INTRODUÇÃO
Entre anos 1808 a 2017, a expansão do ensino médico no Brasil ocorreu principalmente a partir dos governos militares – Sarney e intensificaram-se nos governos FHC e Lula, mas atingiram o pico dessa expansão em 2014, com a implementação do Programa Mais Médicos (PMM) no governo Dilma – Temer. Somente entre 2011 e 2017 foram criadas mais escolas de ensino médico (n=119) do que as que foram criadas em 194 anos de história do país (1808 a 2002) (n=114) (OLIVEIRA et al., 2019). Com a política do PMM, o Ministério da Educação ampliou a oferta de cursos de Medicina no Brasil, incentivando a criação de cursos em instituições privadas, obtendo um resultado de 85 novas faculdades de Medicina, com 73% de instituições privadas, entre os anos de 2014 e 2017 (SCHEFFER; DAL POZ, 2015).
Além do aspecto educacional, os governos têm utilizado políticas públicas de ensino como instrumentos para solução de problemas em outras áreas, como a má distribuição e estabelecimento de médicos no território nacional (SCHEFFER; DAL POZ, 2015). Observou-se que, ao longo dos governos brasileiros, a oferta de vagas no ensino médico progressivamente deixou de ser de maioria pública para se tornar de maioria privada. Até 1963, a razão entre o número de vagas privadas/ públicas era de 0,32 e passou a ser de 2,5 nos governos Militares – Sarney, 1,0 nos governos Collor – Itamar, 2,7 nos governos FHC, e de 9,1 nos governos Lula. Nos governos Dilma – Temer foi reduzida a predominância de vagas privadas, mas essa razão do número de vagas privadas/públicas ainda foi 2,12 vezes maior (OLIVEIRA et al., 2019).
Tais tipos de políticas públicas, como o PMM, geralmente provocam inquietações, principalmente quando estão relacionadas com a educação médica por meio de instituições privadas, cujos indicadores de desempenho, na grande maioria dos casos, são bastante inferiores aos das organizações públicas (GONTIJO et al., 2011; SCHEFFER et al. 2018). No entanto o país necessita de uma distribuição equitativa de médicos se quiser alcançar seus objetivos de desenvolvimento sustentável em saúde e igualdade (TANGCHAROENSATHIEN; MILLS; PALU, 2015). Porém não podemos acreditar que a simples criação de cursos de graduação e pós-graduação médica em regiões do interior e, principalmente naquelas mais remotas, irá atender as necessidades e especificidades da atenção à saúde dessas regiões. Além de essas expectativas não serem atendidas nessas localizações, invariavelmente pobres em recursos humanos, financeiros e tecnológicos, também podem ser uma experiência altamente frustrante para estudantes, professores e para a população local que ansiava por uma melhor qualidade de formação e assistência (OLIVEIRA et al., 2019).
Atualmente, o Brasil possui 327 cursos de Medicina entre faculdades já em funcionamento e em busca de reconhecimento (eMec, 2019). Outros 29 cursos foram autorizados, mas seus dados não foram incluídos nesta análise. Porém o crescimento no número de escolas não foi acompanhado pela melhora na qualidade do ensino médico, fator crucial para os avanços sociais e econômicos terem o mesmo nível de desenvolvimento, com estruturas de serviços de saúde, hospitais e tecnologias defasadas e estudantes mal preparados para a carreira médica (MOTA et al., 2015). Portanto, para investigar com mais profundidade o assunto, surge a pergunta norteadora da pesquisa: quais foram as políticas públicas federais brasileiras para o ensino de graduação de Medicina de 1808 até os dias atuais? Para solucionar a pergunta da pesquisa, foi realizada uma revisão sistematizada das legislações federais com o objetivo de descrever a evolução histórica das políticas públicas para o ensino de graduação de Medicina no Brasil.
METODOLOGIA
A metodologia proposta para o estudo trata-se de uma revisão integrativa seguindo a metodologia de Scoping Review do Joanna Briggs Institute (JBI) (JBI, 2017), uma organização da School of Translational Science of Faculty of Health Science, University of Adelaide na Austrália. No estudo em questão, foi aplicada a mnemônica População, Conceito e Contexto (PCC) para uma Scoping Review. Dentre os contextos, População refere-se à população ou a um problema que pode ser um indivíduo ou um grupo em uma condição específica; Conceito podem ser todos os elementos detalhados e relevantes a serem considerados; Contexto é determinado segundo o objetivo e a pergunta da revisão, sendo definido pelos fatores culturais. Para a pergunta norteadora do presente estudo, foram definidas:
Quanto à estratégia de busca, o website da Câmara dos Deputados foi utilizado no segmento referente à “Pesquisa Avançada” para Legislação. As palavras ou expressões utilizadas foram “ensino superior” e “medicina”, pesquisando apenas pela “Legislação Federal” nos campos “indexação”, “apelido”, “ementa” e “texto integral”. Para abranger a maior quantidade de trabalhos, todos os tipos de normas, entre principais e outros, foram selecionados para um horizonte de tempo desde a data inicial de 01/01/1808, ano da transferência da corte portuguesa para o Brasil, até 2018.
O levantamento da legislação foi realizado durante o mês de maio de 2018 e os dados foram extraídos para o software Excel, utilizado para auxiliar no processo de seleção das políticas públicas. As informações extraídas para o Excel foram: nome da legislação, tipo da norma, ano de publicação e ementa. A seleção das políticas públicas foi realizada por pares guiados por um roteiro elaborado pelos autores com os critérios de elegibilidade: políticas públicas e políticas abordando Ensino Superior de Medicina.
Para auxiliar no processo de seleção, optou-se por uma definição de políticas públicas para nortear os pesquisadores com os critérios de elegibilidade: ser uma política pública para graduação de medicina e ser uma política de âmbito nacional. De acordo com Eastone (1965), Lynn (1980), Dye (1984) e Peters (1986), políticas públicas são escolhas governamentais de caráter multidisciplinar com efeitos específicos que irão influenciar as vidas dos cidadãos com a formulação de ações ou mudanças, quando necessário. A busca inicial resultou em um total de 679 legislações. Após a aplicação dos critérios de elegibilidade, a amostra final foi composta de 21 políticas públicas. O processo de seleção das políticas públicas e o resultado da revisão encontram-se descritos na Figura 1.
RESULTADOS
A aplicação dos critérios de elegibilidade possibilitou a seleção de 21 políticas públicas relacionadas à graduação de Medicina no Brasil. Na tabela 1, é possível identificar o nome da legislação, o tipo da legislação, o ano de publicação, a ementa e a classificação adotada para o presente estudo (regulamentação, expansão e concessão de bolsa).
Legislação | Tipo | Ano | Ementa | Tipo da Política |
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Decreto n. 9.235, de 15 de dezembro de 2017 | Decreto | 2017 | Dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino. | Regulamentação |
Lei n. 13.530, de 7 de dezembro de 2017 | Lei | 2017 | Altera a Lei n. 10.260, de 12 de julho de 2001, a Lei Complementar n. 129, de 8 de janeiro de 2009, a Medida Provisória n. 2.156-5, de 24 de agosto de 2001, a Medida Provisória n. 2.157-5, de 24 de agosto de 2001, a Lei n. 7.827, de 27 de setembro de 1989, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de ... | Regulamentação |
Decreto n. 8.516, de 10 de setembro de 2015 | Decreto | 2015 | Regulamenta a formação do Cadastro Nacional de Especialistas de que tratam o § 4º e § 5º do art. 1º da Lei n. 6.932, de 7 de julho de 1981, e o art. 35 da Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013. | Regulamentação |
Decreto n. 8.497, de 4 de agosto de 2015 | Decreto | 2015 | Regulamenta a formação do Cadastro Nacional de Especialistas de que tratam o § 4º e § 5º do art. 1º da Lei n. 6.932, de 7 de julho de 1981, e o art. 35 da Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013. | Regulamentação |
Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013 | Lei | 2013 | Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis n. 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e n. 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. | Regulamentação / Expansão |
Medida Provisória n. 621, de 8 de julho de 2013 | Medida | 2013 | Institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências. | Regulamentação / Expansão |
Decreto n. 5.773, de 9 de maio de 2006 | Decreto | 2006 | Dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior e cursos superiores de graduação e sequenciais no sistema federal de ensino. | Regulamentação |
Decreto n. 5.622, de 19 de dezembro de 2005 | Decreto | 2005 | Regulamenta o art. 80 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. | Regulamentação |
Decreto n. 4.914, de 11 de dezembro de 2003 | Decreto | 2003 | Dispõe sobre os centros universitários de que trata o art. 11 do Decreto n. 3.860, de 9 de julho de 2001, e dá outras providências. | Regulamentação |
Decreto n. 3.860, de 9 de julho de 2001 | Decreto | 2001 | Dispõe sobre a organização do ensino superior, a avaliação de cursos e instituições, e dá outras providências. | Regulamentação |
Decreto n. 1.303, de 8 de novembro de 1994 | Decreto | 1994 | Dispõe sobre a criação de universidades e estabelecimentos isolados de ensino superior e dá outras providências. | Regulamentação |
Decreto n. 66.588, de 19 de maio de 1970 | Decreto | 1970 | Provê sobre a Concessão de Bôlsas de Estudo, nos Estabelecimentos Particulares de Ensino Superior. | Regulamentação / Bolsa |
Decreto n. 63.341, de 1º de outubro de 1968 | Decreto | 1968 | Estabelece critérios para a expansão do ensino superior e dá outras providências. | Regulamentação |
Decreto n. 53.642, de 28 de fevereiro de 1964 | Decreto | 1964 | Dispõe sôbre a duplicação de matrículas no primeiro ano das escolas superiores. | Expansão |
Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937 | Lei | 1937 | Dá nova organização ao Ministério da educação e Saúde Pública. | Regulamentação |
Decreto n. 19.850, de 11 de abril de 1931 (Lei Francisco Campos) | Decreto | 1931 | Crêa o Conselho Nacional de Educação. | Regulamentação |
Decreto n. 11.530, de 18 de março de 1915 | Decreto | 1915 | Reorganiza o ensino secundario e o superior na Republica | Regulamentação |
Decreto n. 3.890, de 1º de janeiro de 1901 | Decreto | 1901 | Approva o Codigo dos Institutos Officiaes de Ensino Superior e Secundario, dependentes do Ministerio da Justiça e Negocios Interiores. | Regulamentação |
Decreto n. 1.482, de 24 de julho de 1893 | Decreto | 1893 | Approva o regulamento para as Faculdades de Medicina da Republica. | Regulamentação |
Decreto n. 4.744, de 23 de junho de 1871 | Decreto | 1871 | Impõe aos estudantes do 5º anno das Faculdades de Medicina do Imperio a obrigação de frequentar os Institutos Vaccinicos na Côrte e na capital da Provincia da Bahia. | Regulamentação |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Das políticas públicas encontradas, dezessete possuem puramente o objetivo de regulamentação dos cursos de graduação de Medicina no país. Das quatro políticas diferentes, duas foram feitas para expansão dos cursos e uma foi elaborada para concessão de bolsas de estudos, porém, ambas também apresentam conteúdos regulatórios em seus textos. Apenas uma política pública apresentou caráter exclusivamente para a expansão dos cursos de graduação de Medicina no país sem abordagem regulatória.
A primeira política pública para graduação de Medicina foi o Decreto n. 4.744, de 23 de junho de 1871, que regulamentou a obrigatoriedade dos alunos do 5º das faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro a frequentarem os institutos de vacinação por, pelo menos, uma vez na semana (BRASIL, 1871). No ano de 1893, ocorreu a publicação do Decreto n. 1.482, de 24 de julho de 1893, a segunda política pública regulatória que aprovou o regulamento utilizado para as duas faculdades de Medicina existentes até então com todas as obrigatoriedades disciplinares, estruturais, acadêmicas, curriculares e laborais a serem seguidas (BRASIL, 1893). As regulamentações decretadas foram alteradas com a publicação do Decreto n. 3.890, de 1º de janeiro de 1901, que alterou o código dos Institutos Oficiais de Ensino Superior e Secundário no país, trazendo mudanças gerais para o Ensino Superior que também afetaram as faculdades de Medicina, como as determinações para a realização de concursos para docentes e colação de grau dos estudantes (BRASIL, 1901).
Com a publicação, em 1915, do Decreto n. 11.530, de 18 de março, houve a primeira política pública de abrangência maior do que as abordagens burocráticas e delimitações internas locais para os cursos aprovados pelas legislações até aquele momento (BRASIL, 1915). O Decreto n. 11.530 também abordou burocracias e regulamentações para os cursos de Medicina, porém estabeleceu a quantidade de faculdades de Medicina que cada Estado brasileiro poderia ter (BRASIL, 1915). Até 1915, o Brasil possuía sete faculdades de Medicina, sendo duas no Estado do RJ e as outras nos Estados da BA, RS, MG, PR e SP, estado este onde estava localizado o primeiro curso em faculdade estadual, diferentemente dos outros cursos, que eram federais.
Em 1931, quando o Brasil já possuía dez faculdades de Medicina, sendo nove federais e oito Estados diferentes oferecendo cursos, houve a publicação do Decreto n. 19.850, de 11 de abril de 1931, que criou o Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 1931). Em 1937, o país já oferecia doze faculdades de Medicina, sendo onze federais, e ocorreu a publicação da Lei n. 378, de 13 de janeiro, dando nova organização aos Ministérios da Educação e Saúde Pública e regulamentando o Conselho Nacional de Saúde (CNS) (BRASIL, 1937). Ambas foram políticas regulatórias complementares com impactos em normatizações futuras, principalmente a Lei n. 378, de 13 de janeiro.
A influência do CNS está presente no Decreto n. 1.303, de 8 de novembro de 1994, no Decreto n. 2.207, de 15 de abril de 1997, no Decreto n. 4.914, de 11 de dezembro de 2003, e no Decreto n. 5.622, de 19 de dezembro de 2005, que normatiza o Ensino a Distância no Brasil (BRASIL, 1994; BRASIL, 1997; BRASIL, 2003; BRASIL, 2005). Todas as políticas públicas citadas regulamentavam a obrigatoriedade de consulta ao CNS para abertura de novas faculdades de Medicina. Os decretos regulatórios n. 3.860, de 9 de julho de 2001, n. 5.773, de 9 de maio de 2006, e n. 9.235, de 15 de dezembro de 2017, além de disporem sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior, incluindo as faculdades de Medicina, pelo Conselho Nacional de Educação, reforçam a participação do CNS no processo de criação e reconhecimento das escolas médicas (BRASIL, 2001; BRASIL, 2006; BRASIL, 2017).
A primeira política pública com objetivo de expansão da oferta de vagas no Ensino Superior brasileiro, incluindo as faculdades de Medicina, foi o Decreto n. 53.642, de 28 de fevereiro de 1964, que dispôs sobre a duplicação de matrículas no primeiro ano das escolas superiores (BRASIL, 1964). O decreto apresenta diversas justificativas para o aumento no número de vagas antes de realizar as deliberações e utiliza como justificativa para o aumento no número de vagas de Medicina a proporção insuficiente de médicos, de 1 para 2.200 habitantes, que estrangula o desenvolvimento nacional (BRASIL, 1964). Outro ponto a ser salientado, relacionado a esse decreto, é a recomendação para estabelecimento de parcerias e convênios com organizações hospitalares para suprir a escassez de leitos nos hospitais-escolas necessários para atendimento do ciclo clínico da nova demanda de estudantes (BRASIL, 1964).
Os hospitais-escola voltaram a ser pauta de políticas públicas com a publicação do Decreto n. 63.341, de 1º de outubro de 1968 que estabeleceu critérios para a expansão do Ensino Superior (BRASIL, 1968). Em primeiro lugar, o decreto estabelece a suspensão da expansão de vagas e a criação de novas faculdades para profissões já suficientemente atendidas, com exceção de iniciativas de alto padrão capazes de contribuir para aperfeiçoar ensino e pesquisa do setor (BRASIL, 1968). Com relação aos cursos de Medicina, a norma fornece uma recomendação para parar com a construção de hospitais-escola e utilizar organizações conveniadas para o ensino prático (BRASIL, 1º out. 1968).
Em 1970, quando o país já possuía 27 instituições privadas de ensino médico, ocorreu a publicação do Decreto n. 66.588, de 19 de maio de 1970, que regulamentou a concessão de bolsas de estudo nos estabelecimentos particulares de Ensino Superior pelo Governo Federal (BRASIL, 1970). Entre 1968 e 1970, foram criados 17 novos cursos particulares de Medicina. A regulamentação para obtenção de bolsa para os estudantes de Medicina era a mesma para os demais cursos, diferenciando-se no valor concedido de, no máximo, Cr$ 800,00 (BRASIL, 1970).
Entre 1970 e 2006, as políticas públicas elaboradas foram apenas de caráter regulatório e já foram abordadas anteriormente. Em 2013, ocorreu a divulgação de duas políticas públicas para a expansão da oferta de cursos de graduação de Medicina: Medida Provisória n. 621, de 8 de julho de 2013 e Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013. Ambas são referentes à instituição do PMM no cenário nacional (BRASIL, 2013a; BRASIL, 2013b).
Na sua concepção, o PMM foi uma medida para combater as desigualdades regionais na área da saúde, sendo estruturada em três eixos de ação: 1) investimentos na melhoria da infraestrutura da rede de saúde, principalmente nas unidades básicas de saúde; 2) ampliação e reformas educacionais dos cursos de graduação em Medicina e Residência Médica no país; e 3) provimento emergencial de médicos em áreas vulneráveis. Esta política pública reordenou a oferta de cursos de Medicina e a oferta de vagas para Residência Médica, priorizando áreas do território nacional com baixa relação de vagas e médicos por habitantes. Além de ser uma política de expansão, o PMM também apresenta caráter regulatório ao estabelecer regulamentações para a abertura de novos cursos de Medicina (BRASIL, 2013b).
Em 2015, ocorreu a publicação de duas políticas públicas regulatórias com objetivos semelhantes: o Decreto n. 8.497, de 4 de agosto de 2015, e o Decreto n. 8.516, de 10 de setembro de 2015 (BRASIL, 2015ª; BRASIL, 2015b). Ambas as políticas objetivaram regulamentar a formação do Cadastro Nacional de Especialistas que estabelece a obrigatoriedade das faculdades de Medicina de enviarem informações sobre a formação acadêmica dos estudantes (BRASIL, 2015ª; BRASIL, 2015b). O objetivo da política pública foi coletar informações para subsidiar as decisões dos Ministérios da Saúde e da Educação na parametrização de ações de saúde pública e de formação em saúde.
Por fim, em 2017, ocorreu a divulgação da Lei n. 13.530, de 7 de dezembro de 2017 que trata sobre o Financiamento Estudantil (FIES), alterando diversas leis relacionadas a ele (BRASIL, 2017). Tal política pública é outra nova regulamentação sobre a concessão de bolsas de estudo do Governo Federal para estudantes de instituições privadas. Cabe lembrar que, além do FIES, criado por meio da Medida Provisória n. 1.827, de 27 de maio de 1999, e transformada na Lei n. 10.260, de 12 de julho de 2001, destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos que possuem avaliação positiva do MEC, também foi criado em 2004 o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) com o objetivo de conceder bolsas de estudos integrais e bolsas parciais para estudantes do Ensino Superior matriculados em instituições privadas por meio de concessão de isenção fiscal (BRASIL, 1999; BRASIL, 2001; BRASIL, 2005). Assim, diferentemente do PROUNI, o FIES não representa uma transferência de recursos públicos para o setor privado, pois trata-se de um empréstimo bancário a ser devolvido pelo estudante após a conclusão do curso.
Embutida na Lei n. 13.530, de 7 de dezembro de 2017, está o cancelamento da aplicação da Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM) no 2º, 4º e 6º anos, instituída pelo PMM, que foi realizada apenas em 2016 (BRASIL, 2017). Vale destacar que o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) foi instaurado com a homologação da Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004 (BRASIL, 2004). Os processos avaliativos são coordenados pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES) e operacionalizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) (BRASIL, 2004). Os resultados podem ser utilizados pelas Instituições de Ensino Superior como forma de avaliação da qualidade do ensino prestado aos alunos. O objetivo do SINAES é avaliar as IES por meio dos seguintes critérios: a avaliação das instituições, dos cursos e do desempenho dos estudantes (BRASIL, 2004).
DISCUSSÃO
Para aprofundar a discussão dos resultados encontrados, o Gráfico 1 apresenta a quantidade de cursos de Medicina abertos desde 1808, ano de fundação das primeiras faculdades de Medicina, até 2017 (eMEC, 2018).
Pela análise do gráfico, é notável a presença de três períodos históricos de alta abertura de faculdades de Medicina: de 1967 a 1970, de 1997 a 2007 e de 2011 a 2017, ocorrendo um hiato entre 2008 e 2010 por conta da crise econômica que afetou os investimentos privados em praticamente todos os setores da economia. Os períodos são compatíveis com os expostos por Martins (2002) sobre a Reforma da Educação Superior em 1968 e por Traina Chacon e Adolfo Ignacio (2014) sobre o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ainda de acordo com Martins (2002), o número de matriculados nos cursos de Medicina saltou de 200.000 para 1.400.000 entre os anos 1960 e 1980, mostrando o impacto do Decreto n. 53.642 de 1964 e do Decreto n. 63.341 de 1968 (BRASIL, 1964; BRASIL, 1968). Essa expansão de vagas ocorrida no final dos anos 60 ocorreu no contexto de uma política governamental que buscava amenizar pressões sociais nas regiões urbanas e satisfazer demandas reprimidas em Educação, Saúde e Habitação (MÉDICI, 1986).
Tais políticas públicas foram um marco histórico para a expansão da oferta de faculdades de Medicina no país por instituições privadas. Até o ano de 1964, o Brasil possuía apenas seis instituições privadas de ensino de Medicina. Após a recomendação para formação de parcerias com estabelecimentos de saúde, em vez de construção de hospitais-escola, com o Decreto n. 53.642 (BRASIL, 1964), sacramentada pelo Decreto n. 63.341 (BRASIL, 1968), 27 faculdades de Medicina foram abertas entre 1967 e 1970, sendo 21 instituições privadas.
Portanto, há indícios de que a necessidade de construção de um hospital- escola apresentava uma grande barreira para a expansão das faculdades de Medicina no país, principalmente de instituições particulares com recursos financeiros mais limitados do que a União. A manutenção de um hospital-escola é altamente custosa, sendo mais dispendiosa em termos financeiros do que os hospitais convencionais (GOK; SEZEN, 2012).
Após 1964, foram abertas 266 novas faculdades de Medicina no país até 2017, sendo 182 instituições privadas, corroborando os achados de Martins (2009) que argumenta sobre a expansão da educação superior no Brasil ocorrer através de instituições particulares em detrimento do setor público. A ampliação do Ensino Superior pela rede privada resolveu as pressões por mais vagas nas universidades (MÉDICE, 1986).
Os impactos do Decreto n. 53.642 (BRASIL, 1964) e do Decreto n. 63.341 (BRASIL, 1968) vão além do caráter expansionista da política pública, influenciando a qualidade do ensino médico oferecido no país. Com o PMM, a quantidade de cursos privados de Medicina apresentou um crescimento acentuado, levantando questionamentos sobre uma redução na qualidade do ensino médico, corpo docente pouco qualificado do ponto de vista pedagógico e insuficiente para a rápida expansão do número de escolas, estruturas de ensino e assistenciais mal preparadas e estudantes com dificuldade de exercer de forma efetiva sua prática profissional em cenários de prática sem organização em rede de serviços e preceptores não capacitados (MOTA, 2014; SCHEFFER; DAL POZ, 2015). Os convênios realizados pelas faculdades de Medicina com estabelecimento de saúde são insuficientes para atender a demanda por leitos exigida pelo MEC de, no mínimo, cinco por estudante, afetando diretamente a formação do médico e o atendimento recebido pela população (CFM, 2015).
Acerca do PMM, ressalta-se que a justificativa para a formulação da política pública é a mesma do Decreto n. 53.642, de 28 de fevereiro de 1964: má distribuição de médicos no território nacional (BRASIL, 1964). Dessa forma, apesar dessa expansão de vagas de graduação em Medicina, as desigualdades na distribuição de escolas de ensino médico permanecem evidentes entre as Unidades da Federação, entre as capitais e os interiores das regiões e nos agrupamentos de municípios por estratos populacionais (SCHEFFER et al., 2018).
As oito políticas públicas desenvolvidas entre 1969 e 2013 tiveram como objetivo regulamentar procedimentos de distribuição de bolsa de estudos para os estudantes e o Ensino Superior de modo geral. Dados demonstram a existência de uma migração do interior para as capitais após o estudante concluir o curso de Medicina e de uma aglomeração de médicos em centros metropolitanos que contribuem para a má distribuição de profissionais no país (SCHEFFER et al., 2018). Entretanto nenhuma política pública foi desenvolvida entre 1964 e 2013 para fixar o estudante na cidade de formação e, até o momento, após a divulgação da Lei n. 12.871, de 22 de outubro de 2013, as quatro políticas elaboradas trataram apenas de regulamentações.
De acordo com Povoa e Andrade (2006), evidências internacionais indicam que o local de treinamento (e não da graduação) exerce forte influência para a decisão de fixação do médico em uma determinada região, permanecendo no local onde a Residência Médica foi realizada. Portanto, a concentração dos programas de residência nas regiões Sul e Sudeste são um dos fatores que promovem a desigualdade na distribuição médica (POVOA; ANDRADE, 2006). Para tanto, várias estratégias foram adotadas ao longo dos anos para combater a má distribuição médica: implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), Projeto Rondon, Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), o PISUS, o Programa Saúde da Família (PSF), o PITS, o FIES e o PROVAB (MARTINS, 2017). Uma das medidas em discussão para se alcançar uma inclusão social de fato no SISU é a proposta de incluir percentual de estudantes que moram no local e redondezas, de forma que a retenção desse estudante tanto no processo de graduação quanto pós- formado será maior, por meio de bonificação na nota final, que tem sido chamado de “Argumento de Inclusão Regional”, como ocorre na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) pelos estudantes que residem no entorno dos Campi do Agreste e de Vitória de Santo Antão (UFPE, 2014); na Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN) para os residentes em Caicó e na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) (UFRN, 2014; UNIPAMPA, 2016).
Outra coincidência notável no histórico das políticas públicas relacionadas à graduação de Medicina é a divulgação de uma regulamentação na concessão de bolsas de estudos para os estudantes de instituições privadas poucos anos após a formulação de políticas de expansão da oferta de ensino. Da mesma forma que o Decreto n. 66.588 de 1970 regulamentou a concessão de bolsas de estudos, a Lei n. 13.530 de 2017 também alterou o oferecimento de auxílios financeiros ao realizar diversas modificações estruturais no Financiamento Estudantil (FIES) (BRASIL, 1970; BRASIL, 2017). Semelhante ao período entre 1967 e 1970, quando ocorreu um crescimento acentuado na oferta de cursos com a abertura de 21 novas faculdades particulares de Medicina, entre 2013 e 2017, setenta instituições privadas de ensino foram inauguradas, obrigando o governo a tomar medidas de auxílio aos estudantes.
Ainda outra coincidência que merece destaque foi o cancelamento da ANASEM, que seria aplicada anualmente para estudantes do 2º, 4º e 6º anos, mantendo-se apenas a avaliação trienal do Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes (ENADE) para concluintes dos cursos da área da saúde. Ou seja, enquanto a ANASEM envolvia a corresponsabilidade da IES ao longo da formação do estudante, o ENADE tem um caráter apenas regulatório, e o “Exame de Ordem” que tem sido proposto pela Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina tem caráter apenas terminal, tornando o profissional recém-formado como responsável único por sua eventual má-formação. Essa medida certamente contribuirá para a proliferação de “cursinhos preparatórios” privados que ensinam os estudantes a fazerem provas e não a serem médicos.
Há que se considerar ainda a avalanche de estudantes brasileiros fazendo cursos de graduação em Medicina em nossos países vizinhos, principalmente no Paraguai e Bolívia, atraídos pelos valores irrisórios de mensalidade, quando comparados aos custos exorbitantes dos cursos privados no Brasil, com a crescente pressão para a revalidação automática dos diplomas.
CONCLUSÃO
O objetivo principal do estudo foi realizar uma revisão integrativa na legislação federal para encontrar as políticas públicas destinadas ao ensino de graduação de Medicina no Brasil, resultando em 679 normas encontradas com 21 políticas selecionadas para a amostra final. Das 21 políticas públicas encontradas, foi possível perceber um caráter regulamentador das ações propostas pelo governo, com apenas dois momentos de políticas de expansão do ensino. Dentre as políticas públicas, destacam-se o Decreto n. 53.642, de 28 de fevereiro de 1964, e o Decreto n. 63.341, de 1º de outubro de 1968, que possibilitaram a expansão do ensino médico, principalmente por instituições particulares, com a desobrigação da construção de hospitais-escola, cujos impactos permanecem até os dias de hoje, a questionável avaliação de muitos municípios para sediarem cursos de Medicina, dada à insuficiente infraestrutura de saúde; tênues convênios firmados entre cursos e hospitais para justificativa de leitos na autorização para abertura dos cursos e a falta de uma estrutura avaliativa externa que possa regular tanto a qualidade do curso quanto o nível de desempenho dos estudantes que estão se formando.
O impacto dessa abertura desenfreada de escolas médicas sem a integração de ações conjuntas do Ministério da Saúde e da Educação evidencia um controle regulatório inadequado do número de cursos e vagas de graduação e Residência Médica, da questão dos hospitais-escola e conveniados que não foi revista desde o Decreto n. 63.341, de 1º de outubro de 1968, e que poderia melhorar a realidade do escasso número de leitos hospitalares, do financiamento de bolsas de estudo, tanto por meio do PROUNI quanto do FIES, e da necessidade de avaliações externas periódicas que garantam a qualidade dos médicos formados, trará muitas consequências para a segurança dos pacientes e aos custos do sistema público e privado de saúde. A realização apenas trienal do ENADE não será suficiente para avaliação dos cursos de Medicina. Não foi prevista a pactuação de diferentes tipos de indicadores assistenciais que poderiam ser melhorados com a abertura de cursos de Medicina e vagas de Residência Médica nas diferentes regiões do país nos instrumentos de avaliações oficiais.