Der Mensch ist, was er sein soll, nur durch Bildung (G.W.F. Hegel).
Bildung ist das, was übrig bleibt, wenn man alles vergessen hat, was man gelernt hat (Werner Heisenberg).
Introdução
A maneira como cada época se autodefine nos informa muito sobre seus valores e ideais, mas não tanto sobre suas práticas e realidades. A época do Renascimento europeu, que via a si mesma como a revitalização das civilizações clássicas, conviveu com a Inquisição e a crença na magia. O iluminismo, associado por seus principais representantes a valores como racionalidade e autonomia, também foi uma época de despotismo e misticismo. Nossa própria época, associada à globalização, à inovação tecnológica e ao cosmopolitismo, autodefine-se como uma sociedade do conhecimento ou como uma sociedade da informação, na qual a educação teria a tarefa de realizar o desenvolvimento integral da pessoa humana. Esse ideal, vinculado à tradição alemã de Bildung, está expresso em diversos documentos educacionais nacionais e internacionais. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio, por exemplo, afirma que o documento "[...] está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva" (Brasil, 2018, p. 7). Porém, para além da declaração retórica de princípios, que visam produzir efeitos na ordem simbólica, é difícil ver como as práticas que são mobilizadas e a lógica em que estão inseridas possibilitam a formação humana integral. Um ensino que desvaloriza os saberes humanísticos, centrado na medição em larga escala de habilidades e competências, em que se perde a autonomia para aprender e ensinar, apontaria, antes, para uma educação utilitarista regida cada vez mais pelas lógicas neoliberais da gestão de capital humano.
A retórica pedagógica esconde o fato de que na chamada sociedade de aprendizagem, a formação tende a ser integralmente funcionalizada pelo sistema econômico, em nome de valores como eficiência, competitividade e flexibilidade. Nada poderia ser mais oposto a um ideal educacional fundado na autodeterminação do sujeito humano e na autonomia da cultura e do conhecimento. Daí a importância de revisitar o conceito alemão de Bildung nos dias atuais, que deve servir não como modelo a ser seguido, evidentemente, mas como contraponto às práticas atuais e como exercício para pensar a educação de outros modos.
Bildung é um dos conceitos fundamentais da modernidade e o conceito mais ambíguo da pedagogia alemã, propiciando uma diversidade de usos e interpretações. Outros conceitos pedagógicos alemães como Erziehung (educação) e Unterricht (instrução, ensino) não possuem os ecos e ressonâncias que cercam a noção de Bildung. Nas palavras de Georg Bollenbeck (2012, p. 162):
Formação [Bildung] pode designar um processo e um resultado, uma finalidade e um estado, pode ser pensada como ativa, passiva e reflexiva, individual e (mais raramente) coletiva. No que se refere ao seu significado, o conceito está impregnado por distintas concepções, místico-pietistas, filosóficas, estéticas e pedagógicas.
Neste estudo, pretende-se analisar as principais transformações na sua estrutura semântica desde o surgimento do conceito, com a mística tardo-medieval, até sua consolidação e institucionalização na sociedade e no sistema escolar alemão no século XIX. O conceito de Bildung é intraduzível em qualquer outra língua, por isso grande parte da literatura em outras línguas que a ele se dedica escolhe mantê-lo em alemão. Bildung não é equivalente a ensino ou educação, mas evoca uma série de ideias que nenhum vocábulo único reúne em português: interioridade, totalidade, desenvolvimento, vocação, promessa, a ação de dar forma, modelar, aprofundar e aperfeiçoar a própria personalidade, a construção de uma cultura pessoal etc. Neste artigo, o conceito aparece às vezes em alemão, às vezes traduzido como formação ou como cultivo de si. Nisso, seguimos a tendência já consagrada de W. H. Bruford que, em seu estudo clássico sobre o tema (Bruford, 1975), fala na tradição alemã ou no ideal alemão do cultivo de si1.
Bildung e a Doutrina Medieval da Imago Dei
O termo Bildung, derivado de Bild (imagem), corresponde ao latim formatio, forma sendo o equivalente a Bild. Seu uso no sentido do cultivo do espírito remonta à mística renana do século XIV, em que designava a imagem de Deus que penetra no âmago do indivíduo e, assim, dá forma a sua alma (Vierhaus, 2004). Rolf Selbmann (1994, p. 1) esclarece a esse respeito:
Bildung (alto-alemão antigo, bildunga; alto-alemão médio bildunge) originalmente circunscrevia uma aura de valor e significava o retrato, o símile, a imagem (imago), mas também a imitação (imitatio), a forma (forma) e a formação (formatio). Sempre pressupunha, no centro, uma imagem da divindade pensada como modelar, conforme a qual o homem deveria ser plasmado. No âmbito da mística tardo-medieval, Bildung tornou-se conceito chave da teoria da Imago-Dei no círculo de Mestre Eckhart. Em seu significado ligeiramente modificado como 'transformatio', o conceito indicava a recuperação da paradisíaca inocência perdida, mas também significava tanto a transfiguração do homem marcado pelo pecado original quanto a superimposição e reimpressão da imagem divina na sua alma.
Nos escritos de Mestre Eckhart2, Bildung já aponta para a ideia de uma promessa a ser realizada e de um esforço do indivíduo para merecê-la, duas marcas que se manterão na história semântica posterior do conceito3. Do círculo de Mestre Eckhart, o conceito passa para o luteranismo, assumindo um papel central na doutrina e na pedagogia dos pietistas (Lichtenstein, 1966). O pietismo cresceu à margem do luteranismo dogmático e popularizou-se entre o fim do século XVII e a metade do século XVIII na Alemanha. August Hermann Francke (1663-1727), professor de teologia na universidade de Halle, pode ser considerado o mais importante teólogo do movimento. Ele atribuía ao conceito de Bildung uma função pedagógica, tendo fundado uma série de instituições educacionais com base em suas concepções. A ideia central da pedagogia pietista era que a criação podia ser aperfeiçoada por meio do esforço disciplinado direcionado à formação da interioridade e ao autodesenvolvimento espiritual do indivíduo. Segundo Fritz Ringer (2000, p. 33):
Os pietistas tinham uma percepção aguda do valor e da santidade da alma individual. Para eles a educação significava o máximo desenvolvimento possível dessa alma, o cuidadoso desdobrar do potencial único de salvação de cada criança.
A Secularização do Ideal de Bildung
Porém, mesmo entre os pietistas o conceito de Bildung ainda tinha uma conotação estritamente religiosa. Na metade do século XVIII, começou o processo de secularização do conceito, que passa a designar uma força imanente da natureza. Ele entrou em ampla circulação e assumiu um sentido mais geral somente após a tradução para o alemão da obra do filósofo escocês Shaftesbury, Formation of a gentle character em 17384. Análises lexicométricas revelaram um uso ainda hesitante, porém crescente, do conceito entre 1747 e 1770, e uma enorme expansão por volta de 1800 na Europa de língua alemã (Ricken, 2006). Em seu texto sobre o esclarecimento, publicado em 1784, o filósofo Moses Mendelssohn (1784, p. 1) observava: "As palavras 'esclarecimento' [Aufklärung], 'cultura' [Kultur] e 'formação' [Bildung] são ainda recém-chegadas na nossa língua. Pertencem, para começar, apenas à linguagem dos livros. O vulgo quase não as entende". O conceito de Bildung, secularizado, torna-se uma das categorias centrais do modelo de interpretação do mundo da intelectualidade alemã. Mesmo com a passagem do conceito da esfera religiosa para a esfera secular, porém, as ressonâncias teológicas se manterão no decorrer de sua história semântica.
Na historiografia alemã do pensamento pedagógico, Herder é visto como o fundador do ideal secular de Bildung, como aquele que impôs a interpretação do conceito que prevaleceu a partir da segunda metade do século XVIII. Herder lhe confere um valor eminentemente crítico e dele deriva um ideal educacional que teria profundas repercussões no pensamento e na sociedade alemã. Herder elabora a questão em seus dois ensaios sobre a história, nos quais descreve o próprio processo histórico como a formação da humanidade como um todo5. Nisso, porém, Herder não inova. A pedagogização do conceito de Bildung já estava em curso na obra dos escritores do iluminismo alemão, como no Messias de Klopstock, publicado em 1748, em que a figura do Messias é descrita como educadora dos jovens, e em Lessing, que falava da providência divina como educadora da humanidade (Hansmann, 2014)6.
O que particulariza o pensamento de Herder sobre a questão da formação e da unidade da humanidade é a crítica da cultura em que sua reflexão se insere. O problema de fundo, que orienta a filosofia da história herderiana, é como encontrar um sentido para a vida humana num mundo cada vez mais semelhante a uma vasta máquina da qual os indivíduos eram apenas engrenagens governadas por uma implacável burocracia estatal. Influenciado por Leibniz, Herder se opôs à visão mecanicista difundida pelo modelo newtoniano do mundo e, em seu lugar, propôs uma visão organicista da vida e da história, interpretados como fenômenos dinâmicos em perpétuo devir. Dessa concepção deriva sua visão do indivíduo e da educação. O indivíduo é visto por Herder como um processo de formação e crescimento orgânico e não como um átomo da sociedade ou como um genérico abstrato, como nas teorias jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII. A humanidade não é um estado no qual entramos ao nascer, mas uma tarefa a ser realizada por meio da disciplina e do esforço consciente de cada um (Herder, 2012).
Essa concepção organicista da individualidade também atribuía todo valor e sentido à capacidade de julgamento do indivíduo e rejeitava a referência a qualquer autoridade externa como fonte em questões de moral e religião. Daí a crítica de Herder ao caráter mecânico e sem alma do Estado moderno. No Estado absolutista, como no exército, segundo Herder, o indivíduo era reduzido a uma mera engrenagem de um todo mecânico. Para ele, o homem-espécie era apenas uma abstração e o Estado uma criação artificial, em si mesma vazia de sentido. Objetando à filosofia kantiana da história, que atribuía um papel eminente ao Estado, Herder acreditava que por sua artificialidade, a organização estatal não poderia ser o telos da civilização (Raulet, 1995). Para ele, cada individualidade (pessoa, povo, nação ou época histórica) tem seu valor próprio em si mesmo e, se livre para se desenvolver, chega ao máximo de perfeição possível.
Para Herder, seria tarefa do Estado contribuir para que cada um se desenvolva e realize todas as suas potencialidades e inclinações. Isso tornaria cada indivíduo melhor e, assim, um melhor servidor da sociedade e do próprio Estado. Desta forma, a associação humana estaria fundada nessa relação de reciprocidade em que o desenvolvimento interior do indivíduo se harmoniza com o vínculo social e comunitário, um reforçando constantemente o outro. O impulso à perfectibilidade seria inato e inibi-lo equivaleria a uma traição contra a própria humanidade e seria, portanto, um prejuízo que o Estado infligiria a si mesmo ao privar-se de homens mais íntegros e melhores.
Essa concepção da individualidade e de Estado foi desenvolvida na obra de Wilhelm von Humboldt Ideias para um ensaio visando determinar os limites da ação do Estado7, publicado em 1791, dois anos após a queda da Bastilha. Influenciado pelo liberalismo e pelo ideário da Revolução Francesa, neste ensaio Humboldt vê o desenvolvimento da individualidade como um processo natural que poderia ser tanto incentivado quanto prejudicado pela ação do Estado (Iggers, 2012). Para Humboldt, o desenvolvimento harmonioso e completo das forças do indivíduo só poderia ser realizado mediante um Estado que, ao limitar sua própria ação, propiciaria tanto a liberdade quanto as circunstâncias para a formação:
O verdadeiro fim do homem - não aquele que suas inclinações cambiantes prescreve, mas aquele que lhe ordena a razão eterna e imutável - é a formação [Bildung] mais alta e equilibrada possível de suas forças numa totalidade. Para esta formação a liberdade é a condição primeira e indispensável. Mas, além da liberdade, o desenvolvimento das forças humanas requer ainda outra coisa, embora esta coisa esteja estreitamente vinculada à liberdade: a diversidade de situações (Humboldt, 1986, p. 9).
O Estado é considerado por Humboldt, tal como era para Herder, uma entidade artificial, enquanto a sociedade é o meio natural em que a individualidade pode se desenvolver e se expressar. De acordo com o modelo da monadologia de Leibniz, traduzido em teoria social, haveria uma harmonia de fundo entre as forças em crescimento e, se as funções estatais fossem reduzidas a um mínimo, as diversas individualidades poderiam desenvolver-se em coexistência e fertilizar-se mutuamente por meio das mais variadas formas de reciprocidade e associação (Reill, 1994; Luth, 1998).
Na opinião de Humboldt, o reconhecimento da unicidade e da diversidade dos homens deve limitar a ação do Estado, que deveria evitar empreender qualquer ação positiva para atingir fins úteis, pois seria impossível determinar o que é útil ou não para cada indivíduo em particular. Em virtude de sua irredutível singularidade, cada indivíduo deveria ser julgado de acordo com sua própria medida e não por intermédio de uma norma abstrata e exterior. Caberia ao Estado apenas criar as condições exteriores (basicamente segurança interna e externa) para que o indivíduo possa "[...] desenvolver-se por si mesmo em toda sua originalidade" (Humboldt, 1986, p. 12). Em particular, o Estado deveria se abster de intervir em tudo o que se refere à educação, à religião e à moralidade, deixando aos cidadãos a mais ampla liberdade de ação nesses setores.
Humboldt pensava o ideal de Bildung segundo o modelo da ação moral livre em Kant. Cultivar a si mesmo, esforçar-se pelo autoaperfeiçoamento contínuo de sua personalidade, é visto como fim em si, independente de qualquer razão utilitária ou pragmática, um verdadeiro imperativo categórico. A reforma educacional da qual Humboldt participou reflete esse ideal (Sorkin, 1983). Os neo-humanistas se opuseram ao ensino utilitário e realista defendido pelos iluministas, vendo a educação como o desenvolvimento proporcionado e harmonioso das forças do indivíduo. Por meio da educação, o indivíduo desenvolveria o conceito ou a imagem da humanidade dentro de si. Mais do que instrução formal, a tarefa do cultivo de si era vista como um processo sem termo, a ser perseguido durante toda a vida como fim em si mesmo. Assim, estava acima das realidades práticas da existência cotidiana como trabalho, salário e vocação. A ideia é que o Estado e a sociedade são melhor servidos ao educar os indivíduos com total liberdade para desenvolver seu caráter único do que os sujeitando ao treinamento vocacional, que os tornaria apenas roldanas de um sistema mecânico.
Bildung como Ideal Normativo
Para compreender a função do ideal alemão de formação, é necessário analisar o desenvolvimento da sociedade alemã no século XVIII e sua reação ao processo de modernização. Nessa época a Alemanha era formada por uma verdadeira colcha de retalhos de pequenos principados autônomos, marcados por uma rígida estratificação social e pelo pequeno despotismo que não deixava espaço para a iniciativa individual e sufocava a criação cultural. Isso começa a mudar com a ascensão da Prússia ao longo do século XVIII. Com o fim da Guerra dos Sete Anos, em 1763, a Prússia surge como potência europeia.
Nessa sociedade em curso de modernização, em que o desenvolvimento das ciências e das técnicas e a crescente divisão do trabalho levam a uma especialização cada vez maior do conhecimento, se faziam necessárias novas formas de integração e de distinção social (Assmann, 1994). O ideal de Bildung cumpre essas duas funções contraditórias. Por um lado, Bildung é um ideal universalista criado pelo neo-humanismo alemão e representa uma reação contra a fragmentação do conhecimento e da sociedade, propondo formas de integração pela educação e pela cultura. Por outro lado, expressa o desejo de distinção de parte da burguesia alemã e também funciona como marca distintiva da nação alemã em relação à França e à Inglaterra. A seguir, detalharei essas duas funções contraditórias do ideal de Bildung, destacando alguns elementos de contexto histórico.
A primeira função do ideal clássico de Bildung é a integração pela educação e a cultura. Essa função está associada à noção normativa de humanidade e à ideia de um indivíduo integral como instância unificadora e totalizadora. O humanismo como ideal normativo coloca-se acima dos corpos sociais, dos sexos, das confissões religiosas e das nações. Assim, formar-se, educar-se significa se religar à imagem da humanidade dentro de si. Nas palavras de Wilhelm von Humboldt (2012, p. 94):
A tarefa derradeira de nossa existência é dar o máximo possível de substância ao conceito de humanidade em nossa pessoa, seja na duração de nossa vida, seja para além dela, por meio dos traços [Spuren] que deixamos de nossa atividade vital. Isto somente pode ser realizado por intermédio da vinculação entre nosso eu e o mundo para chegar à reciprocidade [Wechselwirkung] mais viva, livre e universal.
Para Humboldt, assim como para Goethe, o indivíduo cultivado é visto como síntese simbólica de toda a humanidade. A ideia é que, sem o cultivo de si, não poderia haver individuação. Bildung como cultivo é o desenvolvimento equilibrado e multidirecional das forças do indivíduo. Como cada indivíduo conteria em germe todas as potencialidades da humanidade, desdobrar sua personalidade e suas forças em todas as direções seria o destino íntimo (das innere Schicksal) de cada um.
A mais importante questão geral colocada pelos teóricos neo-humanistas da Bildung era: como forjar o vínculo entre a pessoa e sua cultura? Como artefatos materiais ou sociais contribuem para o desenvolvimento da humanidade no interior da própria pessoa? (Løvlie, 2003). Um exemplo é a contemplação desinteressada da obra de arte. De acordo com Humboldt, a experiência estética permite o cultivo do espírito (Geist) por meio da interação recíproca (Wechselwirkung) com o artefato artístico. A contemplação artística é exemplo de uma experiência que liberta o indivíduo de seu egocentrismo e suspende a clausura que faz com que ele viva apenas segundo seus interesses e desejos. Segundo Humboldt, uma vida dedicada à Bildung é um esforço contínuo de autoaperfeiçoamento, como fim em si mesmo, sem nenhum objetivo externo ou utilitário. Esse esforço pode ser comparado ao do artista na produção de uma obra de arte. Tal como o artista que dá forma à matéria bruta que tem em suas mãos, Bildung consiste em modelar o conteúdo plural e espontâneo das experiências vitais em uma totalidade harmônica e coerente.
Em sua significação clássica, portanto, Bildung se apresenta como secularização de elementos religiosos presentes no pietismo alemão do século XVII. Reinterpretado à luz do iluminismo, o conceito adquire um sentido nitidamente pedagógico e passa a se associar às ideias iluministas de perfectibilidade e de progresso. Ele designa uma promessa de salvação pela educação e a ascensão da humanidade a um estágio superior, em que ela se liberta das tutelas dogmáticas e se determina a si mesma de maneira refletida e autônoma. Nesse sentido, Bildung opõe-se a Bindung (obrigação, vínculo compulsório), que designava as relações de dependência e tutela próprias das sociedades estamentais do Antigo Regime.
A interpretação do significado histórico do conceito já foi objeto de muita pesquisa e de polêmica. Ernst Wehler e Fritz Ringer, adeptos da teoria do Sonderweg alemão8, tendem a vê-lo como categoria central da visão de mundo de uma classe específica, enquanto Reinhart Koselleck o interpreta como um conceito metapolítico, acima das ideologias e classes. Segundo Fritz Ringer (2000), trata-se de um ideal pedagógico que expressa o sistema de referências e valores da burguesia culta alemã (Bildungsbürgertum) num momento histórico em que, na Europa ocidental, se passa de uma sociedade estratificada para uma sociedade funcionalmente diferenciada. A partir da revolução francesa, os estamentos e corporações do Antigo Regime dão lugar à sociedade burguesa moderna, em que os vínculos feudais de lealdade tradicional dão lugar à relação jurídica direta com o Estado (Wehler, 1995).
Contrário à tese do Sonderweg, Reinhart Koselleck (1990) destaca os elementos emancipadores do ideal de Bildung. Ele demonstra que, entre o último quarto do século XVIII e o primeiro do século XIX, o conceito de Bildung teve função marcadamente emancipadora e estava fortemente associado a ideias como a independência de toda autoridade externa (igrejas, Estado, partidos, todos aqueles que reivindicam o papel de tutores da humanidade, para usar a expressão de Kant), a libertação das hierarquias estamentais, que nessa época ainda regulavam as relações sociais na Alemanha, e a rejeição dos preceitos e dogmas teológicos, tanto protestantes quanto católicos.
Em sua análise histórico-semântica, Koselleck considera Bildung um metaconceito dinâmico que não pode ser associado a nenhuma ideologia particular, corrente intelectual ou estrato social específico. Como conceito suprapolítico, Bildung circulou em diversas ideologias e é socialmente aberta, compatível, em tese, com qualquer estrato social, pois apela a todos os indivíduos, independentemente de sua origem ou condição social. Apesar disso, o conceito é socialmente condicionado em seu conteúdo, pois nem todos estão em condições de apropriar-se dos artefatos culturais para edificar uma cultura pessoal (Engelhardt, 1990; Timm, 1990). Ainda assim, seria um erro metodológico circunscrevê-lo ao contexto de seu surgimento, por volta de 1800, e aos discursos neo-humanistas, clássicos e românticos que lhe deram sustentação nesse período.
Segundo Koselleck, as interpretações que associam o conceito clássico de Bildung com traços como introversão, passividade e apolitismo apenas o desfiguram. Como desenvolvimento pleno de todos os lados da pessoa humana, Bildung não leva à contemplação passiva da alta cultura, mas compele o indivíduo a agir no mundo, comunicar-se e empenhar toda sua energia pelo bem da sociedade. Estímulo à vita activa e não ao cultivo egoísta da interioridade. Por isso, a sociabilidade é um de seus elementos constitutivos.
A educação era vista como base para a emergência de uma nova sociedade, não mais fundada nos privilégios de nascimento, mas no mérito e no talento individual. Por isso mesmo, ela deveria ser uma educação geral e formal e não treinamento vocacional para uma carreira determinada, que numa sociedade estamental estava sempre vinculada à origem e condição social de cada um. O objetivo era libertar as pessoas dos papéis predeterminados pela ordem dos estamentos e corporações. Era justamente o distanciamento desse ideal com relação ao mundo do trabalho que lhe dava um caráter emancipador. Acreditava-se que a educação libertaria o indivíduo para escolher livremente sua ocupação, substituindo a autoridade e a tradição pela personalidade e o juízo autônomo de cada um (Nipperdey; Nolan, 1996).
A Institucionalização do Ideal de Bildung no Sistema Escolar
Como vimos, na Alemanha entre os anos 1770 e 1815, Bildung se apresentava como um ideal cosmopolita e universalista que estava associado com as ideias de autonomia e autodeterminação individual e com a imagem de um indivíduo integral dotado de uma personalidade esteticamente harmoniosa. Numa chave idealista, essa concepção da educação também ecoava os ideais de saber puro e desinteressado, desvinculado de finalidades externas e objetivos utilitários.
Esse ideal encontrou uma ocasião propícia para se materializar no conjunto de reformas que sucedeu a derrota da Prússia para a França de Napoleão Bonaparte em 1807. Sob influência do liberalismo e do ideal revolucionário de igualdade civil, foram tomadas medidas como a libertação dos camponeses da servidão e a emancipação dos judeus. Humboldt e os neo-humanistas foram chamados pelos ministros Stein e Hardenberg para reformar o sistema educacional prussiano de acordo com seu ideal de humanidade (Humanitätsideal). Nas escolas primárias, foi adotada a pedagogia de Pestalozzi, que levava em conta as necessidades e especificidades da criança. No nível secundário, foram instituídos os Gymnasien com base no estudo dos clássicos gregos e no ideal da individualidade harmoniosa. Em 1810, foi fundada a Universidade de Berlim, a partir dos princípios de liberdade de pesquisa e ensino; ela serviria de modelo para a reorganização das outras universidades alemãs.
Esse período das reformas é considerado por Georg Bollenbeck (2012, p. 158) como uma fase de experimentação pedagógica:
Para a semântica histórica, este é menos o tempo dos sistemas idealistas e mais o de uma 'fase de experimentação' entre a Revolução e a Restauração, no qual homens práticos filosoficamente educados procuravam implementar seus conceitos pedagógicos na esperança de chegar a um 'Estado cultural' [Kulturstaat].
No sistema de ensino estamental, cada um receberia a educação apropriada a sua condição social e a sua vocação, tornando-se servidor da sociedade e súdito leal do Estado. Os neo-humanistas se opunham ao ensino vocacional e, no seu lugar, defendiam a escola unitária (Einheisschule) e a formação universal (allgemeine Bildung), cujo objetivo é o desenvolvimento equilibrado e livre da personalidade individual (Peukert, 1987; Oelkers, 1999). Desta forma, seria possível modernizar a sociedade alemã, transformando súditos passivos em cidadãos autônomos e responsáveis.
Na concepção de Humboldt, no sistema ternário da escola alemã, Gymnasium e universidade deveriam constituir um caminho único e permitir que todos, mesmo os mais pobres, recebessem uma formação humana integral. Este igualitarismo social era acompanhado pela injunção para que cada cidadão procure, por todos os meios, educar-se e cultivar-se, libertando-se assim da tutela da religião e do Estado (Jarausch, 1982). A tarefa da educação não era adaptar o indivíduo ao mundo, treiná-lo com conhecimentos e habilidades úteis, mas despertar as forças interiores, a criatividade e o juízo crítico para transformar o mundo e realizar dentro de si o ideal de humanidade.
Porém, uma importante mudança na estrutura semântica do ideal do cultivo de si ocorre após o período da Restauração (1815-1848). Os burocratas da Restauração usaram as medidas de Humboldt para estender o controle do Estado sobre o sistema educacional afim de vigiar a sociedade e reprimir qualquer manifestação política contra o regime vigente. Em 1819, os chamados decretos de Carlsbad restringiram as liberdades de imprensa, de associação e de expressão como resposta à agitação social e nacionalista, principalmente nas ligas de estudantes (Burschenshaften). Na verdade, os reformadores prussianos, em oposição a Humboldt, nunca abriram mão do domínio do Estado sobre o sistema escolar, que exercia controle sobre todos os seus aspectos: organização interna, currículo, finanças, exames e docentes. Foi isso o que permitiu que o sistema fosse funcionalizado pelo nacionalismo prussiano posterior.
Bildung torna-se, então, cada vez mais um instrumento de distinção entre grupos sociais. O Código Geral Prussiano de 1794 já determinava os direitos e deveres das classes e instituía a estrutura legal básica para as atividades de ensino. Porém, o passo decisivo foi a instrumentalização dos Gymnasien. Tendo como centro os estudos clássicos, o Gymnasium estava acima das escolas tradicionais e era a única instituição de ensino secundário a poder aplicar o Abitur, exame que dava acesso às universidades alemãs. Ao lado do Gymnasium, foram criadas as Realschulen (escolas reais), que formavam para funções técnicas e burocráticas no comércio e na indústria. Além do latim, as Realschulen enfatizavam as disciplinas realistas, úteis para a profissão, como matemática, ciências naturais e línguas modernas. Aos egressos das Realschulen era barrado o acesso às universidades e ao funcionalismo público, reservados à Bildungsbürgertum egressa dos prestigiosos Gymnasien. Sobre esse processo, afirma Fritz Ringer (2000, p. 40):
A elevação formal do ginásio acima das outras escolas secundárias foi apenas o início de um processo trágico em que os ideais do período de reformas foram aos poucos rotinizados e transformados em defesas do privilégio social. Rígidas especificações curriculares tomaram o lugar do entusiasmo neo-humanistas.
Na medida em que se institucionalizou no sistema escolar, Bildung passou a ser sinônimo de cultura geral e se evidenciou sua função de distinção social em detrimento de sua função integradora e socializadora. É o que distingue a Alemanha das outras nações europeias, principalmente a França e a Inglaterra. Conceitos como os de Bildung e Kultur foram utilizados para designar a singularidade alemã, caracterizada por qualidades como profundidade, interioridade e sinceridade, por oposição a conceitos como os de civilization (civilidade) e politeness (polidez mundana), que remeteriam aos aspectos meramente exteriores da técnica e da vida social (Elias, 1976; Lepenies, 2008). Na segunda metade do século XIX, com o clima crescente de nacionalismo e o movimento pela unificação da Alemanha, os conceitos de Bildung e Kultur se ligaram à instrumentalização das esferas da cultura e da educação para a glorificação do Estado autoritário bismarckiano.
Nesse período, Bildung também se torna marca distintiva do pertencimento à chamada burguesia culta (Bildungsbürgertum). O que lhe confere esse estatuto simbólico são os exames e títulos universitários. Bildung se torna o denominador comum desse grupo social heterogêneo, formado por diversas profissões e confissões religiosas, conferindo-lhe uma identidade comum e um habitus caracterizado por um mesmo sistema de valores. Nessa chave de leitura, o conceito de Bildung passa a equivaler à posse da cultura geral e a ser visto como um símbolo de status que confere distinção social e estabelece a barreira que separa a classe média culta das camadas sociais incultas. As associações com os ideais de autodeterminação, autonomia e emancipação ficam em segundo plano na medida em que o ideal de Bildung é apropriado pelo Estado prussiano e torna-se a marca distintiva das classes superiores. Essa transformação na estrutura semântica do conceito é analisada por Ulrich Hermann (1991, p. 97):
A formação [Bildung] que o ginásio alemão intermediava medianamente não continha mais nenhuma recordação daquilo que, no começo do século, era compreendido sob a expressão Bildung: esclarecimento [Aufklärung], capacidade de crítica e de julgamento [Kritik- und Urteilsfähigkeit]. Neste sentido [...] se encontra no lugar do indivíduo culto [Gebildeter], do burguês da cultura [Bildungsbürgertum]: com uma coleção de citações debaixo do braço, pouca inteligência na cabeça, acomodação e espírito de súdito [Untertanengeist] como marcas de seu habitus, quase incapaz de um juízo político [...], o burguês da cultura se converteu em alvo da sátira contemporânea e de caricaturistas mordazes.
A degradação do conceito de Bildung em sinônimo de cultura geral e instrumento de distinção social foi bastante criticada por um filósofo como Nietzsche, que desde seus primeiros escritos satirizou o filistinismo cultural da burguesia alemã e a aliança espúria entre Estado e cultura do período bismarckiano (Assmann, 1994; Weber, 2006). O aburguesamento e a instrumentalização pelo Estado do ideal do cultivo de si que ocorre nesse momento é visto como uma traição do ideal humanista humboldtiano e prenúncio da queda na barbárie da sociedade alemã no século XX.
Considerações Finais
O ideal de Bildung tinha como objetivo fundamental possibilitar a afirmação da singularidade individual por meio do cultivo de si e, ao mesmo tempo, conciliá-la com o vínculo comunitário. Ele implicava todo um programa de transformação social mediante a transformação interior dos indivíduos. Sua força integradora estava na ambição de incorporar reflexivamente ao sujeito os bens culturais e os conteúdos de conhecimento, unindo cultura subjetiva e cultura objetiva. A abertura semântica do conceito e seu grande poder evocativo permitiram uma diversidade de usos e interpretações ao longo do tempo e contribuíram para sua circulação até o presente. Nas palavras de Koselleck (1990, p. 23-24):
Nenhum conhecimento determinado e nenhuma ciência isolada, nenhuma posição política ou dado social, nenhuma confissão ou vinculação religiosa, nenhuma visão de mundo ou preferência filosófica, tampouco nenhuma inclinação estética específica em arte ou literatura conseguem caracterizar a Bildung. Em relação a todas as determinações concretas no mundo da vida [Lebenswelt], Bildung é um metaconceito que constantemente incorpora em si as condições empíricas que o tornam possível.
Segundo Koselleck, a associação com ideias como autonomia, autodeterminação e reflexividade é um dos traços básicos e estruturais do conceito de Bildung, que se manteve mesmo após as catástrofes do século XX e as transformações na vida social advindas do desenvolvimento da tecnociência (Koselleck, 1990). Seu potencial crítico, portanto, a despeito dos usos equivocados, permanece no presente. Em educação, continua sendo um dos modelos fundamentais para pensar as finalidades da educação para além do imediatismo exigido por gestores, mercados e governos.
Rebekka Horlacher destaca, igualmente, esse potencial crítico que orienta certas releituras do conceito de Bildung:
Hoje, Bildung serve como uma palavra-chave na luta contra o PISA e a lógica da avaliação quantitativa, como um argumento nos debates políticos sobre aplicação ou obstrução de novos currículos, ou como uma contraparte ao 'conhecimento', com conhecimento, neste caso, indexado negativamente a mero know-how, enquanto Bildung indica algo positivo que transcende a mera utilidade [...] Bildung tornou-se uma espécie de força gravitacional no centro do discurso educacional, usado para embasar posições, argumentos e objetivos muito diferentes (Horlacher, 2011, p. 19-20).
Enquanto valor, Bildung representa um suplemento de sentido, um processo essencialmente qualitativo que, apesar de ocorrer em contextos institucionais como escolas e universidades, não se deixa medir nem quantificar. Porém, os discursos e práticas educativos que deslocam o centro de gravidade do ensino do processo de formação para o processo de avaliação e mensuração de habilidades adquiridas põem em risco justamente a tarefa formativa preconizada por toda a tradição alemã do cultivo de si, assim como por suas derivações como os liberal studies (estudos liberais) nas escolas e universidades norte-americanas (Arcilla, 2003).
O esquecimento do ideal de Bildung é interpretado por alguns como um sintoma da crise contemporânea da cultura e da educação. De acordo com Konrad P. Liessmann, a sociedade do conhecimento se caracteriza pela contradição entre a disponibilidade universal do conhecimento e sua fragmentação extrema, que leva à perda de qualquer ideia normativa de educação e, consequentemente, impulsiona um processo de deseducação (Unbildung):
Que ninguém mais saiba dizer em que consiste a formação [Bildung] ou a cultura geral [Allgemeinbildung], não configura uma falta subjetiva, mas é resultado do pensamento de que formação deve ser reduzida a instrução [Ausbildung] e o conhecimento [Wissen] degradado a um índice mensurável de capital humano (Liessmann, 2012, p. 213).
Alguns autores (Masschelein; Ricken, 2003; Gruschka, 2001) consideram que o ideal de Bildung está superado e não serve mais como ponto de resistência e princípio crítico face às novas realidades sociais e educacionais. O problema seria o conteúdo normativo (a ideia de humanidade como promessa a ser realizada) inseparável do ideal de Bildung, que o condenaria a ser apenas uma glorificação do indivíduo burguês centrado em si mesmo e imunizado contra a presença do outro. Outros sustentam que a reflexão sobre Bildung é de enorme importância para oferecer sentido e orientação para as novas gerações em sociedades como as nossas, nas quais o desenvolvimento tecnológico provoca um processo acelerado de transformação e perda de referenciais (Ruhloff, 1993; Peukert, 2003).
Um dos principais problemas seria como reinterpretar o ideal de cultivo de si deixando de lado seu conteúdo normativo, num mundo em que o multiculturalismo interdita o estabelecimento de normas universais (Nordenbo, 2003; Koller, 2003; Wimmer, 2001; 2003). Gert Biesta (2002; 2003) pensa que o ideal alemão de formação mantém sua atualidade e seu potencial crítico, mas apenas na condição de ser reinterpretado à luz da ideia de diferença. Segundo Biesta (2003) o conceito de Bildung foi uma resposta educacional a uma questão política bastante específica da Alemanha: como pensar a cidadania numa sociedade civil emergente marcada pela fragmentação. Na mesma linha de Koselleck, Biesta destaca que o sentido do conceito não pode ser pensado como estático ou objetivo, na medida em que aceita muitos usos e interpretações. Assim, caberia a nós fazer um diagnóstico de nosso próprio tempo para questionar que tipo de Bildung é ainda possível num mundo de pluralidade e diferença, em que a ideia de um ideal normativo universalmente válido tornou-se problemática. Essa tarefa, no entanto, passa longe do imediatismo e do pragmatismo que tem orientado as reformas educacionais e a construção do currículo escolar no Brasil. Espero, com este estudo, chamar a atenção para outras formas de pensar a educação afim de aprofundar o debate sobre fins e meios do ensino, debate que tem sido barrado pelo imperativo mercadológico e pela burocratização que caracteriza as políticas educacionais no nosso país.