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Educação e Realidade

versión impresa ISSN 0100-3143versión On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.47  Porto Alegre  2022

https://doi.org/10.1590/2175-6236116268vs01 

OUTROS TEMAS

Descolonização do Saber: Paulo Freire e o pensamento indígena brasileiro

Dannyel Teles de CastroI 
http://orcid.org/0000-0003-4061-3664

Ivanilde Apoluceno de OliveiraI 
http://orcid.org/0000-0002-3458-584X

IUniversidade do Estado do Pará (UEPA), Belém/PA – Brasil


RESUMO

Este trabalho parte da ontologia do oprimido (Chabalgoity, 2015) subjacente à educação intercultural (Oliveira, 2015) proposta por Paulo Freire na busca por vislumbrar o olhar freireano a respeito da situação indígena brasileira. Constata que os povos originários, impedidos da condição de ser pelas estruturas de opressão da civilização ocidental, irrompem contra elas e realizam sua vocação para ser mais através de um pensamento insurgente. Procura-se, então, verificar as possíveis contribuições em articulação de ambas as correntes filosóficas, freireana e indígena brasileira, para os contextos educacional e epistêmico atuais em uma perspectiva decolonial.

Palavras-clave Paulo Freire; Povos Indígenas; Decolonialidade; Pensamento Educacional

ABSTRACT

This work starts from the ontology of the oppressed (Chabalgoity, 2015) underlying the intercultural education (Oliveira, 2015) proposed by Paulo Freire in an attempt to verify the Brazilian indigenous situation through Freire’s thought. It verifies that the indigenous peoples, impeded from the condition of being by the oppressive structures of Western civilization, break out against them and fulfill their vocation to be more through an insurgent thinking. It seeks, then, to verify the possible contributions in articulation of both philosophical currents, Freirean and Brazilian indigenous, for the current educational and epistemic contexts in a decolonial perspective.

Keywords Paulo Freire; Indigenous Peoples; Decoloniality; Educational Thought

Introdução

O pensamento crítico esboçado por Paulo Freire tem sido estudado como veículo responsável por promover a ampliação de entendimento de diversas questões tangentes ao pensamento educacional. A relevância das propostas do educador popular brasileiro se traduz nas referências que exerce sobre os movimentos sociais e populares, bem como nas discussões epistêmicas em diferentes áreas do saber. Contudo, a compreensão de sua obra e militância decolonial ainda ressente estudos que estabeleçam pontes teóricas entre a pedagogia crítica e o contexto dos movimentos indígenas brasileiros.

Segundo Chabalgoity (2015, p. 236), uma das mais importantes contribuições de Paulo Freire ao ideário latino-americano consiste no que denomina de ontologia do oprimido: “[…] enquanto a filosofia moderna tradicionalmente concebe a ontologia como estudo do ser, Freire busca uma ontologia humana, a partir da perspectiva do oprimido – justamente aquele que foi impedido de ser”. Nesse interim, a luta por libertação das populações brasileiras e latino-americanas deve integrar a transformação das estruturas de opressão e assunção de sua própria história.

Para Freire (1987), a educação é responsável pela manutenção da colonização das mentes herdada da invasão cultural europeia, ao passo em que invisibiliza o saber cultural do outro. Em sua concepção, a educação não se restringe apenas à dimensão formal e institucional, mas estende-se aos contextos sociais, políticos, epistêmicos e existenciais. É neste panorama que Freire se inquieta com os problemas objetivos e subjetivos da opressão estrutural-institucionalizada na sociedade brasileira e internalizada nos sujeitos oprimidos (Walsh, 2009). Propõe, então, que uma práxis libertadora abrange a tarefa de “descolonizar as mentes”, através do reconhecimento e legitimação dos saberes das culturas nativas (Freire, 1978).

Desse modo, os fundamentos filosóficos da pedagogia crítica de Freire convergem para a necessidade de reconhecer a condição de ser dos povos indígenas, a qual lhes foi negada pela modernidade ocidental. Para tanto, é preciso empreender um exercício epistemológico intercultural e decolonial, através do qual se evidencie o saber e a história desses povos a partir deles mesmos.

Cabe-nos indagar: como o pensamento dos povos originários pode nos auxiliar a repensar a educação? É possível estabelecer um diálogo intercultural crítico1 e decolonial entre as filosofias indígenas e o pensamento filosófico freireano?

Neste artigo, procuramos traçar os pressupostos teórico-metodológicos da pedagogia crítica de Paulo Freire, bem como seus princípios ético-políticos que demonstram a preocupação com a situação dos povos indígenas brasileiros, embora o autor não tenha se dedicado a trabalhar com a questão de forma específica. Em seguida, propomos a leitura do pensamento indígena brasileiro através de escritos dos filósofos Ailton Krenak e Daniel Munduruku, a fim de expor alguns de seus fundamentos epistemológicos, bem como possíveis relações com o pensamento educacional de Freire. Nosso objetivo é verificar as contribuições de ambas as correntes filosóficas para os contextos educacional e epistêmico brasileiros em uma perspectiva decolonial.

Fundamentos do Pensamento de Paulo Freire e a Educação Intercultural

Segundo Oliveira (2015), a questão da interculturalidade aparece na gênese do pensamento educacional de Paulo Freire desde as suas primeiras produções, não apenas no momento em que fica explícito em suas obras dos anos 90 e póstumas nos anos 2000. A tese sustentada pela autora é de que a partir de algumas categorias fundantes do pensamento freireano, como oprimido, cultura, invasão cultural, síntese cultural, diálogo, autonomia, como também o conceito de unidade na diversidade, Freire elaborou uma base epistêmica consistente para se pensar a educação intercultural em um contexto de estrutura desigual de poder como o brasileiro.

Sobre a noção de oprimido, Semeraro (2009) e Chabalgoity (2015) consideram relevante estabelecer contraposições entre suas implicações ontológicas no pensamento freireano e o termo subalterno, presente nas análises de Gramsci. Os subalternos são concebidos a partir da história capitalista interna da Europa, aos quais os direitos ao capital são negados, enquanto os oprimidos são destituídos do direito de dizer e criar sua própria história. O oprimido “[…] foi não somente subjugado, mas posto em condição de inferioridade, assim naturalizado, no contexto fundamental da colonização. Foi impedido de realizar-se ontologicamente, de humanizar-se. É um ser-para-outro” (Chabalgoity, 2015, p. 167). A opressão, nos termos de Freire (1987), é um ato proibitivo da possibilidade de ser mais dos seres humanos.

Nesse sentido, a categoria oprimido relaciona-se diretamente com o processo de dominação colonial europeia vivenciada pelos dominados, ou condenados da terra, esfarrapados do mundo, como Freire diz em seus escritos. Em um contexto brasileiro, e latino-americano de modo mais amplo, a situação de pobreza e a exclusão social estão interligadas à hegemonia da visão eurocêntrica de mundo, presente tanto nas relações político-econômicas entre centros-periferias como também na educação.

De outro modo, as ideias de Freire, em consonância com o pensamento do filósofo martiniquense Frantz Fanon, imprimem uma forte conotação decolonial, uma vez que o sentido ontológico do termo oprimido está relacionado com a colonização e seu papel enquanto negadora do direito de ser dos oprimidos.

Freire postula ainda a capacidade de vir a ser do ser humano através de sua vocação para ser mais, enquanto ser inconcluso e em constante processo de formação. Conforme Oliveira (2015, p. 73):

A partir do reconhecimento da desumanização como negação da viabilidade ontológica de homens e mulheres e como uma realidade histórica é que se visualiza a possibilidade da humanização. Vocação humana negada na injustiça, na exploração, na opressão e afirmada no anseio de liberdade, de justiça e na ‘recuperação de sua humanidade roubada’.

Em um contexto de opressão, para Mota Neto (2015, p. 219):

[...] o desânimo e a desesperança estão associados ao sentimento de inferioridade que marcam, ambos, a estrutura profunda da personalidade dos oprimidos, dos colonizados, dos violentados. Para Freire (2008), por isso mesmo, este sentimento de inferioridade precisa ser substituído pelo da autoconfiança, ao tempo em que os esquemas e modelos antes importados devem ser substituídos por projetos e planos resultantes de estudos sérios e autônomos sobre a realidade. É desse modo que as sociedades dependentes, periféricas, neocolonizadas vão construindo mais confiança em si mesmas.

Na perspectiva de Freire, apesar de a desumanização, que destitui o ser humano de sua capacidade de ser mais, localizar-se na história, ela não é uma vocação ontológica; “[…] é, portanto, a própria condição de desumanizado que sugere a luta por sua libertação” (Chabalgoity, 2015, p. 169). Trata-se de um processo de insurgência, pois para se humanizar, para ser mais, o ser humano precisa irromper contra tudo aquilo que o impede de ser, em um processo de luta contra a constante desumanização que sofre por parte dos dominadores no contexto de opressão.

A noção de cultura aparece no pensamento de Freire como uma das categorias centrais através das quais o autor analisa as estruturas da relação opressor-oprimido. No livro “Conscientização: teoria e prática da libertação”, Freire (1980, p. 38) define cultura como “[…] todo resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador [de homens e mulheres], de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros [seres humanos]” (grifos nossos).

Através desta noção, o autor inquieta-se com a característica destrutiva da herança colonial da sociedade brasileira. Para Freire, nos termos da cultura, as dominações epistêmicas e subjetivas da colonização provocaram a criação de identidades negativas e desumanas para os colonizados (Azevedo; Oliveira; Sousa, 2019). Sobre este aspecto, o autor ressalta que:

Uma das características fundamentais do processo de dominação colonialista ou de classe, sexo, tudo misturado, é a necessidade que o dominador tem de invadir culturalmente o dominado. Portanto, a invasão cultural é fundamental porque ela pensa no poder, ora através de métodos violentos, táticos, ora através de métodos cavilosos. O que a invasão cultural se pretende, entre outras coisas, é exatamente a destruição, o que felizmente não consegue em termos concretos. É fundamental ao dominador: triturar a identidade cultural do dominado

(Freire, 2004 apud Azevedo; Oliveira; Sousa, 2019, p. 36).

Conforme Freire, o projeto de destruição da identidade cultural dos dominados também tem a pretensão de conquista do seu ser cultural, isto é, além de suprimir sua própria cultura, considerada inferior, pretende também convertê-lo aos padrões culturais do dominador nesse processo violento e opressor. Nisto reside o que Freire chamou de invasão cultural. Nos seus próprios termos, consiste na “penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão de mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão” (Freire, 1987, p. 178).

A invasão cultural serve à manutenção da opressão operando uma implantação de ideias nas mentes dos dominados nas quais se quer que acreditem em sua inferioridade em relação ao status cultural dos dominadores, sendo esta ação justificável pelos supostos atrasos e debilidades das culturas invadidas.

Sobre a invasão cultural em Freire, Oliveira (2015, p. 76) ressalta:

Para Freire, no Brasil, desde os senhores de engenho e das fazendas, no período colonial, que as raízes culturais construídas foram de negação do povo, pela inexistência de “participação popular na coisa pública. Não havia povo”. O que existia era a “criação de uma consciência hospedeira da opressão e não de uma consciência livre e criadora, indispensável aos regimes autenticamente democráticos” (1980a, p. 71), predominando um etnocentrismo europeu pautado na superioridade ocidental e branca. [...] A opressão social, então, vincula-se à opressão cultural. Há no processo opressor, segundo Freire, a manipulação das massas oprimidas, para que não pensem sobre sua situação de oprimidos, e em consequência não se rebelem.

Através do pensamento freireano compreendemos a constituição do cenário antidialógico da opressão, pautado pela necessidade da conquista, invasão cultural e manipulação das massas (Oliveira, 2015).

Além de expor os problemas e as feridas da opressão, o pensamento traçado por Freire ocupou-se bastante da construção de anúncios de caminhos possíveis para a transformação da realidade.

O diálogo constitui-se como eixo central para a humanização dos oprimidos, pois, para o autor: “é parte do nosso progresso histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos” (Freire; Shor, 1986, p. 122). O diálogo entre pessoas possibilita o conhecimento a respeito do outro, suas ideias, modos de ser, opções, em uma relação ética e democrática. Através do encontro, da co-laboração, do diálogo, as pessoas estabelecem relações comunicativas para refletir sobre a realidade e transformá-la. Nesse sentido, a pessoa dialógica conhece e transforma o mundo, recebendo os impactos de sua própria transformação. Conforme Freire (1997, p. 67),

A dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.

A ação dialógica também propicia a criticidade, através da conscientização no ser humano de sua incompletude:

A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude

(Freire, 1967, p. 7).

Segundo Chabalgoity (2015), a dialogicidade representa, em Freire, a essência da educação como prática de liberdade. O educador popular brasileiro estabeleceu ainda características ontológicas fundantes para a dialogicidade: o amor, a humildade, a fé nos seres humanos, a esperança e o pensar verdadeiro. Trata-se de características ontológicas inerentes aos próprios seres humanos; “[…] não são apenas categorias da dialogicidade. Se a dialogicidade é vocação ontológica dos seres humanos, suas características serão igualmente ontológicas” (Chabalgoity, 2015, p. 193).

Em uma ação dialógica, a co-laboração deve imperar ao invés da conquista, antidialógica por natureza (a conquista parte da ação dominadora, enquanto a co-laboração parte da ação libertadora):

A laboração do mundo em comunhão reflete a perspectiva dialógica em que o eu não se constitui como contrário do outro, mas sim como seu parceiro na história. [...] Não há um sujeito e um objeto – o ser humano reificado –, mas homens e mulheres que se constituem como fazedores do mundo, pronunciam o mundo. Esta é a ‘vocação de ser sujeito’ (Freire, 2005, p. 192) a que o autor fará referência por toda a sua vida

(Chabalgoity, 2015, p. 204).

Nessa perspectiva colaborativa, os seres humanos movimentam-se em um sentido de união e organização em torno da ação dialógica com o objetivo de afirmar a liberdade de todas as pessoas. Por isso, Freire entende que a ação dominadora de invasão cultural precisa dar espaço ao que chama de síntese cultural, ação promotora de integração entre as pessoas e suas diferentes maneiras de ser no mundo. A síntese cultural se funda nessas diferenças e nega a invasão de uma pela outra, afirmando o indiscutível aporte que uma dá a outra (Freire, 1987). Para tanto, as relações interculturais precisam superar o padrão alienante da invasão cultural, no qual se manipula e domina o outro; ser dialógico implica, ao contrário, em transformar a realidade junto com o outro, em co-laboração e parceria. Com base nisso, Oliveira (2015, p. 79) considera:

Ser sujeito implica ter autonomia, ser partícipe da construção de sua história, de sua cultura e de sua educação. Ser sujeito pressupõe reconhecer-se como tal, o que implica em conscientizar-se sobre sua situação de opressão social, de sua situação de sujeito negado em uma realidade social injusta e desigual. Entretanto, assumir-se sujeito implica na não negação ou exclusão do outro. Para Freire (1997, p. 46), ‘a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a ‘outredade’ do ‘não-eu’ ou do ‘tu’, que me faz assumir a radicalidade do meu ‘eu’.

Vemos, desta forma, a mobilidade de Freire em direção à construção de uma educação intercultura verdadeira, poderíamos até dizer que crítica, desde a elaboração da teoria da dialogicidade em Pedagogia do Oprimido. O autor toma a colonização (violação e opressão de diferentes culturas originárias) como processo chave na construção da ação antidialógica dominadora que predomina ainda hoje na sociedade. Um contexto de conquista, invasão e manipulação que deve ser subvertido e combatido por uma ação dialógica libertadora pautada na união, organização e co-laboração dos oprimidos, bem como na síntese cultural.

24 anos após a publicação de Pedagogia do Oprimido, em Pedagogia da Esperança, Freire (1992) retorna a essas ideias e as atualiza, chamando atenção para a necessidade de haver unidade na diversidade, nesta perspectiva intercultural, para que os diversos grupos oprimidos possam tornar-se mais efetivos em suas lutas contra todas as formas de opressão.

Para Freire (1992, p. 153-154), “[…] quanto mais as chamadas minorias se assumam como tais e se fechem umas às outras tanto melhor dorme a única e real minoria: a classe dominante”, em uma configuração na qual “[…] o caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre si e não só as diferenças e assim, criar a unidade na diversidade”. Neste sentido, é importante reconhecer as diferenças culturais e as especificidades de opressão que cada grupo vivencia na pele, mas também precisamos ter em mente que a luta pela libertação deve ser coletiva, congregando forças políticas (Oliveira, 2015).

Pensamento Educacional e os Povos Originários: breves considerações de Freire

Ao longo de sua trajetória, Freire não esteve envolvido diretamente com movimentos indígenas, mas demonstrava por eles uma amorosidade sincera, como a todos os grupos oprimidos dos quais falava em seus textos e discursos (Freire, 2004). É possível localizar o registro transcrito de um diálogo com o autor durante a 8ª Assembleia do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, realizada em Cuiabá/MT entre 16 e 20 de junho de 1982, onde Freire expõe algumas contribuições ao tema da educação no contexto dos povos indígenas no Brasil. A transcrição está presente no livro Pedagogia da Tolerância, obra póstuma de Freire organizada por Ana Maria Araújo Freire e publicada em 2004. Cabe destacar que o contexto da década de 1980, em que se localiza a fala de Freire, é o das lutas pela redemocratização do Brasil, onde as possibilidades reivindicativas eram restritas.

Conforme Freire, no cenário na década de 1980, era possível observar a implantação da educação escolar em territórios indígenas como mecanismo de formar mão de obra indígena para os centros urbanos, o que perpetrava a ação dominadora sobre esses povos por meio de novos padrões. Nesse contexto, para o autor, a educação aparece como mantenedora das relações opressivas que possuem o comando da Ciência e da Tecnologia. Nos dizeres de Freire (2004, p. 34):

A branquitude brasileira, ao expropriar as terras, ao dominar a cultura, ao considerar os indígenas como de menor idade, incapazes, quistos de negatividade no Brasil, e de inferioridade, manchas de impotência nacional, ao fazer isso, pretende porém, sempre [...] em favor desse desenvolvimento do país, pretende obter uma mão-de-obra nessa região toda do país. Uma mão-de-obra barata, explorada, vilipendiada. E para isso então, [...] pretendem oferecer, nessa busca de conquista do SER cultural do dominado, inicia-lo em destrezas importantes para a branquitude. Mas essas destrezas são mínimas porque o que precisa, do interditar os indígenas para servir melhor à branquitude pura, é exatamente uma meia dúzia de conhecimentos, para com esses conhecimentos, se tornar uma mão-de-obra semi-qualificada com a vocação de continuar tão explorada como a do operário. Isso é o que para certa branquitude brasileira significa a Integração do Índio à brasilidade.

Segundo Freire, a educação orientada para os povos originários deve estar comprometida em conhecer o ser de sua cultura, através da história, da memória oral, da linguagem, etc. A linguística, para Freire, é responsável por desvelar pedagogias outras, pedagogias decoloniais, baseadas no modo de ser de diferentes pessoas que compõem os grupos indígenas.

Além disso, Freire indica a importância de estudarmos o que chama de manhas dos dominados no caso dos povos originários. As manhas são modos de resistir que se encontram na linguagem, na atitude e nas reações dos oprimidos, que demonstram sua capacidade de resiliência: “[…] a violência dos exploradores é tal que se não fossem as manhas, não haveria como aguentar o poder e a negação que se encontra pelo país” (Freire, 2004, p. 39). O autor enxerga nesses modos de resistir dos indígenas sugestões para a construção de uma outra pedagogia, mais libertadora:

Na medida em que nós fôssemos capazes de compreender as manhas e estuda-las e descobrir o papel delas na totalidade da forma de comportamento do manhoso, que é o oprimido, a existência dele e a importância da sua linguagem, de sermos capazes de entrarmos na profundidade da linguagem do oprimido, não tenho dúvidas de que mais adiante a gente descobriria que as manhas iriam tornar-se métodos pedagógicos

(Freire, 2004, p. 40).

Desse modo, Freire defende a necessidade de se repensar a educação escolar indígena e a educação de forma geral a partir do saber indígena, da cientificidade negada dos povos indígenas. Esses saberes precisam ser evidenciados para que se construa minimamente uma prática pedagógica pensada a partir do concreto cultural e histórico desses grupos oprimidos, pois “[…] a nossa escola só será válida na medida em que, pensando diferente, respeita o pensamento diferente. Fora disso, é uma invasão a mais, é uma violência sobre a outra cultura” (Freire, 2004, p. 71).

No texto, o autor lembra uma das reações apresentadas por grupos originários à implantação da educação escolar indígena: na década de 1980, os Xavante, do Mato Grosso, reivindicaram a oportunidade de os povos originários ampliarem seus estudos e qualificação profissional nas universidades. Mais do que sonhar os sonhos do dominador, da branquitude, este tipo de resposta demonstra, para Freire, traços da luta e resistência dessas populações contra a estrutura de injustiça do poder opressor:

[…] não é só por pura alienação não, é que no fundo é como se os indígenas estivessem dizendo: se você vem pra cá oferecer pra gente os primeiros aninhos da escola, para a gente virar operário de vocês, a gente quer agora estudos para que possamos ser médicos, engenheiros, padres, bispos; não é só vocês, não...

(Freire, 2004, p. 35).

Nesse sentido, Freire defende que os povos originários sejam vistos como sujeitos que reivindicam e se posicionam, uma vez que sinaliza para um ato político de recusa dos Xavante às imposições do Estado. Eles não desejavam apenas a inserção como mão de obra, mas sim o ingresso nas universidades. É importante observar que a reivindicação dos Xavante acontece já no contexto de luta pela redemocratização do país, que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, a despeito de ser um momento de poucas possibilidades reivindicativas. Nas décadas posteriores, a luta pelo ingresso nas universidades ganhou força entre os povos originários.

Com dados de meados dos anos 2000, Gersem Luciano Baniwa (2006) pontua uma série de avanços conquistados pelos povos originários no que diz respeito à educação escolar, como os cursos de licenciaturas interculturais oferecidos por Universidades Públicas para professores indígenas:

Em 2006, só na área de licenciaturas interculturais oferecidas pelas Universidades Públicas aos professores indígenas há 1.068 estudantes, sendo que alguns já concluíram o curso, como é o caso da primeira turma de 198 professores indígenas da Universidade Estadual de Mato Grosso que se formou em julho de 2006

(Baniwa, 2006, p. 137).

A presença dos povos originários nas universidades hoje é uma realidade. Eles estão se qualificando como profissionais nas mais distintas áreas. Muitos deles com mestrado e/ou doutorado. Nesse sentido, é importante retomar o ato reivindicativo dos Xavante mencionado por Freire, na década de 1980, como marco de um processo histórico de luta por emancipação dos movimentos indígenas brasileiros.

Baniwa (2006) pontua ainda a importância das lutas travadas por professores e lideranças indígenas a favor de uma educação escolar indígena diferenciada, intercultural e bilíngue ou plurilíngue, que começou a ser amparada pela Legislação do país no início do século XXI. Este aspecto remete à inserção dos princípios ético-políticos freireanos em um contexto mais amplo das lutas indígenas. Como vimos anteriormente, nas bases de sua pedagogia crítica (em que subjaz a ontologia do oprimido), Freire postulava o fim da ação destrutiva de negação da identidade cultural do outro, bem como o exercício epistemológico intercultural que reconheça o ser cultural deste outro.

Contudo, este é um processo em andamento. Os modos de conhecer, educar e ser dos povos originários ainda são pouco assumidos como tais, tanto na perspectiva da educação escolar indígena exercida no cotidiano das aldeias (Baniwa, 2006), como para nós que vivenciamos a educação em um contexto urbano, institucional, acadêmico.

Pensadores Indígenas e o Diálogo com o Pensamento Freireano

Compreendemos que atender ao chamado de Freire para aprender sobre o ser cultural do outro, negado e vilipendiado pelas ações estruturais da cultura ocidental por nós vivenciada, requer o trabalho de escuta do outro através dele mesmo, de suas narrativas, de seu modo de ser e estar no mundo. Neste sentido, é de suma importância conhecer o pensamento indígena brasileiro através de seus próprios protagonistas. Aqui é importante ressaltar que a produção intelectual indígena brasileira abrange um campo rico em publicações, apesar de ainda ser pouco estudada e/ou utilizada como base para reflexões epistêmicas, mesmo no âmbito dos estudos decoloniais.

Atualmente, em um contexto epistemológico decolonial, muitos estudos procuram evidenciar contribuições do pensamento ameríndio originário para a transformação da realidade política, econômica, social, educacional, epistêmica, etc, na América Latina. Nesses estudos, se sobressai a noção de Bem Viver, ou Buen Vivir, identificada em pesquisas acadêmicas realizadas na América do Sul como a tradução do termo kichwa (ou quechua) Sumak Kawsay, presente na cosmovisão dos povos originários dos Andes e que diz respeito a um modo específico de estar no mundo. Sobre a apropriação da noção de Sumak Kawsay através da categoria Bem Viver, o filósofo indígena brasileiro, Ailton Krenak, pontua:

Quando tiraram daquela cosmovisão uma ideia traduzindo para o Espanhol e a chamaram de Buen Vivir, e depois, para o Português, como Bem Viver, a gente já fez tantas pontes, que nós nos aproximamos muito mais de uma coisa que é ocidental. Essa proposta ocidental não tem a ver com a cosmovisão ameríndia, mas foi a experiência mais avançada que a Europa conseguiu promover depois da II Guerra Mundial. Essa experiência ficou marcada como a Social Democracia, principalmente a partir da Alemanha. Teve lideranças muito importantes na Europa, entre eles o Willy Brandt e alguns outros. Parece que o último herdeiro foi Helmut Kohl e também o François Mitterrand, da França. São pessoas que tinham uma visão de mundo e que buscaram constituir uma economia e uma política em relação à distribuição de riqueza. Eles chegaram a instituir uma prática que era o estado de bem-estar. Esse estado de bem-estar era uma ideia apoiada na economia e na política. A política como um motor de uma atividade onde a economia ia criar uma distribuição da riqueza a todos, o acesso a tudo, à educação, à saúde, à infraestrutura, tudo o que um país, ou uma nação imagina que é necessário para que as pessoas tenham acesso igual às coisas boas e essenciais para a vida. Ora, isso foi no contexto da Europa, e a disputa foi tão grande que acabou sendo abandonada essa perspectiva de bem-estar para todo mundo e ficou limitada a uns países muito ricos da Europa. E, de vez em quando, nesses países a ideia do bem-estar fica comprometida. Isso é só para a gente demarcar a diferença entre o bem-estar e o Sumak Kawsai, ou Buen Vivir, essa expressão que vem do castelhano

(Krenak, 2020, p. 7-8).

Nesse sentido, é preciso estarmos atentos à colonialidade na qual subjaz a ciência ocidental e sua práxis no processo de expansão da noção de Bem Viver, que pode vir a ser confundida com a noção ocidental de bem-estar, em que o capital, o lucro, as relações de produção e a divisão das classes sociais estão necessariamente imbricadas. O contexto originário de kichwa, assim como o de krenak, e de outros, não fazem alusão a esses elementos como condições estruturantes de seu modo de estar na Terra, por isso, para Ailton Krenak, é importante estabelecer esta diferenciação entre as visões ocidentais e não-ocidentais.

Em uma perspectiva ocidental, por exemplo, a natureza é sempre vista como recurso, de modo que o bem-estar ocidental acaba por “incidir sobre ela e tirar pedaços dela”, devido a “[…] um fundamento, uma ontologia, que sugere que nós humanos somos separados dessa entidade, a natureza” (Krenak, 2020, p. 13).

Conforme Krenak, o que diferencia o bem-estar do Bem Viver é o profundo engajamento cosmo-ontológico com a dimensão da vida do Planeta Terra. Para Bem Viver, é preciso compreender a Terra como um organismo vivo e reconhecer-se enquanto ser vivo que integra seus ecossistemas e é partícipe do seu equilíbrio ou desequilíbrio. Dessa forma, “[…] não é você incidir sobre o corpo da Terra, mas é você estar equalizado com o corpo da Terra, viver, com inteligência, nesse organismo que também é inteligente, fazendo essa dança” (Krenak, 2020, p. 13-14).

O Bem Viver não se trata de ter uma vida folgada, pelo contrário, exige um esforço contínuo:

O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal. Quando estamos habitando um Planeta disputado de maneira desigual, e no contexto aqui da América do Sul, do país em que vivemos que é o Brasil, que tem uma história profundamente marcada pela desigualdade, a gente simplesmente fazer um exercício pessoal de dizer que vai alcançar o estado de Buen Vivir, ele é muito parecido com o debate sobre sustentabilidade, sobre a ideia de desenvolvimento sustentável. Uma vez, afirmei que sustentabilidade era vaidade pessoal, uma vida sustentável era vaidade pessoal. O que eu queria dizer com isso é que, se a gente vive em um cosmos, em um vasto ambiente, onde a desigualdade é a marca principal, como que, dentro dessa marca de desigualdade, nós vamos produzir uma situação sustentável? Sustentável para mim? A sustentabilidade não é uma coisa pessoal. Ela diz respeito à ecologia do lugar em que a gente vive, ao ecossistema que a gente vive

(Krenak, 2020, p. 8-9).

Segundo Karla Lúcia Bento (2018, p. 101), a filosofia que subjaz a práxis do Bem Viver originário propõe:

[…] um Estado e uma sociedade em que não haja privilegiados que desfrutem as benesses que o ‘desenvolvimento’ apregoado no sistema capitalista proporciona, enquanto os excluídos desse sistema, chamados subdesenvolvidos, não tenham o necessário para uma vida com dignidade.

Nesse sentido, mais do que um ideal, o Bem Viver é um modo de ser e estar no mundo que dialoga diretamente com os pressupostos ético-políticos do pensamento freireano e sua ontologia do oprimido.

Ailton Krenak (2020) considera a educação do Bem Viver como fomentadora de uma pedagogia crítica, que se ocupa da formação de seres humanos para uma Terra viva. De modo geral, a educação brasileira tem atendido ao pedido do mercado para formar profissionais, técnicos, enfim, pessoas para operacionalizar o sistema. Para Krenak, trata-se de uma educação comprometida em habilitar o ser humano para incidir sobre a vida na Terra. Com o equilíbrio dos ecossistemas abalado e a manutenção da vida posta em jogo pelas ações da civilização ocidental sobre o planeta, a educação não deve continuar se comprometendo com formações que direta ou indiretamente corroborem com as ações de incidência sobre a Terra.

Nós vamos ter que pensar em ajudar a formar seres humanos para habitar uma Terra viva, para a gente escapar do que o Bruno Latour chama de necropolítica. Se não formos capazes de nos inspirar para criar corpos vivos para uma Terra viva, nós não vamos experimentar o Bem Viver. O Bem Viver são corpos vivos em uma terra viva. A gente não pode incidir sobre a Terra como se a gente fosse uma máquina retroescavadeira. Nós não temos que formar técnicos. A gente tem que ajudar a formar seres humanos

(Krenak, 2020, p. 19-20).

O projeto ético-político pensado por Paulo Freire através da teoria dialógica (educação libertadora) compreende a luta contra a exploração, entre outras coisas, da natureza e do Planeta Terra. Em Pedagogia da Indignação, o autor afirma que “[…] urge que assumamos o dever de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos rios e das florestas” (Freire, 2000, p. 81).

Ao passo em que Krenak critica a ideia de sustentabilidade por sua conotação individualista, a ética de Freire pressupõe valores gestados em experiências de solidariedade e ações coletivas dialógicas (Oliveira, 2003). No pensamento de ambos os autores é preciso abandonar a perspectiva moral da sociedade capitalista, onde prevalecem o lucro e os bens materiais, o ter sobre o ser, o egoísmo sobre a solidariedade e o eu sobre o outro. Conforme Oliveira (2015), a ética freireana tem como princípio fundamental a vida, que na perspectiva de Krenak também precisa ser priorizada, desde sua expressão primeira, a natureza.

Desse modo, para além das transformações pessoais, é necessário haver uma mudança radical no sistema-mundo europeu/euro-norteamericano capitalista/patriarcal moderno-colonial (expressão adotada por Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007), que encoraje o ser humano a reconhecer-se como parte de um organismo vivo. Como mediadora desse processo, a educação deve ser libertadora e questionar as estruturas de dominação que condicionam não apenas o ser humano, mas também a natureza e o Planeta Terra.

A educação dos povos indígenas munduruku é um dos temas abordados pelo filósofo e educador Daniel Munduruku (2009). Segundo o autor, as filosofias indígenas baseiam-se na noção de unidade entre corpo-mente-espírito, e por isso a educação indígena é uma educação voltada para o corpo, a mente e o espírito. Uma educação holística, na qual prevalece a noção de circularidade (do tempo, dos acontecimentos, das relações intra e interpessoais, etc). Nesse sentido,

A educação indígena é muito concreta, mas, ao mesmo tempo, mágica. Ela se realiza em distintos espaços sociais que nos lembram sempre que não pode haver distinção entre o concreto dos afazeres e aprendizados e a mágica da própria existência que se “concretiza” pelos sonhos e pela busca de harmonia cotidiana. Isso, é claro, pode parecer contraditório à primeira vista, mas segue uma lógica bastante compreensível para nossos povos, pois não é uma negação dos diferentes modos de coexistência como se tudo fosse uma coisa única, mas um modo da mente operacionalizar o que temos a pensar e viver

(Munduruku, 2009, p. 23).

Nesta realidade concreta e mágica, surge também uma outra noção de temporalidade. Segundo Munduruku (2009, p. 23), para alguns povos indígenas a noção de futuro, por exemplo, é inexistente, pois as filosofias indígenas compreendem a “[…] ideia do presente como um presente que recebemos de nossos ancestrais e pela certeza de que somos seres de passagem, portanto desejosos de viver o momento como ele se nos apresenta”. As filosofias indígenas, então, expõem uma noção de tempo alicerçada na ancestralidade, no passado memorial, onde a orientação para o futuro não aparece de forma tão evidente como no contexto moderno ocidental, no qual se tem a valorização do futuro em um sentido utilitarista, associado à economia e à produção de riqueza (Munduruku, 2009, p. 23):

O ‘futuro’ é, pois, um tempo que não se materializou, não se tornou presente e, por isso, impensável para a lógica que rege nossa existência. Em alguns povos sequer existe palavra para expressar futuro tal como elaborou o ocidente mais no sentido utilitarista ligado à economia e à produção de riqueza. Para o pensar indígena a ideia de acumular, produzir, poupar ou guardar traz consigo uma concepção de tempo que empobrece a própria existência porque torna as pessoas mais vazias e egoístas. Claro está que pensar assim dentro de um mundo marcado pela especulação  esta sim uma visão utilitarista do tempo  nos leva a uma compreensão dos motivos que marcaram a relação do ocidente com os povos originários. Foi uma relação impositiva regida pela violência tanto secular quanto religiosa. Ambos os olhares negavam humanidade aos povos indígenas porque traziam consigo uma noção de tempo e trabalho calcada no mito judaico-cristão da criação que pregava que o homem deveria dominar a natureza, submetê-la a seus caprichos e tirar dela tudo o que pudesse. Negavam, assim, a possibilidade destes povos terem construído uma cosmovisão baseada na unidade corpo/mente/espírito, pois isso jogava por terra a doutrina do poder cristão do rei e da igreja. Daí a cruz ser trazida para ser carregada pelos originários da terra e nunca pelos que a trouxeram; daí a espada que atravessou não apenas o corpo dos antepassados, mas também o seu espírito.

Diante disso, as filosofias indígenas conformam hoje um patrimônio ancestral e de resistência que os povos indígenas nos legaram, pois, para o autor: “[…] ainda que ignorado, negado ou transformado pelos colonizadores – do corpo e da alma - o saber que sempre alimentou nossas tradições se manteve fiel aos princípios fundadores”. Munduruku (2009) entende que os principais fenômenos aos quais as filosofias indígenas devem resistir são o capitalismo e a economia moderna, por exaltarem a dominação do ser humano sobre a natureza e a consequente destruição e subordinação desta para obtenção de lucro e poder. Porém, segundo o autor, entre os povos indígenas, tal resistência não ocorre sem “[…] muitas baixas ao canto da sereia do capitalismo selvagem, cujo olhar frio concentra-se na fragilidade humana que é capaz de vender sua dignidade e ancestralidade em troca de um conforto e bem estar ilusórios” (Munduruku, 2009, p. 24).

Para Munduruku (2009, p. 25), é justamente na visão holística concentrada na tríplice compreensão a respeito da educação corpo-mente-espírito que está um dos principais fatores de resistência das filosofias indígenas, pois, trata-se de uma teoria elaborada “[…] pela experiência de vida, pela observação meticulosa dos fenômenos naturais e pela certeza de que somos fios na teia”.

Conhecer o contexto cultural da educação no caso dos povos indígenas é uma tarefa imprescindível no trabalho de perpetuar a prática da pedagogia crítica esboçada no pensamento de Freire, bem como atualizar algumas perspectivas trazidas pelo autor, que não chegou a ter contato direto com as filosofias e modos de ser indígenas brasileiros. Em Freire, o respeito pela cultura do outro, dos oprimidos, pressupõe o reconhecimento de sua identidade cultural.

Este é o caminho de prática de ação da síntese cultural, na qual a prevalência da integração entre as diferenças supere a invasão de uma cultura pela outra e isso nos leve a um estado de unidade na diversidade na luta pela transformação da realidade social.

A dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos

(Freire, 1997, p. 67)

Considerações Finais

Conforme vimos, a ontologia do oprimido evidenciada no pensamento freireano requer a humanização dos povos originários e o pleno exercício de sua vocação de ser mais, o que, por sua vez, envolve o trabalho de descolonização política, econômica, social, epistêmica e ontológica. A ação colonial, perpetuada pelo sistema-mundo europeu/euro-norteamericano capitalista/patriarcal moderno-colonial, impediu esses povos de sua capacidade de ser. Nesse sentido, a produção intelectual indígena, da qual Ailton Krenak e Daniel Munduruku são apenas alguns representantes, é insurgente, pois irrompe contra as estruturas de opressão que lhes impedem de ser e demonstra sua capacidade de ser mais. Por meio dessa produção se efetivam processos de descolonização epistêmicos e ontológicos já assumidos em Freire como necessários para a educação brasileira.

No exercício da ação dialógica, proposta por Freire, cabe a nós, enquanto herdeiros da cultura ocidental, empreender a interculturalidade crítica na relação com as culturas dos povos originários. Ouvi-los atentamente, aprender com eles e co-laborar, dentro de nossas capacitações, na luta contra as estruturas de opressão pela libertação e humanização dos oprimidos. Para isso, é preciso reconhecer seu exercício epistemológico, negado pela ciência moderna, que se dá profundamente ancorado em seu modo de ser e estar no mundo.

No pensamento esboçado por Ailton Krenak encontramos a necessidade de abandonar a perspectiva moral e funcional da sociedade capitalista, algo também presente no pensamento freireano, porém, na perspectiva de Krenak, tem-se a conscientização radical dos danos e impactos que causamos, enquanto civilização, sobre a natureza e o Planeta Terra. A transformação da realidade, para o autor da etnia krenak, se dá através do reconhecimento de que somos seres vivos que integram um organismo vivo.

Em Daniel Munduruku encontramos alguns traços da filosofia e educação indígenas. Estas, segundo o autor, orientam-se para uma formação humana holística, preocupada com as capacitações físicas, mentais e espirituais do ser humano. Na tarefa de descortinar os véus existentes sobre o pensamento do outro e conhecer o seu ser cultural, proposta por Freire, encontramos nos escritos de Munduruku outras noções de temporalidade, de espaço, de corpo, de educação.

Assim, acreditamos que os pensamentos de Paulo Freire, Ailton Krenak e Daniel Munduruku expõem outras possibilidades epistemológicas que desvelam outras pedagogias, outras formas de produção e reprodução do conhecimento. Estas, por sua vez, podem nos ajudar a pensar, criar, realizar ações pedagógicas, saber-fazeres epistemológicos, ideias que nos possibilitem rumar em outras direções que não a do eurocentrismo epistêmico.

Nota

1Concordamos com Walsh (2009) quanto à necessidade de considerar o exercício intercultural a partir do reconhecimento de que as diferenças culturais são construídas a partir de uma matriz colonial de poder, racializado e hierarquizado, onde os brancos estão em cima e os povos indígenas e afrodescendentes estão embaixo. A esta práxis, a autora chama de interculturalidade crítica.

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Recebido: 27 de Junho de 2021; Aceito: 12 de Janeiro de 2022

Dannyel Teles de Castro é doutorando em Educação pela Universidade do Estado do Pará. Desenvolve pesquisas nas áreas de Estudos Decoloniais, Interculturalidade Crítica, Filosofia Indígena e Saberes dos Povos Originários.

E-mail: dannyeltelesdecastro@gmail.com

Ivanilde Apoluceno de Oliveira é professora titular da Universidade do Estado do Pará (UEPA), pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Coordenadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire da UEPA.

E-mail: nildeapoluceno@uol.com.br

Editora responsável: Lodenir Karnopp

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