Julia Kristeva (1969, p. 15) propõe a substituição da pergunta O que é a linguagem? pela pergunta Como a linguagem pode ser pensada? Com isso em mente, iniciamos nossa reflexão sobre o espaço na e da arte, na e da educação, tentando entender como ambos os campos de realizações diversas podem ser pensados e como suas interseções podem significar também fontes de recursos ao fortalecimento de seu próprio e específico território como território poroso e permeável a agenciamentos diversos para além da disciplinaridade.
A proposição da pensadora búlgaro-francesa nos ocorre em virtude das importantes aproximações, afastamentos e fricções que o campo da arte sofre em relação ao campo da linguagem e, consequentemente, afeta a linguagem no universo da educação. Se a arte pode ser, sem grandes riscos, considerada uma dimensão humana para além do dizível, a imagem visual fora da intenção artística, ao contrário, tem relação intensa com a linguagem, aportando, freando, reduzindo e ampliando enunciados. A imagem na arte escaparia do discurso, se recusaria à redução ao sentido, enquanto a imagem, fora da criação estritamente poética, fragmento ínfimo dos oceanos icônicos da cultura visual, deseja, afirma, anula e reitera, adversária, cúmplice e indissociável, a palavra. Sequiosa de sentidos, a imagem é permeada pela palavra, desafiando a sua intensidade e o seu alcance. Iludindo e fascinando, a imagem corrobora, interrompe e desvia discursos, inocula desejos e intercepta intenções. Tudo sob a habilidade do manejo estético e da capitalização do prazer. Como se, sob a selva de imagens, o desejo espontâneo devesse ser redescoberto como condição basal para a integridade dos sujeitos. A gravidade desta configuração do mundo exigiria a consideração atenta e a intervenção eficaz dos processos formativos, proporcionando efetivos planos de invenção, sobretudo nos espaços e tempos curriculares de maior afinidade e vocação na temática. Arte e imagem comporiam a centralidade do interesse do referido espaço disciplinar contemplado às artes, na medida em que lhe caberia, na melhor das acepções, oportunizar o desfrute dos patrimônios culturais em todas as suas nuances de manifestações, assim como o deleite, para além do aspecto cognitivo, da experiência das práticas criadoras às experiências com o indizível, do conhecimento dos riscos e sabores da iconosfera1 à profilaxia do olhar em benefício do enfrentamento das imagens com o mínimo de sequelas possível.
Evidentemente, ao utilizarmos esses termos afetos à saúde, tomamos o processo de formação escolar, em muitos aspectos, como processo de fortalecimento corpóreo. Em outros termos, a escolarização, nesta perspectiva, compreende o corpo estudante como um corpo oscilante entre o individual e o coletivo, cuja oscilação intensifica sua densidade simbólica, social e imaginal. Um corpo a se defender, em sua pluralidade e multiplicidade, dos riscos e benefícios que tanto a cultura visual quanto a escolarização lhe impõem, entendendo que a educação se dá por meio do entrecruzamento de correntes estéticas diversas, algumas parceiras e outras opostas. Estes contrastes são necessários à urdidura, sempre aberta ao devir, da formação humana, cuja tessitura é constituída de experiências a serem exploradas via os referidos contrastes, experiências oriundas de outros mundos, nem sempre próximos à órbita curricular oficial.
Observamos que a estética, compreendida de forma simplificada, seria a rede de problemas e postulados entre uma filosofia da arte, a teorização do gosto e a teoria do belo. Afirmada como matéria específica com a obra de Alexander G. Baumgarten no século XVIII, a estética desdobra-se, desde então, em produção conceitual fenomenal e de indispensável utilidade ao alargamento do pensamento contemporâneo. Isso permitiu entender a extensão, os limites e a superação da linguagem na constituição e na configuração da humanidade, sobretudo se compreendermos a linguagem como capital nessas realizações e, como em sua origem, insofismável criação poética, na medida em que um sistema simbólico, dependente das ações arbitrárias, não parece ter aproximação mais elucidativa do que a da criação poética. Obviamente, não pretendemos reduzir a associação entre a gênesis da linguagem, “a casa do ser” (Heidegger, 2003, p. 74) e a realização estética, fundo sem fundo humano, apresentado por Lacan, quando comenta:
[...] tomei o exemplo esquemático do vaso para lhes permitir apreender onde se situa a Coisa, na relação que situa o homem em função de médium entre o real e o significante. Essa Coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem pertencem ao registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa - ou, mais exatamente, de ela só poder ser representada por outra coisa. Em toda forma de sublimação, porém, o vazio será determinante. [...] Indico-lhes, desde logo, três modos diferentes, segundo os quais a arte, a religião e o discurso, têm a ver com isso. [...] Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio (Lacan apud Regnault, 2001, p. 15).
Portanto, esse interior do vaso, dimensão inervada de impulsos de existência, leva-nos aos processos de representação, ou seja, a algo não redutível à poesia como literatura, e sim, ao ato de autocriação inerente à condição estruturalmente humana, a produção do sistema simbólico, a linguagem. Reiteramos que a linguagem seria produção estética e poética, mas não, evidentemente, uma categoria literária. Assim, na perspectiva teórica à qual recorremos, o ato poético que emerge do suposto vazio pré-civilizatório, a tal vontade de ser, seria a energia sem nome, ou o que vem antes do nome (Carmen..., 1983), o que a linguagem ainda não conteria, mas aspiraria e emanaria antes do verbo ser pronunciado. Não tratando aqui da poesia como um departamento do instituto da literatura, muito menos a estética como campo de saber outorgado por uma história particular e privada, aludimos ao que investe a criação, ainda advinda do amálgama corpo, vontade e representação (Schopenhauer, 2001).
Considerando e insistindo na energia estética da formação humana, que envolve do indizível à prolixidade das relações imagético-discursivas e à mediação imaginal, trazemos à discussão a formação escolar como ato poético - ainda passível de ser recriado - de resistência às hostilidades do mundo contemporâneo, para além de outras dimensões que a constituem. Afinal, a expressão ato poético, como já tentamos esclarecer, supera as comportas categoriais outorgadas da literatura.
Na perspectiva enunciada, as experiências de ocupação dos espaços coletivos com manifestações poéticas, outorgadas ou não como arte, a poesia contida nas linguagens dos corpos, na criação de vocabulários, na sonoridade das vozes, assim como no entrecruzamento de materialidades e imaginários, emergem como significativo e estimulante meio de resistência. Estes processos aprofundam afinidades entre os sujeitos expostos a semelhantes condições e condicionantes, onde se dão espontaneamente inúmeras criações de novas formas de existência capazes de, se não transformar cada indivíduo e o seu contexto social, quebrar hierarquias, na acepção da ecologia de saberes (Santos, 2010). Ao ampliar o sentido de autoria e avançar na produção, mesmo que provisória, da autonomia, cada um e seus coletivos criam espaço para a afirmação de suas visibilidades, ou seja, das suas formas de existir e resistir, com suas especificidades e misturas, suas manifestações culturais, espiritualidades e afetos.
Nestes espaços, conhecimentos são tecidos a partir da percepção do mundo, da experiência, da presença, o que, segundo Gumbrecht (2015), merece prioridade em relação à prática da interpretação, do decifrar cognitivo que atribui sentido aos objetos e nessa atribuição suspende a criação de sensações e entendimentos. A noção gumbrechtiana de presença resgata a relação material e espacial com o mundo das coisas, considerando o corpo como parte integrante de nossa existência. A presença é considerada por sua relação espacial com o mundo e seus objetos, mais do que por uma relação temporal, sendo presentes as coisas tangíveis por mãos humanas, que têm impacto imediato em corpos humanos. Nos espaços da arte, é ampliada a possibilidade das ditas coisas do mundo, imbuídas de imediatez, impactarem os corpos, eventos e processos nos quais se dá a produção de presença, onde se realiza e se intensifica este impacto.
Reconhecemos que não é possível escapar completamente dos ritmos e das estruturas que constituem o nosso presente globalizado, mercantilizado, nem das suas formas de comunicação, mas, como acena Gumbrecht (2015), ao nos agarrarmos com firmeza à possibilidade de o conseguir, encontramos alguma alternativa ao que aceitamos muito rapidamente como normal.
Destacamos a potência do ato poético em todas as suas possibilidades de emergência para, se não a superação das estratégias de dominação e constrangimento social, a prática de táticas políticas e culturais de resistência, na medida em que a criação estética e seu desfrute são planos inalienáveis da vida em qualquer de suas dimensões e órbitas. Assim, a criação de meios de suporte e condução da vida cotidiana implica no apelo espontâneo à criação estética que configura a aludida potência, indispensável à saída do confinamento nos espaços de toda ordem de violência. A pertinência de tal assertiva é evidente na pasteurização, apagamento e coerção impostos a muitos conhecimentos e produções culturais cujas autenticidade e originalidade contrariam os interesses hegemônicos. Portanto, simultânea à atividade das forças de aniquilação ou entropia, redes de solidariedade, de fruição estética, na partilha do sensível (Rancière, 2009), fissuram as blindagens do que lhes é contrário e impõem deslocamento do poder via novas redes de saberes/fazeres/poderes, mesmo que em discretas e fugidias operações de caça (Certeau, 1994).
Evidentemente, na aproximação da irredutível, a um só termo ou conceito, criação estética entendida como arte às ações políticas, aqui tomadas como afirmação e resistência da diversidade humana no amplo panorama planetário, é ainda importante problematizar o sentido, dentre a complexa polissemia do termo, ao qual nos referimos. Arte, criação estética ou poética são termos de importância central em muitos aspectos do esforço para a elucidação ou estudo de fatores da condição humana, que não raro são confundidos ou estrategicamente embaralhados. A arte, sob o entendimento e ação estratégica hegemônica, é definida por um conjunto de obras legitimado por um sistema habilmente articulado, constituído pelo seu específico mercado, pelos equipamentos culturais das cidades, públicos e privados, e a outorga do maquinário academicamente especializado na produção de aparato discursivo elaborador de uma determinada história, teoria e crítica da arte - produção originária da Europa no século XVI e que hoje respalda a rede de equipamentos culturais de matriz ocidental que se estende por quase todo o planeta.
Nos interessa, contudo, a produção poética, estética, não necessariamente semelhante e identificada com o conjunto de obras outorgadas como de arte pelo sistema da arte, por sua crítica, comércio e história específicos, alertando que a localização e o compromisso de cada termo é político e inseparável, evidentemente, de certa adesão ideológica e certo jogo de desejos (Victorio Filho, 2013). A localização das produções culturais nos espaços expositivos para as diversas modalidades artísticas e suas etiquetações é inseparável da administração da população e de sua localização na cidade. A coletivização e reconhecimento de uma produção estética qualquer e o seu credenciamento cultural faz parte das estratégias de governo que, ao deslocarem a produção artística e cultural não acolhida no lugar dos saberes artísticos e científicos hegemônicos, definem seu alcance e eloquência política. Tal economia cultural, por exemplo, coloca determinada obra no lugar da etnologia e não da arte, associando-a ao saber popular e ao senso comum, distanciados, evidentemente, do patamar vigiado e privilegiado do saber científico. Assim, as culturas historicamente inferiorizadas frente ao modelo eurocêntrico, como são as produções originárias dos cotidianos e das tradições populares, são invisibilizadas ou reduzidas a imagens dramaticamente fragilizadas em relação ao que representariam.
De todo modo, sendo ou não reconhecida como arte, toda produção estruturalmente nutrida de força estética e importância simbólica, como a realização poética popular, produz experiências e movimenta seus autores, fruidores e contextos em que é criada independente das categorizações e demais sentidos que lhes tentam imputar. É o que nos permite considerá-la como aposta na existência, reiteração fundamental dos elos de consistência societal (Maffesoli, 2009), elos que explicitam as inseparáveis dimensões educativa e política. Em outros termos, a criação artística reiteraria a resistência societal ao que se lhe opõe e desfavorece. Assim, as produções outras, ditas populares, são expostas ao atravessamento dos conhecimentos e saberes de interesse do outro lado abissal (Santos, 2010), cujo procedimento colonial pressupõe invisibilizar, subalternizar, silenciar e mesmo aniquilar mundo afora, reafirmando os territórios afastados pela abissalidade inerente ao jogo colonial.
Pensar o fazer artístico, dentro de uma abordagem epistemológico-metodológica pós-abissal, na qual sensibilidades, subjetividades e alteridades seriam contempladas pela visibilidade e escuta e, portanto, reconhecidas as suas potências estética e criadora, seria urgentemente necessário à formação compatível com os desafios da contemporaneidade. Reconhecendo, sobretudo, que existe o ponto de vista abissal, injusto e desigual, que divide a produção artístico-cultural de forma binária (bom/ruim, feio/belo), tentando jogar no abismo diversos conhecimentos produzidos pelos indivíduos, em suas criações, circulação e desfrute cotidianos (Certeau, 1994), despotencializando suas presenças e participação social. A indagação inevitável é a respeito do papel da arte amplamente praticada nas diversificadas maneiras de participar e fomentar contextos sociais e culturais, na e para a formação humana, de forma plural.
A arte como resistência estética, política, poética e cultural produz sentidos nas redes onde se estabelecem diálogos, encontros de experiências e intercâmbios de saberes. De grande fertilidade para o estímulo da fala e o apelo à escuta, é, portanto, favorável à problematização dos silenciamentos dominantes na atualidade marcada pela fugacidade das experiências sociais, assédio imagético desmedido, consumo narcotizante de experiências estéticas rasas e pasteurização, até mesmo, dos ícones da cultura dominante. Esta circunstância exige cada vez mais a atenção do campo curricular do ensino da arte para as culturas tradicionais, como as indígenas, os valores da ancestralidade africana e seus desdobramentos na América, bem como os saberes e estéticas femininas, historicamente omitidas, deturpadas, negadas e apagadas desde a Idade Média.
A indagação que se segue diz respeito à possibilidade de um plano de imanência com múltiplas e diversificadas rotas de fuga para a atualização do entendimento da arte praticada de modo a propiciar a valorização e a exploração democrática de sua pluralidade, a despeito da discriminação e demais violências simbólicas comuns aos espaços oficiais de fruição artística. Em outras palavras, aventamos a descolonização da arte e dos saberes como um caminho promissor para a realização democrática, como seria a finalística da educação. Para tanto, é preciso refletir sobre que tipo de conhecimento tem caracterizado a arte nos espaços públicos oficialmente a ela dedicados e sobre as contribuições que os projetos museais, de espaços sonoros, cênicos e demais instituições dedicadas à arte oferecem e o que, de fato, realizam na formação cidadã.
A cartografia resultante desse esforço não oferecerá uma única resposta às questões consequentemente elencadas, tampouco finalizará o entendimento da problemática resultante da participação da arte na educação. Contudo, é o esforço de reconsiderar e recuperar trajetórias e mudanças conceituais, consonantes com a ideia de processos que a arte pode promover, seja de sentidos e significados ou de dispensa desses ou, finalmente, pelo arcabouço de invenções e ordinariedades (Certeau, 1994), como algo novo e potente para a formação humana dos que circulam nos espaços politicamente destinados à fruição poética, sonora, performática, dançante, imagética, e dos sujeitos e coletivos que instituem tais produções e gozam seus desfrutes a despeito de qualquer territorialidade, outorga ou orientação. Sujeitos criadores de possíveis, via desobediência, indisciplina e recusa às normas que não trazem qualquer afinidade com as suas matilhas (Deleuze; Guattari, 1997).
Diante do aspecto político-epistemológico que dá nervura ao tema, catalisar a prática artística ou ao menos perspectivá-la em torno do pensamento pós-abissal (Santos, 2010) pode ser um caminho contra a violência que se aplica nos espaços de validação cultural, bem como o afrouxamento de suas cercas. Santos considera pensamento pós-abissal o que tem por base reconhecer que “[...] a exclusão social no seu sentido mais amplo toma diferentes formas conforme é determinada por uma linha abissal e que, enquanto a exclusão abissalmente definida persistir, não será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista” (Santos, 2009, p. 43). Deste modo, em benefício da formação humana compatível com os desafios da atualidade, se reconhece necessário criar formas artisadas de encontro com aquilo que é novo e ordinário na complexa teia do cotidiano. Na mesma ação de relação inexorável de perceber, sentir e viver a arte, decorreria a produção e o reconhecimento das singularidades, das contradições de sentidos e significados como constituidores da consistência social e não uma plataforma de hierarquias culturais.
Partindo da ideia para a qual Boaventura de Sousa Santos (2010) nos tem chamado a atenção, em relação ao ato pós-abissal de ver e estar no mundo, essa perspectiva parece se relacionar diretamente com a ideia cunhada por Mignolo (2017), ao propor um processo de descolonização do pensamento moderno a partir de três caminhos: o do poder, o do saber e o do ser. Mignolo sugere que estas estruturas estão imbricadas e são geradas no indivíduo que vive mergulhado neste emaranhado constituído por camadas excludentes que não legitimam o conhecimento e os saberes produzidos nos cotidianos. É na validação de determinados conhecimentos que são dominados os sujeitos.
A sociedade política global está constituída não por milhares, mas por milhões de pessoas que se agrupam em projeto para ressurgir, reemergir e re-existir. Isto já é não só resistir, porque resistir significa que as regras do jogo são controladas por alguém a quem resistimos. Os desafios do presente e do futuro consistem em poder imaginar e construir uma vez que nos liberamos da matriz colonial de poder e nos lançamos ao vazio criador (Mignolo, 2017).
Pensando nos escopos da arte que legitimam o discurso dominante, a crítica que emerge pressupõe descolonizar o que na arte se imporia de saber hegemônico, eurocêntrico, patriarcal e capitalista como meio de romper o processo de poder instituído e outorgado nas práticas artísticas; ruptura esta necessária para conseguimos ir para outro lugar, realizarmos um saber plural, em um desenho de efetiva ecologia de saberes. Sob essa perspectiva, abre-se um campo de possibilidades de conexão com o que é ordinário, com o que é novo e o que, abissalmente, está do outro lado, afastado do lugar dominante, onde os seres se relacionam com outra abordagem, com outra perspectiva de constituir-se como indivíduos no mundo.
Caminhamos por essa esteira de produção de arte, há muito demarcada por uma concepção epistemicida2, que extermina ideias que lhe são distintas ou questionadoras, na medida em que se articula com a pior face do capitalismo, patriarcalismo e colonialismo e, assim, produzem maquinalmente a invisibilidade e o silenciamento de produções estéticas outras, sobretudo as que defendem a exigência da democrática acolhida de saberes e conhecimentos plurais e do seu incondicional reconhecimento.
Para a construção democrática de um processo por meio do qual a arte seja reflexo daquilo que é produzido pela diversidade humana, entendemos que ampliar o conhecimento e a valorização das produções artísticas num contínuo diálogo Sul-Sul é inseparável de qualquer projeto emancipatório. Seria, portanto, imprescindível construir possíveis caminhos e oportunidades que permitam eclodir formas descolonizantes e deslizantes de configuração de novos agenciamentos de cultura e arte, em distintos escopos de atuação, como espaços de produção epistêmica diversa. Evidentemente, nossa ambição não poderia ser a reconfiguração do sistema da arte, mas podemos almejar contribuir com a neutralização dos efeitos de seu discurso elitista e escamoteadamente comercial na formação escolar e artística. Fortalecer as relações com a arte libertas dos postulados culturais afins com o mercado é um dos passos de fortalecimento da ideia de comunidade, na medida em que reconhecemos neste contexto de “cosmopolitismos vernáculos” (Bhabha, 2013) a emergência de novos atores sociais nesta seara da arte, da cultura e da ciência.
Procuramos, também, repensar as relações centro-periferia e buscar entender como as zonas de periferização, para onde são costumeiramente deslocadas estas produções outras, se mostram culturalmente vigorosas neste início do terceiro milênio - ambiente promotor e acolhedor de estéticas não outorgadas que se disseminam, embaladas pela energia de ambientes onde grassam a produção de diferença e a diversidade. Desnaturalizando o termo periferia e reconhecendo que em um planeta esférico, centros e periferias são determinações políticas, seja no plano espacial seja no simbólico, temos as zonas de periferização em relação às benesses sociais, espaços de exclusão nos quais a ação criadora é o que possibilita a sobrevivência material e também simbólica, emergindo, nessas áreas, cenários de produções estéticas que reinventam a cidade que lhes permitem habitar. Essas práticas de criação cotidiana começam com situações que impõem ressignificar os modos tradicionais de pertencimento, de uso, frequência e participação da e na pólis. Aludimos ao que impõe, por sua vez, o deslocamento do olhar para o que estava acontecendo fora da jurisdição e do alcance da hegemonia burguesa, que, inconteste, reforça seus laços de dominação pelo acesso e poder sobre as máquinas-mídias e todo o aparato político-partidário, para continuar aparecendo como o avatar de uma periferia.
O movimento de ausculta desta produção artístico-cultural que emerge das zonas periferizadas da cidade corresponde a uma via de apreensão e leitura que se propõe a pensar o estatuto multicultural de suas criações, suas estratégias de inclusão no âmbito dos circuitos culturais hegemônicos, assim como os modos de reinvenção da produção cultural, que se tornam mais exigentes com a crescente profissionalização do setor. Deste modo, finalmente, destacamos a sua dimensão política a partir dos amplos processos de subjetivação que são desvelados nos momentos especiais de criação artística e de consolidação de novos territórios de cultura na cidade. Caberia ainda observar que tais produções se localizam numa arena modelada pela polifonia cultural das cidades na pós-modernidade, nas quais todas as territorialidades, sobretudo as simbólicas, se desmancham e se refazem a cada instante, ao sabor da emergência de novos atores sociais afirmadores de toda sorte de dissidência.
Os sentidos, as resistências e as reinvenções no cotidiano podem ser problematizados sob uma abordagem epistemológica pós-abissal, posto que produzem conhecimentos diversos, contudo não incompatíveis no amálgama da culturalidade contemporânea. Observamos, nessa complexa cartografia de práticas e caminhos cotidianos, a possibilidade promissora da descolonização do poder, do saber e do ser meio a proposições centradas em práticas contrapedagógicas, não como negação da pedagogia do saber/fazer, mas como modo outro de pensar as relações de construção do saber/fazer em relação à nossa condição de povos do sul - povos colonizados, exterminados e herdeiros, a um só tempo, do maior sequestro da história, o diaspórico e autóctone, e do maior extermínio da história, o dos povos ameríndios que habitavam as Américas. Portanto, o engajamento na crítica do ensino e da formação em arte exige considerar os genocídios e o escravagismo que nos habitam e marcam cada formação ao limite de sua autocrítica. Sem essa dor, a crítica aos discursos outorgantes da arte e da ciência se esvazia antes de sua projeção contra o panorama dominante.
Portanto, pensar pedagogicamente os modos de ensino da arte do Sul é, necessariamente, pensá-los do Sul em relação ao próprio Sul. Dito de outro modo, fazerpensar3 práticas pedagógicas é, justamente, torná-las saberes minoritários. Fazerpensar práticas pedagógicas em relação ao ensino das artes deve partir de leituras a contrapelo dos saberes cunhados e hegemonizados pelos povos do Norte. Não se tratará nem de recusar ou mesmo engolir o outro, mas de construir práticas e procedimentos pedagógicos outros. Afinal, toda arte radical e insurreta que surge entre nós do Sul, de algum modo, se orienta por um devir-outro, em uma perspectiva micropolítica que envolve práticas aliadas à sua poiesis de resistência à oxidação regulatória que ameaça todo processo emancipatório, conforme alerta Boaventura de Sousa Santos.
Levando em consideração os aspectos mencionados, quedamo-nos ainda diante de algumas indagações decorrentes da busca do deslocamento, da inquietude e da produção de outras ideias. Assim, a economia epistêmica é posta em questão precipitando-nos em sua genealogia. Mesmo diante da obviedade da resposta a certos questionamentos, convém, na aventura intelectual aqui colocada, interrogar a atualidade das razões para ensinarmos e aprendermos sob bases de certezas pretéritas, mas ainda dominantes. Nesse enfrentamento, poderemos alcançar certo estarrecimento contraditoriamente alentador, ao encarar a cartografia dos entrecruzamentos entre o que os indivíduos aprendem, o que efetivamente os professores almejariam dos seus estudantes e os sentidos e significados da escola hipotética e concretamente múltipla em seus planos e práticas, estudo e produções artísticas. Apostamos que algumas constatações seriam inevitáveis, como a sobrevivência do desejo de educar para a emancipação por meio da promoção das redes de saberes que, por sua vez, implica no reconhecimento dos currículos praticadospensados4 (Oliveira, 2012) como realidade de tensões, negociações, conflitos, de alteridade e de originalidade. Portanto, a aludida cartografia nos convenceria de que a escola ainda anseia ser habitada pela atuação franca e generosa da diversidade e retomar os espaços educativos e artísticos como espaços de encontro vocacionados para a efetivação de coletividades, da fusão entre aprendizes e mestres, que inventaria ou ajustaria o mundo ao sabor das redes de saberes ali mesmo tecidas e dinamizadas.
O encaminhamento da argumentação que aqui oferecemos tem, como força de projeção, a discussão entre ética e estética, pois entendemos ser necessário partir de alguns questionamentos sobre que planos, ideias e/ou práticas estão baseadas as ações artísticas que experienciamos, produzimos, defendemos e coletivizamos por meio do ensino. Tais questionamentos, que discorremos ao longo das páginas anteriores, tocam ações visíveis e invisíveis, epistemologias, práticas, poéticas e ações - outras.
O papel de viver o participante aprendiz e praticante, como nos diz Certeau (1994), desprovido do controle de tudo que vem depois, e de quem aprende ao mesmo tempo que os coordenados participantes do processo coletivo de ensinoaprendizagem e de desfrute e produção artística, mobiliza a memória das práticas, de concepções, de convicções de ideias. Nessa ebulição de conflitos e negociações internas, a ação de catalisar e promover reflexões e contrapor entendimentos exige atenção, tensão e aproximação de afetos que emergem mais ou menos conscientes, mais ou menos ordenáveis, e constituem, de um modo ou de outro, as realidades das escolas.
Em O espectador emancipado, Jacques Rancière (2012, p. 18) ressalta que “[...] os espectadores veem, sentem e compreendem alguma coisa à medida que compõe seu próprio poema, como o fazem, à sua maneira, atores ou dramaturgos, diretores, dançarinos ou performers”. Nesta perspectiva, por ser a arte um processo colaborativo entre criadores e espectadores e na certeza de que temos o potencial criativo porque nos reinventamos todos os dias, voltamos para os diferentes lugares onde habitamos. Mas também habitamos onde permanecemos por um período e produzimos cultura com as pessoas com as quais interagimos. Assim seria o inexorável processo de humanização para cuja efetivação nos aproximamos, buscamos nos apreender, nos compreender, por menos realizáveis que sejam tais anseios.
Ao corroborar com a ideia de Rancière, tendo como referência ou reduzindo a partilha do sensível ao aspecto democrático da experiência estética coletiva, buscamos respaldar nosso diálogo, com o intuito de pensar como a sociedade vem lidando com o binômio direitos e deveres nesse âmbito e as gradações sempre escamoteadas entre esta polaridade. Voltando à escola, à arte e à poética de realização de cada um desses personagens, interrogamos a educação em sua possibilidade de processo político que também constitui a sociedade e, portanto, aspira a outros entendimentos para além do mero olhar crítico que a reduz ao posicionamento em relação às questões hegemônicas.
A arte é espaço de produção contínua de sentidos. Praticada por todos. Os praticantes, enquanto artistas, espectadores, técnicos e toda a rede envolvida no ato artístico, se deslocam de seus lugares pré-estabelecidos e se tornam praticantes, interferindo, produzindo fazeresaberes outros, inesperados, imponderáveis. É inevitável pensar que a arte produz estes deslocamentos e, com Gumbrecht (2010), percebemos a experiência, não apenas como atribuição de sentido, mas como presença que se articula no movimento, provoca os corpos no espaço, onde alguma coisa acontece. Intensifica-se a presença como relação espacial com o mundo e seus objetos, onde ocorre um desvelamento do ser, a emergência de algo que tem uma articulação no espaço.
É também nos entre-lugares (Bhabha, 1998) da arte e das escolas, nos espaçostempos fora do compromisso com a produção do saber e do produto artístico, onde é possível estar fora das demandas em que estes universos do sentido outorgado à arte e ao ensino estão colocados, espaços do cotidiano onde tudo passa sem que nada pareça passar, como lembra José Machado Pais (1993). Nas escolas, para além da sala de aula, onde é legitimada a produção artística, neste mesmo espaço, outras formas artisadas de produção reverberam o mais singelo âmago arte que a coletividade é capaz de produzir, ou seja, deslizantes formas e práticas, ecos ecológicos de fazeresaberes, que se configuram como destituições do formato arte cristalizado.
Entendemos, portanto, que não há como problematizar e trazer soluções provisórias simplistas e reducionistas, como recursos metodológicos de fazer o estudante conseguir interpretar e intervir para dar soluções, ou ter atitudes proativas e demais clichês comuns ao que seria a escola da “república dos bons sentimentos” (Maffesoli, 2009). Compreendendo todos os processos, com as múltiplas experiências constituídas de práticas-didáticas ambiciosamente emancipatórias, planejamento e criação coletivos, conhecimento compartilhado, formação cidadã, lembramos as linhas condutoras, sempre oportunas, do pensamento de Paulo Freire (1996). Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, criticidade, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e assunção da identidade cultural, humildade, tolerância, luta em defesa dos direito dos educadores - e lembramos também dos artistas por meio de suas produções -, alegria, esperança, convicção de que a mudança é possível, curiosidade, comprometimento, saber escutar, disponibilidade para o diálogo, compreender que a educação é forma de intervenção no mundo. A arte na e da educação como (re)existência também é exercício de poder e de experiência com o indizível, que, fatalmente remete à condição de cimentação societal básica para a manutenção íntegra da pólis. Portanto, para além das abissalidades a serem vencidas, a arte e a educação ainda nos sugerem, entre outros possíveis, serem recursos úteis aos deslocamentos e distensões nos espaços de escaramuças políticoculturais comuns à vida escolar. Como refere-se Foucault, não tomamos o poder
[...] como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras, mas [buscamos] ter bem presente que o poder - desde que não seja considerado de muito longe - não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (Foucault, 1979, p. 183).
Assim, com Foucault, assumimos que o lugar por onde pensamos não caminha por uma visão romantizada das questões de deslocamento do poder. Pensamos a democracia a partir do poder circulante, que atravessa a todos em seus cotidianos e nas práticas artísticas e educativas presentes nos espaços a ela dedicados e nos demais espaços da vida em que estão.
Na escola, o lugar da arte configura-se a partir um currículo pré-estabelecido, mas este currículo é redesenhado, rediscutido, reelaborado, enquanto vivido. As relações de poder por aqueles que habitam a escola tencionam essa aplicabilidade única e se entretecem, artisando com seus cotidianos, implicando em ampliação, alargamento e flexibilidade deste currículo rígido. O poder único legitimado pelo currículo pré-estabelecido, ou seja, prescrito, é um passo para alocar a democracia em plataforma móvel, em risco. Para nós, o que é praticado (Oliveira, 2012) é potente de criação estética, é potente de criação artística, forma inerente de como os indivíduos se relacionam no cotidiano5.