Introdução
É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente
(Freire, 2021, p. 57).
A profunda desigualdade social que marca o cenário brasileiro é uma problemática anunciada em diversas pesquisas e desde os mais variados recortes temáticos. Em um território de dimensões continentais, a manutenção da tão almejada simetria nas condições de saúde, educação, saneamento básico, trabalho – entre outros direitos fundamentais ao núcleo da dignidade de cada sujeito – mostra-se um desafio cuja renovação é diária. Nesse contexto de problemas multifacetados, a desigualdade educacional e as divergentes chances de progressão no sistema de ensino havida entre os segmentos sociais tornam-se determinantes para a concretização dos abismos existentes no Brasil, já que funcionam como uma matriz geradora de outras condições de vulnerabilidade social e precarização da vida, como a pobreza, a insegurança alimentar, o não acesso a métodos contraceptivos etc.
É incontestável que essa desigualdade educacional comporta-se como causa e consequência de outros problemas sociais. Isso pode ser sentido na medida em que, conforme aponta Ribeiro (2011), as desigualdades de classe, de origem, de localidade e étnico-raciais impactam incisivamente na probabilidade de progressão do sujeito no sistema educacional, sobretudo, ao se considerar a qualidade do ensino ao longo de sua vida, o que pode, inclusive, contribuir para a ausência de acesso de alguns setores sociais ao ensino superior. Por isso, “[…] a Educação Superior pública no Brasil [torna-se] um bem coletivo escasso e, como tal, é objeto de disputa social, que necessita de um modelo de justiça social que a regule” (Batista, 2015, p. 97), especialmente, ao se ter em vista que, na América Latina, o citado estágio de formação – superior – é considerado um dos mais privatistas e elitistas (Trevisol, 2015).
Outra questão que ressoa na literatura sobre o tema consiste no fato de que os segmentos sociais historicamente marginalizados são também os que mais enfrentam a precariedade educacional, sobretudo, em razão de uma gestão classista e racista destinada aos recursos que atravessam esse sistema. Por essa razão, é inegável que os marcadores classistas e étnico-raciais tornam-se um ponto nuclear para a consolidação de uma situação de vulnerabilidade social, fazendo emergir significativos debates e tentativas de mitigar as consequências desse cenário (Almeida, 2019).
Nesse sentido, o estudo das políticas públicas mostra-se imprescindível para a compreensão das formas de atuação estatal voltadas à redução das desigualdades sociais. Ao atuar como mecanismo que impulsiona a ação governamental mediante planos, programas, projetos, bases de dados ou sistemas de informação e pesquisas, essas políticas são formuladas e desenhadas por meio de alguns estágios, a saber: (i) definição de agenda; (ii) identificação de alternativas; (iii) avaliação das opções; (iv) seleção das opções; (v) implementação e (vi) avaliação dos resultados (Souza, 2006, p. 26-29).
Partindo-se, então, da constatação de que a desigualdade educacional no Brasil é notória e latente, este trabalho centra-se no sexto momento (vi) do ciclo das políticas públicas, isto é, pretende-se analisar alguns dos resultados da política social de cotas nas instituições federais públicas brasileiras, regulada pela da Lei n. 12.711/12 (Brasil, 2012) – também conhecida por Lei de Cotas nas Universidades –, e sua possibilidade de concretização da cidadania de sujeitos historicamente subalternizados.
Metodologicamente, trata-se de estudo qualitativo realizado via levantamento bibliográfico e documental orientado pela abordagem epistemológica decolonial. Em um primeiro momento, discorre-se sobre a influência do poder colonial para a consolidação de uma sociedade profundamente desigual no Brasil, apontando-se a desumanização e a exclusão social como consequências imediatas da colonialidade e do racismo estrutural. Em um segundo momento, dedica-se ao estudo da Lei de Cotas nas Universidades, seu panorama de aprovação e sua capacidade de romper com o paradigma da educação como um privilégio para poucos e como um instrumento de poder. Por fim, trabalha-se com a hipótese de que a referida normativa constitui um mecanismo que auxilia na criação de cidadanias de(s)coloniais, rumo a um mundo em que outros sejam possíveis (Grosfoguel, 2008, p. 74)1, inserindo sujeitos e povos historicamente marginalizados nos espaços sociais que lhes são negados.
Ao final, conclui-se que, a despeito das severas críticas reacionárias e das tentativas de desmonte de um ensino superior público gratuito a todas e todos, a política afirmativa, em questão, é imprescindível para a promoção do direito à educação no Brasil. Em um cenário no qual a população é majoritariamente composta por negros, é impossível afirmar a concretização de um direito fundamental sem que tal população acesse, desimpedidamente, todos os espaços sociais. Observou-se, ainda, que a Lei de Costas contribuiu – e contribui – significativamente para o aumento do acesso de estudantes negros e indígenas às instituições públicas federais, contribuindo para o projeto de construção de cidadanias decoloniais que privilegiam, dentre outros aspectos, a ruptura com as lógicas de poder e subalternização da colonialidade e, consequentemente, o desmantelamento do racismo estrutural.
Colonialidade e Racismo Estrutural: facetas da construção histórica da desumanização e da exclusão social no brasil
Pairam no imaginário social dos brasileiros alguns mitos fundacionais demasiadamente engenhosos e importantes para a manutenção da colonialidade e do racismo estrutural na atualidade. Embora seja de conhecimento notório e incontestável que o território atualmente correlato ao Brasil já era habitado ao tempo em que os europeus desembarcaram e inauguraram o dito “Novo Mundo”, é comum que a historiografia oficial persista povoando a memória coletiva com as máximas da conquista, da descoberta e do vazio demográfico. Divergentemente dessa narrativa, contudo, está a realidade de que a empresa colonial nas terras de Abya Yala foi responsável pelo genocídio das populações indígenas, pela inserção de novas enfermidades trazidas com o deslocamento transatlântico, bem como pela dominação e exploração inimagináveis de recursos naturais e povos que já estavam nesse espaço ou que a ele foram trazidos com fins de escravização (Nascimento, 2016; Mignolo, 2017).
As raízes desse processo, que se prorroga ao longo do tempo, estão na construção colonial da etnia e da raça como categorias voltadas à discriminação social. No entendimento de Quijano, a raça é a categoria central que gera uma virada no mundo, constituindo a primeira “id-entidade” da modernidade. Assim, segundo o autor, “[…] a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros” (Quijano, 2005, p. 117). A partir disso, inaugurou-se um sistema de exercício do poder cuja sofisticação reside justamente na capacidade de concatenar diversos matizes de hierarquização social, criando entrecruzamentos de vulnerabilidades que se perpetuam na estrutura das instituições modernas, sobretudo, do Estado. A esse modelo engenhoso e desumanizador de dominação e exploração, Quijano denomina colonialidade.
Assim, na sociedade atual o padrão de poder associa, de um lado, a colonialidade de poder, um sistema de dominação social que basicamente consiste na classificação social universal da população do mundo segundo a ideia e raça, estabelecido e imposto primeiro na América e depois em todo o planeta como expressão central do colonialismo europeu e que permite o controle mundial da subjetividade e da autoridade coletiva; de outra parte, o capitalismo, que é uma estrutura de controle e de exploração do trabalho formada pela articulação de todas as formas existentes em torno do capital (capital-salário) e do mercado mundial
(Quijano, 2001, p. 11-12, tradução nossa).
A articulação desses dois pilares do padrão mundial de poder foi o que possibilitou a divisão de papéis sociais segundo e classificação fenotípica-social das mais diversas civilizações. Nesse sentido, “[…] para cada ‘raça’ foi imposta uma forma específica de controle institucionalizado”, que permeou desde a escravidão em relação aos negros até a servidão em relação aos indígenas (Quijano, 2001, p. 12). Essa arquitetura do mundo moderno-colonial desencadeou na América Latina o que González (2020) denominou racismo disfarçado ou por denegação, o qual sustenta-se sob três premissas: (i) na teoria da miscigenação; (ii) na falácia da assimilação dos negros dentro do padrão de uma sociedade próspera e (iii) no mito da democracia racial, especialmente nos países de colonização luso-espanhola. Assim, trata-se de uma discriminação que, embora difusa, é ativa e sofisticada (Nascimento, 2016).
Uma das características que implica nessa ideia de sofisticação do racismo brasileiro diz respeito à introjeção desse imaginário colonial nas elites locais, gerando um sistema de colonialismo interno propagado pelos próprios subalternos que, rejeitando ou estando inconscientes de sua situação não hegemônica, propagam o discurso do colonizador (Mignolo, 2017). Esse fato pode ser ilustrado pela fala do delegado do Brasil em uma reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) que tratava do regime do apartheid na África do Sul, conforme demonstra Nascimento (2016) ao citar um trecho do mencionado discurso. Nos dizeres do representante brasileiro:
Essa posição [antirracista] é conhecida e é invariável. Ela representa a essência mesma do povo brasileiro, que nasceu da fusão harmoniosa de várias raças, que aprenderam a viver juntas e a trabalhar juntas, numa exemplar comunidade
(Nascimento, 2016, p. 105, grifo nosso).
O excerto pronunciado na arena internacional chama atenção porque reproduz fielmente a narrativa celebratória da modernidade calcada em uma dicotomia entre vencedores e vencidos. Ao discorrer que houve uma “fusão harmoniosa” e que esses sujeitos aprenderam a “conviver”, esconde-se todo o cenário de genocídio, etnocídio, epistemicídio e exploração engendrado pelos colonizadores, como se a resistência e a violência nunca estivessem presentes no processo colonial (Quijano, 2005). Além disso, esse discurso propaga, a nível global, a mística que sustenta e mantém as profundas desigualdades brasileiras, a saber: o mito de que no território brasileiro existe uma democracia racial. Nesse sentido, importa asseverar que
A ideologia do estado de democracia racial estabelecido no Brasil mobiliza a produção de discursos e a forma de compreensão da produção de desigualdades raciais, de tal forma que as próprias vítimas são influenciadas em relação ao desenvolvimento de concepções que negam a existência e importância do racismo na produção das desigualdades que os afetam e de um posicionamento político favorável às medidas reparatórias
(Moura; Tamboril, 2018, p. 598).
Ao contrário dessa narrativa colonial(ista), o racismo existente no cenário brasileiro é estrutural, isto é, reside nas estruturas que (in)formam o Estado brasileiro desde a sua constituição como tal, assim como nas estruturas de organização do modo de produção preponderante ao redor do globo, reservadas as particularidades de cada país. Na lição de Almeida (2019, p. 33), o racismo decorre da própria estrutura social que normaliza a violência circunscrita às relações interpessoais e naturaliza os desarranjos institucionais que fazem reverberar a regra moderno-colonial de que negros e indígenas são menos ou não humanos (Lugones, 2020) e que, por isso, não devem tutelar direitos, tampouco possuir bens jurídicos.
Nesse sentido, “[…] a viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade” (Almeida, 2019, p. 34) que, por sua vez, são tributárias ao modelo luso-hispânico de Estado, de direito e de dinâmicas individuais. Segundo elucida Carvalho (2020, p. 93), uma das mais bem-sucedidas conexões criadas pelos colonizadores foi aquela entre a elite branca brasileira e a elite europeia, já que a primeira passou a sentir-se como herdeira direta das civilizações e tradições do mundo antigo e, por isso, atua de modo a promover a manutenção de seus instrumentos de poder – como o sistema educacional, a exemplo.
Lei de Cotas: um terreno para o desmantelamento da educação como dispositivo dos, para e pelos sujeitos e grupos hegemônicos
A aprovação da Lei n. 12.711, em 29 de agosto de 2012, também conhecida por Lei das Cotas ou Lei das Cotas nas Universidades, não resultou de um processo pacífico, linear ou consensual. Desde o primeiro Projeto de Lei (PL) que abordava a temática – PL nº 73 de 1999 – até a atual redação da citada normativa, transcorreram-se mais de doze anos e foram apensados outros dezesseis projetos de lei (PL) visando regular a matéria (Anhaia, 2019). Desta sorte, consistiu em uma tramitação lenta e controversa, cujos dissensos perduraram mesmo após a sua vigência, cindindo opiniões que compreendem tanto a adesão voluntária de instituições federais mesmo antes da normativa – isto é, instituições que já aplicavam a reserva de vagas2 (Anhaia, 2019, p. 108) – quanto a profunda irresignação e contrariedade de alguns setores ancorados na máxima “o Brasil não é bicolor” (Munanga, 2020).
Entretanto, há que se ressaltar que, dentre os atores político-sociais imprescindíveis para esse processo de desenho e aprovação da normativa, está o Movimento Negro. Isso porque sua atuação foi estratégica ao estar presente nos fóruns decisivos da política educacional e incidir em reuniões e conferências internacionais destinadas do debate sobre a discriminação racial. Exemplificativamente, destaca-se a colocação do debate racial na tramitação da Lei e Diretrizes de Bases – Lei n. 4.0.24/61 – bem como a participação massiva do movimento na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2001, em Durban, África do Sul, em que o Estado brasileiro passou a reconhecer as consequências do racismo existente no país (Gomes, 2012) e reafirmou seu compromisso com a “[…] adoção de medidas que pudessem minimizar ou mitigar as consequências de seus efeitos” (Santos, 2012, p. 289)3.
Ademais, a participação brasileira nessa conferência mostrou-se relevante pois “[…] foi decisiva para o fortalecimento do debate e a para a definição das primeiras experiências de ações afirmativas na educação superior”, evidenciando a potência de articulação do Movimento Negro e contribuindo para o fortalecimento da justiça social (Trevisol; Nierotka, 2015, p. 581). Isso porque as ações afirmativas4 buscam democratizar o acesso a instituições por parte de segmentos sociais nelas sub-representados, tal como a recursos capazes de garantir a permanência desses segmentos nas referidas instituições, de modo que não se acomodem na mera pretensão de coibir comportamentos discriminatórios mas, ao contrário disso, impliquem na assunção de uma postura ativa pelo Estado na promoção de medidas cujo escopo e resultado é a igualdade material (Moura; Tamboril, 2018; Crosara, 2017).
Assim, as políticas públicas de ações afirmativas para a educação superior operam como uma política compensatória de corte social, “[…] cuja oferta é focalizada para cidadãos que, por razões de sua origem étnica, racial e/ou socioeconômica, não tiveram/têm acesso” a este espaço (Batista, 2015, p. 95-96). Abrangendo estudantes negras/os, indígenas e brancas/os oriundas/os das escolas públicas, considerando a renda familiar média (Munanga, 2020), constituem medidas que integram o mínimo existencial, haja vista sua essencialidade para a construção da personalidade individual e para o exercício da autonomia (Fonte, 2013). São, então, medidas de natureza emergencial, parcial e temporária; e, portanto, são inadequadas para solucionar problemas estruturais5 (Valentim, 2012), embora sejam profícuas na urgente e complexa reversão de um quadro de marginalização social.
Tal importância se faz sentir na medida em que, se espaços de ensino são inacessíveis à grande parte da população brasileira e quanto maior o nível de formação, maiores também os obstáculos para inserção nesse espaço (Batista, 2015), a educação assume um papel de dispositivo dos, para e pelos sujeitos e grupos hegemônicos. Dizer que a educação pode ser um dispositivo dos sujeitos e grupos hegemônicos implica no entendimento de que os benefícios de uma educação qualitativa só pertencem àqueles autorizados e legitimados nesse espaço social.
Continuamente, afirmar que a educação se torna uma ferramenta para os sujeitos e grupos sociais hegemônicos toca na percepção de que a produção do conhecimento passa a ser moldada e formatada para atender às demandas e aos interesses sociais de um diminuto e muito bem selecionado segmento social, deixando à margem outras formas de conhecimento e de conhecer. Por fim, a educação como dispositivo pelos sujeitos e grupos hegemônicos encerra e reinicia o ciclo retroalimentativo dessa construção desigual. Isso porque, na medida em que apenas os mesmos sujeitos ocupam um espaço e que o conhecimento nele produzido é pautado em seus interesses, a educação se firma como um direito pelo segmento social que o acessa e exerce.
Em razão disso, o debate sobre o sistema de cotas estremece as bases de poder que sustentam os grupos e sujeitos hegemônicos, fazendo emergir posicionamentos contrários à sua implementação. Entre eles, cita-se o manifesto: Todos têm direitos iguais na República Democrática – posicionamento de intelectuais brasileiros contra o sistema de cotas raciais, enviado ao Congresso Nacional em 2014 com o pedido de que o PL n. 73/1999 – PL das Cotas – e o de n. 3.198/2000 – PL do Estatuto da Igualdade Racial – não fossem aprovados. Além disso, tramitava no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3.197, que questionava a constitucionalidade das cotas nas universidades estatuais do Rio de Janeiro (Trevisol; Nierotka, 2015, p. 583-584).
Face a esse cenário conturbado e conflituoso, é possível observar que
Nos manifestos contrários a essa política [cotas nas universidades] é possível constatar duas posições, uma delas conservadora, a outra, do campo crítico. A primeira, inequivocamente reacionária, revela nitidamente a indecente vigilância das elites brancas e branqueadas brasileiras para impedir e francamente barrar a passagem das e dos excluídos pelo corredor de acesso às posições de controle da vida nacional que é a universidade pública
(Segato, 2021b, p. 248).
É evidente, portanto, que os entraves no debate sobre as cotas para universidades, embora sejam políticas públicas corretas aos direitos fundamentais (Fonte, 2013), esbarram na discriminação étnico-racial e no discurso meritocrático que orientam a sociedade contemporânea. Sob o escopo do mérito pelo esforço individual, esconde-se a discrepante realidade de que o sistema educacional brasileiro não comporta a todos igualmente e, na contramão disso, fomenta a competitividade, o produtivismo e as competências antidialógicas do corpo docente e discente (Sousa; Nascimento, 2019).
Ademais, perseveram diversas contradições sobre o tema. Uma das mais proeminentes é a apontada por Almeida (2019) ao explicar que, mesmo que a maior parcela da sociedade acredite que o problema do racismo possua uma raiz educacional, persiste também um posicionamento contrário às cotas. Isso se deve, na visão do autor, entre outros fatores, ao fato de que os âmbitos universitário e acadêmico também são espaços de poder, um local de formação técnica e científica que habilita o indivíduo a ocupar espaços sociais “privativos” dos sujeitos e dos grupos hegemônicos.
Ante a esse cenário, é possível afirmar que a Lei de Cotas, nas universidades, e seu contexto de luta social e aprovação política, bem como sua base epistemológica e seu fim de persecução da justiça social emergem como um terreno fértil para o desmantelamento da educação elitista, elitizada e privatizada no Brasil. Uma vez que o citado instrumento promove a diversidade e defende o acesso de sujeitos subalternizados a espaços de poder e negociação social, ela se torna capaz de subverter a lógica que preceitua a educação como uma tecnologia de manutenção do poder, isto é, como dispositivo dos, para e pelos sujeitos e grupos hegemônicos.
Um Horizonte de Cidadanias Decoloniais: repercussões da lei de cotas em um cenário de políticas da (in)visibilidade
O árduo, lento e controverso caminho para a aprovação da Lei de Cotas nas universidades mostrou-se um espaço propício para diversas discussões ocultadas e silenciadas do/no cenário político-social. Consoante aponta Segato, a normativa foi capaz de convocar ao debate diversos setores e âmbitos sociais, contribuindo para o aprofundamento, “[…] [d]a reflexão sobre a existência de uma questão de ordem racial, antes somente debatida nas fileiras do movimento negro” (Segato, 2021a, p. 319), resgatando, por conseguinte, o “[…] significado político da raça como princípio capaz de desestabilizar a estrutura profunda da colonialidade” e operando como um “[…] instrumento de ruptura com uma mestiçagem politicamente anódina e dissimuladamente etnocida” (Segato, 2021b, p. 255).
Ainda, a articulação e a mobilização social, que resistiram a esses mais de dozes anos de entraves políticos e conflitos sociais, evidenciaram a potência da atuação da sociedade civil estrategicamente organizada. Como ressaltam Nascimento et al. (2008, p. 4), a aprovação da Lei de Costas foi fruto de uma luta histórica em que se conseguiu, mediante atuação social, a “[…] efervescência de debates em ambientes políticos e acadêmicos em todas as regiões do país”, concretizando uma “incansável pressão política” (Cara, 2012, p. 11) rumo à ampliação do direito fundamental à educação para todas e todos.
À vista disso, é possível observar que o processo de negação-afirmação desse direito não pode ser desvencilhado de sua camada ético-política, haja vista que a superação da condições existenciais e materiais que reproduzem a injustiça pressupõe o desmantelamento dos mecanismos de hierarquização social (Sousa; Nascimento, 2019) – como, exemplificativamente, a colonialidade e o racismo estrutural que permeiam o sistema educacional.
Na percepção dos próprios estudantes cotistas, a Lei de Cotas nas universidades funciona como um instrumento de acesso à justiça educacional que deve estar sempre aliado à melhoria da qualidade de todo o processo de escolarização. Isso porque, consoante salientam Haas e Linhares (2012, p. 853),
Não basta propiciar o acesso, pois é necessário conferir, após o ingresso, igualdade de condições de permanência do estudante no ensino superior público, já que dificilmente os indivíduos deste contingente estão em igualdade de condições no que tange à questão socioeconômica. Do contrário, teria a universidade que admitir o considerável risco de evasão desse grupo de beneficiados por falta de condições sociais, econômicas e intelectuais.
Dessa forma, ao que parece, a Lei n. 12.711/12, embora não consiga resolver todas as questões pertinentes ao racismo estrutural e à colonialidade, no cenário brasileiro, que revestem a desigualdade educacional, é profícua, pois: (i) busca promover a igualdade e a diversidade; (ii) tenta remover alguns dos obstáculos para a ascensão de grupos minorizados socialmente, sobretudo, em espaços de prestígio como a universidade; (iii) consegue manter um espaço social para o debate sobre a medida, considerando-se, sobretudo, que a própria normativa prevê a sua necessidade de revisão; (iv) e promove o acolhimento e a possível composição de conflitos raciais (Almeida, 2019).
Outro impacto da normativa é o aumento do número de estudantes negros/as e indígenas em diversas instituições. A título de ilustração, na Universidade de Brasília (UnB), 7.600 estudantes negros/as conseguiram ingressar na instituição mediante a ação afirmativa de reserva de vagas, existindo um aumento, entre 2011 e 2016, de 19% no número de matrículas de pretos e pardos nos cursos de graduação da universidade (Brito, 2018). Aquiesce a esse resultado a pesquisa realizada por Senkevics e Mello (2019), que constatou que a Lei de Cotas ampliou a “[…] participação dos estudantes de escolas públicas e negros/indígenas em instituições, cursos e turnos de diferentes níveis de competitividade e prestígio social”.
Embora não seja um consenso, nos estudos decoloniais, quais são as trajetórias ou os comportamentos aptos a desencadearem mudanças, de fato, estruturais; tampouco está definido, no campo, se essa atuação deve ocorrer através, com ou apesar do Estado, ou mesmo, para além dele. A despeito disso, é possível considerar que a luta que cerca o arcabouço argumentativo da Lei de Cotas insere-se em um âmbito de reivindicações pós-década de 1980 que passaram a buscar pela “inclusão no sistema” e pelos recursos capazes de ampliar as condições de sobrevivência dentro dele, ao invés de contra ele ir (Segato, 2021b, p. 247), o que, muitas vezes, é uma estratégia decolonial de incidência política e mobilização jurídica.
A Lei de Cotas nas universidades aproxima-se dessa atuação, pois, incrementa os processos político-sociais de descolonização mediante influência direta na lógica de funcionamento e hierarquização da universidade. “Descolonizar, nesse contexto, significa intervir na constituição desse espaço universitário em todos os níveis: no corpo discente, no corpo docente, no formato institucional, o modo de convívio e na sua conformação epistêmica geral” (Carvalho, 2020, p. 81).
A desigualdade educacional diz respeito não somente ao fato de que, embora seja população majoritária, os negros e indígenas são minorias nas universidades, mas também compreende a realidade de que seus conhecimentos e formas de (re)existir são ocultadas das grades curriculares. Carvalho (2020) discorre sobre a temática, expondo a implementação do projeto Encontro de Saberes junto à Universidade de Brasília (UnB) cujo escopo fora inserir essa parcela social no corpo docente da universidade. Isso porque, segundo apronta o professor, a descolonização do campo acadêmico deve iniciar-se desde o seu interior e, para tanto, deve assumir sua responsabilidade de inclusão étnico-racial, política, pedagógica e epistêmica rumo à pluriversidades.
Ressalte-se, ainda, que outro efeito importante desencadeado pela ação afirmativa em análise foi a capacidade de tensionar o debate sobre a produção legítima do conhecimento nesse espaço, haja vista que, tão logo implementada, a medida sinalizou o “[…] colapso da tradição humanística de corte ocidental” (Carvalho, 2020, p. 93). Consequentemente, a maior diversificação do corpo docente e discente das universidades abre horizontes a um mundo futuramente pluriepistêmico, no qual saberes se encontram, assim como seus sujeitos constituintes e constituidores (Carvalho, 2020).
Por essa razão, defende-se que a Lei de Cotas nas universidades, ainda que padeça de inúmeras críticas e tenha sido alvo de fraudes, que, em certa medida, colocam sob suspeição a sua efetividade social, é uma política que auxilia no esboço de cidadanias decoloniais ao romper com as políticas da invisibilidade, impostas e sustentadas pelo poder moderno-colonial, que estruturam as instituições contemporâneas – dentre elas, as universidades.
Considerações Finais
Frente às discussões propostas, é possível perceber que a Lei de Cotas nas universidades figura como uma imprescindível medida de reversão do racismo estrutural e da colonialidade no Estado brasileiro. Uma vez que se perpetua, no cenário nacional, uma modalidade de racismo calcada no mito da democracia racial, discriminações cotidianas passam a integrar o imaginário social com status de naturalidade, eventualidade ou indiferença, dissolvendo a capacidade de admissão, pela sociedade, de sua parcela de responsabilidade social nessa conjuntura.
À luz do fato de que o sistema-mundo moderno-colonial interfere em todos os níveis das relações sociais e institucionais, fazendo-as submissas às classificações étnico-raciais engendradas pelo colonialismo e atualizadas pela colonialidade, o processo de marginalização social de negros/as e indígenas reflete, igualmente, em todos os âmbitos da vida cotidiana – entre eles, o sistema educacional.
Nesse sentido, a adoção do sistema de cotas consegue suprir parte do hiato de direitos existente no ordenamento jurídico brasileiro que, em que pese preceitue o direito à educação como fundamental e pertencente a todas e todos, desqualifica alguns em detrimento de suas características fenotípicas, reinscrevendo um sistema de dominação e exploração.
Importa ressaltar que a própria universidade se beneficia da Lei de Cotas na medida em que ela promove e resguarda a diversidade em um espaço que preconiza e nutre-se dela. Assim, se é possível afirmar que a normativa impactou positivamente na vida de variados sujeitos e povos em processo histórico de exclusão, é incontestável que toda a sociedade se engrandece com uma universidade mais plural. Faz-se importante frisar, contudo, que não basta a promoção de condições de acesso às universidades. Para que se possa pensar em uma sociedade com uma menor desigualdade educacional, rumo a cidadanias decoloniais e à consolidação de políticas da visibilidade, é imprescindível, sobretudo, o oferecimento de condições de permanência e reconhecimento nesse espaço.