Introdução
Ao partirmos de reflexões produzidas na interface entre Psicanálise e Cinema, pretendemos extrair alguns efeitos metodológicos para a pesquisa-intervenção com adolescentes no campo da Educação em diálogo com a Psicanálise. Tomamos a experiência realizada com a escuta de jovens em uma escola pública situada em uma região com altos índices de violência e vulnerabilidade de nossa cidade.
Fruto de uma pesquisa-extensão1 que desenvolvemos no período de 2013 a 2014, o chamado Cine na Escola fundamentou-se no oferecimento de sessões de cinema em conjugação com a abertura de um espaço de circulação da palavra. Desde o início, nosso intuito era não só utilizar o cinema como disparador da fala, mas também como um modo de criar condições para que, do enlace de histórias pessoais dos adolescentes com as ficções cinematográficas, pudesse surgir a dimensão de outras nuances e novos olhares acerca do mundo e de suas vidas.
Durante, aproximadamente, seis meses, o Cine na Escola foi realizado em caráter semanal e acompanhado por uma dupla de bolsistas-pesquisadoras - graduandas que integram o grupo de pesquisa2 e que, sob supervisão da pesquisadora proponente da pesquisa-extensão, realizaram o trabalho de campo junto aos adolescentes considerados socialmente como das margens. Como direção da pesquisa, tínhamos o objetivo de discutir com os jovens o que se produzia no e do encontro entre eles, as narrativas imagéticas e a escuta das pesquisadoras. Ao profanarmos o uso utilitário, escolarizado e didatizante do cinema, apostamos na abertura ao inusitado que poderia dali surgir, convidando os adolescentes a deslizarem das produções cheias de certeza aos sentidos plurais.
Escolhemos o cinema, justamente porque se pode dizer que ele instituiu uma das experiências culturais mais intensas desde o início do século XX. As narrativas fílmicas, da mesma forma que outras narrativas do laço social, vêm levando aos sujeitos perspectivas diversas a respeito de conceitos e valores de cada cultura e de cada tempo social. Além disso, o desenvolvimento de todo o aparato técnico do cinema tem possibilitado, por meio da riqueza imagética e da tecnologia, a expressão de questões e reflexões em âmbitos extraordinários. Tanto para o campo da Educação, como para a Psicanálise, a linguagem cinematográfica tem se caracterizado como uma experiência estética e cultural de extrema pluralidade.
No que se refere à adolescência, acreditamos que a utilização de filmes relacionados ao que se problematiza nesse tempo de passagem pode configurar um dispositivo potente de intervenção nas bordas da saúde mental e da educação (Gurski; Strzykalski, 2018b). A criação de um espaço de escuta e intervenção com jovens que, além de terem acesso limitado aos bens culturais, dentre eles o cinema, muitas vezes, carecem de espaços para falar de si e das questões que os inquietam, pareceu-nos um caminho potente a fim de esburacar o cotidiano frequentemente rígido da instituição escolar. É como se, em nome da transmissão do saber dos conteúdos, fundamentados nas certezas científicas, a escola estivesse deixando de reconhecer a importância que pode advir da oferta de espaços que acolham o não saber de seus alunos, dando algum lugar às narrativas singulares.
Importa-nos essa dimensão do não saber, das lacunas e brechas da linguagem, pois, segundo Lacan (1985), a estrutura do inconsciente é a da hiância, da fenda, do intervalo entre o que não existe e o que está prestes a existir, conceito que caracteriza, portanto, algo pré-ontológico. Nesse diapasão, não se trata de ser ou não ser, mas de uma falta-a-ser. Essa dimensão da falta apresenta-se radicalmente aos falasseres, sujeitos que, por um lado, encontram-se envoltos por um corpo pulsional que demanda satisfação constantemente, e que, por outro, não possuem, na linguagem, um objeto ideal capaz de se ligar às pulsões e apaziguar por completo o mal-estar derivado da impossibilidade de escoar a tensão gerada.
Para problematizar essa questão de uma falta estrutural e estruturante do sujeito, recorremos à noção de que o sujeito é faltante em relação à estrutura do inconsciente e seus significantes. Em seu Seminário 11, Lacan (1985) parte da premissa de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Ele passa a tomar o sujeito do inconsciente freudiano em termos de significante - aquilo que, per si, é apenas um lugar vazio, essencialmente falta-a-ser. Por conta disso, o sujeito não pode ser nomeado ou definido através de um significante desarticulado da cadeia inconsciente, sendo apenas representado no nível do que um significante representa para outro significante. Essa articulação na linguagem é o que garante a ele, ainda que de forma evanescente, certa consistência imaginária e simbólica.
Essencialmente, então, temos o sujeito do inconsciente como um sujeito sem qualidades (Elia, 2000). É ao ter a carne marcada pelos significantes oferecidos pela linguagem que ele vai constituindo uma densidade imaginária a partir das identificações que o constituem, fazendo com que ele possa responder, por exemplo, qual é o seu lugar no mundo - justamente o maior desafio com que os adolescentes se deparam. Assim, o sujeito passa a vida tentando recobrir o fato de ter algo que sempre escapa ao significante - a falta que se coloca entre aquilo que ele pensa de si mesmo e seu psiquismo inconsciente que não é qualidade, mas forma, forma de hiância, de vazio irredutível.
Sabemos que os adolescentes3 que participaram do Cine na Escola vivenciam cotidianamente e de diferentes formas as manifestações de violência e vulnerabilidade social naquele território em que residem e estudam. Uma dessas manifestações, talvez mais sutil, mas não menos nociva, que os frequentes tiroteios e abordagens policiais truculentas que os adolescentes nos relataram, refere-se ao que Debieux (2016) nomeia de desamparo discursivo. Tal faceta do desamparo seria experimentada por aqueles que acabam tomando certos discursos sociais como discurso do Outro, promovendo, portanto, o apagamento da possibilidade de fazer polissemia frente a uma espécie de colamento hermético do sujeito a certos significantes que são atribuídos a ele. Isso é problemático, porque, como vimos, há sempre um ponto de indefinição do sujeito que nenhum significante último é capaz de dar conta. Na Escola, parece-nos que isso tem se manifestado, por exemplo, pela via da relação chapada entre adolescência e uso de substâncias ilícitas.
Durante o Cine na Escola, escutamos relatos de que, quando a instituição escolar descobria que um aluno estava fazendo uso de maconha, os significantes aluno e adolescente davam lugar ao drogado e perigoso. Não se trata de acharmos que a escola devesse, então, permitir o uso de substâncias ilícitas, mas, sim, que ela pudesse permitir o uso da palavra, dando espaço para que os alunos pudessem falar sobre tal temática mais abertamente e sem represálias, convocando-os a situar que função tem tido para eles a droga para além somente de um mal a ser extirpado.
Trata-se, portanto, de pensar sobre a inserção de filmes na escola realmente como um Outro4, isto é, um outro lugar de transmissão, um outro modo de transmissão que aposta tanto na pluralidade dos discursos, quanto no saber da experiência dos adolescentes. Isso porque uma das noções importantes acerca dos diálogos possíveis da Educação com o Cinema e com a Psicanálise refere-se, exatamente, à dimensão de que das vivências podem decantar experiências (Benjamin, 1994b; Gurski, 2012; Gurski; Strzykalski, 2018b).
A propalada crise da educação e o mal-estar juvenil dela decorrente podem ser relacionados ao que temos denominado de empobrecimento da dimensão da experiência e de sua transmissão. Assim, partindo de tais conceitos, bem como da operatividade do cinema como um modo de produção de experiência, a investigação de que trata este artigo busca refletir em que medida um espaço de transmissão de filmes, em conjugação com intervenções que buscam assegurar a circulação da palavra, pode constituir um dispositivo capaz de produzir efeitos para o adensamento da experiência na passagem adolescente, podendo configurar-se como dispositivo de intervenção em saúde-mental infanto-juvenil.
O Enlace entre Psicanálise, Cinema e Educação
"Feche os olhos e veja" (Joyce, 2005, p. 44). É em Ulisses, de James Joyce, que o personagem afirma que é preciso fechar os olhos para capturar a realidade. A Psicanálise reconhece uma diferença expressa entre o ver (função biológica) e o olhar - objeto da pulsão escópica, que trata da dimensão do Desejo, daquilo que é desconhecido para o próprio sujeito que vê. Segundo Quinet (2002, p. 10),
[...] em Psicanálise, o olho possui, para além da visão, a atividade libidinal. Onde os antigos têm o conceito de raio visual e o fogo do olhar, a Psicanálise descobriu a libido de ver e o objeto olhar como manifestação da vida sexual. Lá onde estava a visão, Freud descobre a pulsão.
Tal encontro com o desconhecido, com o impossível, com o real5, com a fenda do sujeito, torna-se viável quando fechamos os olhos, tal como no espaço do sonho. Ou, ainda, quando temos uma experiência com o cinema, em "[...] um recinto escuro e silencioso, onde o mundo é colocado em parênteses" (Fernandes, 2005, p. 69). Neste sentido, compartilhamos da afirmação de Fernandes (2005) de que cinema é sonho e fantasia.
Em função dessa proximidade da sétima arte com a dimensão onírica, muitas já foram as tentativas de estabelecer um diálogo entre os campos da Psicanálise e do Cinema. Além disso, o cinema, com sua singular linguagem, é considerado uma das principais inovações tecnológicas e imagéticas do século XX. Nessa direção, a linguagem cinematográfica tem se transformado em uma experiência quase fundamental do ponto de vista ético, estético e cultural também para o campo da educação! Partimos da noção de que Cinema e Psicanálise se aproximam, pois além de serem contemporâneos, trabalham com imagens e contribuem para a construção do olhar e do sujeito. Neste sentido, podemos pensar também no enlace de ambos com a Educação, sublinhando a importância do espaço escolar e da sua relação com a formação de crianças e adolescentes.
Importa destacar que, no enlace da Psicanálise com a Educação, a possibilidade de surgimento do sujeito do Desejo, no espaço educacional, toma todo seu sentido. Compartilhamos com Gutierra (2003) da afirmação de que é necessário que o espaço escolar trabalhe com o conceito de educação sem negligenciar que esta última sempre implica um saber que ultrapassa o conhecimento. Quer dizer, aquilo que surge entre os atores está para além do saber formal ou do conteúdo pedagógico, mas não deixa de estar em relação ao ato de transmitir. Assim, a educação, acima de tudo, assume o dever de sustentar a lei e a cultura, ou seja, algo da função paterna (Gutierra, 2003).
Podemos pensar na função paterna justamente como um movimento de fechamento e de abertura que participa da constituição do sujeito. Conforme Lacan (1998), o fechamento é uma espécie de alienação que propicia os contornos necessários, a nomeação, o desejo, os limites do corpo para que possa, mais tarde, separar-se, abrir-se e falar em nome próprio. De certa forma, a educação, ao oferecer a abertura ao sujeito e à palavra, também pode assumir certa dimensão da função paterna, propiciando condições de nomeação de novos sentidos.
A palavra, de modo geral, circula no ambiente escolar, até mesmo por ele se constituir como um espaço de trocas entre os sujeitos e fazer parte do campo social. Ora, sabemos que o discurso social circula ali, porém, nos perguntamos: de que forma isso tem acontecido? Em muitos momentos, parece que tal discurso, na instituição escolar, está sendo tomado no formato de regras, apontando para formas pausterizadas de circulação da palavra. Ou melhor, não como um modo que lembra um círculo, mas uma seta reta, de cima para baixo ou de um lado para o outro, sem possibilidade de ser reconhecida a importância do retorno dessa palavra - em suma, a volta que a seta poderia fazer.
Tal alegoria da seta-reta pode ser observada na relação educação-cinema e sua forma de utilização no espaço escolar. O uso de filmes como ilustração dos conteúdos, por exemplo, costuma ser o modo mais frequente de interação com a linguagem do cinema na escola. A instituição escolar, ao utilizar o cinema como uma figuração daquilo que está sendo ensinado, empobrece a dimensão da experiência ética e estética, deixando passar uma série de nuances que a linguagem da sétima arte tem possibilidade de oferecer. Nesse sentido importa lembrarmo-nos da interrogação suscitada por Gurski, Vasquez e Moschen (2013, p. 242), quando se debruçam sobre os efeitos advindos do enlace entre Psicanálise, Educação e Cinema e perguntam: "Como fazer com que a dimensão da imaginação e do sonho, sempre presentes nas narrativas do cinema, possam alçar um voo maior, constituindo uma espécie de experiência aurática com a imagem e/ou com a história na tela?".
O conceito de aura na obra de Benjamin é bastante complexo e está ligado ao caráter transcendente, fugidio e distante da obra de arte. Ou seja, aquilo que, apesar da proximidade, encontra-se sempre um pouco longe, a distância intransponível do objeto artístico que remete à ideia filosófica do belo. Benjamin (1994b), na elaboração da sua teoria sobre o empobrecimento da experiência, via na mudança de posição, com a tradição cultural, um efeito da era da reprodutibilidade técnica e, portanto, uma modificação no modo de o homem moderno perceber a arte. Este deixara de ver a obra em sua dimensão sacra e singular, para vê-la como um objeto de consumo. Benjamin (1994a, p. 168) diz: "[...] o conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a aura". Ele define a aura como "[...] uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja" (Benjamin, 1994a, p. 101).
Conforme Rivera (2007), arte e Psicanálise possuem como potência a convocação do sujeito e da fantasia, desdobrando-se aí um convite à criação e à invenção do novo: outras formas de constituir-se sujeito, de (re)contar sua história, de experiência e de profanação da mesma. Utilizamos o conceito de profanar como Agamben (2007, p. 58) o emprega em seu livro Profanações, no qual afirma que há uma separação (im)possível e, ao mesmo tempo, necessária entre o profano (aquilo que seria para o uso humano), e o sagrado (aquilo que carregaria algo de intocável). Se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens.
A criação, ou a possibilidade da mesma, para o autor, se dá quando se ignora, ou se desconhece essa separação estabelecida6 entre as esferas - divina e humana - e, assim, burlam-se as regras pré-concebidas e fixadas. Esta devolução do uso à dimensão humana relaciona-se com o campo da política, da transgressão e da (re)novação, no qual se retiram as coisas de suas relações costumeiras e esperadas e se constroem novas relações possíveis e singulares. Isso pode ser visto no jogo infantil, em que a criança faz uso de qualquer peça ou resto e brinca, o que quer dizer que transforma o objeto em um outro, com um novo uso desse mesmo, não mais com seu valor apenas utilitário.
O cinema, além de representar a realidade por meio de mitos, ideologias e mesmo dos códigos das diferentes culturas, também opera a partir de práticas que significam e ressignificam conceitos, hábitos e valores. Ao mesmo tempo que traz elementos da cultura, a narrativa fílmica os transforma, reordenando sentidos e criando novos e múltiplos significados (Gurski; Vasquez; Moschen, 2013).
Entretanto, seu uso ainda é considerado tímido no campo da educação e da promoção de saúde, como visto anteriormente. Ismail Xavier (2008) enfatiza o papel decisivo e formador da educação por meio do cinema, como arte e entretenimento. Muito além de uma metodologia de ensino, com um princípio pedagógico, o autor destaca a força da formação informal e cotidiana. Mais do que passar conteúdos, aponta para a importância de incentivar a reflexão e a transmissão de valores, de diferentes visões de mundo, assim como da ampliação de conhecimento e de repertório.
Nessa direção e a partir dos apontamentos de Fischer e Marcello (2011, p. 508), concordamos em não reduzir a discussão possível acerca do cinema à indicação tácita e utilitária de seu uso como ferramenta educativa. Ao contrário:
Para quem pesquisa e estuda cinema na educação, o primeiro passo é, efetivamente, perceber um filme, entregar-se a ele, e não tentar de imediato interpretar, analisar; importa deixar-se invadir pelas imagens, deixar-se emocionar, comover-se, muitas vezes, mesmo sem saber se algo realmente significa isto ou aquilo.
Outros Olhares: cinema, educação e o tema da experiência
Entendemos que um enlace possível entre a educação e o cinema é exatamente a relação com o tema da experiência. Façamos aqui uma breve digressão, pois é desde os escritos de Walter Benjamin que retiramos o conceito potente de experiência. Em seus estudos da década de 1930, acerca da crítica aos novos modos de transmissão da cultura, Benjamin (1994b) contrapõe ao conceito de experiência, Erfahrung, o conceito de vivência, Erlebnis. Este último seria uma forma de experiência isolada, que não faz laço e não carrega nenhum valor coletivo, enquanto a dimensão da experiência, propriamente dita, estaria dada pela possibilidade de um acontecimento, do fato de uma vivência transformar-se em experiência, exatamente ao ser narrada e transmitida, ou seja, ao ser compartilhada.
Pensando no que se tem visto em sala de aula, em termos de uso da potência da imagem como transmissora da experiência, na relação professor-aluno, apostamos na possibilidade de que a profanação dessa relação tenha a força de produzir algo novo nesse encontro. Talvez essa seja uma característica da imagem na contemporaneidade: apresentar-se como uma representação que não basta em si mesma, não se esgota como reflexo da realidade, mas põe esta em questão e convida a uma procura por meio da imagem. Uma busca capaz de levar o sujeito a se (re)posicionar ante a imagem, incitando a (re)montagens pulsionais (Rivera, 2006, p. 72).
Sublinhamos, mais uma vez, que o intuito deste trabalho com os adolescentes é exatamente sair do caráter representativo da imagem e do cinema, a fim de abrir espaço ao inusitado, profanando tanto a dimensão da interpretação de sentidos, quanto seu uso. Nessa proposta de intervenção, buscamos trabalhar com temas caros aos jovens, criando um espaço de escuta dos mesmos. Ao elegermos as narrativas do cinema como um mote inicial para os adolescentes tomarem a palavra, falarem das imagens, das narrativas e dos personagens, oferecemos a eles a oportunidade de colocarem na dimensão da palavra as vivências, percepções e olhares que dirigem àquilo que assistem na tela (Barros; Gurski, 2013). Não se trata de terem de falar de si, necessariamente, mas, na medida em que se inquietam e são convidados a falar em um espaço no qual há uma escuta, torna-se possível a criação de novos textos, outros sentidos.
Talvez caiba aqui uma breve explicitação acerca do viés metodológico presente na construção deste trabalho, não só de escrita, mas de pesquisa-intervenção. A Psicanálise, como método de investigação, destaca a escuta e a atenção flutuante e situa-se no campo da relação transferencial, no qual circula o sujeito, o inconsciente e o Outro. O que se processa, nessa dinâmica, é a constituição de um campo no qual o sujeito possa falar e, ao falar, possa escutar a si próprio e apropriar-se de um outro modo de seu dizer.
Conforme Costa e Poli (2006, p. 15), "[...] o sujeito na pesquisa em Psicanálise é, pois, aquele que, através da linguagem e na linguagem - assujeitado às leis que a organizam -, constitui o universo físico como universo discursivo, trazendo junto a marca de sua presença". Ao mesmo tempo em que há a possibilidade de surgimento do sujeito no discurso, há também a profanação do sentido e a abertura para a invenção de uma nova forma de narrar e de se narrar. Isso ocorre exatamente por meio do que chamamos de campo transferencial, em que há um terceiro como referência para tal surgimento.
Concordamos, portanto, com a afirmação de Debieux (2004, p. 343) de que "[...] a pesquisa é a escrita do próprio processo incluindo o pesquisador", ou seja, é nessa referência ao outro do pesquisador, daquele que escuta e se autoriza, que surge a possibilidade da emergência do sujeito - neste caso, dos adolescentes com os quais trabalhamos. É no espaço que se abre no Outro que surge a possibilidade do registro. Registrar é representar o que se inscreve no corpo, desde a relação com o Outro, e é, também, o que permite que o sujeito saiba quem ele é e qual é seu nome. Nesse sentido, o registro é outra forma de falar do sujeito e da memória (Gurski, 2012).
O registro se dá a partir desse endereçamento ao Outro. Relato, narrativa e registro, em que se relacionam memória e transmissão. É nesse diapasão que se oferece o espaço para a produção de algo novo. Ou seja, acima de tudo, buscamos produzir, por meio da transmissão de filmes, uma espécie de audiência assinada7, um modo de ofertar condições que possam ajudar os jovens a se autorizarem a criar(-se), a partir do que assistem, na via não só de poder assinar o que veem, mas de profanar essas imagens "[...] na medida em que ver é permitir ir além, em que ver é também criar, em que no ato de ver colocamos sempre um pouco de nós mesmos" (Fischer; Marcello, 2011, p. 516). Passemos, então, à exploração do cinema como recurso de intervenção com adolescentes no âmbito da escola para, a seguir, tensionar esta proposta, com elementos da Psicanálise.
Cine na Escola: um modo de profanação?
A escola, ao promover o encontro do adolescente com o cinema, pode abrir uma possibilidade diferente para além do ensinar. Isso pode ocorrer quando a sétima arte encontra-se com uma experiência política, artística, social ou sensível, como explica Walter Benjamin (1994b).
Vocês gostam de filmes? Foi a partir dessa pergunta, dirigida aos adolescentes participantes do Cine na Escola, que surgiu a proposta de jogarmos mímica. Durante o jogo, percebemos a possibilidade de um espaço, na escola, de compartilhamento de experiências e narrativas:
Um menino de 12 anos, que chamaremos de Francisco8, logo diz que não gosta, já que é 'muito tempo parado'. Propomos, em seguida, o jogo de adivinhação a partir de mímicas com os títulos dos filmes. Dani, outra adolescente do grupo, coloca-se, desde o início, muito disponível, e é a única que se deixa envolver pelo jogo sugerido. Em seguida, os outros vão se soltando, cada um a seu modo. Evidencia-se a dificuldade deles em gesticularem as palavras e expressarem o que querem dizer através de mímica, sem poder falar. Surge então a ideia de que a pessoa que vai fazer a mímica pode convocar alguém para ajudá-la (Excerto de narrativa da pesquisa, 2013).
Tal construção revela já um efeito do compartilhamento que a atividade propõe. Na maioria das vezes, a brincadeira se dá a partir de uma dimensão individual, um contra o outro, funcionando muito como competição. Na escolha do ajudante, a importância da expressão ganha protagonismo e o compartilhamento parece ser o que importa.
Trata-se aqui, portanto, de experiências que passam de narrador a ouvinte, sucessivamente, numa amarração e tessitura construídas em cada momento, em cada agora. Para Benjamin (1993), a história é um tempo pleno de agoras, em que passado, presente e futuro se cruzam, se reorganizam e engendram novas histórias. "Cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos" (Gagnebin, 1993, p. 13).
É o que podemos observar neste fragmento da experiência com os adolescentes, que intitulamos A Noite.
No jogo de mímica, Dani recebe um desafio de Bárbara. Diz que é difícil, titubeia um pouco, mas segue a tentativa de expressar-se: vai até as cortinas azuis da escola, fechando-as uma a uma; apaga as luzes. É a noite (Excerto de narrativa da pesquisa, 2013).
Dani não representa a noite - Dani faz a noite ou, quiçá, constrói o sentimento da noite. Em seu pequeno gesto de fechar as cortinas, profana o dia, o jogo de mímica e a sala costumeira da escola. Cria uma polissemia no tempo e no espaço. O jogo de mímica é conhecido pelo gesto no próprio corpo, Dani ousa, talvez nem saiba, ao derramar as significações que devem ser alcançadas pelos outros presentes no ambiente inteiro. Bárbara começa a abrir as cortinas, João diz que deixe assim, ela insiste (Fim da cena).
Podemos, com esta breve cena, refletir sobre a desacomodação do que vemos (no cinema), para além daquilo que pode vir a ser representado, pois a experiência do cinema trabalha com a polissemia, com a multiplicidade de sentidos que as cenas podem evocar no sujeito: "E eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?" (Didi-Huberman, 2010, p. 30). Ora, a arte parece ter esse inusitado poder de nos surpreender e fascinar. "É como se ganhasse vida enquanto olho. E é, então, ela, a obra que nos olha, nos perscruta e interroga" (Magalhães, 2008, p. 86).
Seguimos no diapasão aberto por Didi-Huberman (2010) e perguntamos: o que afinal pode ser visto quando se fecham os olhos? O que pode acontecer no sentido da experiência quando se fecham as cortinas e, também, a porta da sala de aula? É interessante, neste momento, narrar outro fragmento de nossa experiência com os adolescentes, que nos ajudam a pensar todas as questões apontadas neste escrito. Nomeamos este fragmento de A porta e a vergonha:
Antônio, que está tímido até agora, mostra-se bastante comportado perto dos outros, assim que se fala da dimensão da associação livre, ou seja, que se pode ser o que quiser ali dentro, o menino diz sem muito pensar: 'Tá, então fecha a porta' (Excerto de narrativa da pesquisa, 2013).
A porta parece operar a ligação com a escola, com o ambiente corriqueiro da rotina, onde o corpo mora enquanto disciplinado, esperado, obedecido. A porta, enquanto aberta, parece ser um risco, uma passagem fluída do poder ser. Parafraseando Fernando Pessoa, surge a possibilidade do Eu profundo e dos outros Eu(s). Poder ser outro com o outro, invoca um estranhamento e, ao mesmo tempo, permite a experiência de outra posição de si. Fechar a porta foi a condição de possibilidade para a emergência da brincadeira, ou melhor, do brincar como a produção de outros sentidos e, talvez, de uma certa profanação do espaço da escola. Isso, em algum ponto, relaciona-se com a experiência adolescente. Não a transição, mas o entre. Entre o lado de cá da porta e o outro lado. Assim, fecha-se a porta (fim da cena).
Propomos, portanto, a partir desses elementos, pensar a inserção do cinema na escola como um Outro, um outro lugar de transmissão, um outro modo de relação com a palavra que não deixa de acolher os modos de vida que os adolescentes tem experimentado, mas que entende que esses não se constituem como verdades absolutas e imutáveis desses sujeitos no laço social. A intenção é possibilitar um momento com os jovens em que a dimensão da experiência possa estar mais pronunciada, metaforicamente e literalmente. Ao falarmos de experiência, estamos falando de um espaço onde os acontecimentos têm lugar, e, para isso, é preciso falar de certas condições que a antecedem. Conforme discutem Gurski e Strzykalski (2018b, p. 411), falamos em condições prévias, pois não podemos deixar de considerar "[...] que um acontecimento, tomado como os episódios que vão compondo nossas vidas, como assistir a um filme por exemplo, pode ou não decantar em experiência, não há uma garantia prévia a esse processo, mas uma aposta".
Abrir espaço para a profanação, para a criação, para a (re)invenção do sujeito é a proposta da intervenção com os adolescentes, a partir da arte e da escuta: "Mover-se. Subverter-se. Entrar em movimento entre si e o objeto, sendo tomado então de uma certa vertigem (a vertigem do carretel). Re tornar-se: convocação analítica, convocação artística" (Rivera, 2007, p. 21). Convocação permitida pelo Outro que não se apresenta como total, nesse espaço aberto para a dimensão da experiência pelo Cinema e pela Psicanálise enquanto (outros) recursos metodológicos para o trabalho educativo de pesquisa e de intervenção com os adolescentes.
A propósito da referida possibilidade de movimento e subversão, lembramo-nos do dia em que, durante o Cine na Escola, trabalhamos com o curta-metragem We All Want To Be Young (Box 1824, 2010). Trata-se de uma produção fílmica que compila o resultado de cinco anos de pesquisa (2005-2010) da Box 1824, uma empresa brasileira especializada em tendências de comportamento de consumo. De maneira bastante dinâmica, o curta aborda diferenças econômicas e socioculturais de três gerações distintas: os que nasceram nas décadas de 40/50 (Baby Boomers), 60/70 (Geração X) e 80/90 (Millenials).
Ao assistirem as cenas sobre os chamados Millenials, nomeados como os jovens do contemporâneo, os adolescentes ficaram bastante inquietos: bah, nada a ver, muito forçado, parece coisa da MTV. Alguns deles chegaram a dizer que a adolescência vivida naquele território não corresponderia em nada ao que o curta-metragem apresentava.
Ao recolherem essa repetição na fala dos adolescentes, as bolsistas propuseram que eles pudessem falar mais sobre como seria, então, o adolescer naquele espaço. Aspectos relacionados à violência e vulnerabilidade, tais como a proximidade com o tráfico e com as abordagens policiais de rotina no território, puderam ter espaço para circular, algo que, de fato, não apareceu na produção fílmica.
Tensionar o estranhamento causado pelo encontro com as imagens abriu a possibilidade de não só marcar a diferença, apontando para os elementos que não estavam ali, como também para algumas semelhanças que passaram desapercebidas em uma primeira mirada. O curta nomeia como ansiedade crônica uma das características mais marcante dos Millenials, remetendo, em especial, ao imediatismo, ao pensamento não-linear, à facilidade de cair em um estado de tédio e ao imperativo de adotar uma posição multitarefas em relação à vida. As bolsistas apontaram que, enquanto assistiam, alguns adolescentes estavam, simultaneamente, mexendo em seus smartphones, ouvindo música e conversando com os colegas - uma posição que se aproximava em muito àquela da narrativa fílmica em questão. Tal intervenção fez com que essa nuance do curta-metragem também pudesse ser considerada e discutida, desdobrado um pouco mais o estranhamento inicial.
Comentários Finais: outras nuances, novos caminhos
Para Agamben (2007), uma nova experiência da palavra se dá para além dos fins comunicativos da linguagem, se dá a partir dessa polissemia, da brincadeira com as palavras, do jogo, da profanação, de um outro (novo) uso. O autor (Agamben, 2007, p. 67) afirma que "[...] as formas desse uso só poderão ser inventadas de maneira coletiva", ou seja, "[...] fazer com que o jogo volte à sua vocação puramente profana é uma tarefa política" (Agamben, 2007, p. 60).
Trabalhar com o cinema pode contribuir para trilhar este caminho, ou melhor, para a construção de certa metodologia de intervenção, na medida em que possibilita a convocação do outro, da profanação da palavra, da inscrição de alguma espécie de novo. Para além da ilustração e da representação, a narrativa fílmica instiga a produção de outro texto a partir de uma sequência de imagens. A irredutibilidade entre imagem e linguagem, entre o que se vê e o se diz, pode abrir espaços potentes de criação, ao invés de repetição e fechamento de sentidos (Barros; Gurski, 2013).
Cabe enfatizar que o Cine na Escola sustentou-se na escuta psicanalítica em conjugação com os efeitos éticos-metodológicos do trabalho com o tema da experiência em Walter Benjamin, como inspiração metodológica. Assim, qualquer pesquisa-intervenção que inclua a Psicanálise como referencial teórico-metodológico subverte os pressupostos do que se toma como ciência por meio do dispositivo da transferência, reinserindo a experiência do sujeito, ou seja, a experiência do inconsciente, na pesquisa.
Além do critério da transferência, ressaltamos que toda pesquisa em Psicanálise caracteriza-se como uma pesquisa clínica, não no sentido de utilizar o espaço do setting, mas, sim por considerar a premissa de que as produções do inconsciente, estejam elas em um espaço terapêutico ou não, são passíveis de investigação (Elia, 2000; Gurski, 2010). É justamente nesse sentido que podemos sustentar que o presente estudo - derivado, sobretudo, da experiência com um dispositivo de escuta que amplia as bordas do consultório tradicional - não se afastou dos fundamentos da escuta clínica pautada pela ética da Psicanálise.
Para tanto, o que se processa, nessa dinâmica, é a constituição de um campo transferencial, no qual o pesquisador coloca-se no lugar de um suposto-saber, exatamente para que o sujeito possa falar e, ao falar, possa também escutar-se a si próprio e apropriar-se de seu dizer - o que implica a produção do saber do sujeito e não daquele que escuta. Assim, é importante sublinharmos que a posição de saber do pesquisador é sempre suposta e não de fato (Gurski; Strzykalski, 2018a), já que se trata de um lugar que, ao invés oferecer certezas e modos prontos de como o sujeito deve se orientar no mundo, oferece provocações, apontamentos e interrogações que podem vir a sustentar um espaços de circulação da palavra o mais livre possível das amarras de um Outro totalizante.
Marcelo Checchia (2011), no artigo O inconsciente é a política?, diz que, aparentemente, a história da política em nossa civilização, tomando o termo política como os diferentes modos possíveis de governar a vida, aponta para uma tendência do homem em estabelecer relações de domínio e servidão. O autor também defende que a política não pode ser pensada apartada das relações de poder - geralmente, governar implica que alguns comandem e outros obedeçam. Nesse contexto, sempre há uma figura centralizadora de poder, o Um, instância máxima cuja responsabilidade e autoridade se exercem pelo poder de tomar as decisões finais.
Entendemos que o pesquisador em psicanálise, ao ser convocado a ocupar o lugar de Um na transferência, daquele que detém o saber que falta no sujeito, deve responder desde uma posição que aponte para a inexistência da totalidade. Nesse sentido, a psicanálise, enquanto um método capaz de escutar as manifestações inconscientes do psiquismo, surge justamente de um ato que profanatório que busca outras formas de responder ao poder e à política do Um.
Enlaçar a profanação do Um que surge nos consultórios psicanalíticos tradicionais com o fato de, atualmente, termos nos dedicado à tarefa de levar a psicanálise para outros sítios, como é o caso do Cine na Escola, nos coloca a pensar se esse espaço não poderia ser considerado como um dispositivo de profanação (Broide, 2014). Isso porque, segundo Jorge Broide (2014, online), esses dispositivos:
[...] possibilitam uma verdadeira circulação da palavra e funcionam enquanto espaços de profunda reflexão sobre a vida comunitária e a criação de formas de enfrentamento das questões mais agudas, tais como a morte dos jovens, a gravidez na adolescência, a hegemonia do crime organizado no território, a violência e a corrupção policial e as mais diferentes formas de luta pelos direitos humanos e pela sobrevivência.
Com o Cine na Escola, ao propormos uma certa profanação de lugares e saberes, apostamos na possibilidade de que os adolescentes possam dar à palavra a dimensão de plenitude, no sentido que a Psicanálise dá à palavra plena, a palavra escutada, a partir da dimensão do inconsciente: que dos enunciados possam surgir as enunciações, aquilo que vai para além do que se quer dizer. Entendemos que a criação de novos dispositivos de intervenção, passíveis de incluir a dimensão da experiência e da desconstrução dos sentidos, daquilo que os jovens recebem nas diferentes dimensões das transmissões, é o que pode viabilizar a produção de efeitos de sujeito, em seus processos de subjetivação. Entendemos também que a construção e experimentação de dispositivos como esse, no campo da educação, podem produzir giros e movimentações passíveis de qualificar o lugar do sujeito adolescente na escola e na vida.