Uma rede de ódio
Não há dúvida, porém, de que a desumanização funciona bem aqui por meio dessa animalização do Outro que o coloca fora do campo das relações humanas. Começamos a matá-lo com palavras que desqualificam sua humanidade.
(Sémelin, 2009, p. 39)
Refletir sobre discursos produzidos na internet requer, necessariamente, trazer à luz a discussão sobre o espaço virtual1 e o modo como ele tem afetado a constituição de sujeitos e de sentidos. Para tanto, recorremos à noção de espaço significativo, delineada por Orlandi (2009), para pensar a relação entre a prática discursiva e a ambiência onde ela se produz. Ao teorizar sobre processos de individualização de sujeitos citadinos na contemporaneidade, a autora define o espaço urbano como o “enquadramento dos fenômenos ou práticas que acontecem na cidade” (Orlandi, 2009, p. 16). Nesse sentido, defende que os “enquadres” do lugar condicionam o modo como os sujeitos poderão experimentar os diferentes sentidos do acontecimento urbano. A autora elucida seu raciocínio, demonstrando que, por exemplo, um pedestre atribui à cidade sentidos diferentes daqueles atribuídos por alguém que atravessa o mesmo local de ônibus. São experiências distintas, “enquadramentos” distintos e, portanto, condições de produção distintas.
Entendido dessa maneira, o espaço pode ser pensado como parte constituinte das condições de produção do discurso (CP), delimitando, assim, as formas de significar. Sob esse enfoque, compreende-se que os sujeitos e os sentidos são determinados, em certa medida, pelo modo como o espaço “enquadra” a prática discursiva. É sob esse aspecto que é possível pensar em um espaço significativo, isto é, um espaço que “significa, tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar, de enquadrar o acontecimento” (Orlandi, 2009, p. 16).
Pensando, pois, o espaço virtual como esse espaço significativo, consideramos, com base em França e Grigoletto (2018), que a internet e, mais especificamente, as redes sociais não integram um pano de fundo esvaziado em que as discursividades se enredam independentemente dele. Ao contrário: as redes, elas mesmas, significam. São domínios afetados pela língua e pela ideologia, construindo, em torno de si, a evidência de um espaço fluido, movediço, desterritorializado.
Lévy (1996, p. 9) discute a ideia de desterritorialização em sua relação com o virtual, afirmando que, “quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam ‘não presentes’, se desterritorializam”. Essa relação de não presença, de não pertencimento a um território, diz respeito à ausência de um lugar de referência estável, uma vez que, segundo o autor, a virtualização recria uma cultura nômade, na qual as relações de espaço-tempo se reconfiguram: usuários do espaço virtual podem, por exemplo, encontrar-se por meio de uma videoconferência, apesar da distância geográfica; também podem dar continuidade a uma conversa em tempos distintos por meio de aplicativos que possibilitam uma interação assíncrona. O “aqui” e o “agora” se relativizam, são metamorfoseados pela multiplicidade de redes e de ambientes digitais, que se desdobram e se recobrem em uma trama equívoca que parece não possuir território nem tempo delimitados.
Dando consequência ao raciocínio de Lévy (1996) e articulando-o à discussão travada por Cortes (2015) sobre território,2 França e Grigoletto (2018) consideram que o imaginário da desterritorialização está associado ao efeito de ausência de controle, de regulação. Nessa ótica, defendem que o espaço virtual, por meio da evidência de “desordem”, provoca no usuário-sujeito o efeito de tudo poder dizer, sem que recaiam sobre ele represálias ou punições de qualquer ordem. Esse efeito de liberdade sem restrições, segundo os autores, possui implicações diretas na produção daquilo que convencionou-se chamar de discurso de ódio:
. . . a imagem do espaço virtual como sendo desterritorializado, ou melhor, a imagem do espaço virtual como mais poroso, como menos suscetível de ordem, joga com a imagem que o usuário-sujeito tem de si, produzindo nesse sujeito o efeito de liberdade, de tudo poder dizer. E esse imaginário propicia a produção de discurso de ódio, ou seja, funciona como CP [condição de produção] para o discurso de ódio. (França & Grigoletto, 2018, pp. 42-43).
Esse efeito, nomeado por França e Grigoletto (2018) de “terra sem lei”, é ainda potencializado pela possibilidade do anonimato e da distância entre os usuários, o que alimenta o efeito de liberdade sem limites para a (re)produção de discursos de ódio. Nesse raciocínio, é importante retomar Orlandi para salientar que “o modo de se significar um espaço vai de par ao modo como são significados os sujeitos desse espaço” (2009, pp. 17-18). Sendo assim, a imagem que se tem da internet como terra sem lei afeta diretamente a imagem que os usuários-sujeitos têm de si e dos outros que ali interagem. Essa discussão ganha destaque quando observamos a produção/circulação de discursos de ódio nas redes sociais, onde, comumente constrói-se um jogo de posições intercambiáveis em que um usuário-sujeito é o agente do ódio e o outro é o alvo, sendo possível a mudança dessas posições no decorrer da interação (França, 2019).
Partindo dessa discussão e considerando o espaço virtual como CP para o discurso de ódio, propomos analisar, à luz do arcabouço teórico-metodológico da análise do discurso pecheutiana (AD), o modo como o lugar discursivo do sujeito-professor tem sido (re)posicionado a partir de narrativas de ódio produzidas nas redes sociais Instagram e Facebook. Para tanto, analisamos quatro sequências discursivas retiradas de publicações das páginas do Movimento Escola sem Partido (Mesp), nas quais é possível visualizar a produção de efeitos de animalização e de demonização, os quais constituem as categorias analíticas deste trabalho.
Antes de adentrar propriamente nas análises, produzimos um gesto de leitura sobre as noções de discurso de ódio e de sujeito do discurso de ódio, tomando como referência as teorizações discursivas de Pêcheux (1969/2014), Pêcheux e Fuchs (1975/2014), de Indursky (2018) e de França (2019).
O discurso de ódio e o sujeito do discurso de ódio
Para falar sobre discurso de ódio, precisamos situar, a princípio, a noção de discurso, levando em conta suas implicações teóricas. Recorremos, então, a Pêcheux (1969/2014) para definir discurso como efeito de sentido entre locutores. Dessa noção, derivam implicações importantes, como o fato de que esse sentido entre locutores não é um conteúdo em si, mas um efeito do trabalho ideológico que apaga o caráter material do processo de significação, tornando transparente um sentido que não é evidente, mas constituído a partir da inscrição dos sujeitos em formações ideológicas3 que, no plano da linguagem, são representadas pelas formações discursivas (FD), definidas como aquilo que, “a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, . . . determina o que pode e deve ser dito” (Pêcheux & Fuchs, 1975/2014, p. 147).
Assim, é pela inscrição em determinada formação discursiva que os sentidos fazem sentido, por meio de um sistema de evidências experimentadas na/pela língua. Por essa razão, lembram-nos Pêcheux e Fuchs de que os sentidos das palavras, expressões, proposições, etc., não são pré-estabelecidos, mas determinados “pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico” (1975/2014, p. 146). Isso significa que os sentidos são determinados pelas FD nas quais os sujeitos se inscrevem. É nessa perspectiva que concebemos o sentido não como conteúdo, mas como efeito de um trabalho ideológico produzido no interior das diferentes FD. O mesmo ocorre para o sujeito que, pelo processo de interpelação, identifica-se com determinada formação discursiva, reconhecendo-se e subjetivando-se nesse espaço.
Desse modo, o sujeito do discurso não é o indivíduo físico, mas um efeito-sujeito resultante do processo de interpelação ideológica que pressupõe, segundo Henry, “um desdobramento constitutivo do sujeito do discurso, de forma que um dos termos representa o ‘locutor’, ou aquele a que se habituou chamar o ‘sujeito da enunciação’ . . . e o outro termo representa ‘o chamado sujeito universal’” (apud Pêcheux & Fuchs, 1975/2014, p. 198), ou a forma-sujeito, que, em termos gerais, é o sujeito do saber de determinada formação discursiva. A identificação ocorre quando o locutor se vê representado na forma-sujeito de uma FD, constituindo-se, nesse processo, como sujeito do discurso. Esse processo, no entanto, é complexo e contraditório, podendo assumir diferentes modalidades, a saber, identificação, contraidentificação e desidentificação (Pêcheux & Fuchs, 1975/2014). Dessas diferentes modalidades que se estabelecem na relação entre o sujeito enunciador e o sujeito universal, emerge a posição-sujeito, resultante das formas de assujeitamento. Desse modo, diferentes indivíduos podem se identificar com a mesma forma-sujeito, assumindo posições semelhantes ou distintas, que podem se modificar/deslocar no interior de uma mesma FD.
Pensando nessa relação constitutiva entre sujeito, discurso e formação discursiva, retornamos ao conceito de discurso de ódio. Se há, pois, um discurso que podemos definir como discurso de ódio, como se dá sua relação com as posições-sujeito e com as diferentes FD implicadas na sua produção/circulação?
De acordo com Indursky, o discurso de ódio é constituído por saberes que “advêm de uma formação discursiva que exclui, denigre, distorce, desqualifica e nega o outro, na tentativa de aniquilá-lo” (2018, s.p.). Nessa esteira, França define a FD do discurso de ódio como aquela que possibilita (re)produzir o efeito da “desumanização do outro (pela produção do inumano, do animal, do demônio e da coisa) e a verbalização do tratamento que parece adequado ao outro já desumanizado (desde tratamentos indecorosos até ‘soluções finais’, como o desejo da morte em massa e violenta)” (França, 2019, p. 6).
Pensando nas posições-sujeito implicadas nas discursividades do ódio, França (2019) defende que um elemento-base para que se produza esse tipo de discurso é o jogo imaginário-ideológico que põe em funcionamento a oposição entre duas posições: a do sujeito desumanizador e a do sujeito desumanizado, sendo o primeiro colocado em um lugar de superioridade, uma vez que se diferencia, imaginariamente, daquele que é inferiorizado:
. . . é desse lugar distante e confortável que se pode rebaixar o outro, ou, mais especificamente, é para que seja garantido o meu lugar confortável que o outro é vilipendiado ou ainda, como discutiu Sémelin (2009), é para me recuperar de uma fratura na autoimagem - sem que essa dor seja necessariamente consciente - que o outro é interpretado em seu rebaixamento, funcionando como bode expiatório. (França, 2019, p. 184).
É importante mencionar que tanto a posição-sujeito desumanizadora, quanto a posição desumanizada, constituem, juntas, o que França (2019) denomina sujeito do discurso de ódio, uma vez que, ambas estão implicadas no processo discursivo que faz funcionar o ódio. Além disso, o autor demonstra que tais posições podem ser intercambiáveis, tendo em vista que:
O sujeito (B) que “sofre” o discurso de ódio pode ser, no comentário seguinte, aquele que dispara (A) o discurso de ódio. Então, desumanizar e ser desumanizado são possibilidades “abertas” e “negociáveis”; isto é, intercambiáveis, se bem que também sujeitas a CP. (França, 2019, p. 185).
Levando em consideração essa dinâmica, defendemos que tanto a posição do sujeito-professor (desumanizada) quanto a posição do Mesp (desumanizadora) constituem-se como sujeitos do discurso de ódio, em condições de produção específicas, concernentes ao espaço virtual. Essa delimitação, porém, não permite concluir que o ódio produzido se limita apenas ao espaço virtual, tendo em vista sua relação constitutiva com o espaço empírico,4 conforme defende Grigoletto (2011). Isso significa que as práticas discursivas que emergem do espaço virtual não configuram uma realidade paralela independente do espaço empírico; são, antes, uma extensão dele. É preciso considerar também que o virtual afeta o empírico, produzindo efeitos nesse espaço. Por essa razão, observar os discursos de ódio nas páginas do Mesp implica o reconhecimento de que esse ódio encontra ressonância também no espaço empírico, a partir de diferentes condições de produção.
O Movimento Escola sem Partido e o ódio a professores
A educação, ao longo da história, sempre foi alvo de acusações e ataques, por não cumprir ou por transgredir certos papéis a ela atribuídos de adequação a interesses específicos da família, do Estado, da religião ou do mercado. Essas acusações e ataques são sintoma de um elemento fundante da educação que resiste e persiste como seu traço singular (Masschelein & Simons, 2013): o potencial democrático que faz dela uma instância propulsora da experimentação e renovação dos sujeitos e da sociedade.
Esse potencial, obviamente, ameaça e atemoriza aqueles que se beneficiam das formas desiguais e hierarquizadas de sociabilidade, o que leva às constantes tentativas de domesticar, controlar ou anular os movimentos dos sujeitos na sociedade e na história pela educação, a fim de garantir a reprodução de um imaginário de naturalidade e estabilidade do mundo. Entretanto, por sua relação estreita com as ideias-valores de democracia, cidadania, conhecimento, reflexão e direitos, para as forças dominantes da sociedade o intolerável da educação tem que ser tolerado, sendo um mal cujos excessos devem ser controlados (Rancière, 2014).
Com a emergência e ascensão da ideologia neoliberal, os valores da igualdade, participação na vida pública e ampliação de direitos, que caracterizam uma forma de democracia substantiva, são submetidos à lógica do mercado e à sua concepção de cidadania de baixa intensidade, segundo as quais cidadãos são reduzidos a consumidores e a educação a uma mercadoria. No contexto mais recente, como aponta Giroux (2020), o neoliberalismo econômico, fracassado em suas promessas de democracia pelo consumo, se combina com uma nova formação política autoritária de viés fascista que, mais do que produzir novas versões da história, busca imobilizá-la pela cultura da violência, do ódio, do medo e da demonização da diferença. É nesse contexto sócio-histórico mais amplo que, no Brasil, tem início o Movimento Escola sem Partido.
Embora tenha sido fundado em 2004, apenas em 2011 o Mesp passou a ganhar visibilidade no cenário político nacional, alinhando-se a parlamentares de bancadas conservadoras5 e levantando a pauta daquilo que denominavam doutrinação político-ideológica (ou doutrinação de esquerda) nas escolas. Em 2014, a articulação entre o Mesp e a classe política foi intensificada por meio de anteprojetos de lei produzidos por Miguel Nagib, fundador do movimento, que eram editados e assinados por diferentes parlamentares em todo o país. Muitos desses projetos chegaram a ser aprovados e estabeleciam, de forma geral, o combate à dita “doutrinação de esquerda” e ao ensino de gênero e sexualidade na escola.
Fora do âmbito da política institucional, o Mesp passou a difundir seus princípios e projetos de lei em seu site e em suas redes sociais. Diferentemente das declarações em Comissões Especiais na Câmara e nas Assembleias Legislativas, nas quais os representantes mostravam-se mais contidos, nesses espaços virtuais a defesa do movimento ganhava contornos belicosos, dirigindo-se, muitas vezes, a professores em tom ameaçador e agressivo, o que exemplifica a reflexão empreendida por França e Grigoletto (2018) sobre o espaço virtual como CP de discursos de ódio.
Em Santos (2018), foi possível observar que o funcionamento do discurso mespiano constrói uma cena discursiva em que se projeta um confronto de duas posições, sendo elas a posição do professor-instrutor/burocrata - que é legitimada nesse discurso, e caracterizada pelo movimento como uma figura “neutra”, que não aborda, em sala de aula, temas de natureza político-ideológica, como questões de gênero, raça e sexualidade - e, do lado oposto, a posição do professor-educador6 (qualificado pelo movimento como professor militante/doutrinador) - aquela que se deseja agredir, inferiorizar.
É exatamente a essa posição do professor-educador que o Mesp direciona os ataques produzidos por meio de postagens no site do movimento e em suas páginas no Facebook e no Instagram, como é possível observar nas imagens que seguem.
Os prints de tela acima ilustram o modo como o dito “professor militante” é retratado nas postagens das páginas do Mesp: uma figura ameaçadora, que abusa de seus alunos e os sequestra intelectualmente por meio da dita doutrinação de esquerda. Em diferentes postagens, o tom de ameaça também se faz entrever no convite para que os pais processem os professores de seus filhos, quando se sentirem confrontados pelos docentes no que concerne às suas convicções morais. Outras postagens intensificam a atmosfera de suspeição e de desqualificação dos professores, por meio da sugestão de que os pais confiram o material didático dos filhos, a fim de fiscalizar a natureza dos conteúdos ministrados em sala de aula. Há, por fim, as postagens que permitem observar o funcionamento de um discurso de ódio que produz os efeitos de animalização e de demonização do professor-educador, posição inscrita na FD educacional progressista.
Efeitos de animalização do sujeito-professor
Conforme elucida Rego (2014), historicamente o homem tem se preocupado em marcar um lugar de oposição aos animais, caracterizando-se como ser superior, dotado de espiritualidade, de linguagem, de racionalidade. Associado a esse afastamento entre homem e animal, está o tratamento banal que diversas culturas têm dispensado aos bichos, naturalizando seu sofrimento e assassinato em diferentes contextos, sobretudo naqueles concernentes a determinadas práticas culturais, como touradas e vaquejadas, além da caça e da matança produzida pelo mercado alimentício. Nessa relação, percebe-se, pois, uma “suposta ‘permissão’ para matar e oprimir, desde que o objeto a ser morto ou oprimido seja um animal” (Rego, 2014, p. 72).
Partindo dessa premissa, a animalização do outro se mostra como um recurso que pretende justificar as práticas de ódio, uma vez que a morte e o sofrimento animal parecem ser perfeitamente concebíveis, sobretudo quando se encontram associados a bichos considerados repulsivos, como ratos, vermes e insetos. É preciso pontuar, no entanto, que a animalização nem sempre se encontra articulada a discursos de ódio, tendo em vista que pode ser utilizada como comparação/metáfora para atributos valorizados em nossa cultura, como beleza, força, agilidade, liberdade, etc., vide expressões como “forte como um touro” ou “livre como um pássaro” (Rego, 2014). Dessa forma, o que interessa observar aqui é o processo pelo qual a animalização é mobilizada para provocar repulsa, para incitação à agressividade. Dito de outro modo, o que pretendemos observar é a produção de um efeito de animalização como justificativa para a violência contra o outro, despojado de sua humanidade, o que caracteriza o funcionamento de um discurso de ódio (França, 2019).
Nesse sentido, quando nos referimos ao efeito de desumanização do outro, queremos dizer, com base em Rego, que “não se trata de querer simplesmente ofender, sujar a moral desses seres: o que se pretende é identificá-los com coisas desprezíveis para que . . . fique mais fácil sua aniquilação e/ou subjugação” (2014, p. 71). Com base nessas considerações teóricas, analisamos a seguir duas sequências discursivas (figuras 4 e 5) que permitem observar o funcionamento de um discurso de ódio que produz o efeito da animalização.
Conforme mencionamos anteriormente, a posição-sujeito que o Mesp designa de professor-militante, ou professor-doutrinador, faz referência à posição inscrita em uma FD educacional progressista, marcada por uma rede de sentidos que significam a educação como espaço plural e político, atravessado pelo ideário de justiça social. Buscando atacar essa posição, com o objetivo de inferiorizá-la, produz-se, na Figura 4, uma associação entre professores e parasitas, por meio do uso da imagem de carrapatos. É importante notar que a materialidade em destaque permite entrever uma correlação estabelecida entre o “petismo” e os professores ditos militantes, demonstrando que o ódio ao professor se vincula ao ódio à esquerda, como buscamos demonstrar na análise da Figura 7.
A imagem do parasita produzida na Figura 4 provoca, além da repulsa e do asco, uma atmosfera de apreensão, uma vez que os carrapatos são retratados na postagem como figuras ameaçadoras que “zumbificam” seus hospedeiros. Nessa cena construída, o sujeito-professor é despojado de sua humanidade e metaforizado com a imagem de um animal repulsivo e nocivo à sociedade, o que aciona um consequente ímpeto à higienização, isto é, à eliminação do parasita pernicioso. Essa metaforização do outro com a imagem de um ser asqueroso tem sido usada ao longo dos séculos para justificar, ou melhor, para naturalizar o ataque e a aniquilação do inimigo, conforme pontua Sémelin:
. . . os nazistas se referiam aos judeus como vulgares ratos ou piolhos, enquanto os hutus extremistas chamavam os invasores tutsis de baratas (inyenzi). E não seria um “direito” se livrar dos animais nocivos? É um gesto doméstico, de pura higiene. Todo mundo pode fazer esse gesto, todo mundo deve fazê-lo. Donde também a metáfora da “limpeza”, associada ao asseio e à saúde. Em Mein Kampf, Hitler não cessou de utilizar as metáforas do “micróbio judeu”, do “câncer judeu”, descrevendo-os como “parasitas sociais”. E os insetos, com frequência, suscitam certa repulsão: dá vontade de esmagá-los. (Sémelin, 2009, p. 39).
A naturalização do extermínio do outro, portanto, é a consequência do efeito de animalização. Assim, ao reposicionar o sujeito-professor nesse lugar de parasita, produz-se uma incitação à violência: é preciso que sejam pisados para que se garanta o bem-estar social. É nessa dinâmica que o discurso de ódio ganha força, a partir do uso dessas imagens (do verme, do parasita, do micróbio, etc.), cujos efeitos se repetem e se enredam no interior de uma formação discursiva que faz funcionar o ódio e o extermínio ao divergente.
Na Figura 5, a animalização é produzida, dessa vez, para provocar o medo e a consequente aversão ao sujeito-professor por meio da figura ameaçadora de um lobo. Junto à imagem, destacam-se os dizeres: “Infelizmente, nem todos os professores merecem o nosso respeito” e “Parabéns aos professores de verdade”. Nota-se que, nessa materialidade, produz-se um contraste, uma oposição, entre os professores que são “de verdade”, e por isso merecem respeito, e os professores que são “de mentira”, e portanto não devem ser respeitados. Assim, deslegitima-se a posição dos professores “de mentira”, desumanizando-os e representando-os como um “lobo em pele de cordeiro”, que, assim como nos ditados populares, é uma figura traiçoeira, cuja identidade verdadeira encontra-se disfarçada.
Essa imagem construída remete a sentidos já-lá associados à cultura popular, metaforizando o sujeito-professor com uma figura ardilosa, que parece ser inofensiva, mas é, na realidade, uma grande ameaça. O desrespeito direcionado a esses sujeitos é, portanto, completamente justificável, tendo em vista a posição que ocupam: a de uma fera perigosa que deve ser exterminada. Aqui, violência e ódio são incitados e se justificam, uma vez que eliminar “feras” ameaçadoras é uma atitude bastante plausível (Sémelin, 2009). Observa-se, assim, nesse processo discursivo de animalização, a constituição do sujeito de ódio implicado nas posições do Mesp e em relação ao professor-educador, as quais integram o jogo ideológico-imaginário que põe em cena a oposição entre desumanizador e desumanizado (França, 2019).
Efeitos de demonização do sujeito-professor
Nas sequências discursivas que analisamos adiante (figuras 6 e 7), o ódio é produzido pela demonização do sujeito-professor não identificado com o imaginário docente construído pelo Mesp, e representado, nesse discurso, como uma ameaça social, uma figura vampiresca, destituída de sua feição humana.
O contexto da Figura 6 remonta ao primeiro trimestre de 2017, quando o então deputado federal Flávio Bolsonaro coletava assinaturas para instaurar a “CPI da Liberdade”, também intitulada pelo Mesp de “CPI da doutrinação”, que teria o objetivo de apurar casos de “doutrinação, partidarização, pornografia e desvios dentro da escola” (sic). Na ocasião, o Mesp aderiu à campanha para instalação dessa CPI, compartilhando a imagem em sua página do Facebook.
A figura em análise reproduz a imagem de um vampiro, uma figura ameaçadora, de olhos arregalados e sangue escorrendo pelos lábios. Essa criatura, representando o “chefe da militância disfarçada de docência” (expressão indicada na postagem), convoca seus iguais a combaterem a instalação da CPI a partir dos dizeres: “Atenção vampirada! Agora é todo mundo contra a CPI da doutrinação!” - palavras destacadas em vermelho que remetem ao sangue das vítimas, retratadas no discurso do Mesp como sendo os estudantes.
A imagem vampiresca se vale do uso político da memória do medo, ativando sentidos, no interdiscurso, referentes ao terror, o que provoca um efeito de repulsa aos professores ditos doutrinadores. É preciso lembrar que esse “sujeito doutrinador”, objeto do discurso de ódio, não é o indivíduo em si, mas um grupo social, posições-sujeito identificadas com a forma-sujeito educadora progressista, ou “de esquerda”, como nomeia o Mesp. Produz-se, desse modo, o que Silva et al. (2011) chamam de vitimização difusa, que é resultado de um ataque de ódio que não permite distinguir nominal ou numericamente suas vítimas, atingindo, direta ou indiretamente, toda a categoria docente.
O ódio, desse modo, dirige-se aos professores, realizando-se via efeito de demonização do professor-educador, retirando-lhe a qualidade humana, estigmatizando e violentando a posição em que ele se inscreve. Esse ódio, no entanto, não é produzido arbitrariamente, mas possui raízes históricas, que podem ser evidenciadas a partir da análise a seguir.
A imagem retrata aquilo que o movimento nomeia de “Vampiro gramsciano que zumbifica a educação brasileira”, fazendo referência ao filósofo marxista Antônio Gramsci. A comparação entre tais criaturas e o pensador inscrito em uma FD que aqui designamos “de esquerda” demonstra a relação de equivalência construída no interior do discurso do Mesp, relação em que tais sujeitos e os “professores militantes” são representados de uma única maneira: como monstros aproveitadores, o que nos permite concluir que o ódio ao “professor militante” deriva do ódio ao campo político- -intelectual de esquerda. Um ódio que tem ressonância na histeria anticomunista, “que tomou conta do Brasil, sobretudo na década de 60, a partir da tresloucada propagação dos ideais reacionários” (Cazarin & Menezes, 2016, p. 107), e reverbera hoje no antipetismo (Singer, como citado em Maringoni, 2016), estabelecido na conjuntura pós-golpe de 2016.
Retornando à imagem, note-se que a associação, feita na postagem, entre o Mesp e a estaca funciona como um índice intensificador do ódio, por incitar o combate ao inimigo por meio da violência, sendo o Mesp o agente da prática violenta, representando aquele que elimina a ameaça, numa apologia explícita à brutalidade. Essa é uma das características do discurso de ódio, “a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação” (Brugger, 2007, p. 118). O ódio pelo viés da demonização, portanto, é produzido por meio da construção dessa cena de terror e de violência contra o monstro representado, o professor.
À guisa de conclusão
Concebendo o espaço virtual como potencializador das discursividades de ódio (França & Grigoletto, 2018), procuramos analisar o discurso do Mesp, cujo funcionamento permite observar a produção dos efeitos de animalização e de demonização da posição que aqui designamos de professor-educador, que opera o/no discurso a fim de justificar tanto a violência contra essa posição quanto seu extermínio, dado que ela é projetada como figura abjeta, indigna e nociva. Verificamos que o discurso de ódio, nesse contexto, põe em cena as posições do desumanizador (Mesp) e do desumanizado (professores), as quais se constituem pelos sentidos da animalização e da demonização.
As análises também permitiram entrever a formação ideológica desse discurso de ódio, cujas raízes se fincam na combinação fascismo-conservadorismo-neoliberalismo, que se associa ao ódio direcionado ao campo político-intelectual de esquerda, reverberando nos discursos anticomunistas e, mais recentemente, antipetistas. Concluímos, então, que o ódio aos professores progressistas encontra sua origem não no campo estritamente educacional, mas político. Essa conclusão possibilita vislumbrar a contradição constitutiva de discursos como o do Mesp, uma vez que, no nível da evidência, defendem a não partidarização da escola, esfumando, no entanto, suas próprias motivações políticas. O que se pretende, portanto, não é a neutralização do sistema educacional, mas a legitimação e a hegemonia da posição desses movimentos dentro da escola. Para tanto, investe-se na constante deslegitimação e desumanização das posições contrárias, como é o caso da posição sujeito do professor-educador.
Partindo da compreensão de que os discursos são a materialidade específica da ideologia e que esta prescreve práticas concretas dos sujeitos, defendemos que tais efeitos de desumanização, embora produzidos virtualmente, estão implicados em um processo discursivo que não se limita ao virtual, encontrando ressonância no espaço empírico e podendo autorizar práticas de agressividade, perseguição e intimidação contra professores, como foi o caso do canal informal de denúncias criado pela deputada estadual de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL), em 2018, logo após a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais, com o objetivo de monitorar os possíveis “professores doutrinadores inconformados com a derrota nas urnas”.
Outras ações como essa têm ganhado força, sobretudo no campo da política institucional, a partir de inúmeros projetos de lei14 que visam a constranger, coibir e reduzir o papel do professor em sala de aula, minando, paulatinamente, sua função social. Nesse sentido, o exercício analítico aqui empreendido constitui também um gesto político de resistência, cujo intento é problematizar as maneiras de ler os discursos que hoje circulam no espaço virtual, objetivando (d)enunciar as narrativas de ódio direcionadas a posições-sujeito já tão estigmatizadas em nossa formação social.