Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar determinadas práticas culturais e jogos de linguagem, como a Folia de Reis, o Samba Chula e a Loa, entre os povos indígenas Xakriabá, a partir de uma dupla perspectiva. Em primeiro lugar, essas expressões serão consideradas como parte de um repertório simbólico por meio do qual os participantes podem refletir sobre a própria linguagem fora das relações dialógicas cotidianas. Considera-se que a vivência de formas lúdicas e poéticas, que possuem ritmo, melodia e harmonia, é fundamental para o desenvolvimento da memória e da formação de conceitos.
Em segundo lugar, consideramos que a análise dessas práticas pode contribuir para a compreensão do próprio processo de ressignificação do ser Xakriabá, ao dar visibilidade a modos singulares de participação dos diversos membros da comunidade em relações crescentemente complexas. A presença dos mais jovens - formados em um contexto de profundas transformações ocorridas em várias esferas da vida social, marcado pela presença cada vez maior da escrita e da escola - tem efeitos no redimensionamento dos próprios rituais e, de modo mais amplo, da própria identidade Xakriabá. A nova configuração da convivência intergeracional tem implicado, necessariamente, modificações nos modos de fazer e de se inserir nos rituais e em outras dimensões do cotidiano, como reuniões para tratar de assuntos da comunidade, festas de casamento e rituais católicos e também nas práticas pedagógicas em curso nas escolas indígenas. Nesse cenário, a escrita passa a ser concebida pelos mais velhos - que dela, de modo geral, não precisam - como modo de auxiliar os mais jovens no processo de memorização das ladainhas, das rezas, e em seu engajamento nos jogos de versos e em brincadeiras que envolvem habilidades sofisticadas de improvisação, nas quais necessariamente os sujeitos precisam realizar tarefas cognitivas complexas que envolvem a articulação de várias funções psíquicas superiores, entre as quais a memória e a elaboração de conceitos.
O povo Xakriabá, como será detalhado a seguir, ocupa um território de 53.075 hectares, situado no norte do estado de Minas Gerais. Possui uma população de aproximadamente 8.867 habitantes, distribuída em 33 aldeias e subaldeias, e tem uma economia com base na agricultura familiar. Os Xakriabá são predominantemente católicos, apesar de estarem vivendo nos últimos anos grandes modificações em suas vivências religiosas em função da expansão das práticas evangélicas. Embora tenham prolongado contato com não indígenas, possuem características culturais específicas, que os distinguem da população circundante (Brasil, 2010; Guerra, 2010).
O programa de estudos que originou este artigo foi criado com o objetivo de desenvolver atividades de pesquisa ensino e extensão junto aos povos indígenas participantes do projeto de implantação das escolas indígenas do estado de Minas Gerais. Ao buscar compreender problemas conceituais e metodológicos implicados no entendimento dos processos simbólicos relacionados com a apropriação da linguagem escrita e de outros saberes trabalhados na escola, tomou-se como princípio, para a sua realização, a criação de uma educação culturalmente referenciada. Esse objetivo nos colocou, desde o início, diante do desafio de conhecer como pensam, sentem e agem os diferentes atores desse processo educacional.
Neste artigo, busca-se analisar questões relacionadas a práticas culturais não mediadas pela escola e consideradas pelos próprios Xakriabá como significativas no processo de tomada de consciência de sua própria singularidade, além de serem assumidas como referência para se pensar em propostas de implantação da educação indígena em curso nas escolas. As descrições e análises procurarão levar em conta aspectos inerentes aos jogos de linguagem, sua lógica interna, as formas de articulação entre a linguagem oral e escrita e a linguagem musical. Buscamos mostrar a relação entre os sons organizados em melodias, em um campo harmônico, em ritmos, escalas e afinação - bem como as relações sociais entre os indivíduos e os grupos, uma vez que a produção musical depende tanto de produtores, quanto de receptores em contextos socialmente definidos (Pinto, 2001).
A pesquisa foi realizada por meio de observação participante e entrevistas desenvolvidas na aldeia Barreiro Preto, em 2006, em dois momentos de inserção no campo, de aproximadamente dez dias cada. Essa aldeia foi escolhida porque, em anos anteriores de contato com o território, havíamos identificado uma grande variedade de vivências e práticas musicais. Além disso, em termos logísticos, a aldeia localiza-se numa região central da Terra Indígena Xakriabá, de fácil acesso. Por fim, foi nessa aldeia que os pesquisadores construíram os vínculos de parceria, tanto com suas lideranças, quanto com os jovens, as mulheres e as crianças.
Problematização Teórica
Na pesquisa, partimos de uma reflexão teórica que apontava uma dupla necessidade. Inicialmente, buscávamos superar a dualidade entre oral e escrito como forma de nomear as diferenças entre as culturas. Essa busca de superação tem se tornado um esforço comum a várias pesquisas realizadas nas últimas décadas, na tentativa de complexificar as grandes conclusões a que chegaram pesquisadores vinculados à primeira geração de estudos sobre o tema, marcados pela grande divisão (Goody, 1988) entre oralidade e escrita. A segunda necessidade dizia respeito à problematização da centralidade ocupada, nas análises, mesmo em estudos posteriores àqueles realizados pela primeira geração, por apenas duas dimensões da linguagem: a oral e a escrita. Mesmo quando compreendidas de modo não dual e não dicotômico, elas não são suficientes para analisar fenômenos culturais complexos. Ao nos aproximarmos das práticas musicais e poéticas que são vividas pelos Xakriabá, buscamos analisar os cruzamentos e as formas de articulação entre diferentes sistemas semióticos. Partimos, assim, do pressuposto de que a cultura Xakriabá é um universo composto por diferentes linguagens e formas de expressão: oral, escrita, gestual e corporal, pictórica e escultural.
De acordo com Graff (2016), mesmo na contemporaneidade, os estudos sobre letramento continuam buscando superar dicotomias - que continuam a guiar, dividir opiniões e orientar estudos - entre o oral e o letrado, entre o escrito e o impresso, entre o impresso e o eletrônico. Nesse sentido, a quase ausência de pesquisas ricas sobre oralidade e literatura oral pode ser vista como uma marca, ao mesmo tempo, tanto dos limites de muitos esforços interdisciplinares, quanto do "poder das disciplinas" (Graff, 2016, p. 243). O autor propõe uma reconstrução, tanto do conceito de cultura, quanto de escrita, procurando explorar as relações entre eles, ao invés das oposições e dicotomias.
Brockmeier (2002) afirma que não é apenas uma coincidência o fato de ter surgido no início da década de 1960 uma série de trabalhos no campo das ciências humanas que tematizam as relações entre a oralidade e a escrita. Esses trabalhos partem do pressuposto de que existe uma estrita relação entre linguagem, pensamento e cultura e que, portanto, há uma profunda influência dos diferentes sistemas semióticos para produzir e compartilhar conhecimento. A consequência dessas duas ideias, na análise do autor, é a de que houve uma verdadeira revolução nas formas de pensar do ser humano a partir da introdução e do uso de novos sistemas semióticos. A linguagem oral seria responsável pelo surgimento das formas culturais caraterísticas do gênero humano, enquanto a escrita alfabética teria possibilitado o surgimento da lógica e do pensamento abstrato, sem os quais não seriam possíveis a construção do pensamento filosófico nem a revolução científica moderna.
Esses conceitos foram criticados posteriormente, mas o que importa aqui é a ideia intrigante desse autor (Brockmeier, 2002) de que a escrita somente vem a se tornar objeto central de estudos nas ciências humanas no momento em que estava surgindo uma poderosa revolução tecnológica, cujas consequências para o pensamento humano seriam ainda mais profundas. Esse momento seria marcado pela colocação em cheque, pelas profundas revoluções tecnológicas emergentes, da oralidade e da escrita. Nesse sentido, o autor defende a ideia de que, contraditoriamente, a multimodalidade dos sistemas semióticos e de suas múltiplas relações com as formas de pensar e agir dos homens tem a sua origem no mesmo momento em que a escrita surge como objeto central de indagação das disciplinas humanas.
De modo ainda mais instigante, os autores afirmam que essa ideia é uma segunda virada semiótica que amplia e aprofunda o chamado giro linguístico, produzido a partir da obra de W. Humboldt (1767/1835) com profundas consequências para a consolidação da ideia de que as culturas humanas possuem visões de mundo singulares e incomensuráveis, marcadas não apenas pelas diferenças linguísticas, mas por formas singulares de ver o mundo, de construir conhecimento e de compartilhá-lo com as novas gerações. Com outros argumentos, Finnegan (2006) aponta uma importante modificação metodológica e conceitual na obra de Jack Goody. De acordo com a autora, Goody (2012), ao reexaminar as suas interpretações a respeito da narrativa do Bagre Branco, que faz parte do ritual de iniciação dos Lodagaa e é composta por mais de 6.000 linhas de transcrição, começa a compreender uma questão que pode parecer simples, mas para a sua obra representou uma grande transformação teórica.
O mito, que em seus estudos do início da década de 1970 (Goody, 1988), era entendido apenas por intermédio da análise das palavras transcritas no papel, passa a ser compreendido, principalmente a partir do uso do gravador - e, mais recentemente, das câmaras fotográficas e de vídeo -, pelos antropólogos, como um momento muito mais complexo e rico. Em primeiro lugar, foi possível compreender a existência, no momento da recitação, de um grande número de outros participantes: líderes, anciãos, guias, parentes de primeiro e segundo graus, e outros assistentes. Do mesmo modo, outros fatores passaram a ser levados em consideração, como as melodias, os ritmos dos xilofones e dos tambores, a dança, a comida, a bebida etc. Além disso, o uso de novos recursos tecnológicos possibilitou compreender que o mito sofre mudanças constantemente: uma única recitação não pode ser compreendida como "[…] uma chave única para a interpretação de uma cultura" (Goody, 2012, p. 93), pois, para autor, o "[…] mito não destranca uma única porta, porque ele existe no plural, mudando radicalmente com o passar do tempo" (Goody, 2012, p. 93). A variedade de versões das narrativas dos mitos feitas para várias audiências mudou a sua concepção a respeito das limitações mnemônicas e cognitivas das chamadas culturas predominantemente orais. A partir de uma rica descrição da cerimônia, dos eventos que compõem o processo de iniciação, compreender o mito apenas como uma prática oral não constitui uma simples limitação, mas uma compreensão equivocada dos significados do ritual para os seus participantes. Essa nova leitura feita por Goody mostra o que Finnegan chama de multidimensionalidade da expressão oral. Para a autora, a oralidade deve ser compreendida em suas múltiplas dimensões e não apenas pela própria palavra. Essas outras dimensões, como os aspectos visuais, sinestésicos, acústicos, envolvem não apenas as formas e as entonações do discurso oral, mas todos os sons que o circundam. Para Finnegan (2015), essa abordagem produz uma perspectiva mais ampla e mais realística de todos os fatores que estão envolvidos na expressão oral, do que o modelo que centra sua análise nos aspectos estritamente linguísticos.
A abordagem multimodal da expressão e da comunicação oral nessa nova perspectiva apontada por Goody (2012) tem profundas consequências para todas as disciplinas, mas, sobretudo, implica numa nova concepção de linguagem como ação, e não apenas como um sistema de representação e comunicação do pensamento. A linguagem oral não deve ser compreendida como um sistema autônomo de signos que podem ser tomados de forma independente, mas como um modo de ação social criado pela interação dos agentes humanos num determinado contexto (Finnegan, 2006).
Essa nova abordagem questiona, assim, as relações estreitas entre linguagem e cognição, entre linguagem e racionalidade, e concebe que a comunicação humana deve ser apreendida por meio de uma multiplicidade de aspectos contextuais: rituais, artefatos, gestos, sons, ritmos, costumes, vestimentas, pinturas etc. Essa perspectiva teórica e metodológica implica, assim, em uma visão mais ampla da oralidade e de sua relação com a escrita - ou, melhor dizendo, com várias formas de escrituras e, por conseguinte, da compreensão dos seus efeitos sociais, cognitivos, afetivos e para a formação da pessoa. Nessa direção, a concepção das relações entre oralidade e cultura escrita como um continuum se apresenta como uma visão limitada e distorcida, pois
[…] modos de comunicação são compostos de uma variedade de espectros de palavras e sons, mas também de múltiplas formas de representações gráficas, imagéticas, musicais e gestuais, além dos aspectos paralinguísticos que são fundamentais para a interpretação das intenções dos interlocutores, via de regra ocultados nos discursos formais ou em falas de duplo sentido, que são muito comuns em todas as interações humanas (Finnegan, 2006, p. 56).
Nesse contexto, é que propomos a análise realizada neste artigo. Embora tenhamos localizado um número significativo de trabalhos sobre a Folia de Reis1 no Brasil, a perspectiva ora apresentada parece focalizar um aspecto ainda insuficientemente explorado nos estudos: as relações entre linguagem - em suas diferentes dimensões -, manifestações da cultura popular e identidades indígenas.
O Contexto de Pesquisa: apontando as dimensões históricas e culturais dos Xakriabá
De acordo com o Instituto Socioambiental, o Brasil é o país que possui a maior diversidade étnica e linguística de todo o mundo. Depois dos inúmeros massacres que os povos indígenas sofreram desde a colonização, vivem no Brasil por volta de 270 etnias, que falam aproximadamente 265 idiomas diferentes2.
O povo Xakriabá possui uma história de constituição como grupo indígena comum ao conjunto étnico e histórico dos chamados índios do Nordeste, que são "[…] diversos povos relacionados adaptativamente com a caatinga e historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão missionário dos séculos XVII e XVIII" (Dantas; Sampaio; Carvalho, 1992, p. 433). Essa comunidade se constituiu a partir da Missão de São João dos Índios, que teve sua origem no fim do século XVII e início do século XVIII e se localizava na região do Alto São Francisco, reunindo índios de várias etnias (Santos, 1997).
Com um contato de cerca de 300 anos com a forma ocidental de viver e de pensar, a compreensão de sua cultura e das formas de organização societária apresentam muitos desafios para o campo da Antropologia, provocando um debate importante a respeito das abordagens necessárias para compreender esses grupos étnicos, seu processo de constituição e de diferenciação da sociedade circundante. De acordo com Oliveira (1998), tais grupos étnicos precisam ser pensados de forma diferente de culturas com poucos ou insignificantes contatos com os não indígenas. Para o autor, é necessário "[…] abandonar imagens arquitetônicas de sistemas fechados e se passar a trabalhar com processos de circulação de significados, enfatizando que o caráter não estrutural, dinâmico e virtual é constitutivo da cultura" (Oliveira, 1998, p. 69).
Os Xakriabá, além de serem muitos, tornando impossível a tarefa de homogeneizá-los, vivenciam, desde o final dos anos 1990, transformações sociais, econômicas e culturais profundas, decorrentes da implantação de diferentes políticas de Estado nos campos da educação, da saúde, da assistência social e do apoio à implantação de projetos de incentivo da produção agrícola, que são elaborados e administrados pela própria população3, com a participação de agentes externos. Pela sua amplitude, destaca-se a implantação da escolarização em todas as mais de 30 aldeias, desde a educação infantil até o ensino médio. Esse processo de escolarização exigiu a formação de um grande número de jovens professores que se transformaram em representantes de um projeto de emancipação política e de uma cultura letrada própria que está sendo permanentemente construída e reconstruída, em um espaço fundado, predominantemente, em sistemas semióticos diversos articulados com a oralidade.
As Práticas Culturais e os Jogos de Linguagem: a Folia de Reis, o Samba Chula e a Loa
Baseados nessas reflexões, como podemos analisar práticas culturais e jogos musicais de linguagem, como a Folia de Reis, o Samba Chula e a Loa, que ocorrem entre os Xakriabá?
A Folia de Reis, entre esses povos, é um evento que acontece regularmente entre os dias 25 de dezembro e o dia 6 de janeiro4. Ocorre também em outros momentos durante o ano quando é conhecida entre os Xakriabá de Reis temporão. Há dois tipos de Reis Temporão. Um é realizado como agradecimento por uma graça recebida e o outro em épocas festivas. A diferença da Folia de Reis regular para a que ocorre fora da época é que na primeira os foliões saem de casa em casa5, enquanto a segunda ocorre em um lugar específico, como na casa de quem fez a promessa a ser paga, ou em um outros espaços dedicados ao festejo, como a escola e a casa da comunidade.
A Folia de Reis é composta por aproximadamente dez foliões que participam tocando e/ou cantando6. Os instrumentos usados são predominantemente: acordeom, violão, viola caipira, pandeiro, bandeirola e dois tipos de tambores artesanais, denominados de caixa e bumba (ou zabumba)7. O responsável pela folia é chamado de embaixador8, que é quem coordena, organiza, reúne os foliões e, ainda, é o guardador dos instrumentos. O embaixador é também o folião de guia, mas o inverso não é verdadeiro. Folião de guia é quem canta os primeiros versos da Folia de Reis. Um folião pode cantar o primeiro verso, momento denominado de puxar o reis9, e não ser o embaixador.
Uma das perguntas que podemos fazer a respeito da Folia de Reis entre os Xakriabá diz respeito ao modus operandi do ritual, às divisões de tarefas e de papéis sociais. Chama atenção a definição, de certo modo rígida e hierárquica, dos lugares a serem desempenhados pelos participantes, e nos significados dessa organização para um grupo regido, aparentemente, pela horizontalidade entre os pares, amigos, vizinhos e parentes próximos10. A hierarquia aqui parece presidida pelo pertencimento geracional - os mais velhos são escolhidos para liderar - e, consequentemente, pelo maior conhecimento das tradições. O domínio da escrita e a frequência à escola pelos mais jovens parece não ter - pelo menos ainda - alterado essa divisão de papéis sociais11. Nesse sentido, pode-se afirmar que essa divisão de lugares e atribuições entre os participantes cumpre uma função de organização por intermédio da qual o grupo torna viável a realização do próprio evento por meio de divisão de tarefas e da atribuição de responsabilidades.
O ritual tem início no momento em que os foliões cantam versos denominados de entrada e saudação12, que são uma oração em que cantam para o Jesus menino13 e pedem proteção e licença ao dono da casa, como se pode observar neste trecho recitado por JI (2006), embaixador da folia de reis da aldeia Riacho dos Buritis: "Seja o Pai, seja o Filho, seja o Espírito Santo Dai licença o dono da casa pra saudar o santo. Oh, viva santa Isabel, quem fez salve rainha. Adoramos o menino Deus, dentro de vossa lapinha".
Depois, os participantes cantam os versos denominados de coluna de reis. São 25 versos que podem ser cantados de duas formas. A primeira é denominada de reis martelado: o folião de guia canta um verso e todos outros o repetem14. Na segunda forma, chamada de reis cortado, o folião de guia canta um verso, e o grupo de foliões responde com o verso seguinte. Em seguida, o folião de guia inicia o terceiro verso, e o grupo responde cantando o quarto - e assim sucessivamente até o vigésimo quinto verso. Como exemplo, segue esta coluna cantada na Folia de Reis das aldeias Sumaré e Barreiro Preto:
Guia: Oh recebe essa folia honrosa, canto de folia, nosso canto de folia.
Foliões: Que é festa da trajetória de Jesus nosso senhor, de Jesus nosso Senhor.
Guia: Oh recebe essa folia honrosa, a folia formosa, nossa folia formosa. Foliões: Recebei oh seu santo reis de feliz coração, recebei coração.
A primeira caraterística estética e cognitiva do funcionamento dos ritos fundados em linguagem oral e musical observada entre os Xakriabá é a sua estrutura dialógica, organizada entre diferentes vozes que simbolizam uma provocação e uma resposta. Segundo Chaves (2014, p. 254), nesse regime de enunciação - encontrado também na Folia de Reis que pesquisou -, "[…] a margem de escolha das palavras (léxico), assim como o modo de combiná-las (sintaxe), é limitado, pois o texto cantado pela primeira dupla (pergunta) já conduz à sua resposta pela segunda dupla". A rima também pode ser compreendida como outro aspecto que contribui para a formalização da linguagem: "[…] a escolha das palavras a serem rimadas, assim como a disposição delas nas quadras, é fundamental para a observação de como se combinam, na linguagem formalizada do canto, restrições sintáticas e semânticas" (Chaves, 2014, p. 256).
Essas vozes, executadas em intervalos de terças15, são organizadas na Folia de Reis em uma harmonia tonal, sem modulação16, como se pode observar na partitura acima (Figura 1).
Uma das hipóteses levantadas na pesquisa é que o intervalo de terça, no qual a segunda voz canta sempre duas notas acima da primeira, por ser considerado no campo da linguagem musical uma das estruturas mais simples de ser apreendida pelo uso de estratégias perceptuais acústicas e harmônicas, auxilia os mais jovens a nela se engajarem. Em outras palavras, é possível, nesse tipo de composição, aprender de ouvido, ou seja, sem a mediação da escrita musical e de suas propriedades para registrar, entre outros aspectos, intervalos entre os sons, a relação entre as notas de uma melodia, o tom em que é executada, as mudanças de tom possíveis. O resultado é a construção de práticas musicais relativamente complexas do ponto de vista melódico, harmônico e rítmico, mas que favorecem o diálogo musical entre os membros do grupo e a sua aprendizagem pelos mais jovens. Esse modo de aprender assemelha-se àquele encontrado em sociedades predominantemente orais, como mostra Egan (1987, p. 4): "[…] todo o corpo, muitas vezes com a ajuda de um instrumento como o tambor, por meio de movimentos rítmicos e de cantilenas, é utilizado nos processos de memorização".
Outro elemento fundamental que caracteriza essa prática consiste na estrutura rítmica da melodia, composta de compassos binários. Essa fórmula é mantida durante todo seu percurso, o que também facilita a participação dos mais jovens. Como afirma Chaves (2014, p. 254, grifos no original):
Modalidade de vocalização que articula som/palavra, ritmo/melodia, texto/música, os cantos de folia [...] situam-se na fronteira entre fala e som, linguagem e música. Estruturado rítmica, melódica e textualmente, o canto pode ser concebido como um modo raro e incomum de discurso, distinto das falas ordinárias: enquanto nestas se percebe a prioridade do texto, determinado, em última instância, pelo falante que dispõe de ampla gama de opções para escolha - das formas sintáticas utilizadas ao vocabulário, passando pelos modos de recitação, entoação, altura, sonoridade, ritmo, sequenciamento, andamento etc. - no canto, o repertório, cuja origem remonta ao princípio do mundo [...] é repetitivo, seguindo fórmulas memorizadas que aderem a padrões e estruturas formalizadas.
Nesse sentido, "[…] as palavras não são faladas ou cantadas livremente, mas devem se assentar em determinado padrão sintático, de andamento, afinação, melodia e ritmo" (Chaves, 2014, p. 254). Esses achados corroboram o que diversos estudos sobre narrativas orais têm mostrado desde os anos 1930: elas obedecem a certos padrões de composição que auxiliam na performance dos poetas, na memorização e na incorporação de temas e valores por parte da audiência. As fórmulas - grupo de palavras nas mesmas condições métricas e que obedecem a um mesmo padrão sintático -, o ritmo e a estabilidade de certos temas e ideias facilitam a tarefa do poeta e auxiliam a audiência na memorização. Milman Parry (1971), ao analisar a Ilíada e a Odisseia, mostrou que esses poemas, atribuídos a Homero, estruturavam-se a partir de algumas equações simples, estrategicamente distribuídas ao longo dos textos, facilitando a fixação, as ligações dentro da sequência e a repetição. Os estudos de Albert Lord (1960) e Eric Havelock (1996) também contribuíram para mostrar que essas longas epopeias foram transmitidas de geração em geração (Homero somente as teria registrado 500 anos após os acontecimentos que narram), sem que fosse preciso, como por muito tempo se acreditou, um esforço sobre-humano de memorização: frases estereotipadas, fórmulas e segmentos da narrativa contribuíam para a conservação da tradição. Havelock (1995), referindo-se ao trabalho de Parry, assim compreende o papel das fórmulas na composição e do desempenho oral dos poetas:
Sua função era percebida como ajuda à improvisação, preenchendo lapsos métricos para permitir ao cantor a manutenção do fluxo narrativo. […] Essas conclusões foram posteriormente confirmadas empiricamente pela prática dos cantores iugoslavos, pois estes também, em parte, improvisavam suas recitações, contando uma história que incluía a fraseologia já empregada em versões anteriores (Havelock, 1995, p. 29).
No final da folia, os donos da casa saúdam os foliões, momento em que são servidos quitandas, refrigerantes e aguardentes17.
Como podemos observar, a Folia de Reis é uma prática que possibilita a convivência de vários interesses e formas de engajamento. Para os mais velhos, a devoção e a fé no menino Jesus é o fator mais importante, mas esse sentido convive ao mesmo tempo com a festa e o lúdico e o estreitamento das relações entre as famílias. Segundo AL (2006), um aprendiz de folião de guia da aldeia Barreiro Preto:
Tem pessoas também que usa muito isso aí, mas como assim, [...] o pessoal usa, sabe como é que é, mas não age como é de ser, né? Porque reis, tem muita gente que tem ela como uma diversão, mas na verdade não é bem uma diversão. Ela diverte, mas só que ela é mais uma devoção. Como assim, um tipo de reza, né? Hoje mesmo, tem muitas pessoas que vai num reis ou numa reza, acha que tá ali como se estivesse numa festa, porque vai ajudar ou bagunçar [...] uma das coisa que vai fazer e acha que tá fazendo bem.
Como já indicamos anteriormente, há uma forte preocupação, principalmente por parte dos seus produtores e membros mais antigos, com a permanência da Folia. Por essa razão, preocupam-se em incentivar a participação dos jovens e das crianças, como nos disseram JA, folião de segunda guia da aldeia Barreiro Preto, e JI, embaixador da Folia de Reis da aldeia Riacho dos Buritis. Nas palavras de JA (2006):
[...] mas aqui nós num acaba com a folia não, não. A gente sempre funciona. Tem uma coisa não pode acabar, que nem... que nem o finado meu pai dizia, [...] ‘sabe meu filho, no mundo nós achemo, no mundo nós deixemo'. Aqui tem tanta coisa que num cabô não. Certas reza antiga ainda usa, que mudô um pouquinho, a gente usa. Memo que mudô um pouquinho, mas ninguém pode trocar o certo pelo duvidoso. [...] Eu acho interessante, porque nesse tempo que as casa era faiada, passava três ou quatro folia, agora não sabia de quem. Tinha uma folia aqui do Brejo, do Riachinho [...] Eita folia bonita e bem educada! Quando saía essa, chegava outra, por isso que eu digo: No mundo nós achemo, no mundo nós deixemo. [...] Por isso que eu digo, num pode cabá, num pode cabá. Porque tem um monte de lugar que cabô a folia, porque ficou só nós véio, nós véio. Num dava passo pros novato. Nós aqui é chamado pra cantar em lugar longe a folia, porque os véio foi morrendo e, as vez, os novo num sabia riscá nem cortá [...] Aí ficou sem. E aqui, graças a Deus, num cabô não.
A importância da Folia de Reis dentro da dinâmica maior da comunidade, não apenas como uma prática pedagógica privilegiada, pode ser percebida nas palavras de JI (2006):
Alguém tem que mostrar... ou ocês de fora ou nós memo. Alguém tem que mostrar pra esses menino que eles têm que aprendê o Reis pra substituir nós que tá ficando véio. Tem que mostrar pra eles que se acabar o Reis, acaba tudo, acaba o índio, acaba esse negócio de área indígena.
Os Xakriabá, por terem uma história intensa e de longa duração de trocas culturais com grupos não indígenas, precisam criar e recriar constantemente uma "[…] representação de sua identidade por intermédio da qual se constituem como um nós que permite diferenciá-los como grupo que possui uma história própria e que deve ser compartilhada por meio de processos educacionais na escola e fora dela" (Devereux, 1978, apud Schneider, 2004, p. 98). Mesmo que a Folia de Reis não seja uma especificidade dos povos indígenas - nem em suas origens, nem nas suas ocorrências contemporâneas no Brasil e em outros países -, ela é aqui ressignificada e tornada parte do ser Xakriabá.
Segundo Eder (2003), nesses processos de identificação deve ser considerada não apenas uma necessidade de preservação daquilo que é comum aos membros de um grupo, mas também das relações de interesse em que o grupo precisa reconhecer uma identidade coletiva e, consequentemente, se diferenciar dos que não pertencem ao grupo. Essa discussão fica, então, mais clara se considerarmos a história de constituição dos Xakriabá como povo indígena reconhecido pelo Estado e a sua luta pela posse da terra.
Desse modo, várias práticas culturais de origem europeia como a Folia de Reis, a Via-sacra, a Festa de Santa Cruz fazem parte do conjunto de rituais que são reconhecidos como parte de sua história e de sua cultura: "[…] se acabar a folia, acaba tudo, acaba o índio, acaba esse negócio de área indígena" (Cascudo, 1988, p. 223).
Entre os Xakriabá, a Folia de Reis inclui, ainda, um momento em que os foliões cantam versos por eles denominados de Samba Chula18, enquanto as pessoas fazem um círculo e dançam. Esse momento ocorre depois que rezam, cantam, comem, bebem e agradecem as esmolas que receberam, entoando versos de despedida e cantando até a próxima casa, onde tudo acontece novamente. Os Xakriabá chamam estes versos de décima19 e a sua composição ou execução de tirar a décima ou puxar a décima.
Os versos são compostos a partir de eventos marcantes e de grande repercussão, como nos disse JI (2006), embaixador da folia da aldeia Riacho dos Buritis:
Aí veja bem, as vez aparece um cara furioso por aí, aí o cara faz uma bagunça por aí, um cara tira uma décima dele. Canta e tira uma décima dele. Igual o M, E da M, já ouviu [...] da fábrica da M, moço, da cachaça M. Teve uma encrenca uma vez em Januária lá, que ele era casado, mas gostava das quebrada lá. E naquele tempo tinha um sargento muito bravo lá e ele foi dar pesquisa lá pras muierada por lá e o sargento encontrou com ele na rua e ele era ricaço. Dentro de Januária queria ser o maioral, né? E o homi chegou e deu uma carreira nele que tava com a muié lá, aí naquele tempo eles achava na rua assim não tinha esse nem aquele, eles metia o pau, aí a polícia deu uma carreira nele lá e nós foi e puxou uma décima pra ele assim:
Vou-me embora, vou-me embora, que eu não vou me embora não. A polícia bate no pobre, ele bate no rico também. O rico quando apanha não fala nada a ninguém. De dia ele tá na roça de noite tá no engenho. A polícia bate no pobre, ele bate no rico também. Quando vê muié bonita, só puxa nota de cem. A polícia bate no pobre, ele bate no rico também.
A gente acha um que faz uma nervosia por aí, nós tira a décima pra ele e samba (risos) e era ricasso, dono da fábrica da M, que é do outro lado do município ali. Aí nós tiramo a décima dele que "a polícia bate no pobre e que bate no rico também". Aí como ele era rico, ele achava que não batia não e aí pra modo de esconder do gaio, de dia ele tava na roça, pra ninguém vê a cara dele, de noite tava no engenho. [...] É, tem várias décima de cabra por aí, brigou pra acolá, nós encaixemo ele e tira uma décima e bota samba. É pra que a gente... É tudo de lembrança do passado que passou. E assim continua, né?
O que se observa é que a produção desses versos exige uma forma de reflexão sobre aspectos semânticos e fonéticos da sua linguagem que resultam na criação de narrativas com estruturas rítmicas que funcionam como fórmulas que são mediadoras da memória, e permitem tanto a expressão quanto o aprendizado de valores e sentidos compartilhados. Feldman (1995) chama a atenção para a importância desses mecanismos formulaicos, mostrando que, além de serem importantes para a memorização, funcionam como mecanismos de reflexão sobre a própria linguagem, contribuindo para a construção de novas formas de abstração e de memorização. A riqueza e a variedade desses recursos nas culturas predominantemente orais mostram como, ao contrário do que afirmavam as perspectivas tradicionais de análise, são processos cognitivos complexos inerentes a diferentes práticas culturais carregadas de um sentido pedagógico na medida em que possibilitam aos jovens se apropriarem dos seus sentidos e usos e participarem ativamente na sua realização.
Os sentidos dos versos do Samba Chula também podem ser observados na Loa, em geral recitadas em ocasiões especiais - como casamentos - por pessoas mais velhas ou lideranças das comunidades. Segundo HI (2006), uma das lideranças da aldeia Barreiro Preto:
A Loa é uns verso20 que a gente fala em dia de casamento21 ou de noivado, nas festa de casamento a gente costuma falar algumas coisa, rimado de preferência. Palestra pra falar assim de palestra é muito pouco, falando normal, né? Muitas vez sempre fala rimando, né? É uma tradição que a gente fala desde sempre, né?
Observa-se que HI faz uma distinção entre o que chama de palestra, relacionada à esfera do cotidiano, e a linguagem rimada usada em festas de noivado e em outros momentos específicos. Entre os Xakriabá, a palestra é identificada a uma fala mais fluida e menos estruturada. A fala rimada, por sua vez, refere-se a uma forma de se pronunciar publicamente em versos. Trata-se, portanto, de uma fala mais elaborada, inclusive com métricas específicas.
Para que compreendamos com maior propriedade os sentidos e as formas de criação da Loa, descrevemos abaixo um trecho de uma entrevista com JO (2006), rezador importante da aldeia Barreiro Preto e que não possui domínio da linguagem escrita:
Moço, HI, ele aprendeu até assim com escrita, no livro que ele estudou. Aprende também, quer dizer, que assim por ideia dele [...] assim vai pensando e faz uma Loa. Aqui tem umas pessoa que canta ou fala assim, pensa pra falar, fala e dá certo [...] eu também... costumo falar Loa também. [...] É sim, mas em tempo de noivado, na mesa de noivado [...] tem noivado... e as vez a gente... Eles pede pra gente falar e a gente fala assim.
A primeira observação feita pelo senhor JO é que, na criação das Loas, existem pessoas que usam a escrita para aprender a elaborá-las, mas o que prevalece é a produção por intermédio de improvisos sem a sua mediação. É interessante observar que, na etnografia realizada por Chaves (2014), os cabeças de folia referiram-se a livros - Horas Marianas e Livro do Oriente - que continham os textos principais que o folião deveria memorizar22. O autor não encontrou nenhum desses livros na comunidade pesquisada, mas afirma que todos os cabeças que conheceu em sua permanência no campo tinham, em suas casas, cadernos preenchidos com cópias dos versos escritas à mão. Entre os Xakriabá, observamos que a necessidade do uso da escrita para a memorização dos versos está associada às novas gerações, marcadas pela frequência à escola.
Os exemplos de Loa abaixo, recolhidos em campo, nos permitem contemplar a variabilidade de temas presentes nessa manifestação poético/musical. No primeiro exemplo, temos uma referência à criação do mundo. No segundo, podem ser observados aspectos comuns da vida de casado e um conselho em relação ao posicionamento dos noivos diante do casamento, um tema muito comum nas Loas entre os Xakriabá. No terceiro, observamos uma crítica às desigualdades entre ricos e pobres e, no quarto, uma referência ao vício do álcool, vencido pelo recitador.
Loa 1:
Quando Deus criou o mundo e fez a humanidade,
Veio o anjo das treva com toda sua maldade
Plantando o germe maligno no seio da sociedade
Assim a gente já nasce no meio da má semente
Mal que é pago e não penoso, mas é potente
Tem a boca de um leão e o veneno de uma serpente
Loa 2:
O divino Espírito Santo vem a nós a iluminar
Abençoe esses noivo e todo seus familiar
Clarear os vossos caminho pra onde vos hei de passar
Fortalecei as nossa mente para nunca nós errar
O Divino Espírito Santo olha pra os que tem fome e proteja os inocente
Dê a cura os enfermo e saúde pros que tão doente
E os nosso irmão carente que num tem terra e nem lar
Dê a eles uma moradia e terra pra trabalhar
Pra os sustento das família, vosso pão de cada dia que nunca hei de falta
Agradecemo a Deus
Em primeiro lugar
O Deus onipotente
Que criou o firmamento
O céu a terra e o mar
Criou o sol e as estrela
Criou o lindo luar
A vida de casado é boa, de noivo é ainda melhor
Mas depois de um ano e meio fica tudo gevevó
A muié derruba a saia e o homi entorta o paletó
A barba dele cresce que nem jaú e o cabelo engrossa que nem cipó
Mas isso tudo é brincadeira, não passa de ser uma ousadia
É esse casal que nessa aldeia vai existir, aí se for José o Maria
Vamo ver se faz imitação ao casal de Nazaré
Porque desse mundo encarnecido só com dignidade e fé
Loa 3:
Olha esse povo arreunido
Aqui e em todos lugar
Tem gente alegre e contente
Tem gente que tá doente
Tem gente passando fome
Levando a vida a clamar
Por causa dos governante
Que num sabe administrar
Conforto que é pra pobre
Quem recebe é marajá
Tiraro Fernando Collor
E colocaro Itamar
Depois veio Fernando Henrique
Para o país administrar
Vamo vê se ele agora
Faz um trabalho
que o povo vai agradar
Loa 4:
A cachaça é moça branca
É filha do homi intriguero
O homi que bebe cachaça
Num pode juntar dinheiro
Quem vende paga o imposto
E quem bebe paga o selo
Podemos afirmar, então, que a Loa e o Samba Chula funcionam como recursos mnemotécnicos e simbólicos que permitem a produção, o armazenamento e a transmissão de conhecimentos, utilizando a rima e o ritmo. Dessa forma, conhecimentos práticos e morais podem ser preservados, por meio da repetição dos versos, e transmitidos em momentos privilegiados, nos quais a atenção da comunidade está voltada para o recitador. Ao mesmo tempo, é possível afirmar que os versos não se restringem a essa dimensão pragmática, mas representam também uma função artística e estética.
Considerações Finais
Dois conjuntos de conclusões podem ser discutidos com base na pesquisa realizada. Em primeiro lugar, podemos afirmar que a Folia de Reis, o Samba Chula e as Loas expressam formas multimodais de linguagem que, de modo diferente do que ocorre nas práticas de oralidade cotidianas, exigem que seus participantes, ao (re)elaborarem versos e narrativas, reflitam sobre a própria linguagem. Reiteramos a ideia de alguns autores, como Feldman (1995), de que não apenas a escrita é capaz de fazer os sujeitos se engajarem em um processo de metalinguagem, mas também outras formas de expressão. Ao partirmos de uma reflexão teórica que aponta a necessidade de superar a dualidade entre o oral e o escrito como forma de nomear as diferenças entre as culturas, procuramos, considerando os cruzamentos e as formas de articulação entre diferentes sistemas semióticos, apresentar e discutir alguns elementos das práticas culturais e dos jogos musicais e poéticos de linguagem que fazem parte do universo simbólico e cultural dos Xakriabá23. Deste modo, as práticas estudadas parecem contribuir para que as pessoas reflitam sobre os seus valores, sobre o seu cotidiano e sobre a própria linguagem, constituindo-se, como afirma Feldman (1995), em um mecanismo mnemotécnico e cognitivo complexo e rico, característico de culturas que não dominam amplamente a escrita.
Um segundo conjunto de conclusões diz respeito à ressignificação, por parte dos Xakriabá, das práticas culturais e dos jogos de linguagem analisados, no processo de permanente (re)construção de sua própria identidade. Embora não se possa afirmar que as manifestações analisadas sejam uma especificidade desse povo, visto que podem ser encontradas, na contemporaneidade, em praticamente todo o território brasileiro, elas se tornaram parte constitutiva do ser Xakriabá. Ser Xakriabá implica assumir como tarefa uma conexão permanente com a ancestralidade, com os mitos de origem, com as narrativas que foram construídas para explicar seu processo de construção social e política, seus valores cotidianos e, ao mesmo tempo, se apropriar, de forma dialógica, dos saberes produzidos por outras instâncias da sociedade. Essa apropriação é mediada por diversas formas de linguagem que, recentemente, incluem também o vídeo, a fotografia e os meios digitais, que tomam uma dimensão cada vez maior e mais significativa para as gerações mais jovens.
Por fim, é importante salientar que esse universo rico em múltiplas formas de uso da linguagem oral, musical e escrita tem sido utilizado pelos professores como referencial para a construção de práticas educativas na escola. De um modo mais amplo, as formas poéticas e rimadas de uso da linguagem tornaram-se uma espécie de assinatura cultural dos Xakriabá: um modo singular de se apresentarem e de serem reconhecidos por outros grupos indígenas e pela sociedade circundante em espaços públicos. Os aspectos simbólicos, cognitivos e culturais da Folia de Reis, do Samba Chula e da Loa aqui trabalhados podem ser úteis para que os professores Xakriabá reflitam sobre as suas formas de ser e de viver a cultura com o objetivo de avançar na construção de uma educação indígena diferenciada e organicamente articulada com a sua cultura.