Relações de gênero na profissão docente
A docência é uma área profissional exercida predominantemente por mulheres no Brasil e em muitos outros países, como Alemanha (WOLFRAM; MOHR; BORCHERT, 2009), Estados Unidos (MOSSBURG, 2004), Israel (OPLATKA; EIZENBERG, 2007), dentre outros. Essa característica desigual entre os sexos na profissão torna-se ainda mais evidente quando se refere à docência dedicada à pequena infância, pois, quanto menor a idade da criança atendida, menor a participação masculina na docência e menor a remuneração dos profissionais na área. Enquanto na educação superior a presença masculina e os salários pagos são os mais elevados na área da docência, a educação infantil é a etapa com a me-nor presença de homens e com os menores salários (SAPAROLLI, 1998; VIANNA, 2001/02; BRASIL, 2009).
A expressão "divisão sexual do trabalho" vem sendo utilizada em dois sentidos distintos, sendo que o primeiro se refere à distribuição desigual de homens e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profissões no decorrer do tempo, diferença associada à desigualdade na divisão do trabalho doméstico entre os sexos. No segundo senti-do, busca-se revelar a sistematicidade dessas desigualdades no mercado de trabalho, analisando a forma como a sociedade utiliza tais diferenças para hierarquizar as atividades e, consequentemente, os sexos, criando um "sistema de gênero", com enfoque nas relações sociais entre os sexos (HIRATA; KERGOAT, 2007).
De acordo com dados da Unesco referentes ao ano de 2008, na maioria dos países, entre os graduados na área de educação, a porcentagem de mulheres supera 70% (UIS, 2010). Buscando a gênese da "divisão sexual do trabalho", Hirata e Kergoat observam:
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.). (2007, p. 599)
A docência dedicada à infância é uma área profissional que ilustra a segmentação decorrente dessa perspectiva de divisão sexual do trabalho, com o trabalho das mulheres associado à esfera reprodutiva e o dos homens, à esfera produtiva. A educação de crianças pequenas é associada ao âmbito do trabalho doméstico e à esfera reprodutiva, sendo, dessa forma, naturalizada como área de atuação feminina.
Em sua dissertação de mestrado, Souza (2010), retomando a história da educação infantil, observa que, embora essa primeira etapa da educação básica tenha diversas origens, nas várias propostas o cuidar e o educar aparecem relacionados à maternidade e ao âmbito doméstico. Ela mostra que a construção da profissão de educador infantil esteve atrelada ao gênero feminino desde a sua origem.
Ao relacionar a origem da educação infantil ao sexo feminino, Souza (2010) remete-se à produção de Rosemberg (1999), pesquisadora que justifica essa associação à característica vinculada à "produção humana". De acordo com a autora,
A educação infantil - tanto na vertente creche quanto na vertente pré-escola - é uma atividade historicamente vinculada à "produção humana" e considerada de gênero feminino, tendo, além disso, sido sempre exercida por mulheres, diferentemente de outros níveis educacionais, que podem estar mais ou menos associados à produção da vida e de riquezas. Isto é, diferentemente de outras formas de ensino, que eram ocupações masculinas e se feminizaram, as atividades do jardim-da-infância e de assistência social voltadas à infância pobre iniciaram-se como vocações femininas no século XIX, tendo ideais diferentes das ocupações masculinas que evoluíam no mesmo período. (ROSEMBERG, 1999, p. 11)
Na perspectiva da ideologia naturalizadora, dois princípios organizadores atuam: o princípio da separação, que considera a existência de trabalhos de homens e trabalhos de mulheres; e o princípio hierárquico, segundo o qual o trabalho exercido por homens tem valor maior que o trabalho exercido por mulheres. As práticas sociais, dessa forma, são reduzidas a papéis sociais sexuados, que limitam o gênero ao sexo biológico (HIRATA; KERGOAT, 2007).
A "desnaturalização" da divisão sexual das profissões foi possível a partir dos estudos feministas, dos estudos de gênero e da consideração do gênero como categoria analítica. Esses estudos ganham importância no Brasil no final da década de 1980, ao problematizar a característica social das diferenças entre os sexos e rejeitar o discurso do determinismo biológico dessas diferenças.
A abordagem do conceito de gênero por Joan Scott (1995) proporciona importantes reflexões. Ela lembra que inicialmente o termo foi utilizado como sinônimo de "mulheres", em uma busca por legitimidade dos estudos feministas nos anos 1980. A autora acrescenta que,
Na sua utilização mais recente, o termo "gênero" parece ter feito sua aparição inicial entre as feministas americanas, que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como "sexo" ou "diferença sexual". O termo "gênero" enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres se centrava nas mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo gênero para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário analítico. Segundo esta visão, as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não se poderia compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separado. (SCOTT, 1995, p. 72, destaques da autora)
Os estudos de gênero incluem as questões relacionadas às masculinidades. De acordo com Connell (2010), tem-se demonstrado que
[...] os padrões de gênero não são fixos, que identidades são negociadas nas vidas individuais e que categorias emergem historicamente, que as masculinidades e as feminilidades são múltiplas e que as relações de gênero variam em diferentes classes, etnias e contextos nacionais. (CONNELL, 2010, p. 605, tradução nossa)1
As análises aqui realizadas têm como fundamento teórico os estudos de gênero. Assim como as lutas feministas pelos direitos das mulheres possibilitaram o desenvolvimento de um campo teórico que analisa a sociedade de maneira relacional, pautamo-nos na perspectiva dos estudos de gênero para analisar a trajetória profissional dos homens professores, que atuam em uma profissão construída no decorrer da história como sendo do gênero feminino.
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