Neste estudo trataremos da noção de scientific literacy1 e sua aplicação ÀS práticas e objetivos formativos do ensino escolar das ciências humanas. Apesar de não ser inédito, tal diálogo vem tendo seu interesse renovado nas diferentes comunidades epistêmicas que constituem a grande área de conhecimento em questão. Mais recentemente, esse debate tem ganhado novos contornos a partir das contribuições dos conhecimentos produzidos sobre a temática em diferentes subcampos de pesquisa e pela expectativa expressa pela base curricular de que os estudantes do ensino médio desenvolvam habilidades bastante diversificadas das ciências humanas. Entre outros aspectos, essas habilidades envolvem ler textos com olhar crítico para suas fontes, propor e questionar hipóteses, identificar posicionamentos e contradições, produzir materiais escritos a partir de argumentos, expor opiniões que articulem informações e conhecimentos e observar e abstrair acontecimentos concretos e simbólicos.
Em termos atuais, quando se fala em alfabetização científica, deve-se atentar para não confundi-la com a educação científica (Santos, 2007), pois trata-se de domínios que remetem a processos diferentes. A intencionalidade da alfabetização científica reside no desenvolvimento de práticas que favorecem a conversão do conhecimento escolar em bem e capital cultural. Mais do que um referencial de proficiência ou de sucesso escolar, ela corresponde a uma visão sobre o processo de escolarização que almeja construir a interface entre teorias, métodos e práticas, sempre ambicionando o engajamento de quem aprende com a própria experiência concreta. Sendo mais frequentemente usada em pesquisas acadêmicas vinculadas à didática das ciências, tal noção tem variado de significado ao longo do tempo. Diáz (2018, pp. 20-21) enfatiza que, a princípio, tinha-se uma perspectiva da alfabetização científica muito identificada com a descrição e o domínio de conteúdos científicos, sendo sua avaliação feita a partir de comparações medidas por balizadores.
Segundo Sasseron e Carvalho (2011), foi somente a partir dos anos 1990 que os debates sobre a temática passaram a percebê-la como um conjunto de ações capazes de potencializar a análise, a compreensão e a explicação do que se passa na natureza, no indivíduo, na sociedade, nas práticas culturais, na política, etc. Daí em diante, os estudos têm apresentado uma variedade de competências e habilidades que passaram a compor a reflexão sobre a noção de alfabetização científica e suas formas de execução e aferição. Para uns, significa a capacidade de ler, ouvir e falar; para outros, pensar criticamente e se engajar.
Mesmo que as finalidades variem a depender do contexto de aplicação da pesquisa, o que se vê na literatura é a mensagem de que a alfabetização científica qualifica a escolarização básica, não apenas por preparar para as próximas etapas, mas também por estabelecer o diálogo necessário entre as ciências que estão no currículo e a sociedade, estimulando o uso das linguagens científicas em situações do cotidiano de forma crítica e socialmente responsável. Trata-se de uma operação conjunta entre os atos de ler, escrever, analisar, problematizar, argumentar, debater e se posicionar. É nesse sentido que Duschl (2008, p. 286) afirma que a decisão sobre “o que conta” como alfabetização científica é mais importante do que a simples expressão de indicadores de proficiência genéricos.
Em nosso entendimento, há uma aproximação inevitável entre a noção de alfabetização científica e o ensino escolar das ciências humanas, haja vista certo consenso atual de que esse ensino - disciplinar ou não - pode ser mais do que a simples descrição das diferentes categorias, conceitos, temas e visões de mundo, se, para além de certo dogmatismo, hibridizar conteúdos científicos e saberes ativistas, com vistas a ajudar na recomposição de um mundo fragmentado, estimulando uma concepção ampliada de cidadania. E isso deve se encontrar na própria base do ensino e, notadamente, em suas estratégias, métodos e práticas.
O escopo do nosso estudo é debater potenciais formas de consolidação dessa expectativa. Para tanto, realizamos um levantamento bibliográfico concentrado em pesquisas internacionais sobre a temática e, a partir dele, buscamos conhecer experiências e práticas de alfabetização científica localizadas no ensino escolar das ciências humanas, de modo a conhecer suas premissas, pormenores metodológicos e seus resultados, e, além disso, identificar os princípios da alfabetização científica relativos à natureza da ciência, seu conteúdo e impacto na sociedade.
Metodologia
A coleta foi feita a partir da biblioteca eletrônica científica Education Resources Information Center (Eric), onde localizamos trabalhos publicados em revistas internacionais, entre 2015 e 2020, sobre a temática da scientific literacy em ciências humanas na educação escolar, correspondente ao nível dos quatro últimos anos do ensino fundamental e do ensino médio. Procedemos à racionalização da pesquisa semântica com base em queries que adotaram linhas de comando compostas por palavras-chave escolhidas para encontrar os resultados ensejados. As buscas se deram em três etapas, sendo que a primeira se centrou nos seguintes termos: scientific literacy; disciplinary literacy; indicators of scientific literacy; literacy skills. Na segunda, uma nova busca foi feita, refinando-a com a combinação dos termos anteriores com outros, como: human and social sciences; social studies; humanities. Por último, passamos à busca mais específica utilizando os nomes das disciplinas, acrescentando-se às palavras-chave principais termos como: history; geography; sociology; philosophy.
Ao todo, as combinações entre as palavras-chave produziram 28 linhas de comando, que nos ofereceram 58 resultados. Fizemos, então, um recorte nessa amostragem a partir dos critérios “relevância” e “revisão por pares”, para selecionar o que entraria na base analítica final, processo que resultou na amostragem de 32 publicações em 23 revistas internacionais de divulgação científica. Ressaltamos que esses dois critérios foram medidos pela própria métrica do sistema de busca da biblioteca Eric. O método aplicado para a construção da análise e das conclusões apresentadas foi uma heurística baseada em um exercício descritivo que buscou tanto extrair dos achados as suas principais contribuições, correlações e domínios como perceber os princípios gerais para a alfabetização científica em ciências humanas, preocupados em ajudar o processo de aprendizagem a partir da integração de aspectos do “método” científico ao ensino. Os resultados foram discutidos à luz das contribuições de Duschl (2008), Berland e Hammer (2012), Ford (2015), Stroupe (2015), Jiménez- -Aleixandre e Crujeiras (2017) e Kind e Osborne (2017).
Resultados
No que tange à transmissão dos conhecimentos, Spires et al. (2018) argumentam que a compreensão profunda da leitura deve passar por um movimento relacionado à identificação das fontes, à compreensão das representações visuais e ao uso de linguagens figurativas, retórica e desconstrução de narrativas. Para a alfabetização científica em ciências humanas, há um entendimento compartilhado de que as habilidades associadas ao trabalho com as fontes - como buscar informações, contextualizá-las e produzir argumentos - incentivam os estudantes a fundamentarem as ideias que lançam em suas produções textuais e os encorajam a checar e a confrontar várias evidências sobre um mesmo assunto. Nessa direção, saber trabalhar com as fontes é a pedra de toque das práticas de leitura, buscando uma dialética que envolva leitores com a autoria e as fontes dos materiais, indagando posicionamentos e interesses.
Wineburg e Reisman (2015) também defendem a ideia de que os estudantes precisam de estratégias para decodificar os textos que leem, mas que isso é insuficiente se considerarmos que o foco da escolarização básica é a preparação para a cidadania. Os autores discutem como as práticas orientadas de leitura podem ajudar a restaurar a agência dos estudantes. A partir da disciplina de História, Wineburg e Reisman (2015, p. 636) consideram que o movimento da alfabetização científica é, por excelência, saber trabalhar com as fontes e referências, e sugerem que esse trabalho proporciona uma visão do mundo mais ampla, que denominam Weltanschauung, isto é, uma maneira radical de aprender a ler o mundo. Nessa direção, Duhaylongsod et al. (2015, p. 591) sugerem o uso de uma teoria original, intitulada theory of change, cuja abordagem é centrada em qualificar as discussões feitas em sala de aula para promover três habilidades semelhantes às utilizadas pelos historiadores: considerar a perspectiva social, pensando sempre no outro; compreender a linguagem acadêmica; e desenvolver o raciocínio complexo, seguindo e formulando argumentos lógicos, fazendo análises, sínteses e avaliações.
Apesar de complexas, tais habilidades podem contribuir para as práticas de leitura com propósito e para escrita expositiva, mas, também, segundo De La Paz et al. (2017), para ampliar o capital cultural dos estudantes ao ensiná-los a fazer ciências humanas. Nesse estudo com foco na metacognição, foram observadas práticas de alfabetização que utilizaram estratégias de instrução para melhorar a construção dos argumentos históricos nas produções escritas dos estudantes. Durante a instrução, a cada fase, foram fornecidas referências controladas e condicionadas com indicadores de leitura e escrita que permitiram a observação de que parte das dificuldades de substanciar os argumentos reside na compreensão de causa e efeito dos acontecimentos do passado. Nesse sentido, os autores sugerem práticas que considerem estabelecer metas para ler, analisar e planejar o texto produzido, baseadas em contextualizar as fontes primárias, identificar os componentes e a estrutura dos argumentos, considerar as evidências e alegações, planejar o estilo do texto e discutir e avaliar as evidências.
Swanson et al. (2016) chamam a atenção para as estratégias de compreensão das leituras usadas antes, durante e depois do processo, pois, embora muitas estratégias possam ser utilizadas, geralmente os professores pedem para os estudantes lerem e resumirem seções lidas, para depois fazerem algum tipo de explicação. Park (2016, p. 36) defende que a alfabetização crítica do pensamento histórico permite que os estudantes aprendam a interpretar e avaliar o mundo em que vivem, pois pode ajudá-los a ver através dos textos, isto é, como eles são social e ideologicamente construídos. Para tanto, o autor sugere que os seguintes indicadores devem ser observados: entender as diferenças e contradições entre os textos; entender quem escreveu e de onde vêm as fontes; identificar os contextos sociais, políticos e culturais das fontes; e identificar os agentes historicamente envolvidos nas situações estudadas. Park (2016) sugere ainda alguns aspectos para trabalhar a alfabetização científica, entre eles: expandir o que conta como texto histórico e escolher fontes que tenham autoria identificável, desenvolver uma linguagem para falar sobre as diferenças entre o que é o evento e o que são as histórias contadas sobre o evento, explorar com os alunos as diferenças entre os gêneros literários históricos, fazer perguntas sobre a origem das fontes, incentivar a pesquisa em outras fontes, como jornais e mídias sociais, e considerar na avaliação a argumentação.
Learned (2018) afirma que práticas de alfabetização científica podem oferecer caminhos para que estudantes pensem criticamente os textos a que são submetidos, comparando as perspectivas entre períodos sócio-históricos e refletindo sobre seu lugar na história e na sociedade. Para observar como os estudantes davam sentido aos textos, lendo as fontes para responder às questões históricas, a autora usou estratégias gerais de alfabetização a serviço da alfabetização científica, dispostas como um guia com as seguintes perguntas: Qual é a questão que vocês estão tentando resolver? Quais são as informações do documento? Quais são as suas inferências ou conclusões? Quais evidências defendem sua argumentação? Como esse evento impactou na história? O que você achou da leitura?
Meloche et al. (2020) discutem a avaliação crítica das fontes de leitura trabalhadas em aulas de estudos sociais. Seu estudo analisa as estratégias mobilizadas pelos estudantes de uma escola de elite para saber como eles lidam com essa demanda. Após a aplicação de alguns testes que buscaram perceber como os estudantes avaliam suas fontes, os autores concluíram que, no geral, há uma relutância em questionar a legitimidade do que se lê, reforçando a preocupação dos professores com o excesso de informações acessadas sem qualidade. Os testes objetivaram retratar o que tinha de atemporal na informação e sua importância, a fonte, a confiabilidade, a veracidade e a exatidão do conteúdo, além da razão de aquela informação existir. Destacam-se três observações feitas pelo estudo: persistência da avaliação acrítica das fontes, recorrência de fontes pouco confiáveis e ausência de conversas críticas sobre raça e racismo. Sobre este terceiro aspecto, Meloche et al. (2020, p. 191, tradução nossa) destacam que a “alfabetização crítica fornece uma excelente perspectiva para discutirmos como as vozes são privilegiadas - ou desprivilegiadas - em fontes textuais”.
Em relação à escrita, Newman e Rosas (2016, p. 54) sugerem que ela é essencial para medir o envolvimento dos estudantes com a interdisciplinaridade nas humanidades, permitindo que ocupem o lugar de realizadores e criadores de produções, práticas e comunicações que expressem características relevantes da área de conhecimento que está sendo trabalhada. Enfatizam que ser realizador significa evocar nas práticas o compromisso de superar a superficialidade dos fatos e das habilidades exigidas. Observam que a aquisição de vocabulário é componente muito útil para se pensar em formas de melhorar a escrita e a compreensão da leitura. Sobre o uso do léxico, Swanson et al. (2016, p. 215) chamam a atenção para a questão da qualidade em relação à contextualização e à morfologia.
O trabalho de Jaeger (2016) discute como cultivar a imaginação sociológica no contexto da argumentação baseada em evidências. A autora questiona que os currículos, em geral, incluem a leitura crítica e a escrita argumentativa como objetivos do ensino escolar, contudo, na prática, isso nem sempre se realiza. Ele sugere então que o cultivo da imaginação sociológica como forma de compreensão pode ajudar os estudantes a perceberem as estruturas sociais que modelam suas vidas. Jaeger (2016, p. 105) instruiu os estudantes sobre a imaginação sociológica, aplicou testes e depois entrevistou jovens do ensino secundário para analisar como eles desenvolvem a escrita e a argumentação baseada em evidências. Conclui que os estudantes que participaram da pesquisa demonstraram percepção sobre a imaginação sociológica, sendo que 8 de 10 conseguiram escrever produções com argumentos sólidos, com destaque para posicionamentos que falavam de alteridade e cidadania.
Maddox e Saye (2017) versam sobre a questão da escrita em humanidades pelo prisma das tarefas híbridas, incluindo o modo como elas apoiam os estudantes na demonstração de habilidades de pensamento histórico e no foco na tomada de decisão sobre questões sociais. Defendem, como caminho, as tarefas autênticas, que exigiriam dos estudantes a construção do conhecimento empregando processos mais elaborados para responder a um problema. A ideia é que, a partir desse tipo de tarefa, os estudantes percebam e incorporem questões reais, sendo desafiados a demonstrarem seus conhecimentos e compartilharem seus pensamentos por meio da escrita. Os autores afirmam que essas tarefas híbridas demonstram como as narrativas históricas são construídas e, ao mesmo tempo, desenvolvem habilidades analíticas e de raciocínio aplicadas às questões de cidadania, recomendando que as práticas de alfabetização lancem mão de guias, com dicas e sugestões sobre o que deve ser incorporado em cada parte do texto, e que sirvam de andaimes para ajudar os estudantes a alcançarem a complexidade ensejada.
Xuan et al. (2019), ao discutirem como o currículo de geografia pode potencializar a alfabetização científica, definem-na com base em quatro aspectos: o conhecimento disciplinar, que se refere aos fatos, conceitos, princípios, leis, hipóteses, teoria e modelos; a investigação, que se refere às habilidades de analisar e avaliar informações para projetar conclusões; a aplicação e a conexão, que se referem ao uso pessoal da ciência como forma de saber; e os valores e as atitudes, que se referem à visão de mundo, às emoções, às motivações pessoais e ao engajamento em questões morais e éticas.
Lawrence et al. (2019) discutem como projetar práticas de alfabetização científica que sejam envolventes e contribuam para a pesquisa histórica, e enfatizam o papel das fontes primárias e da incorporação do ensino por investigação e resolução de problemas. Defendem que situações de aprendizagem centradas na investigação proporcionam maior interação entre os estudantes e as fontes e materiais autênticos e reais, em vez de livros didáticos e apostilas tradicionais. Cowgill e Waring (2017) buscam avaliar a capacidade de estudantes e professores de uma escola americana de ensino médio em analisar fontes históricas primárias. Para tanto, adaptaram o método de resolução de problemas históricos desenvolvido por Sam Wineburg (1991), cujo propósito é medir a capacidade analítica a partir da leitura de imagens e documentos históricos.
Cowgill e Waring (2017) observam como as pessoas selecionam e constroem significados a partir das fontes e até que ponto conseguem contextualizar, corroborar e ler atentamente as fontes. Os autores fazem uma crítica à formação dos professores, ao identificarem neles a dificuldade de se engajarem em análises profundas das fontes históricas, o que pode explicar parte das dificuldades dos estudantes. Reforçam que a alfabetização deve ocupar-se de desenvolver e aprofundar as formas de análise das imagens e aspectos, melhorar o engajamento com os documentos escritos e estimular os conteúdos, as avaliações e os procedimentos.
Em sentido complementar, Meydan (2017) discute a importância das competências e habilidades desenvolvidas em projetos científicos para que os estudantes aprendam sobre o ponto de vista científico da geografia. O autor parte da premissa de que não é usual a participação de projetos de ciências humanas em feiras científicas, mas defende que eles são ótimos mediadores de questões interdisciplinares, sobretudo se o objetivo é pensar temas que envolvem a relação entre natureza e sociedade. Anyanwu e Le Grande (2017), ao estudarem professores de geografia na Cidade do Cabo, África do Sul, reforçam que o conhecimento dos processos, a causalidade e as possíveis respostas ao problema são pilares da alfabetização científica em ciências humanas.
Isso vai ao encontro do que verificou Middaugh (2019) quando analisou o papel da mídia nas formas de disseminação de notícias falsas, a capacidade de discernimento e o impacto da desinformação no engajamento dos jovens em questões sociais e de cidadania. A autora apresenta uma abordagem crítica em relação à divulgação de informações imprecisas ou imparciais e como isso tem alimentado o que ela chamou de linguagem da indignação, ou seja, a apreensão de que, diante de situações cívicas, os jovens têm dado mais respostas emocionais do que evocado conhecimentos científicos. Middaugh (2019) apresenta uma definição ampla de engajamento cívico dos jovens como algo a ser desenvolvido pela aquisição de compromissos e habilidades sociais de relacionamento que permitam equilibrar a atenção a elementos emocionais ao debater questões sociais no mundo digital.
Horn e Veermans (2019) discutem, a partir das ciências sociais e da educação, como o pensamento crítico pode ser convertido em habilidades para evitar a crença em notícias falsas no Facebook. Tendo como sujeitos do estudo alunos do ensino médio de uma escola internacional finlandesa, os autores aplicaram um teste desenvolvido em Stanford, que é baseado em cinco aspectos: análise da força dos argumentos em uma notícia de Facebook, apresentação de outras fontes similares, determinação do argumento mais forte, avaliação das evidências e comparação com outras fontes. A conclusão geral é que o uso do pensamento crítico nos estudantes finlandeses é preocupante, pois não se verifica a capacidade de raciocinar sobre as informações coletadas na internet.
Gleason (2018) também aborda essa questão de saber como os jovens pensam e se comunicam nas redes sociais. Sua pesquisa é interessante para pensar em indicadores de alfabetização em ciências humanas e sociais, pois revela algumas pistas de como os jovens socializam nas atividades realizadas no contexto digital, em especial no Twitter. O autor reforça que pensar a partir de hashtags pode ajudar os jovens a ressignificar algumas habilidades, tais como reconhecer práticas culturais, saber lidar com distintas produções culturais, estabelecer relações interpessoais, aprender a se relacionar em contextos emergentes, desenvolver práticas públicas e aumentar a consciência metacognitiva.
Na direção do artigo apresentado anteriormente, Cataldo et al. (2019) questionam o que acontece quando estudantes avaliam notícias científicas resultantes de suas buscas no Google. O estudo justifica que o debate atual sobre a integridade e a credibilidade das notícias cria a necessidade de nos atentarmos para como os jovens avaliam os resultados das suas pesquisas. Os autores analisaram os diferentes processos envolvidos na busca por recursos e informações, a partir de uma metodologia que envolveu 116 estudantes em simulações e tarefas sobre notícias científicas. O estudo buscou perceber qual seria o comportamento da pesquisa, como os estudantes consideraram os recursos e as fontes (úteis, citáveis e confiáveis) e se aquilo era ou não notícia. Os resultados atestaram que, na maioria dos casos, os estudantes do ensino médio se mostraram propensos a encontrar fontes de notícias confiáveis. O problema está na falta de citação dos recursos e na avaliação de sua credibilidade.
A exemplo do trabalho anterior, Hintermann et al. (2020) sugerem que o ensino de geografia pode desempenhar um papel importante ao fornecer aos estudantes algumas ferramentas que ajudam a navegação social em um mundo altamente midiático, onde o fluxo de informações, entretenimento e publicidade se oferece como conhecimento confiável. Nesse ponto, a alfabetização científica em ciências humanas e sociais se confunde com uma alfabetização midiática, uma vez que as próprias mídias consumidas pelos jovens subvertem os conhecimentos geográficos, históricos, sociológicos, etc. Analisando um projeto com estudantes austríacos, Hintermann et al. (2020, p. 124) defendem a alfabetização geográfica como uma busca ativa por três aspectos básicos: resolução de problemas e tomada decisões a partir da interpretação de análises, tecnologias e representações geográficas; compreensão de que as culturas e identidades estão profundamente conectadas com as características físicas e humanas que definem os lugares e regiões; e noção de que os padrões espaciais no planeta sofrem com a ação dos seres humanos.
Sobre essa possibilidade, Siegner e Stapert (2020) defendem que a interdisciplinaridade deve estar presente nos estudos, questionando a falta de uma abordagem mais holística, sobretudo pela contribuição que as humanidades podem oferecer para outras temáticas. Em seu estudo, as autoras examinaram ao longo de um ano práticas que buscaram ensinar sobre as mudanças climáticas por meio da integração entre os currículos de humanidades e ciências. Elas defendem que a aplicação das ferramentas das humanidades na alfabetização sobre mudanças climáticas é essencial para humanizar a discussão, por meio de histórias, narrativas, pensamento crítico e demais estratégias de conhecimento.
Lorimer (2018) discute o desafio de se fazer com que estudantes com dificuldades de leitura ou relutância leiam e aprendam com textos de história e ciências sociais. A partir da noção de engajamento, a autora sugere o uso de simulações com suporte crítico como estratégia de alfabetização, haja vista que elas permitem a tomada de posição, a assunção de riscos, a comunicação de pensamentos e as oportunidades para elaborar perguntas. Essa metodologia ativa e colaborativa é coerente com os objetivos curriculares do ensino de história e ciências sociais, que priorizam experiências destinadas a fomentar o pensamento crítico. Nesse sentido, examinar os resultados que emergem das simulações é fortuito para experimentar que a construção do conhecimento e do significado é um processo ativo social e individualmente. Além disso, a construção do conhecimento é fomentada por ambientes autênticos e reais e pela autorregulação dos alunos, que acontece de forma automediada e autoconsciente. A conclusão é que, para mitigar a lacuna entre a aprendizagem engajada e a instrução baseada em livros de história e ciências sociais, os professores deveriam considerar os benefícios de experiências interativas com as fontes primárias dos documentos, como as simulações de tomada de decisão.
Emran et al. (2020) defendem a compreensão do conceito de “natureza da ciência” como fio condutor do desenvolvimento da alfabetização científica entre estudantes. O estudo questionou alguns estudantes de uma escola em Israel para saber a percepção que eles têm sobre a natureza da ciência. Com base em um questionário que examinou sete constructos fundadores das percepções sobre a natureza da ciência (carga de teoria, criatividade e imaginação, experimentalidade, durabilidade, coerência e objetividade, ciência para meninas e ciência para rapazes), os resultados apresentados por Emran et al. (2020, p. 249) indicam que, apesar de diferenças notáveis nas percepções em relação a esses constructos, verifica-se maior importância dada aos constructos subjetivos - que são os que exprimem a natureza incerta, flexível e sujeita à interpretações que marcam o trabalho científico -, quando comparados a constructos de coerência - que são os que implicam a natureza estável da ciência. Outras duas conclusões importantes são a concordância de que meninos e meninas têm capacidade de se envolver com o trabalho científico e a verificação de que o capital cultural influencia na percepção sobre a ciência.
Yacoubian (2018) argumenta que cidadãos cientificamente alfabetizados estariam mais aptos a se envolver em questões sociais e tomar decisões baseadas nas ciências. Em seu estudo, o autor debate a importância de os currículos escolares reforçarem essa atribuição, e a necessidade da elucidação de alguns fundamentos para se incorporarem os princípios de uma educação científica com vistas à democracia. Sua abordagem caminha em direção ao desenvolvimento de situações de aprendizagem que promovam experiências em que ideologias e narrativas são discutidas criticamente e refletidas sem tabus ou censuras, a partir da prática de discussões deliberativas. Yacoubian (2018, pp. 321-322) argumenta que a educação para a tomada de decisão sobre as questões sociais, baseada nas ciências, deve considerar duas ações. Primeiro, ela deve oferecer amplas possibilidades de experimentação, a partir de práticas que envolvam questões sociais relevantes a serem pensadas cientificamente. Como segundo aspecto, ela deve encorajar o desenvolvimento das práticas deliberativas, com ênfase no pensamento crítico, valorizando a igualdade e a justiça social.
Burke et al. (2016) defendem o uso da geografia crítica para promover o engajamento crítico dos estudantes em relação aos espaços públicos. A partir da análise de imagens e mapas, o estudo problematiza experiências de vida dos jovens visando a argumentar que elas são fontes de conhecimento para questionar as desigualdades que os afetam. Em outros termos, os autores defendem a geografia como ferramenta educacional que fomenta o pensamento crítico e a autonomia e possibilita empregar habilidades e conhecimentos para pensar em mudanças nos espaços urbanos. Nesse caso, a alfabetização surge como um instrumento em potencial para pensar e intervir em questões locais. No estudo, Burke et al. (2016, p. 156) pediram que os jovens tirassem fotos, coletassem informações e estudassem mapas para contar as histórias do próprio bairro. Os resultados das suas intervenções demonstram que eles reconhecem a importância do sentido de comunidade e que são cientes das próprias ausências para fomentar isso.
Os resultados de Burke et al. (2016) relacionam-se com a análise que Vargas e Erba (2017) fizeram de um projeto de extensão universitária que visava a letrar estudantes do ensino médio, filhos de trabalhadores latinos, para questões culturais e de cidadania. A ação partia de uma estação de rádio como forma de aprimorar suas habilidades sociais, consciência cívica e respeitos às diferenças culturais, e tornou perceptível o quanto o desenvolvimento da autoconfiança, autoestima e emancipação esteve relacionado à permanência dos participantes no projeto. Os diferentes programas elaborados para o rádio tinham como objetivo a alfabetização acerca de questões fundamentais das ciências humanas, como cultura, etnia, classe, imigração, opressão, preconceito, discriminação, racismo, etc.
Vargas e Erba (2017, p. 209) tabularam a epistemologia da alfabetização oferecida pelo projeto a partir do desenvolvimento de quatro dimensões da competência cultural: consciência cultural, conhecimento cultural, habilidades culturais e prática cultural. Os autores concluíram que produzir os programas de rádio permitiu que os participantes adquirissem habilidades culturais ao desenvolverem algo voltado para informar a comunidade, além de proporcionar conhecimentos e vivências que ajudaram a valorizar a diversidade na sociedade.
Kucan et al. (2018) argumentam que o conhecimento da história local é parte fundamental da alfabetização bem-sucedida dos estudantes. O pano de fundo é o engajamento através de pesquisas sobre questões históricas que sejam culturalmente relevantes para os sujeitos. Os estudantes foram envolvidos em pesquisas com recursos qualificados, cuja orientação era oferecer uma compreensão da estrutura da unidade; levantar questões sobre o local; contextualizar a unidade; oferecer a oportunidade de síntese e discussão; fornecer informações; provocar a tomada de posição e a defesa dos pontos de vistas diferentes; provocar a leitura crítica dos textos; aprender sobre cidadania e participação; e pensar em usos práticos dos conhecimentos e avaliar sua pertinência. Ao final, avaliaram que o encadeamento de tais aspectos permitiu que os estudantes tivessem muitas oportunidades de apresentar suas reivindicações, defendê-las e aplicar o conhecimento em situações do mundo real, se aproximando do trabalho da historiografia.
Gadsden et al. (2019) também chamam a atenção para as questões associadas ao conhecimento cívico dos estudantes, sobretudo quando requerem a associação com as temáticas relacionadas à identidade (etnia, raça, classe e gênero). O estudo qualitativo apresenta quatro narrativas de jovens negros de uma escola pública de ensino médio, para refletir sobre como a aprendizagem pode os encorajar a investigar e avaliar suas experiências pessoais. A questão central é avaliar a possibilidade de alfabetização sobre questões sociopolíticas e identitárias. Gadsden et al. (2019, p. 85) demonstram que as entrevistas com os jovens expressam que o conhecimento deles acerca das questões socioculturais vem da própria experiência nas comunidades, escolas e espaços públicos, e que os debates feitos em situações de aprendizagem investigativas aumentam a compreensão sobre as dimensões históricas, sociais e políticas, e aguçam a análise das estruturas que perpetuam as desigualdades.
Após discutirem algumas questões sobre as estruturas sociais e o conhecimento cívico, Gadsden et al. (2019) concluem que os depoimentos desses estudantes demonstram que a história de vida pode ser o estimulante para o engajamento em questões sociais, participação política, questionamento de privilégios, crítica da marginalização e do racismo e avaliação de suas próprias ações em relação às mudanças. O estudo de An (2020) caminha no mesmo sentido; ela analisa produções escolares de sua própria filha para questionar os chamados white social studies, problematizando a forma como o racismo e as questões raciais são abordadas pela disciplina de história. A autora aborda o desenvolvimento de uma cultura racial no ensino escolar no estudo, chamando atenção para quatro aspectos importantes para pensarmos a alfabetização: o pertencimento, a percepção da invisibilidade, o questionamento da branquitude hegemônica e a interrupção das narrativas normativas.
Essa é uma questão desafiadora para a alfabetização crítica em humanidades. Com ela no escopo, Wilder e Msseemmaa (2019) iniciam sua reflexão dizendo que todos os estudantes merecem práticas educativas que ofereçam textos e reflexões que os auxiliem a aprofundar sua consciência sobre os mecanismos de opressão e as desigualdades, e que a alfabetização científica é um caminho profícuo para isso. O estudo acompanha uma jovem estudante secundária na Tanzânia, para observar as possibilidades de conscientização a partir das práticas orientadas para isso. Eles observam que, no contexto da Tanzânia, e considerando toda a herança neocolonial, é imperativo que a educação escolar pratique uma pedagogia responsiva e humanizadora. Para tanto, sugerem uma abordagem sinérgica da alfabetização, para ampliar a experiência, a prática e a participação dos estudantes.
De inspiração freiriana, essa abordagem se apoia no imbricamento de dois aspectos, o cognitivo e sociocultural, como indicadores para práticas que ofereçam uma visão crítica das estruturas de poder, com foco na conscientização sobre as injustiças e falsas narrativas que os afligem. Wilder e Msseemmaa (2019, p. 482) concluem, a partir do caso da jovem estudada, que, mesmo diante de um contexto desfavorável, cercado de vestígios coloniais e opressão neocolonial, foi possível observar traços de consciência crítica e consciência contemplativa a partir da alfabetização. É pensando nessa visão geral sobre a alfabetização científica evocada, como o envolvimento dos estudantes em complexas questões sociais ligadas aos fenômenos científicos, que Kinslow et al., (2019) buscaram avaliar os ganhos em relação ao pensamento crítico, o raciocínio formal e informal, a tomada de decisão e a argumentação. A questão sociocientífica sobre a qualidade da água em um ecossistema local buscou verificar o impacto e os ganhos que a alfabetização científica sobre o contexto ambiental poderia trazer para o desenvolvimento de habilidades de pensamento crítico em estudantes de uma escola rural americana. O estudo constrói sua própria tipologia centrada no desenvolvimento das seguintes competências: complexidade, tomada de perspectiva, investigação e ceticismo. Os participantes responderam dois cenários de avaliação, um antes e outro após o curso, para que a progressão e o ganho fossem percebidos, além da análise dos portfólios.
Os resultados de Kinslow et al. (2019, pp. 395-398) demonstraram de que forma e em qual hierarquia os estudantes usaram as quatro competências em seus registros e nas declarações finais sobre o tema, revelando o ceticismo como a competência menos transformada e a complexidade como o maior ganho. Concluem dizendo que houve melhora nas competências associadas ao pensamento crítico sobre o tema, além da oferta de insights sobre como os estudantes foram se alfabetizando cientificamente e construindo os sentidos em torno da questão proposta.
Discussão
Examinando os trabalhos, observamos que a natureza da alfabetização científica em ciências humanas se edifica a partir de cinco pilares: compreensão profunda da leitura; escrita, argumentação e alegação de circunstâncias; relativização das informações; conscientização intercultural; e tomada de posição. Tais pilares se desdobram em nove habilidades: extrair detalhes importantes dos materiais estudados; sintetizar os argumentos com coerência; compreender os pontos de vista apresentados; estabelecer empatia; conectar informações e conhecimentos prévios; aplicar critérios de justiça/injustiça; generalizar evidências e fazer distinções; usar a dialética do raciocínio; e fazer conexões com o mundo real.
Observamos também que, em relação às práticas, destacam-se preocupações com a transmissão dos conhecimentos específicos, isto é, a apresentação e a discussão dos conceitos e conteúdos consolidados no ensino escolar das ciências humanas, além das temáticas atuais consideradas como relevantes. É notável também a apresentação de situações reais identificadas como complexas e o estímulo à resolução mediada pela aplicação das teorias, a busca e a valorização da interdisciplinaridade, o trabalho investigativo com o uso de recursos metodológicos específicos das humanidades e, por fim, a ruptura com a dicotomia entre teoria e prática a partir da valorização das experiências concretas, mais do que a simples descrição das categorias e fenômenos.
Seguindo um caminho organizado por esses pilares e preocupações, a formação ensejada que transparece nos achados da pesquisa objetiva não apenas o domínio das ferramentas conceituais, mas também vislumbra tanto requalificar a finalidade do ensino e fortalecer uma visão sobre a educação escolar baseada em valores quanto consolidar as práticas como lugar da experiência formativa. Tais objetivos nos sugerem a problematização da oposição clássica entre subjetivismo e objetivismo na ação educacional, no sentido da criação de situações de aprendizagem centradas no planejamento de práticas e na construção de uma densa cultura das humanidades, orientada pelas conexões entre o mundo vivido por quem aprende e os conhecimentos científicos. Sobre a noção de prática utilizada neste artigo, partimos do entendimento de que se trata de atividades problematizadoras mediadas pelas abordagens científicas e por conhecimentos específicos necessários para fomentar as reflexões sobre o processo de ensino e de aprendizagem e o pensamento crítico e os valores ligados à cidadania (Duschl, 2008; Jaeger, 2016).
Ford (2015, pp. 1041-1042, tradução nossa) também reforça a ideia das práticas como obje- tivo orientador da alfabetização científica. Diz ele que, na educação escolar, “está fora de alcance pensar e agir cientificamente como os cientistas fazem”, contudo admite-se que o desenvolvimento de práticas pode fomentar “maneiras poderosas de raciocinar e agir que captam o que é particular sobre a ciência - maneiras de raciocínio e ação que desenvolvem afirmações de conhecimento confiáveis”. Nesse ponto, coloca-se uma questão que é decisiva para nosso propósito, que é saber o que se está chamando de científico no contexto da escolarização básica. Na literatura encontram-se variações sobre o tema, mas, em sua maioria, há a negação de um tipo de “método científico” que direciona o aprendiz intuitivamente para a verdade. Segundo Ford (2015), esse é um ponto de atenção para que não haja a naturalização do privilégio epistêmico da ciência e sua supervalorização em relação às outras linguagens e saberes formais e não formais.
Sobre esse assunto, Jiménez-Aleixandre e Crujeiras (2017, pp. 71-75) colocam duas questões que são importantes para a reflexão sobre os limites e possibilidades da alfabetização científica na educação básica: Como podemos promover a participação dos estudantes nos objetivos epistêmicos da ciência? Como as práticas científicas são realizadas em sala de aula? Para responder a primeira, as autoras afirmam que, além das preocupações conceituais, há de se prestar atenção aos detalhes epistêmicos e à dimensão social da educação. Dessa maneira, há ênfase na noção de práticas, proporcionando uma visão da ciência como um conjunto de procedimentos mediados por um discurso de construção do conhecimento científico a partir de sua interação social, promovendo racionalidade e pensamento crítico. Em relação à segunda questão, os autores afirmam que os programas escolares precisam engajar os estudantes por meio de investigações, reflexões e práticas.
Mais que uma descrição dos fenômenos sociais ou abordagem dos problemas do senso comum, o que vimos foi um arco de investigações que colocam a questão do agir. Ainda sobre o agir, há o entendimento de que podemos conceber formas de instrução que oferecem um tipo de poder intelectual e habilidades que permitam o reconhecimento dos problemas sociais, a avaliação das causas e correlações, o desenvolvimento de posições, a argumentação, o debate de ideias e a tomada de posição. E é isso que nos permite visualizar a imagem da alfabetização científica em ciências humanas como uma prática orientada pelo pensamento crítico e ético e o possível engajamento em temas sociais e de cidadania, constituindo um caminho profícuo para as humanidades como saberes ativistas.
Duschl (2008, p. 286) enfatizou que a alfabetização científica pode ser entendida também como uma prática cultural, desde que equilibre os três objetos de aprendizagem - conceitual, epistêmico e social - e que seja possível legitimar um ensino sobre “como” e “por que” em detrimento de um ensino sobre “o que”. O argumento é que essas diferentes aprendizagens devem estar imbricadas e ocorrer simultaneamente durante os processos de ensino e aprendizagem, fato que requer novas formas de conhecimento a serem levadas para as conversas em sala de aula.
A ideia de que a alfabetização científica seja mediada pelos aspectos conceituais, epistêmicos e sociais é sugestiva para nossa reflexão acerca das ciências humanas. Isso porque ela nos permite refletir sobre como estruturar os momentos de práticas, procurando sempre a criação de interfaces entre os processos cognitivos, os recursos, as estratégias, as atitudes e a avaliação, favorecendo a contextualização mais adequada sobre como o conhecimento é comunicado, representado, enga- jado e debatido.
Considerando que os estudantes podem ser avaliados como cientificamente alfabetizados quando seus conhecimentos, habilidades e atitudes lhes fornecem certa autonomia de pensamento, fundamentam sua comunicação e favorecem seu envolvimento com as questões sociais, éticas, políticas e culturais, é possível depreender dois aspectos: por um lado, temos que pensar em indicadores que possam medir a expectativa versus a realidade da situação de aprendizagem; por outro, devemos refletir sobre atributos que são pensados e esperados para o desenvolvimento intelectual do pensamento crítico dos estudantes.
Berland e Hammer (2012, p. 90), ao discutirem sobre “quando” e “por que” os estudantes se envolvem em práticas argumentativas que demandam os seus conhecimentos científicos, chamam atenção para a necessidade de vigilância epistemológica na estruturação das práticas, haja vista a iminência do que categorizam pseudoargumentação, nome atribuído pelos autores ao momento em que os resultados da educação se expressam mais em consonância com as expectativas dos professores do que como construção de conhecimento. Sobre a capacidade dos estudantes de desenvolver e avaliar argumentos, isto é, a distinção entre exibição processual (fazer a lição) e diálogo científico ou argumentação (fazer ciência), Jiménez-Aleixandre et al. (2000, p. 783) analisam conversas dos estudantes sobre determinado conteúdo científico, observando, por exemplo, operações epistêmicas, uso de analogias, relações causais e apelo à fundamentação, e concordam que o essencial para a argumentação é o movimento da evidência para a explicação, reforçando a preocupação sobre “o que conta” como explicação.
Alguns dos nossos achados revelaram a dificuldade de fazer com que o envolvimento dos alunos não seja superficial, sugerindo que a forma de instruir e incluir os estudantes deve oportunizar a busca pelo conhecimento, sendo sempre acompanhada de saberes que evoquem o processo de aprendizagem. Para melhorar o entendimento sobre a ideia de raciocínio científico na educação escolar, Kind e Osborne (2017) recuperam o debate sobre a inclusão de hábitos do trabalho disciplinar da ciência e sua proeminência na contemporaneidade, mas ponderam que se faz necessário saber “o que queremos” com eles.
O estudo demonstra como a ênfase conteudista, os problemas na avaliação formativa, as demandas equivocadas das avaliações externas em larga escala, as políticas de accountability e a falta de objetivos de aprendizagem mais coerentes contribuíram para fragilizar o uso da ciência como linguagem na escola. Para os autores, “o resultado é uma lacuna substancial entre os objetivos da educação científica e a realidade das salas de aula, de tal forma que tanto as ciências quanto os estudantes saem prejudicados” (Kind & Osborne, 2017, p. 1, tradução nossa).
Kind e Osborne (2017) acrescentam ainda uma crítica aos estudos que têm menosprezado e distorcido as realizações das ciências “da” e “na” escola ao inferiorizar o trabalho científico, criando obstáculos à sua realização e possível contribuição cultural. Pelas razões anteriormente apresentadas, defendem que não há como falar de uma forma única de raciocínio nas ciências, o que sugere maior vigilância para evitar as simplificações.
Segundo Stroupe (2015, p. 1036, tradução nossa), é preciso evitar memorização de informações e valorizar as particularidades individuais, pois apenas expor os estudantes às definições da prática científica ou observando a realização de atividades cuja preocupação é reproduzir o cânone “não é o mesmo que oferecer oportunidades para os estudantes aprenderem a prática científica, envolvendo-se no autêntico trabalho disciplinar ao longo do tempo”. Assim, ao se pensar a ciência como uma linguagem, a alfabetização científica seria o momento de restauração da agência para o interlocutor, no sentido de ir além de uma leitura que se encerra em si, e de impulsionar o leitor para buscar novas fontes e referências, estimulando a contextualização do que se lê e aprende.
E por essa razão é que Diáz (2018, p. 20, tradução nossa) defende uma mudança de mentalidade que considere a alfabetização científica como uma missão da escola para alfabetizar a sociedade, haja vista a consideração de que “a democracia necessita cidadãos que entendam os problemas científicos e tecnológicos para poder escolher entre os diferentes projetos de sociedade apresentados pelas diferentes opções políticas”. Tal argumento corresponde à percepção de Sasseron e Carvalho (2011, p. 75) de que, ao longo dos anos, cresceu a preocupação em fortalecer a alfabetização científica na formação básica, respaldada pela “necessidade emergente de formar estudantes para atuação na sociedade atual, largamente cercada por artefatos da sociedade científica e tecnológica”. Isso sintetiza bem a discussão sobre a percepção social da ciência, que simultaneamente reforça o desafio contemporâneo de operacionalizar e validar a alfabetização científica na educação básica.
Considerações finais
A racionalidade que impregna o debate educacional contemporâneo no Brasil, entre tantas coisas, tem relativizado o lugar das humanidades na formação básica das juventudes, o que coloca uma interrogação acerca da continuidade de seu ensino escolar a médio e longo prazo. Contudo, apesar de todas as dificuldades que tal circunstância condiciona, as ciências humanas continuam lutando inexoravelmente para se garantirem como componente curricular, e mais, seguem investigando as possibilidades de que seu ensino possa, de alguma forma, auxiliar o desenvolvimento de uma linguagem que misture conhecimentos científicos e acadêmicos com atitudes e engajamentos, de forma a mediar a leitura de mundo e as experiências concretas públicas e privadas de quem as estuda. Isto é, fala-se de uma forma de ensinar e aprender com vistas ao uso sociocientífico do conhecimento escolar, mediando a relação entre educação, ciência e cidadania, e consolidando uma noção particular de sucesso escolar. É nessa direção que muitas pesquisas científicas/acadêmicas têm sido feitas.
Contudo, para imaginarmos um “uso social do conhecimento escolar”, temos de considerar também os significados que a escola e o próprio ato de aprender têm para os estudantes. Por isso, cabe não eliminarmos da discussão sobre a alfabetização científica a questão sociológica de saber “como” quem aprende se relaciona com o saber. Esse é um ponto-chave, pois, além de englobar fatores psicológicos, culturais e sociais do sucesso ou do fracasso escolar de um indivíduo, também permite questionar quais são os conhecimentos essenciais para a vida e quem decide isso. Por essa razão, para arguirmos o que indica que determinado sujeito se apropriou de uma linguagem ou de objetos do conhecimento, não bastam apenas indicadores, há também que se colocar em perspectiva o significado e a competência para considerarmos como o indivíduo percebe a própria aprendizagem, o que pode remeter a história de vida, expectativas, acessos e privilégios, etc.
Se aprender é concebido como o domínio de uma atividade engajada no mundo que não pode ser separada da prática, da atividade, do domínio, e muito menos do simbólico, a relação com o saber nunca é abstrata. Pudemos conferir que a alfabetização científica em ciências humanas enxerga a possibilidade de contribuir para um mundo em mudança, onde a sua noção se encontra com a cidadania e a inclusão social via conhecimento científico. Contudo, avaliar seus efeitos desejados é extremamente difícil e depende não apenas da forma como se dão o ensino e a realização das práticas, mas também das condições socioeconômicas e culturais de quem aprende, da estrutura das escolas e da formação dos professores, dentre tantas outras variáveis.