A ANSIEDADE MATEMáTICA (DORAVANTE AM) é UM FENôMENO ESTUDADO DESDE 1957, quando Dreger e Aiken Jr. apresentaram o conceito de ansiedade ao número (Dowker et al., 2016). Tal fenômeno define-se a partir das reações emocionais negativas desencadeadas em alguns indivíduos quando confrontados com a matemática, seja em contexto acadêmico, seja na vida cotidiana. De acordo com Ashcraft (2002), tais reações podem influenciar o desempenho matemático do indivíduo, sendo a esquiva um comportamento comum nos sujeitos afetados pela AM. Além da esquiva, a autopercepção negativa também se manifesta nesse grupo. Devido a esses fatores, muitas pessoas com AM acabam, em virtude da esquiva, sendo expostas a menos aulas de matemática, tanto na educação básica, por meio da recusa à realização das atividades, quanto no ensino superior, quando escolhem profissões que não exigem a realização de cálculos nos cursos de formação. Disso decorre um pior desempenho na área, o que retroalimenta a AM (Carmo & Simionato, 2012). A percepção de reações fisiológicas desagradáveis, tais como sudorese, taquicardia, dores no estômago, quando em contato com matemática, também se apresenta como característica do quadro de AM (Carmo & Ferraz, 2012).
Referindo-se à aprendizagem matemática, Geary (2001) apresenta determinados domínios quantitativos sobre numerosidade, ordenação numérica, contagem e aritmética simples como habilidades cognitivas biológicas primárias. Em linhas gerais, trata-se de referências quantitativas que indicam nossa sensibilidade à numerosidade desde as primeiras semanas de vida. Contudo, as competências matemáticas exigidas socialmente, referindo-se, em especial, às sociedades pré-industriais e industrializadas, vão além dessa sensibilidade à numerosidade e às habilidades primárias. As denominadas habilidades secundárias, não sendo biologicamente postas, têm seu desenvolvimento dependente de práticas escolares específicas e constituem um constructo social e cultural, estando, portanto, diretamente relacionadas à linguagem.
A aprendizagem das habilidades secundárias implica relações de ensino-aprendizagem determinantes no processo de socialização das produções humanas constitutivas das sociedades contemporâneas, interferindo na prática dos sujeitos, em termos de empregabilidade, produtividade e poder aquisitivo (salários) (Geary, 2001). Assim, ao tecermos análises quanto à aprendizagem matemática e, nesse campo, à AM, estamos discutindo até mesmo a relação que os sujeitos estabelecem com a sociedade e com a cultura, com a prática que produzem a partir das relações que medeiam.
Nesse contexto, há uma relação entre o uso da matemática na ocupação profissional dependente de diploma universitário e os altos salários de entrada e subsequentes (Geary, 2001). A exigência da matemática à ocupação profissional pode confluir para determinados constructos de valorização social, conferindo à temática relevância para a sociedade como um todo.
Estudos sobre AM têm buscado aprofundar formas de reversão desse padrão de reações - fator limitador das aprendizagens matemáticas e inibidor do comprometimento com carreiras profissionais exigentes de maiores habilidades matemáticas (Mendes & Carmo, 2011). Resultados positivos vêm sendo apresentados em estudos que buscam analisar exercícios de respiração, escrita expressiva, com objetivo de minimizar sentimentos de ansiedade e potencializar o controle atencional, a partir de recursos cognitivos e realização de tarefas propostas (Figueira & Freitas, 2020).
Escalas do tipo Likert são utilizadas na identificação de graus diferenciados de AM. Tais instrumentos permitem, por meio de declarações dos respondentes, verificar como se sentem com relação a essa área do conhecimento bem como quanto ao seu desempenho nela. Por meio de estudos que envolvem a aplicação de tais escalas e outros instrumentos, diversos autores têm se debruçado sobre investigações buscando identificar os fatores contribuintes como idade, cultura e nacionalidade, relação entre gênero e AM, relação entre AM e desempenho em matemática, e fatores genéticos atrelados à AM (Dowker et al., 2016).
O papel da trajetória escolar do aluno e de como o ensino de matemática se processa nas escolas é reconhecido como elemento que pode contribuir para o quadro de AM, uma vez que o controle aversivo do comportamento é amplamente utilizado, valendo-se de estratégias que levam os estudantes à esquiva (Carmo & Ferraz, 2012; Ramirez et al., 2018). Estudos apontam que os professores da educação básica reportam altos níveis de AM, o que pode contribuir para o desenvolvimento da AM em seus alunos em decorrência de suas práticas pedagógicas. Algumas estratégias têm sido pensadas para mitigar os efeitos da AM, como, por exemplo, o aumento das habilidades matemáticas, bem como a modelagem de reações positivas com relação à matemática (Ramirez et al., 2018).
Em uma busca inicial de trabalhos sobre o tema, levantou-se a questão de como a família é situada com relação ao fenômeno, verificando-se que é um tema pouco abordado no levantamento realizado. Em virtude da compreensão do papel fundamental que a família desempenha na trajetória escolar das crianças na educação básica, entendemos ser necessário compreender o que já se conhece acerca da relação entre família e AM, buscando averiguar se essa percepção inicial de que o tema é pouco abordado se mostra real após uma busca mais detalhada das produções publicadas sobre o tema.
Nesse sentido, as perguntas que orientam o trabalho são:
O que tem sido analisado no campo acadêmico sobre a interlocução entre ansiedade matemática, família, estilo parental e status socioeconômico?
Quais os principais resultados das pesquisas nessa área que possibilitam a compreensão da relação entre AM e as categorias família, estilo parental e status socioeconômico?
Quais são as problemáticas nesse campo de análise que podem fundamentar novas pesquisas na área?
Quais as possíveis contribuições da temática para o campo da psicopedagogia?
Tais perguntas nos levam aos objetivos gerais do presente estudo, que podem ser descritos da seguinte maneira:
Compreender, a partir de revisão sistemática (RS) do conhecimento, o contexto das discussões sobre AM, família, estilo parental e status socioeconômico;
Analisar os principais resultados das pesquisas nessa área de interlocução, atentando-se para a relação entre as categorias, bem como para as intervenções e mediações possíveis de serem identificadas, descritas e analisadas;
Discutir as contribuições deste estudo para a área da psicopedagogia, buscando o diálogo entre as análises da RS e os processos possíveis de intervenção e mediação no processo de ensino e aprendizagem, em suas múltiplas determinações educacionais, psicopedagógicas e sociais.
Como objetivos específicos, podemos elencar:
A partir de RS, analisar as pesquisas na interdisciplinaridade entre ansiedade matemática, família, estilo parental e status socioeconômico, dentro do quadro temporal dos últimos vinte anos (século XXI), buscando compreender o que tem sido discutido na área de interlocução entre as categorias de análise;
Organizar e discutir dados bibliométricos dos artigos delimitados na RS, objetivando melhor fundamentar nossa compreensão das pesquisas sobre o tema;
À luz da RS, compreender os aspectos relacionais entre AM, família, estilo parental e status socioeconômico, buscando, em um primeiro momento, analisar cada um dos conceitos em si e, posteriormente, a correlação com a ansiedade matemática;
Discutir essas categorias de análise na mediação entre o ensino e a aprendizagem da matemática, com ênfase em como contribuem para o entendimento dos processos analíticos e interventivos em ansiedade matemática;
A partir da RS, identificar, descrever e analisar possíveis intervenções e mediações no campo da ansiedade matemática, com foco nas contribuições das análises sobre família, estilo parental e status socioeconômico;
Analisar as possibilidades de aprofundamento dos estudos da AM, verificando até mesmo outras categorias de análise que possam emergir desse contexto de múltiplas determinações;
Discutir processos de intervenção e mediação à ansiedade matemática como contribuições possíveis à área do conhecimento pedagógico e psicopedagógico, articulando a atuação dos profissionais da psicopedagogia às possibilidades de mediação clínica e institucional.
Metodologia
Este trabalho tem como metodologia de pesquisa a revisão sistemática de literatura. Isso possibilita, de um lado, compreender o campo de pesquisa da temática estudada e, de outro, identificar, selecionar e avaliar pesquisas relevantes nesse contexto analítico.
Os estudos de revisão sistemática exigem uma condução metodológica bem definida, o que incorpora vantagens em relação às revisões bibliográficas, já que possuem critérios claros e identificáveis de busca e seleção de estudos (Oliveira et al., 2006, p. 310). Ou seja, a revisão sistemática “caracteriza-se pela aplicação de estratégias de busca, análise crítica e síntese da literatura de forma organizada” (Costa et al., 2015, p. 2442).
Por meio de buscas em bases bibliográficas eletrônicas (Portal de Periódicos Capes e Web of Science), e a partir de descritores predefinidos (ansiedade matemática, família, status socioeconômico e estilo parental) em três idiomas (português, inglês e espanhol), por tipo de estudo (artigo revisado por pares, publicado em periódico), foram identificados artigos que constituíram a amostra pertinente (np). Foram excluídos dos resultados os artigos cujo texto completo não estivesse disponível e as pesquisas realizadas com níveis de ensino que não compõem a faixa etária atendida pela educação básica (4 a 17 anos, ou seja, da pré-escola ao ensino médio).
A estratégia de busca utilizou o operador lógico (and) para compor a relação entre os descritores, de modo que ansiedade matemática foi a referência de busca, operando com and em relação às demais palavras-chave. Dessa forma, tivemos sempre ansiedade matemática como descritor invariável (dI) operando com and, seguido do descritor variável (dV), nos três idiomas. Destaca-se que os descritores operaram sempre no assunto da pesquisa dos artigos, dentro do recorte temporal do século XXI.
A tabulação dos dados foi sistematizada em planilha Excel, que subdividiu os artigos em três categorias, sendo elas:
artigos pertinentes: contemplam ao menos dois dos descritores preestabelecidos, sendo um deles a ansiedade matemática (dI), obrigatoriamente, cumprindo dI and dV;
artigos aproveitáveis: estão relacionados com a temática, porém não contemplam a estratégia dI and dV;
artigos não aproveitáveis: não contemplam a temática da pesquisa, distanciando-se da proposta investigativa.
Com base na sistematização apresentada, apenas os artigos considerados pertinentes fizeram parte da revisão sistemática da pesquisa. Os artigos aproveitáveis compuseram a leitura bibliográfica, porém não fizeram parte da amostra para revisão sistemática. Os artigos não aproveitáveis foram descartados.
Em termos numéricos, obtivemos, em uma leitura inicial, 17 trabalhos considerados pertinentes, em um universo de 167 artigos encontrados no conjunto dos resultados das pesquisas nas bases utilizadas (Portal de Periódicos Capes - via acesso comunidade federada - e Web of Science) com as combinações de descritores propostas.
Tal categorização foi feita a partir do título do artigo e, quando necessário, partiu-se para a leitura do resumo. Após a seleção inicial, foi realizada a leitura completa dos artigos, visando à confirmação da amostra de textos pertinentes. Depois dessa leitura, notou-se que 5 dentre os 17 artigos selecionados pertenciam à categoria “aproveitáveis” em vez de constituírem a categoria “pertinentes”, como haviam sido classificados no procedimento inicial de análise.
Com a definição da amostra para RS (np), foram realizadas análises de dados bibliométricos, contemplando a tabulação de dados e a elaboração de gráficos dos seguintes temas: autoria, ano de publicação, área de conhecimento dos periódicos, distribuição geográfica das publicações (quantidade por país), metodologia de pesquisa e levantamento das principais referências dos artigos.
Passou-se, em seguida, a uma releitura dos artigos da amostra, dando-se início à análise sistemática dos textos, orientando-se pelas questões norteadoras da presente pesquisa. Para orientação sistemática da leitura da amostra (np), dispusemos de um questionário fechado, com os seguintes questionamentos a serem respondidos para cada artigo. Ao final, sistematizamos os dados encontrados, organizando-os a partir de categorias definidas. A Tabela 1 apresenta as categorias elencadas, bem como as questões norteadoras incluídas em cada categoria.
Categorias de análise | Questões norteadoras |
---|---|
Categoria 1: Ansiedade matemática e família | 1. O artigo contempla relações entre ansiedade à matemática e estilo parental ou ansiedade à matemática e status socioeconômico? 2. Como a relação entre família e ansiedade à matemática é apresentada? 3. É estabelecida alguma relação entre estilo parental e status socioeconômico? Se sim, qual? |
Categoria 2: Resultados/Conclusões e possibilidades de intervenção | 4. As conclusões tecidas nos diferentes trabalhos apontam aspectos similares? Se sim, quais? Se não, em que divergem? 5. Os trabalhos analisados apontam possibilidades de intervenção? Se sim, quais? 6. O que podemos trazer dos resultados que nos permita pensar em intervenções na prática psicopedagógica em suas esferas clínica e institucional? |
Categoria 3: Tendências e lacunas | 7. O que os resultados indicam enquanto tendência? 8. Há trabalhos similares realizados em contextos distintos? Se sim, como se relacionam seus resultados? 9. Há alguma outra categoria que se coloque como fundante nas relações entre ansiedade à matemática e família? |
Fonte: Elaboração dos autores.
Resultados
A amostra final para revisão sistemática, conforme indicado na seção anterior, consistiu em 12 artigos que atenderam aos critérios de inclusão após a primeira análise, de título e resumo, e ainda se mantiveram pertinentes após a segunda análise, de leitura completa dos trabalhos. Compõem a amostra os artigos listados na Tabela 2:
Ano | Título | Autores | Periódico |
---|---|---|---|
2010 | The anti-anxiety curriculum: Combating math anxiety in the classroom | Eugene Geist | Journal of Instructional Psychology |
2013 | From parental involvement to children’s mathematical performance: The role of mathematics anxiety | Rose K. Vukovic, Steven O. Roberts e Linnie Green Wright | Early Education and Development |
2014 | Contextual factors related to math anxiety in second-grade children | Molly M. Jameson | The Journal of Experimental Education |
2015 | Malaysian and Singaporean students’ affective characteristics and mathematics performance: Evidence from PISA 2012 | Lei Mee Thien e Mei Yean Ong | Springer Plus |
2015 | The influence of socioeconomic status, self-efficacy, and anxiety on mathematics achievement in England, Greece, Hong Kong, the Netherlands, Turkey, and the USA | Dilara Bakan Kalaycıoğlu | Educational Sciences: Theory and Practices |
2016 | Understanding the home math environment and its role in predicting parent report of children’s math skills | Sara A. Hart, Colleen M. Ganley e David J. Purpura | Plos One |
2017 | Distinct influences of mothers and fathers on kindergartners’ numeracy performance: The role of math anxiety, home numeracy practices, and numeracy expectations | M. Francisca Del Río, Maria Ines Susperreguy, Katherine Strasser e Viviana Salinas | Early Education and Development |
2018 | A framework for studying the heterogeneity of risk factors in math anxiety | Orly Rubinsten, Hadas Marciano, Hili Eidlin Levy e Lital Daches Cohen | Frontiers in Behavioral Neuroscience |
2018 | Disassociating the relation between parents’ math anxiety and children’s math achievement: Long-term effects of a math app intervention | Marjorie W. Schaeffer, Christopher S. Rozek, Talia Berkowitz, Susan C. Levine e Sian L. Beilock | Journal of Experimental Psychology: General |
2019 | Math anxiety: The relationship between parenting style and math self-efficacy | Moran S. Macmull e Sarit Ashkenazi | Frontiers in Psychology |
2020 | “It’s a skill that can be trained”: How Chinese parents view mathematics and what this means | Angel Mok | New Zealand Journal of Educational Studies |
2020 | Mathematics anxiety: An intergenerational approach | Kiran Vanbinst, Elien Bellon e Ann Dowker | Frontiers in Psychology |
Fonte: Elaboração dos autores.
Após definida a amostra, os primeiros resultados referem-se aos dados bibliométricos, buscando-se levantar um quadro geral das publicações referentes ao tema pesquisado. Tal quadro se constituiu a partir dos dados referentes a ano de publicação, autoria, área de conhecimento dos periódicos, distribuição geográfica das publicações (quantidade por país), metodologia de pesquisa e levantamento das principais referências dos artigos.
No que tange ao ano de publicação, embora o recorte temporal seja o século XXI, a primeira publicação encontrada data do ano de 2010, sinalizando que as discussões acerca do tema são recentes. Ainda, para checar essa hipótese, excluiu-se o recorte temporal e realizou-se novamente a busca, almejando averiguar a existência de trabalhos anteriores. Mesmo nesse cenário, o resultado das buscas permaneceu o mesmo. Percebe-se que o número de publicações por ano, com exceção de 2011, 2012 e 2017, tem se mantido estável, variando de uma a duas publicações anuais. A Figura 1 apresenta a distribuição dos artigos ao longo dos anos.
Observando-se os países de publicação dos estudos, nota-se que há uma prevalência de trabalhos produzidos nos Estados Unidos, com 5 dentre os 12, seguidos de Israel, com 2 trabalhos, e dos demais países encontrados, cada qual com 1 artigo. Destaca-se, ainda, que há apenas 1 trabalho na América Latina e nenhum trabalho publicado no Brasil que atenda aos critérios da busca. A Figura 2 mostra a distribuição geográfica das produções.
Outro aspecto relevante com relação às publicações remete à quantidade de pesquisadores nelas envolvidos. Nesse quesito, há um significativo aumento ao longo do período, indicando que, embora as publicações tenham se mantido estáveis, o número de pesquisadores debruçando-se sobre o tema aumentou de forma significativa. Enquanto em 2010, ano do primeiro trabalho, havia apenas 1 autor, no período seguinte, de 2011 a 2015, encontram-se 8 autores nas publicações. Esse número aumenta ainda mais nos 5 anos seguintes, período de 2016 a 2020, em que 22 autores contribuem nos trabalhos encontrados. Isso sugere que a questão tem se mostrado relevante e pertinente no âmbito dos estudos acadêmicos. Esses dados estão apresentados na Figura 3.
Os trabalhos encontrados distribuem-se entre diferentes periódicos, concentrados em áreas de conhecimento distintas, conforme se evidencia na Figura 4. Cinco trabalhos foram publicados em periódicos da área de educação, seguindo-se, em quantidade, a área de psicologia, com quatro artigos. As outras áreas em que foram encontradas publicações são neurociências, com uma pesquisa, e periódicos multidisciplinares, com dois trabalhos. A prevalência das áreas de educação e psicologia pode ser justificada pelo fato de que a ansiedade é um fenômeno estudado e descrito pela psicologia, mas que, no caso da AM de forma mais específica, pode ter impactos diretos no processo de escolarização. Nesse sentido, a preocupação com tais impactos ou, ainda, a preocupação com elementos da trajetória escolar que possam se manifestar enquanto preditores ou facilitadores do desenvolvimento da ansiedade matemática coloca o campo da educação como possível destinatário das publicações de estudos na área.
Outro aspecto pertinente observado diz respeito às principais referências teóricas utilizadas nos trabalhos encontrados. Tendo em vista que a AM é um fenômeno estudado desde o final dos anos 1950 (Carmo & Simionato, 2012), buscou-se identificar quais são os principais autores tomados como base na discussão do fenômeno. Com esse levantamento, é possível perceber que as concepções que fundamentam os estudos são bem próximas, já que várias referências aparecem em grande parte dos trabalhos. A Figura 5 evidencia os principais autores citados como embasamento nos artigos que compõem a amostra. Faz-se importante notar que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aparece como referencial de destaque, embora não seja um autor, e sim uma organização que também produz e divulga estudos, uma vez que parte dos trabalhos elenca dados e informações a partir da avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).
Por fim, elencaram-se os métodos de pesquisa aplicados nos trabalhos da amostra, conforme consta da Figura 6, buscando-se compreender a natureza de tais estudos, bem como as possibilidades de pesquisa já exploradas na temática em questão. Mostrou-se a incidência do método descritivo associado à pesquisa de levantamento em sete trabalhos (Jameson, 2014; Thien & Ong, 2015; Kalaycıoğlu, 2015; Hart et al., 2016; Del Río et al., 2017; Macmull & Ashkenazi, 2019; Vanbinst et al., 2020). Outros métodos presentes foram: estudo de caso (Mok, 2020); revisão de literatura (Rubinsten et al., 2018; Geist, 2010); revisão de literatura e método descritivo com pesquisa de levantamento (Vukovic et al., 2013); e pesquisa aplicada quase experimental com avaliação de programa (Schaeffer et al., 2018).
Na segunda parte, analisamos os artigos com base nos seguintes tópicos de discussão, como estabelecido previamente:
Categoria 1: Relação entre ansiedade matemática e família;
Categoria 2: Resultados, conclusões e possibilidades de intervenção;
Categoria 3: Tendências e lacunas.
Discorremos sobre cada um dos pontos acima, destacando os resultados apresentados em cada categoria.
Categoria 1: Relação entre ansiedade matemática e família
Nessa categoria, o objetivo foi perceber qual relação os artigos da RS estabeleciam entre ansiedade matemática e família. Nesse processo de análise, destacamos seis tópicos que foram preponderantes nas discussões, conforme mostra a Tabela 3:
Aspectos preponderantes | Artigos |
---|---|
Acadêmicos |
Geist, 2010
Thien e Ong, 2015 Mok, 2020 Vanbinst et al., 2020 |
Afetivos |
Vukovic et al., 2013
Jameson, 2014 Thien e Ong, 2015 Kalaycıoğlu, 2015 Rubinsten et al., 2018 Schaeffer et al., 2018 Macmull e Ashkenazi, 2019 Mok, 2020 |
Ambientais/comportamentais |
Geist, 2010
Vukovic et al., 2013 Jameson, 2014 Hart et al., 2016 Del Río et al., 2017 Rubinsten et al., 2018 Schaeffer et al., 2018 Macmull e Ashkenazi, 2019 Mok, 2020 Vanbinst et al., 2020 |
Biológicos |
Hart et al., 2016
Vanbinst et al., 2020 |
Econômicos |
Geist, 2010
Thien e Ong, 2015 Kalaycıoğlu, 2015 Del Río et al., 2017 |
Sociais | ----- |
Fonte: Elaboração dos autores.
Na Tabela 3, temos que dez dos artigos da RS apontam que a relação entre AM e família está associada aos aspectos ambientais e comportamentais dos sujeitos, considerando o ambiente como o espaço de vivência da família e os comportamentos como as formas com que os familiares interagem e lidam com a matemática no contexto do cotidiano (Geist, 2010; Vukovic et al., 2013; Jameson, 2014; Hart et al., 2016; Del Río et al., 2017; Rubinsten et al., 2018; Schaeffer et al., 2018; Macmull & Ashkenazi, 2019; Mok, 2020; Vanbinst et al., 2020). Para Jameson (2014), os comportamentos e atitudes dos pais com relação à matemática têm um impacto na concepção de autoeficácia da criança. Uma vez que a autoeficácia se relaciona com a AM, é possível que tais comportamentos e atitudes dos pais influenciem a AM em seus filhos.
Rubinsten et al. (2018) apontam, em seu modelo de análise, que se consideram fatores ambientais os sentimentos e ações dos pais, professores e outros agentes sociais no que tange à matemática. Nesse sentido, as relações de tais agentes com a disciplina, seja em termos de segurança ou conhecimentos, podem ser consideradas fatores de risco para AM nas crianças. Hart et al. (2016) inferem uma associação entre a ansiedade dos pais para fazer contas e o desempenho dos filhos, indicando que a alta ansiedade dos adultos impactaria negativamente o desempenho das crianças, quando estas apresentavam maior AM.
Outro aspecto relevante, apontado por oito artigos como preponderante na relação entre AM e família, foi a afetividade (Vukovic et al., 2013; Jameson, 2014; Thien & Ong, 2015; Kalaycıoğlu, 2015; Rubinsten et al., 2018; Schaeffer et al., 2018; Macmull & Ashkenazi, 2019; Mok, 2020). Entendida aqui como sendo a forma de lidar com a matemática em termos emocionais, esses oito artigos destacaram que as emoções que medeiam as relações entre os sujeitos e a matemática são fundamentais na compreensão da ansiedade matemática. Jameson (2014) aponta que o encorajamento, assim como as atitudes e o comportamento dos pais, tem influência significativa nos sentimentos e na relação da criança com a matemática. Mok (2020) assevera que, no domínio afetivo, o papel desempenhado pelas atitudes dos pais é crucial, influindo amplamente na relação que as crianças estabelecem com a matemática e no seu desempenho.
Ainda nesse aspecto da afetividade, Vukovic et al. (2013) apontam que o envolvimento parental pode ser compreendido como atitudes de motivação e comportamentos de suporte que influenciam o bem-estar educacional dos filhos, como uma construção multidimensional. A relação entre AM e família é apresentada como fator importante na prevenção da ansiedade, de modo que a influência parental pode reduzir a AM, principalmente nos conhecimentos mais difíceis da matemática. O que é indicado como fator preponderantemente possível é o suporte familiar, para além da ajuda nas tarefas, o que significa dizer, de acordo com os autores, que a família não precisa se dispor em termos dos conteúdos, mas da motivação, do encorajamento, da segurança.
Quatro artigos apontaram os aspectos acadêmicos (Geist, 2010; Thien & Ong, 2015; Mok, 2020; Vanbinst et al., 2020) e quatro os econômicos (Geist, 2010; Thien & Ong, 2015; Kalaycıoğlu, 2015; Del Río et al., 2017) nas suas análises, sendo os aspectos acadêmicos relacionados à formação e à escolaridade dos familiares e tendo isso como fatores de importância na temática, e os aspectos econômicos referindo-se às condições financeiras objetivas, com base, principalmente, na renda da família. Hart et al. (2016) indicam que fatores socioeconômicos influenciam o ambiente matemático disponível em casa. Famílias com renda menor tendem a ofertar ambientes menos estimulantes. Por outro lado, assinalam os autores, as famílias com menos restrições financeiras e com mães que têm maior escolaridade tendem a disponibilizar ambientes mais ricos, incluindo atividades que envolvam números e habilidades espaciais.
Thien e Ong (2015) consideram, nesses aspectos, que, quanto mais alto o nível de educação dos pais e a formação socioeconômica familiar, melhor será o desempenho dos alunos, levando-se em conta os resultados do Pisa 2012 e o respectivo questionário socioeconômico em Singapura e na Malásia. Geist (2010) considera que crianças com baixo nível socioeconômico geralmente têm pais com menos escolaridade e, nesse sentido, muitas vezes têm atitudes negativas em relação à matemática, indicando aqui fatores acadêmicos na relação com AM.
Associados aos aspectos biológicos, tivemos dois artigos (Hart et al., 2016; Vanbinst et al., 2020). Ambos citam fatores genéticos como parcialmente integrantes da relação AM e família. Vanbinst et al. (2020), por exemplo, mencionam, na definição dos participantes de seu estudo, que serão considerados família apenas pais biológicos, tendo em vista a compreensão de que 40% da variação com relação à AM pode ser explicada por fatores genéticos. Hart et al. (2016) citam que os pais fornecem, além do ambiente de aprendizado doméstico relacionado ao desempenho de seus filhos, seus genes, e essas influências precisam ser levadas em conta ao considerar o papel dos pais em relação à aprendizagem matemática.
Nenhum artigo apontou aspectos sociais (para além da compreensão ambiental/comportamental) como fatores fundamentais na discussão da temática. Aqui, cabe indicar que, por aspectos sociais, consideramos as circunstâncias histórico-sociais determinantes nas objetivações que compõem o universal do gênero humano, às quais o indivíduo tem, ou não, acesso (Giardinetto, 2020). Trata-se da compreensão da individualidade abarcada por múltiplas determinações, e que se constitui nas relações e nas práticas sociais, bem como são influenciadas pela apropriação de objetivações eivadas de valores, conhecimentos, ideias constituídas pela universalidade do gênero humano. Como destaca Oliveira (2001, pp. 3-4), o indivíduo resulta da “relação entre o indivíduo (o singular) e o gênero humano (o universal) se concretizando na relação que o indivíduo tem com a sociedade (o particular)”.
Ao considerarmos as análises que os artigos fazem ao relacionar AM e status socioeconômico, temos o seguinte resultado (ver Tabela 4):
Aspectos preponderantes | Trabalhos |
---|---|
Acadêmicos |
Geist, 2010
Vukovic et al., 2013 Jameson, 2014 Kalaycıoğlu, 2015 Hart et al., 2016 Del Río et al., 2017 |
Afetivos |
Geist, 2010
Vukovic et al., 2013 Jameson, 2014 Thien e Ong, 2015 Del Río et al., 2017 |
Ambientais/comportamentais |
Geist, 2010
Vukovic et al., 2013 Jameson, 2014 Thien e Ong, 2015 Hart et al., 2016 Del Río et al., 2017 |
Biológicos | Del Río et al., 2017 |
Econômicos |
Geist, 2010
Thien e Ong, 2015 Kalaycıoğlu, 2015 Hart et al., 2016 |
Sociais | ----- |
Desassociados/Sem relação entre ansiedade matemática e status socioeconômico |
Rubinsten et al., 2018
Schaeffer et al., 2018 Macmull e Ashkenazi, 2019 Mok, 2020 Vanbinst et al., 2020 |
Fonte: Elaboração dos autores.
A Tabela 4 mostra que seis dentre os artigos relacionam AM e status socioeconômico aos aspectos acadêmicos e ambientais/comportamentais. Thien e Ong (2015), por exemplo, indicam que a performance acadêmica dos estudantes se relaciona indiretamente com o nível de instrução dos pais e com o status socioeconômico da família, entendido pelos autores a partir do critério de renda. Vanbinst et al. (2020) obtiveram como resultado que a AM em crianças se relaciona com a AM materna, e com o nível educacional de ambos os pais.
Foram cinco os artigos que consideraram essa relação em termos afetivos (Geist, 2010; Vukovic et al., 2013; Jameson, 2014; Thien & Ong, 2015; Del Río et al., 2017). Thien e Ong (2015) sinalizam em seus estudos na Malásia e em Singapura (com base no Pisa 2012) que o status socioeconômico dos estudantes e suas características afetivas são aspectos importantes do resultado escolar, o que simultaneamente informa os indicadores educacionais no nível do sistema.
Quatro deles sinalizaram critérios econômicos (Geist, 2010; Thien & Ong, 2015; Kalaycıoğlu, 2015; Hart et al., 2016). Del Río et al. (2017) assinalam que a performance matemática varia, em seu estudo, de acordo com o status socioeconômico. No mesmo sentido, Geist (2010) aponta que as pesquisas na área têm demonstrado que a baixa renda é um fator de risco consistente para o desempenho matemático. As atitudes dos pais para com a matemática e seu nível educacional são fatores que se relacionam com a AM de seus filhos.
A desassociação entre os dois descritores é apontada em cinco artigos, ou seja, esses artigos não indicaram nenhuma associação entre AM e fatores econômicos (Rubinsten et al., 2018; Schaeffer et al., 2018; Macmull & Ashkenazi, 2019; Mok, 2020; Vanbinst et al., 2020). Assim como na Tabela 3, nenhum artigo apresentou análise em termos sociais, como brevemente referenciado.
Categoria 2: Resultados, conclusões e possibilidades de intervenção
Dentre os artigos da RS, sete apresentaram propostas interventivas, como exposto na Tabela 5:
Artigo | Caracterização das intervenções |
---|---|
Geist (2010) | Alterar as formas de compreender o processo de ensino e aprendizagem, entendendo a individualidade das crianças. |
Vukovic et al. (2013) | Suporte familiar, envolvimento parental com atitudes de motivação e influência de bem-estar educacional. |
Thien e Ong (2015) | Didáticas de ensino, estratégias e treinamentos para aumentar a motivação e reduzir a ansiedade matemática. Políticas educacionais de investigação das práticas eficazes, com base no desempenho dos alunos. |
Del Río et al. (2017) | Intervenções com relação às expectativas de desempenho matemático, ansiedade matemática dos pais. Ainda considera os aspectos levantados na definição de políticas públicas de promoção do desenvolvimento matemático. |
Rubinsten et al. (2018) | Programas de intervenção devem considerar o caminho trilhado no desenvolvimento da ansiedade matemática, em sua complexidade, em vez de propor medidas genéricas de redução de ansiedade. Implementação do modelo resposta à intervenção. |
Schaeffer et al. (2018) | Sugerem-se intervenções junto às famílias cujos pais tenham ansiedade matemática, favorecendo as interações criança-pais na relação com a matemática em casa. |
Macmull e Ashkenazi (2019) | O artigo é finalizado sinalizando que o estudo aponta resultados significativos para o diagnóstico e a intervenção, mas não os explicita. |
Fonte: Elaboração dos autores.
No contexto das intervenções, percebemos que a escola e as práticas escolares aparecem como fortes associadas às intervenções em AM. Isso pois as escolas são postas, principalmente, como espaços de aprendizagem de estratégias redutoras de AM e, nesse sentido, são capazes de, a partir de diferentes estratégias e didáticas, transformar a relação entre os sujeitos e a matemática. Como esperado, em função do recorte deste trabalho, a maioria das intervenções considera o papel da família e da interação entre os membros familiares como base para proporcionar uma melhor relação educacional com a matemática.
No que tange ao estilo parental, apenas um artigo aborda a relação entre este e AM (Macmull & Ashkenazi, 2019), discutindo de que maneira os diferentes modos de ação parentais, classificados por diferentes estilos, interferem na relação da criança com a matemática e na presença ou ausência de AM. Os autores apontam que estilos parentais autoritários apresentam uma correlação positiva direta e uma correlação negativa indireta com AM, o que difere da correlação que se estabelece com o estilo parental permissivo, que apresenta apenas uma pequena correlação positiva com AM.
Nessa esteira, temos que os resultados apontaram para a importância da família no desenvolvimento das aprendizagens, como forte suporte motivacional, de encorajamento e de segurança. Assim, fica clara uma tendência no entendimento de que há formas de proceder no contexto familiar para que haja redução da AM.
Categoria 3: Tendências e lacunas
Em linhas gerais, há nas discussões dos trabalhos da RS uma tendência em considerar a AM como uma reação multideterminada, com forte impacto da família e dos aspectos acadêmicos, afetivos e comportamentais dos pais e do ambiente familiar, bem como daqueles associados aos fatores econômicos, tidos como recursos objetivos disponíveis no contexto parental, sem desconsiderar a escola e seus processos de ensino e aprendizagem. Nos estudos não são analisados os aspectos sociais relacionados à AM, como discorreremos melhor nas nossas considerações finais. Todos os artigos sinalizam a necessidade de mais estudos na área.
Discussão
Tendo como referência os artigos da RS, podemos inferir que a maioria deles compreende a relação entre AM e família de forma direta. Porém nenhum dos trabalhos desconsidera que outros aspectos também possam estar associados como preditores da ansiedade matemática nos alunos da educação básica. Nessa relação entre AM e familiares, os aspectos mais relevantes apontados nos artigos incluem, principalmente, fatores ambientais, comportamentais, afetivos, acadêmicos e econômicos.
Nesse contexto de análise, percebemos que não houve, em nenhum dos artigos, uma discussão acerca do conceito de família em termos históricos, sociais e culturais. As concepções de família vigentes nos estudos analisados tomavam-na como pessoas que compartilham o ambiente domiciliar, considerando majoritariamente genitores (ambos ou, em alguns casos, apenas um) e descendentes (pais e filhos). Em sete artigos, o fator socioeconômico foi acrescido, considerando-se a renda familiar e as condições objetivas decorrentes do rendimento, este associado ao vínculo empregatício e à formação escolar/acadêmica.
Contudo, diante da ausência da discussão sobre o conceito de família, expomos que, em diferentes épocas, as famílias são organizadas de modos diferentes, assim como a representação social desse núcleo tem mudanças ao longo do tempo, sendo frágil e debilitada a ideia de uma “família nuclear” - composta por pai, mãe e filhos - como central em um debate como este, em que é justamente sobre família que a discussão é posta.
Nesse campo de análise, para melhor entendermos a família e sua relação com AM, é fundamental que compreendamos que a participação da primeira nos processos de ensino e aprendizagem, e, por essa via, na redução da ansiedade matemática, perpassa pela compreensão de como e por que cada família está organizada da forma como está, e quais as implicações dessa organização na escolaridade dos alunos e alunas.
Há de se considerar, portanto, que, ao deixarem de analisar as famílias em termos históricos e sociais, os estudos não levaram em conta os mecanismos promotores da desigualdade social e atribuíram à família a necessidade de ter posturas e comportamentos para além da sua realidade. Daí a real importância de termos estudos como este em contextos socioeconômicos mais diversos - como no Brasil, por exemplo -, uma vez que a maioria dos artigos da RS são estadunidenses.
Como consequência, observamos as intervenções em AM se organizarem de modo a esperar a contribuição da família ideal, conjugada com uma didática diferenciada em sala de aula (o que é questionável no quadro analítico da formação de professores, estando para além dos limites deste nosso trabalho), deixando de discutir movimentos e ações possíveis diante da realidade em suas múltiplas determinações. Assim, avaliamos que os estudos poderiam considerar que “são objetivações que precisam ser apropriadas, pelo indivíduo, para que possa dominar o sistema de referências do contexto em que vive e, assim, objetivar-se como sujeito ativo e participante das transformações desse contexto” (Oliveira, 2001, p. 3). Ou seja, o indivíduo é resultado da “relação entre o indivíduo (o singular) e o gênero humano (o universal) se concretizando na relação que o indivíduo tem com a sociedade (o particular)” (Oliveira, 2001, pp. 3-4).
Falando especificamente do campo da matemática, para Giardinetto (2020), o conhecimento dominado por um indivíduo depende das circunstâncias histórico-sociais em que este se insere, tendo em vista que o acesso às produções humano-genéricas delas depende, ou seja, é por meio da particularidade (circunstâncias particulares de cada indivíduo) que o singular se relaciona com a universalidade (objetivações que compõem o universal). A família, compreendida em suas múltiplas determinações, poderá ver mais bem delimitadas suas potencialidades diante da real necessidade de superação da sociedade desigual, que tem distribuído de forma não equitativa o acesso aos conhecimentos acumulados no processo histórico de desenvolvimento do gênero humano.
A conscientização dos familiares pode ocupar um papel fundamental no processo escolar das crianças e dos jovens, o que inclui a redução de AM. Tal tarefa pode envolver um melhor entendimento do papel social do conhecimento - em específico o da matemática - e da escola, essa última como espaço privilegiado de ensino e aprendizagem das objetivações humanas, para que haja consciência da importância da frequência, da pontualidade, da participação dos responsáveis nos colegiados e órgãos democráticos da escola, colocando a voz dos familiares nas ações escolares.
Ainda, ao considerarmos a categoria status socioeconômico, percebe-se que os artigos estudados levam em conta, para delimitação desse status, apenas o critério renda, conforme já sinalizado. Nesse sentido, as relações estabelecidas entre família, status socioeconômico e AM consistem na classificação das famílias pelo viés da renda, ou seja, ao olhar para as ligações entre AM e família, isso se faz categorizando-se as famílias por classes de renda (low, medium and high income). Outros determinantes sociais, que se dão a partir da privação de acesso aos bens culturais ou a meios de subsistência, decorrentes de baixa renda, não são apontados. Um único estudo (Vukovic et al., 2013) indica que famílias de baixa renda têm, em geral, menor escolaridade e, portanto, menor possibilidade de ter um ambiente favorecedor do desenvolvimento de habilidades matemáticas.
Tendo em vista as potencialidades da intervenção psicopedagógica, entende-se como caminho a criação de espaços e propostas intencionais de aquisição do senso numérico e de experiências relacionadas ao uso da matemática. Aqui, cabe ainda pensar em oficinas de intervenção junto às famílias, favorecendo uma relação positiva com a disciplina, ainda que não seja de domínio daqueles que compõem o grupo familiar. Isso não significa propor que as intervenções psicopedagógicas deem conta de uma lacuna que se constitui em algo mais amplo, qual seja, a ausência de escolarização e de domínio do saber sistematizado à qual a classe trabalhadora é submetida. Entende-se, sim, como ação pontual possível. A confecção de jogos matemáticos que envolvam o grupo familiar, e a modelagem de seu uso junto às famílias, pode constituir uma ação psicopedagógica válida.
Considerando-se, ainda, as contribuições da discussão apresentada sobre estilo parental, outra intervenção possível consiste na conscientização do estilo parental por parte da família, discutindo-se diferentes formas de agir junto à criança, principalmente no que tange à sua trajetória escolar e à sua relação com a matemática.
Reitera-se que é fundamental o processo de avaliação de cada criança que se apresente para atendimento com queixa de AM. Embora sinalizemos diversas possibilidades de atuação do psicopedagogo, elas só têm sentido a partir da delimitação de um contexto que manifeste as relações aqui apresentadas e estudadas. É essencial que o psicopedagogo tenha um olhar voltado para as necessidades que o sujeito manifesta, sempre em relação com as múltiplas determinações que o colocam nessa situação de necessidade.
Para finalizar, destacamos as categorias analíticas que apareceram nos trabalhos estudados: envolvimento parental, formação acadêmica dos pais, autoconceito, autoeficácia, influência parental, comportamento parental, engajamento e suporte, sentimento em relação à matemática, atitudes parentais, motivação, gênero, contexto econômico, formas de ensino, lição de casa. Contudo, em nossa discussão, destacamos as seguintes categorias como suporte para um aprofundamento dos estudos na área: relações sociais, trabalho (dentro da perspectiva dialética), objetivações humanas.
Considerações finais
Trazemos, em nossas considerações finais, que os estudos analisados focam a relação entre AM e família a partir de uma perspectiva de família ideal, considerando um núcleo familiar que contém os pais e os filhos, não perfazendo uma discussão sobre a concepção de família que temos nos dias atuais, uma vez que esse conceito tem se transformado ao longo do tempo, em termos históricos e sociais.
Sugerimos como processo de intervenção no campo da psicopedagogia o trabalho com os responsáveis das crianças, de modo a trazer a campo uma possibilidade de atuação com foco nas discussões possíveis no que concerne ao contexto real em que a comunidade escolar está inserida. No campo da psicopedagogia institucional, caberia um trabalho de orientação aos professores, voltado para o esclarecimento dos fatores envolvidos na AM, bem como uma formação direcionada ao ensino da disciplina. Trata-se de embasar as intervenções em uma perspectiva histórico-crítica, que procura desenvolver com os sujeitos uma compreensão da matemática como um sistema fruto do trabalho humano, de elaboração e reelaboração, a partir de lutas pela superação das necessidades sociais (Duarte, 1985, p. 155).
Nessa perspectiva temos a possibilidade de, ao trabalhar com os responsáveis, mediar a relação entre AM e família, intervindo em fatores de risco que predizem a ansiedade matemática, buscando construir em cada pessoa uma postura caracterizada pela capacidade de ser sujeito da captação da dinâmica da realidade e de interferir nessa dinâmica como tal. Isso porque, como considera Duarte (1985, p. 155), “a prática de conhecer a matemática é uma parte da prática social como um todo. Então, essa prática pode ser um dos instrumentos de desenvolvimento dessa postura frente à realidade”.
Na direção da compreensão da aprendizagem da matemática, consideramos que seriam necessários mais estudos na área relacionando AM e família, analisando, porém, aspectos culturais, históricos e sociais como forma de melhor articular uma discussão que contemple as múltiplas determinações que embasam as dificuldades em matemática, em especial, a ansiedade matemática.
Sinalizamos, como limitação deste trabalho, que a seleção de critérios de busca que dessem um recorte mais preciso às relações que buscamos, eliminando resultados não pertinentes, acabou por levar à perda de ao menos um artigo. Nesse sentido, embora se trate de um levantamento das produções, outras combinações e descritores podem ser empregados para ampliar o conjunto do resultado encontrado. Dados os limites deste, entendemos que obtivemos as respostas de nossas questões de pesquisa; entretanto reiteramos que é possível e necessário ampliar a busca, valendo-se de outros elementos que complementem os já utilizados.
Ademais, estabelecer categorias também envolve escolhas. Dada a grande quantidade de conceitos empregados nos textos analisados e nossas questões norteadoras, não foi possível abarcar os artigos em sua totalidade, ou seja, em tudo aquilo que eles trazem de discussões acerca do tema. Entendemos que outras pesquisas podem complementar as análises aqui apresentadas, encontrando nexos e relações não exploradas neste estudo.