Introdução
Quando o professor reúne as crianças, não é para informar sobre o alfabeto. É para ensinar-lhes um sistema de ordem. Um sistema de comando que permitirá ou forçará os indivíduos a formar enunciados conforme os enunciados dominantes. E a escola é especialmente útil para isto (Deleuze, 2017, online).
O presente artigo trata de cunhar um conceito aqui denominado obra-aula. Para tal, articula estudos sobre a linguagem com uma prática artística, tendo como orientação o pensamento filosófico de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011b; 2015), bem como atividades1 de Allan Kaprow (2010) e a ideia de artistagem docente desenvolvida por Sandra Corazza (2013). As matérias e conceitos referidos criam zonas de força ao tangenciarem a educação no exercício da docência criadora.
Colocados a criar por dentro de estruturas ressecadas, Kaprow (2003; 2004) propõe, em sua dupla de textos, a Educação do An-Artista (partes I e II), a integração de espaço, matérias e pessoas, envolvendo o espectador na criação das obras. Convoca o que está de fora das galerias e museus a criar uma an-arte, uma evocação das atividades sociais comuns ao interesse do artista (Kaprow, 2003).
O artista parte de um território, de um domínio do ter (Deleuze; Parnet, 1988) em que marca as distâncias e relações de elementos heterogêneos que o compõem (Deleuze; Guattari, 2011a). Espaço que dispensa as hierarquias e subordinações, é orientado para aproximar matérias capazes de avassalar as estruturas, transforma o estabelecido e favorece criações. Nele, os conceitos podem ser criados e estão livres para atingirem suas potências, operando os laços e movendo-os a lugares ainda não habitados.
Para escapar aos modelos educacionais dados e enrijecidos, aposta-se em um devir artista para combater a representação e sucessões de originais (Corazza, 2013). Uma obra-aula traz, para a superfície, “[...] novas e fortes lufadas de enunciação, que nos levam a pensar e a viver a Educação do mesmo modo que um artista pensa e vive sua arte” (Corazza, 2013, p. 19).
A Linguagem de Alan Kaprow: fazer junto
A Arte falhou como instrumento social de felicidade, a multidão não quer ser lembrada da sua infelicidade e de suas barbáries (Kaprow, 2003). Há uma certa convulsão nas atividades artísticas, elas não conseguem perceber que na vida há diversão, que além de problematizar o momento capitalístico, podem trazer o prazer sem ter um código de barras para identificá-lo. Ao usar o jogar-brincar como uma forma de arte e educação, o artista se transforma professor pelo fazer junto.
Tanto em sua produção quanto em suas aulas, uma força no fazer junto é tensionada por Kaprow. Ele vê e crê que uma arte se constrói na colaboração do espectador com a obra, colocando o público a trabalhar com o artista. É mais do que uma estratégia, é uma atividade construtiva e colaborativa que envolve processos coletivos de pensamento.
Kaprow (2003) diz que a arte é um clube, uma atividade fechada e elitista que só interessa a poucos intelectuais pensar e versar sobre. Existem senhas de acesso a este grupo fechado - formas de se tornar sócio e deslocar-se pelos ambientes deste espaço - assumindo riscos e criando caminhos para o artista percorrer.
A an-arte ou a senha um de ingresso é tudo aquilo que não é arte, mas interessa ao artista - são as evocações de fazeres e práticas do cotidiano: situações prontas para um uso artístico. Mas como lidar com a produção artística sem um objeto obra? Essa questão, em alguns contextos, parece estar superada, mas que ainda suscita discussões pela força que carrega.
Historicamente, há produções que desagradam ao clube, mas que mesmo assim, não quebram sua estrutura. O Cubismo, por exemplo, foi chamado pela crítica de aberração, mas era, antes de tudo, a criação de um produto: uma pintura; uma produção técnica humana que mantém seu status de arte, tanto em exposições quanto em locais sacralizados para esse fim (museus e galerias).
A arte cria sensações e, mesmo um público que tenha pouco contato com a produção contemporânea é capaz de dar sentido às subjetividades (Deleuze; Guattari, 2011a) que ela carrega. Não se trata de aprendizagem ou de um significado posto e, sim, o que cada um pode experienciar. Uma linguagem vai sendo criada nessas experimentações, capaz de transformar os sentidos únicos e postos, desaprisionando o homem da interpretação, colocando os discursos indiretos a variar as formas (Deleuze; Guattari, 2011b).
Um caminho na saturação estrutural é aberto, deixando esvair os fluxos pela criação estética e não técnica (Deleuze; Guattari, 2010). Ao subir à superfície, a sensação cria, dentro de possibilidades infinitas, um finito, experienciando o mundo, fazendo este ganhar novas formas de linguagem propícias aos usos menores na arte e na educação.
No que tange à linguagem, ela se faz existir ao dizer e está conjugada com os enunciados socialmente consagrados, “[...] as palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’” (Deleuze; Guattari, 2015, p. 17). Assim, as ordenações que são estabelecidas dentro da arte (não sendo condicionadas a fatores externos) estão dentro de estruturas que abrem caminho às sensações, ganhando subjetivação dentro delas mesmas.
Com isso, a sensação é uma nova fonte de força criadora, uma nova possibilidade de algo que começou no seio do que já está saturado e estruturado. Há uma potência que a move e é responsável pela percepção que temos das coisas e como entramos em contato com o mundo (Schöpke, 2010). Ela imprime em nossos sentidos um propósito transformador - uma forma pela qual nos conectamos com o mundo de maneira subjetiva. Não há ordenação nem objetivação, ela é força na expressão, modificadora do que já é significado. Segundo Deleuze e Guattari (2015, p. 42), “[...] a língua compensa sua desterritorialização por uma reterritorialização nos sentidos”.
Ao movimentar suas matérias, novas maneiras de produção surgem. E o processo é o trabalho do an-artista. Encontrando forças para convocar seus feitos para fora dos ateliês, habita-se um espaço e o põe a vazar: uma força no que ainda não foi dado, onde o fazer artístico é tensionado a novos usos. Segundo Kaprow (2003, p. 03), ao “[...] colocar em movimento as incertezas sem as quais seus atos não teriam significado”, permite-se experienciar o mundo a sua volta com novos contornos.
Nesse tipo de fazer sem obra, dispensa-se a necessidade de lugares específicos para produzir e exibir arte, dá-se força para a criação de uma linguagem menor de artista, sem a necessidade de interferência direta no sacralizado: uma fuga dos modelos artísticos. Uma produção que deve encontrar formas sem cair no dogmatismo da representação, e pela sensação, inovar com prática.
Esse tipo de produção, ao modo kaprowiniano, cria transformações pré-significantes que engendram desterritorializações relativas (Deleuze; Guattari, 2011b). É uma linguagem de artista em fuga e é “[...] exercida de forma difusa: a enunciação é, aí, coletiva” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 96). Ao abrir possibilidades de abstrações amplas, torna-se arte pelas práticas que se fazem junto; ao serem reconhecidas pela estrutura, tornam-se arte.
A senha 1 do clube da arte que Kaprow (2003) nos diz não funciona por si só. A an-arte perde seu sentido quando é evocada como arte. O não (an) é a negação artística nela mesma, desconvocando-a a ser o que ela agora reivindica. A institucionalização da produção resultante de an-artista faz com que se perca o prefixo, o acesso ganho é a perda do seu caráter de negação. Da mesma forma, quando um professor coloca seus fazeres como modelos educacionais, ele perde a força de experimentação entregando-a a explicação. Uma obra-aula que quer ser um modelo pronto perde também seu prefixo, condicionada a funcionar dentro do já programado. Se ela é absorvida, não está mais do lado de fora. Resta ao artista contentar-se em entrar no clube pelo pagamento da joia e seguir em frente aderindo aos modelos postos e sacralizados.
Ou não?!
Chega-se à senha 2: a antiarte. Provoca o estabelecido e anteriormente foi um tipo de an-arte exposta em museus e galerias, atacada e odiada pelos modelos de arte. Equivoca-se ao confundi-las, pois agora tem intenções objetivas: quebrar o funcionamento do an (não) pela resistência do anti. É um movimento de contramaré, indo de encontro ao estabelecido. Cria-se, então, um regime contrassignificante (Deleuze; Guattari, 2011b), instaurando linhas de destruição. As transformações desse tipo de produção na arte são de caráter polêmico ou estratégico, destruindo o que está no seu caminho, criando novos signos e significados.
A produção artística vem, com o passar do tempo, edificando-se e estruturando, de modo a assumir uma postura de juízo de valor nas produções. Portanto, o que se produz é passível de quali-quantificação de valor técnico e estético: uma assinatura, uma verificação compulsória para mediar o que pode ou não ser exposto e medido como arte. A antiarte não se preocupa com essas avaliações sobre o que ela produz, volta-se apenas para si.
Com o público restrito da arte (é um clube elitista), uma movimentação antiartística vem dar um alívio à produção e, acima de tudo, questioná-la. O ato de fazer junto é uma saída capaz de abalar as estruturas e de transformar o público em artista. Não é um ensigno de ofício, é uma obra que se constrói nas atividades cotidianas (Kaprow, 2010), fazendo uma arte em meio à vida.
Tanto a an-arte quanto a antiarte perdem sua premissa e seu valor no momento em que são evocadas a participar do clube, “[...] sabemos que se trata de arte porque um anúncio de concerto, um título em uma capa de livro e uma galeria de arte afirmaram que são” (Kaprow, 2003, p. 04). Contudo, há de se pensar maneiras de produzir arte que provoquem e questionem as estruturas. Mas como ser arte quando se nega a ela mesma?
Para essa resposta, temos a senha 3, a arte Arte, uma produção a fim de estruturar-se. Esta quer inovar e ser levada a sério. Por vários momentos, ela se condiciona como um ofício superior, facilmente reconhecível com muitas tradições sagradas: museus, galerias, cinemas, livros, etc. Há neste fazer uma defesa do clube, conservando em si o status de arte.
Este tipo de produção não implica uma briga ou desafeto pela antiarte e an-arte, pelo contrário, quer que estas participem. Ao evocar a obra contida em seus fazeres em um processo de apropriação, transforma, colocando em prática num regime significante (Deleuze; Guattari, 2011b). Deste modo, ele desterritorializa relativamente e pula de signo a signo, mas ainda significando.
No entanto, estar dentro deste clube não seria um risco? Como ser autossuficiente na produção artística e provocar um corte ou ruptura com as relações de produção? Uma an-arte quando convocada a funcionar como uma arte Arte, pelo menos, conserva em si o seu processo, algo de externo ainda sobrevive, se sustenta por si, sem que nada tenha sido cortado nem descontextualizado.
A arte Arte é uma “[...] realidade comum tão brilhantemente iluminada” (Kaprow, 2003, p. 06) e exibe sua criatividade comparando-a inevitavelmente com uma supervida. Em contraste, uma fragilidade comparativa faz com que o artista precise de um esforço para que, ao encontrar as potências, não as destaque em demasia ou as coloque em pedestais de extracotidianidade.
Convocar os que faltam e ainda estão por vir é uma necessidade, um fôlego para a transformação. A an-arte quer dar um golpe na gerência do clube (senha 4), destruindo a instituição para reerguê-la. Logo, convoca os membros antigos a transformarem novos regimes de signos.
Sendo assim, uma linguagem menor é criada nas práticas artísticas de Alan Kaprow. Ao convocar o público a fazer junto, formas de conteúdo e de expressão são construídas pelas suas atividades, dispensando significados postos e sentidos únicos. A ação carrega consigo novos contornos aos corpos em direções diversas, proporcionando que os encontros favoreçam potências que possam engendrar experimentações.
Significados preestabelecidos são destituídos, potencializando apenas sensações. Uma criação de linguagem que, pela falta de modelos, se constrói durante os atos: um léxico exclusivo de usos coletivos. Um ambiente de experimentação que corre por fora dos corpos programados, que coloca em pausa a incessante explicação e sentidos únicos. Sendo um caminho desconhecido, é preciso encontrá-lo e inventá-lo com novas possibilidades, testando e selecionando os conteúdos, fazendo surgir uma forma.
A minoridade é feita pelo que vai se dar e não pelo que está posto. Logo, uma linguagem sem regras predefinidas, mas, sim, construída por afinidades e ações coletivas. Ao fazer junto, os modelos e organizações são abandonados, deixando os atos se orientarem pelas forças que conseguem capturar. Não há mais distinção entre certo ou errado, e, sim, forças que se colocam a variar.
Nas atividades cotidianas, Alan Kaprow (2003) nos diz que esse jogo é apenas um teatro de comédia, e nos convida a rir de toda essa situação. Ao instaurar regras que visam quebrar elas mesmas por dentro e jogar um jogo que se joga fazendo, ele aponta saídas, evitando papéis estéticos definidos e desistindo das atribuições definitivas; ser um an-artista de fato é deixar-se levar pelas sensações.
Uma Linguagem menor na Arte: aula como atelier
Tratando das questões pertinentes à criação, a linguagem é uma área fundamental nas Filosofias da Diferença. A partir do movimento intitulado virada linguística, intelectuais de diversas áreas utilizam este conceito-chave para criar novas possibilidades de pensar o mundo através dela. Ao abrir-se para as estruturas, uma linguagem menor de artista é possibilidade ao docente de devir artista e o protege de “[...] uma triste imagem do pensamento que não para de imitar o múltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 35). Não existe uma forma educacional dada ou já feita e, sim, processos que engendram fugas pelo fazer.
Uma linguagem menor então é promovida pela sensação, uma fuga da lógica interpretativa que satura e condiciona a usos programados. Ao correr por fora do instaurado, a minoridade tensiona a maioridade a novos sentidos. Deste modo, em uma sala-atelier, a experimentação é a chave para permitir que um devir artista de docência avizinhe-se e permita a passagem desses fluxos.
Ao imitar um modelo educacional já dado, Corazza (2013) nos diz que o docente apenas representa o que já está instaurado e programado no campo educacional. Uma tentativa de romper com esse modelo é o professor apropriar-se de seu devir artista, ensaiando os conteúdos a serem transversalizados para criar uma aula-obra com suas práticas e matérias.
Segundo Deleuze e Guattari (2011b), a linguagem se dá pela reprodução das palavras de ordem que estruturam os significados não permitindo modificações. Um discurso indireto carrega variações aos sentidos e põe-se a transformar. Ao ganhar forma expressiva, culmina em um agenciamento, operando fugas e capturas que atualizam os territórios.
A palavra de ordem é, segundo Deleuze e Guattari (2011b), responsável por marcar poder dentro de uma língua, atravessando atos e enunciados. Esta imposição faz com que os corpos ganhem contornos definidos (Almeida, 2003), possibilitando transmissões de informações já dadas (e coletivamente aceitas), ocasionadas pelas obrigações sociais (implícitas ou não) de um sistema linguístico. Atribui-se significado aos signos, preso nos contornos já dados.
Esta ordenação inviabiliza novas formas, pois é para ser entendida e obedecida. Mas não é isso que acontece exclusivamente, pois cada enunciado carrega consigo um discurso indireto. Uma variação é colocada em jogo, não se oculta, não se mostra objetivamente, jogando de forma implícita.
Estas mutações engendram atos que modificam e se “[...] definem pelo conjunto das transformações incorpóreas em curso em uma sociedade dada, e que se atribuem aos corpos dessa sociedade” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 19), entrando em redundância com os enunciados ao não obedecer às ordens. As variações começam a ganhar formas, e podem ser reproduzidas dentro de um uso coletivo.
Uma obra-aula carrega consigo um discurso implícito que, ao se fazer escondido (mas nunca oculto), proporciona experimentações pelos seus atos coletivos. Alargando-se, rompe com os sentidos únicos e deixa o fluxo não organizado ter força para arrebatar as ordens dadas. Não se necessita que o professor seja um artista de fato e, sim, que convoque seus interesses como atividades a serem feitas coletivamente, integrando os alunos a criar junto.
Uma maneira de pensar essas práticas é pelas matérias que compõem parte dos conteúdos programáticos formais. Como elas podem ser praticadas sem que ordens sejam dadas de maneira absoluta? Deixar espaço para que os discursos indiretos permaneçam em uma zona de sensação é uma possibilidade de colocar um por vir, que paira por este atelier-sala de aula, a ser pensado.
Para conseguir pensar uma fuga propositiva da obra-aula, escapar de uma palavra de ordem (que não é resultante de processos de sensações) é uma necessidade. Uma aula fica enfraquecida quando um conteúdo é pensado como produto final, resultado de um modelo estabelecido anteriormente. Ao nada escapar, nada se cria, nada se esvai, há apenas reprodução e repetição.
Por isso, uma obra-aula está em constante processo com ela mesma, fazendo-se muito antes de entrar na sala de aula-atelier. Quando a colocamos em movimento, instala-se uma tensão, onde não se sabe bem ao certo o que está se fazendo e, por muitas vezes é o avesso do que se deseja (pela pura experimentação que ela orienta). Não há caminhos programados e definidos, é um meio constante de possibilidades.
A linguagem está ancorada no pressuposto do entendimento, “[...] é preciso estar minimamente informado para não confundir Au Feu! (Fogo!) com Au jeu! (Jogo!), ou para evitar a situação deveras desagradável...” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 13). O discurso carrega uma noção necessária para não ser enganado, responsável por atribuir um poder subjetivo à ordem. Precisa-se de um mínimo de informação para que seja emitido e aceito. Quando feito de maneira indireta é praticamente desconsiderado, não permitindo transformações (ou confusões) durante o ato.
A arte conserva, em si, gesto, sorriso, sopro, luz e não depende mais de quem a fez, ela é um composto de sensações (Deleuze; Guattari, 2010). Mesmo claudicando, ela tem força para parar de pé sozinha e é nesse esforço que se sustenta. Logo, a arte, em sua minoridade, extrai dos materiais as sensações; não é uma realização, ela as arranca dos sons, das pedras e da luz. Mesmo os loucos, quando pintam, desenham ou esculpem, extraem um conjunto destas em suas obras, as quais em si se mantêm. Uma linguagem sem comparativos, assignificada, um mundo incomunicável por outros meios.
O artista crê que de nada adianta pintar um mundo já dado, um mundo regido pelas regras pictoriais. Indo além dessas ideias, o pintor esgota-se dos referentes; a partir deste momento, há uma possibilidade de criação em processo de um mundo vazio a ser preenchido, resultante na sensação da sobra do abismo. Ao apagar qualquer vestígio de consagração social dos enunciados, traz potência para sua criação artística e percebe, então, que não há mais a necessidade de representatividade.
Há uma necessidade de que algumas ordenações sejam dadas em uma obra-aula (para não se criarem situações desagradáveis), esse mínimo é também criação e transformação. Ao não se relacionar impositivamente, uma zona de abismo é possibilitada para que se liguem pontos de maneiras diversas, engendrando variações. Assim, tensiona-se, neste trajeto, uma zona de experimentação, onde caminhos se criam pelas abstrações do que ainda está por vir a ser.
Logo, esta linguagem menor que “[...] é afetada de um forte coeficiente de desterritorialização” (Deleuze; Guattari, 2015, p. 35) - e em uma obra-aula - é feita num jogo que se faz jogando (Kaprow, 2003). Ao não existir uma fórmula pronta, opera-se pelas fugas das ordens e modelos, deixando emergir sensações mais do que sentidos únicos: força no que ainda pode vir a ser. Uma potência, que, além de retirar da inércia os corpos programados, coloca-os a trabalhar paralelamente com a criação, não há mais algo a ser obedecido, e sim experimentado.
O discurso indireto, então, ganha uma importância, pois é nele que está contida a fuga das ordens. Possibilitado pela transmissão, facilitando e atribuindo novas formas e fazeres à linguagem, faz-se escondido do senso comum e carrega consigo uma variação ou modificação. Pelo emprego pragmático é que ele ganha contornos, favorecendo uma desterritorialização.
As novas formas e fazeres, que esta linguagem oportuniza, permitem com que se construa e solidifique variáveis. Ao orientar, Kaprow põe infinitos sentidos em movimento, que são capturados pelo público como sensações, evitando que somente as condicionalidades das ordens estruturadas sejam responsáveis por criar na linguagem.
A linguagem menor engendra processos de criação nas abstrações, dando-lhes novas formas e sentidos. Logo, a comunicabilidade entre o docente-artista e o aluno-público é onde a obra-aula se faz, transformando-se (mesmo que ainda dependente de algumas ordenações mínimas para não haver confusões) num processo próprio a usos menores.
Colocam-se as questões: A minoridade, propiciada pela sensação, é uma forma de criação de linguagem de artista? Como proceder para inventar na educação? Se há fuga pelo fazer junto de uma obra-aula, uma artistagem pede passagem para buscar transformações e possibilidades docentes não dependentes do já dado e instituído. Não apenas pelo ato de criar, mas, acima de tudo, por ser a própria vida em multiplicidades e intensidades.
Ao inventar, podem-se abrir as formas de conteúdo e expressão para assim pressupor um desenho de agenciamento (Deleuze; Guattari, 2011b). Ele é responsável por apontar as relações criadoras e de como as transformações se dão. Há uma parte territorial, aquilo que está dado e posto, são os currículos e leis, as invariabilidades do fazer docente, mas que necessitam de uma forma de serem colocados em movimento. Desta forma, há a prática, as ações que colocam os elementos que constituem este espaço a tensionarem forças, ganhando novos contornos e traçados conforme são formalizados. Deste modo, uma sensação não tem sentidos únicos e as forças contidas podem ganhar limiares e definições variadas, convocando um povo por vir.
Traços e singularidades podem então ser vistos e extraídos do fluxo (Deleuze; Guattari, 2011c, p. 94) e “[...] de maneira a convergir (consistência) artificialmente e naturalmente: um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção”. Precisa-se então definir as matérias que irão entrar no jogo e o movimento das estratificações das formas de conteúdo e expressão.
Compondo o agenciamento com sua tetravalência (Deleuze; Guattari, 2011b), em um dos eixos (plano de conteúdo e expressão), um processo que pode arrastá-los pelo outro eixo, modifica-os e cria novas ancestralidades, unindo-se à fala de tantos outros que antes já falaram. As ações e paixões funcionam como força que, impulsionada pelas práticas e pragmáticas, dá conta de pôr a variar os saberes expressados em seus atos e enunciados. No segundo eixo, o vertical diz sobre o território, onde em um lado há a territorialidade (estabilizante) e, no outro, o desterritorializado, arrebatador.
Pelo eixo horizontal, o agenciamento articula as duas séries, a maquínica, que mistura os corpos (conteúdo) e a parte coletiva de enunciação, transformando-os incorporeamente (expressão). Mesmo sendo recíprocas, mantém suas formas independentes, entrando “[...] numa relação de pressuposição [...], relançando-se uma à outra” (Zourabichvili, 2004, p. 9). Elementos de diferentes naturezas combinam-se “[...] sem qualquer hierarquia ou organização centalizada” (Silva, 2000, p. 15), onde a heterogenia dissolve “[...] qualquer noção essencialista de ‘sujeito’ como entidade singular ou privilegiadamente ‘humana’” (Silva, 2000, p. 15) escapando das tradicionais filosofias dicotômicas que separam o homem de tudo aqui não humano.
Fazendo parte da construção dos agenciamentos, percebe-se que então se movimenta e [...] negocia as variáveis em tal ou qual variação, segundo tal ou qual grau de desterritorialização, para determinar aquelas que estabelecerão relações constantes ou obedecerão às regras obrigatórias, e aquelas, ao contrário, que servirão de matéria fluente à variação (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 48).
As atividades de Kaprow formam uma fuga do território da arte. Há uma força para que se consiga abalar as estruturas da produção artística. Muito mais que um pensamento embutido no implícito do enunciado, os atos entram em resistência com o já dado e, ao se fazer por trás, carregam sensações capazes de desterritorializar o público que faz junto.
Ao misturar os corpos dos participantes e dos objetos, são propiciados novos modos de esses se relacionarem e Kaprow os transforma incorporalmente ao colocá-los em outros usos. Um agenciamento que tem seu pico de desterritorialização na atividade, onde o corpo público se modifica em corpo artista pelo ato artístico. Um novo regime de signos que funciona dentro da ação que estes se envolvem, propiciando outras maneiras de vida.
Ao evocar esses fazeres comuns ao status artístico, coloca a sensação a ignorar distinções entre forma de conteúdo e expressão tensionadas pelas práticas. Ao encontrar ações e paixões, as formas provisórias constroem “[...] um real por vir” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 106). As potências possibilitadas pelo movimento de uma obra-aula que opera as matérias no desconforto da falta de sentidos: ausência do que antes a arte se ocupava em atribuir. Assim, uma minoridade é traçada paralelamente numa criação de linguagem entre a obra e o público, um pensar e fazer junto.
A expressão não carrega consigo ideologias (Deleuze; Guattari, 2011b), é uma forma livre de opiniões. Logo, as atividades de Kaprow (2010) quebram com o molde representacional no momento em que suas ações abrem espaço na não necessidade de precisar ser ensignado por ninguém. Há, sim, orientação e não ordenação do que se pode fazer, coloca o público a criar pelas suas sensações e a construir seus próprios agenciamentos. Ultrapassa os saberes sedimentados ao se fazer junto.
Durante as transformações que esses fazeres coletivos engendram, deixa-se o território da linguagem da arte mais amplo: novas possibilidades de se fazer ao cruzar línguas diversas com a mesma língua. Tal agenciamento começa por matérias ainda sem forma: não há obra-aula-modelo a ser seguido, aquilo que o artista-docente propicia ao seu público-aluno é montado pela prática e são nesses processos que se dão as variáveis para determinar o uso minoritário. Entretanto, é preciso estar atento, pois depende de uma prática e pragmática para poder se transformar (Deleuze; Guattari, 2011b) e, assim, uma força para desterritorializar surge das sensações: um uso menor que arrebata a estrutura.
O Uso menor como Saída para o fazer junto de uma Obra-Aula
Os usos maiores tendem a sedimentar e enrijecer os conteúdos educacionais, isolando-os e fundando estruturas. Ordenando e representando, a informação nutre-se dos enunciados socialmente consagrados, buscando nos significados as formas prontas. Uma das possibilidades de saída para o ressecamento é um uso menor, deixar que a expressão faça mutações na linguagem.
Dessa maneira, cabe pensar uma obra-aula como possibilidade de uma linguagem menor dentro de modelos educacionais já dados. Ao se colocar por fora dos corpos programados, buscam-se forças que um docente carrega consigo - em justaposição com os conteúdos a serem preparados; um devir artista é tensionado a colocar em prática fazeres potentes.
O discurso indireto, então, pode pôr em variação a palavra de ordem, fazendo com que algumas das certezas se diluam. As sensações tornam-se o sentido, possibilitando que novas formas surjam. Uma zona de experimentação que transforma as certezas rompe com as imposições do já dado, deixando que essa força (sensação) encontre seus devires.
A educação pode desviar-se das tristes imagens representativas e conteudistas, desviando-se de fluxos maiores e dispondo no território novos elementos capazes de pô-la a variar. Não é pela representação que se relaciona, “[...] é por conjunção de seus quanta de desterritorialização relativa que as formas de expressão e de conteúdo se comunicam, uma intervindo nas outras, interferindo naquelas” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 31). Modificando e modulando, abrem espaço à criação, é uma ação/paixão que cria sentido mesmo em uma estrutura rígida.
Há, acima de tudo, uma impossibilidade de conceber uma linguagem menor com regras fixas. Os atos anteriores de significância não oportunizam os “[...] pressupostos implícitos ou não discursivos” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 15); logo, mantêm-se as relações imanentes dos enunciados que, mesmo cobertos por cortinas, subvertem a significação em prol de uma sensação.
As transformações em curso, que as práticas artísticas oferecem à educação, propiciam compor elementos heterogêneos num agenciamento que tensiona novas possibilidades. Atribuindo um sentido livre (ou sentidos livres) aos corpos, ignorando a distinção entre o natural e o artificial, opera as matérias ainda não formadas a não “[...] representar, mesmo algo de real, mas constrói um real por vir” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 106).
As formas de conteúdo e de expressão funcionam em atualização mútua e, ainda que a transformação se faça existir ao dizer, é através de enunciados socialmente consagrados que se cria. As atividades de Kaprow possibilitam que a prática permita um maior fluxo de sensações do que de significações. Neste agenciamento, constroem-se amplos sentidos às matérias, ganhando novos contornos.
Intervindo uma na outra, a informação e a comunicação “[...] dependem da natureza e da transmissão das palavras de ordem em um campo social dado” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 18). Mesmo que o público da arte tenha à disposição a atribuição de sentidos livres conforme suas percepções, ainda há invariabilidades. Por exemplo: se está numa galeria de arte, é arte; se o objeto foi produzido pelo artista, é obra; se o curador nomeia a exposição, assim ela se orienta.
A senha 4 de Kaprow (2004; 2010) nos diz que estar no mundo é se fazer pelas misturas, experiências e existências dos descartes da arte formal: modernizar e usar práticas artísticas ao seu favor. Desviando-se pelo fazer longe das estruturas representativas, abre-se uma fuga pela brincadeira (jogar um jogo jogando). Tornar-se um geólogo sem nunca ter sido um, um construtor de casas líquidas, ser aficionado pelas belezas da banalidade: fazer junto uma obra-aula.
As práticas docentes pensadas em composição com uma obra-aula dissociam-se de parâmetros dados e estabelecidos, entram numa zona de experimentação e possibilidade, unindo-se com as forças do outro: um coletivo é convocado (Deleuze; Guattari, 2015). Um fazer junto é a força desta prática, colocando os modelos professorais de lado e buscando, nos devires de artistas, habilidades que permitem povoar uma sala-atelier com novos fazeres.
A modernidade buscou linguagens limpas e sem desvios. Hibridizar, transversalizar, conjurar, justapor, transcriar (Corazza, 2013) são oportunidades inventivas à educação, criando os vazamentos necessários para romper com os modelos. Contaminar o sistema educacional com devires artista pondo em uso novas práticas em vez de velhas técnicas.
Nessa perspectiva, as atividades de Kaprow ajudam a pensar os fazeres com gosto, um jogar-brincar útil que abandona a mimesis: sentir prazer no ato. Imitar uma prática não artística como um devir brincadeira que foge da captura hierarquizada da competição. Saindo da imobilidade, a vida traz aos seres possibilidades de ir ao encontro de uma obra-aula que coloque a expressão a fugir, revelando o intercâmbio das coisas: justapõe o que antes estava separado.
Portanto, pensar como as práticas artísticas contemporâneas podem variar, propicia devires de um professor-artista que transforma sua aula em uma zona de criação constante. Deste modo, é numa linguagem menor que se fazem experimentações propiciadas por zonas de indeterminação dos significados postos. Uma minoridade que pode fazer modificar o instaurado e modelizado, permitindo que o coletivo opere as matérias e convoque um povo ainda por vir.