedagógico, também pelos desdobramentos em Minas Gerais, do Colégio do Caraça, Colégio de Congonhas do Campo e do Seminário de Mariana.
Em paralelo, temos, na classe política fluminense e na ‘reforma’ tridentina (ultramontana) da década de 1840, um projeto centralizador e de controle. Ainda que seus fundamentos sejam distintos, ambos repercutem na educação escolar: formação de professores e sacerdotes, inspeção hierarquizada das atividades docentes e pastorais, direção de estudos em função de uma visão de sociedade e Igreja pretendidos. No caso da Igreja, exclusão do sacerdote do cenário político. A ‘espiritualidade’ do tipo jansenista prestava-se a uma pedagogia da vigilância, do controle, cara tanto aos projetos religiosos quanto aos projetos políticos.
O ensino secundário prestava-se a uma estratificação da qual se esperava a manutenção dos serviços públicos nas atividades tidas como superiores nos municípios: uma espécie de controle no âmbito local, por meio de uma formação intelectual comum, da ação centralizadora do Estado. O mesmo se poderá dizer da Igreja, já que, em geral, havia coincidência territorial entre as paróquias e as vilas: a formação seminarística controlada permitia maior unidade de ação dos religiosos. A presença de alunos pobres no ensino secundário pode indicar, pelo lado político, a consecução de uma sociedade moderna na qual alguma mobilidade social esteja contida no projeto de nação civilizada, mesmo que essa proposição seja mais teórica que uma regra. Pelo lado religioso, na formação de novos sacerdotes, o Concílio de Trento recomendava investir em meninos pobres e de áreas rurais. Além disso, o discurso e a prática da caridade traziam ao plano pragmático um viés teológico a tal investimento.
Percebe-se a relação entre a Igreja e o Estado ao se confrontar o movimento de ‘reforma’ da Igreja na província de Minas Gerais, na década de 1840, com o movimento político de construção do Estado centralizado na Província do Rio de Janeiro, em efetiva construção, já na década de 1830. O liame dessas conclusões, para a Igreja e para o Estado, está na relação entre os políticos Saquaremas e os padres da Congregação da Missão em sua atuação educacional e ultramontana em Minas Gerais com extensão sobre o Rio de Janeiro.
Na esfera do público-estatal, observam-se, nos debates entre Luzias e Saquaremas, acentos distintos sobre a função da instrução escolar: voltados à descentralização política e à centralização, respectivamente. Ambos pretendentes de uma instrução como condição de ingresso na ‘cidadania ativa’. Os políticos Saquaremas, donos da batuta, eram inspirados em filosofias inglesas (Hobbes e Bentham) e práticas francesas (Guizot); estavam articulados e se mantiveram no poder, portanto no controle do processo, por cerca de 15 anos na província do Rio de Janeiro. O que nos indica a extrapolação dessa política para a nação é a sucessão desses mesmos políticos nos órgãos administrativos e do governo imperial.