Era Uma Vez (n)o Museu
Museus, com o passar dos séculos, vêm perpassando por alterações em seu acervo, metodologia e atendimento, norteados principalmente pela cultura estabelecida (Bruno, 2009; Cury, 2013). Tal fato proporciona uma rica diversidade de atuações, configurações e movimentos, que acabam por fazer desse espaço algo dinâmico, ou mesmo “[…] um confronto de metamorfoses”, como afirma Malraux (2014, p. 10).
Metamorfose talvez seja uma palavra que representa bem esses espaços tanto em mudança de forma como em mudança de olhar. Carregam história(s). Foi e está sendo movimento, dado um conjunto de atravessamentos que envolvem os museus e que são complexos a ponto de irem além dele. Por isso são atravessamentos. Mas, ainda que não pertencentes exclusivamente a ele, transformam-no cotidianamente. Nem sempre num diálogo calmo e reflexivo. Por vezes num conflito de interesses. É múltiplo. Espaço educativo, contemplativo, estético, científico, cultural.
Assim, museu é uma instituição autônoma quanto ao que deseja ou não ser discutido. Para isso, uma equipe técnica multidisciplinar alia-se ao espaço, atribuindo diferentes valores ao que é exposto. Determinadas ações são tomadas, então, para promover ideias e interesses. Para cumprir determinados objetivos. Um ponto chave, que pode fazer do museu, no Brasil, um espaço ainda pouco visitado, como discute a pesquisa realizada pela Organização João Leiva e Pesquisa Datafolha (2014), quanto aos hábitos culturais dos moradores do estado de São Paulo e o uso de seu tempo livre para lazer, em que museus foram relatados em menos de 1% das respostas coletadas.
A expografia é um dos elementos nos museus que carregam interesses. Refletir a disposição dos objetos, como e quando são apresentados, ou mesmo se não o são, é importante para que se possa discutir o que o museu conta. É como propõe Canclini (2008) ao comentar que “[…] entrar em um museu não é simplesmente adentrar um edifício e olhar as obras, mas também penetrar em um sistema ritualizado de ação social”.
Mesmo os objetos em si contam histórias. São artefatos culturais. A forma como foram feitos, com que material, para que eram usados, se ainda funcionam e se ainda são utilizados fomentam a novidade e/ou a memória de quem os vê. Narram formas de enxergar o mundo. Para Nascimento (2013), ainda que, hoje, o museu de ciências exponha artefatos culturais com o propósito, em suma, de enaltecê-los ou apresentá-los tal como chegaram ao acervo do museu, o uso de estruturas e aparatos tecnológicos, além de ressignificações, conduziram as equipes técnicas a refletirem a exposição.
Assim como se expõe objeto, que por sua vez é artefato, faz-se no museu de ciências artefato museal. Que também é cultural, mas que possui características que o especificam em relação ao espaço em que está inserido e que talvez fora dele perderia esse significado:
É um objeto que não existe de fato sendo projetado especialmente para a exposição. Dentro dos museus de ciências ele substitui o conceito científico ou o dispositivo técnico, considerados difíceis ou mesmo impossíveis de serem apresentados. O artefato é então um ser imaginário, que o visitante nunca viu nem nunca verá fora do espaço da exposição, construído para permitir a compreensão da realidade do verdadeiro dispositivo técnico ou da descoberta científica. O contexto do artefato é também uma simulação de uma realidade que não encontramos em lugar algum, mas que subentende o ponto de vista do conceptor, que ele pretende pedagogicamente passar para o visitante
(Nascimento; Ventura, 2001, p. 7).
É também no artefato, e talvez mais do que em outros setores do museu, que a equipe multidisciplinar se mostra importante. Talvez seja nele onde o conflito de interesses mais possa aparecer, já que sua idealização e construção podem ser feitas de formas diversas, na medida em que a temática ou conceito escolhido permitir. Mas até no ponto de vista da permissão algumas perguntas são pertinentes para se ampliar as possibilidades: como se pretende narrar e esquematizar o canto de um pássaro? E a nuvem no céu? Pode usar algodão doce para fazer uma? Que dizer, então, da simbologia e história de vida que poderia carregar uma das árvores mais antigas ainda viva? Ou mesmo as criaturas que a ciência ainda não alcançou a ponto de nomear e carimbar quem elas são, mas que, ouso dizer, parecem pouco se importar com essa classificação. Quiçá, mesmo após a mais recente pandemia, vale questionar se nós, animais humanos, entendemos outras dinâmicas, outros tempos e lógicas implicitamente vivenciadas nas minúcias e grandezas da diversidade de seres presentes ou não nos acervos dos museus. Frente a essas questões, tão pertinentes quanto provocantes, é consequente lembrar do poeta Manoel de Barros (1996), principalmente quando sugere no Livro sobre Nada como “[…] a ciência pode classificar e nomear todos os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos”.
Diante disso, houve uma crescente coceira, feito pulga atrás da orelha, sobre a construção de artefatos museais. Quais são os limites das construções e fabulações quando se fala em conceitos científicos em um museu de ciências? Ora, é importante pensar no fato de que o conceito científico é discutido e questionado de forma diferente em um museu de arte. As possibilidades fomentam discussões e até mesmo criam novas criaturas, tal como faz o artista Walmor Correa ao dar forma a híbridos de tantas espécies fantásticas de plantas e animais. Também é permitido aos museus de ciência sonhar o científico? Ou mesmo sonhar a própria arte abrindo outros campos que permitam discutir inclusive a naturalidade do animal humano? Será possível repensar o habitar em coexistência a outras formas de se viver? Com essas ideias em mente, foi discutido e parcialmente implementado uma proposta de elaboração de um artefato museal no Museu de Biodiversidade do Cerrado (MBC), um museu universitário ligado ao Instituto de Biologia da Universidade Federal de Uberlândia e instalado no Parque Municipal Victório Siquierolli na cidade de Uberlândia/MG.
Do Amassar o Barro, Ideia e Bola de Papel
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada […]
Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número zero
(Moraes, 1970)
Vai ver quase tudo é uma questão de intencionalidade. Na educação, certamente não é diferente. Diante disso, e movido também pelo desejo de explorar outras possibilidades de artefatos diferentes dos que já existiam no acervo no museu, caracterizados predominantemente pela interatividade com peças e quebra-cabeças, busquei, como um dos membros da equipe técnica-educativa do museu, realizar reuniões e discussões que favorecessem o amadurecimento de algumas ideias. Uma das questões levantadas foi a ausência de diálogo tanto entre os animais taxidermizados e quem os taxidermizou como entre os próprios humanos. Busca-se abrir uma brecha para fazer um convite a questionar a lógica do animal humano, em visita a esse espaço e que, mesmo em uma área de preservação permanente – uma vez que o museu está instalado em um parque –, não se sente bicho. Uma distância que afasta a ideia de que, antes de qualquer coisa, o animal humano também é espécie como qualquer outra dentro da biodiversidade, que é extinta e descoberta quase que diariamente.
O título, assim como a epígrafe que o segue, já são pistas do processo de desenvolvimento do artefato. E, tal como uma fábula, vai ser contada aos poucos. Como processo que o foi. Constante mudança. Vale mencionar, aqui, que esta produção foi pensada muito antes da recente pandemia e, na época, como havia de ser, nem se imaginava que as casas seriam os maiores refúgios diante de um novo ser, espécie que provocou uma ruptura, ao menos parcial e temporária, na lógica do animal humano.
De volta ao artefato.
Como foi discutido, existe um conflito de interesse na produção. O MBC, por meio de dioramas com animais taxidermizados típicos do Cerrado, jogos, cartazes e alguns outros artefatos, se propõe, ainda hoje, a apresentar e provocar questões a respeito desse bioma e das relações que o compõem. O artefato museal, por sua vez, precisava dialogar com as proposições do MBC. Também por isso, um dos focos do artefato teve de ser sobre o próprio Cerrado. Porém, cabia pensar: como explorar essa relação sendo que as possibilidades de interação com o ambiente são diversas? Se tratando do Cerrado, que originalmente se estendia por grande parte do Brasil, quantas e como são as possíveis formas de se estar e viver nele?
Se analisada uma das óticas do contexto ambiental desse bioma, fico mais próximo de entender uma das possíveis representações que podem ser estabelecidas. Segundo relatório do Ministério do Meio Ambiente (Brasil, 2011), até o ano de 2009, 48,22% da área do Cerrado havia sido desmatada, principalmente para a agropecuária e o plantio de monoculturas para exportação.
Entretanto, algumas pesquisas realizadas nesse bioma, como a de Machado et al. (2008), têm mostrado números importantes a respeito da biodiversidade, se comparado a outros biomas. Elas apontam que, de 1988 em diante, 340 novas espécies de vertebrados foram descritas de localidades da região do Cerrado, incluindo 222 peixes, 40 anfíbios, 57 répteis, 20 mamíferos e 1 ave, o que representa um total de cerca de 1/4 das 1300 espécies de vertebrados, aproximadamente, descritas no mesmo período em todo o Brasil.
Diferentes visões. Diferentes Cerrados. Diferentes relações. Mas a escolhida partiu da busca de uma possibilidade para, além de um espaço, o Cerrado ser um lugar. Lugar que fosse de pertencimento, onde os atravessamentos são como vínculos. A escolha também caminhou com influências estéticas pessoais da equipe técnica. Até mesmo porque, principalmente em um artefato em que se projeta o que será ou não discutido, a equipe técnica não pode fugir dessas influências. Construir um artefato é um posicionamento constante. E, no momento da elaboração dele, o que me marcou e cativou foi a chance de observar o Cerrado e a relação que se pode ter com ele de forma a se afastar da dicotomia cultura-natureza, assim como a ideia de que essa relação só se dá por impactos negativos. Por queimada, desmatamento e demolição. Por marcas que ligam essa relação, como constantemente faço, ao insustentável, ainda que muitas vezes ela pareça realmente ser.
Estimulado pela intenção da administração do parque de se construir uma casa de pau a pique no local, saltaram ansiosas perguntas: como viviam as famílias nas casas de pau a pique? Como eram as relações com o Cerrado? Ao menos eram assim as perguntas levantadas inicialmente. No passado. Algo que foi mudando à medida em que leituras foram sendo feitas. Trilhas que me levaram a pensar a cultura popular com outros olhos. Menos saudosistas, ainda que pudesse haver saudade. Menos tradicionalistas, como escapes para o contemporâneo:
Nessa época em que duvidamos dos benefícios da modernidade, multiplicam-se as tentações de retornar a algum passado que imaginamos mais tolerável. Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a modernidade havia substituído
(Canclini, 2008, p. 166).
Não é uma cultura a ser resgatada. É sair, então, de uma visão romântica e folclórica do sertanejo. Deslocar uma identidade aparentemente fixa e una, para pensar o movimento. Uma hibridação cultural. Fruto também da globalização e do devir em sociedade:
[A globalização] tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas
(Hall, 2006, p. 87, inserção entre colchetes do autor).
Em um primeiro momento, o estereótipo do sertanejo talvez aparente ser de alguém que pouco sabe e pouco contato tem com o que acontece na cidade ou mesmo no mundo. Porém, tal como é do estereótipo, isso não vigora necessariamente. A série Habitar/Habitat (2013), produzida pela Revanche Produções e Miração Filmes e exibida no canal SESCTV, exibiu, em 13 episódios, algumas formas de habitação presentes no Brasil. Cinco episódios são dedicados à casa do sertanejo, demonstrando um pouco de como moram e como muitas vezes são eles que constroem, parede a parede, suas casas. Mas também, por meio desses episódios, foi possível perceber que mesmo na casa feita de barro e levantada com madeira, a internet e o Facebook estavam presentes.
Ainda que com críticas quanto a essa pureza da tradição, assim como uma possível resistência das próprias equipes que compõem os museus de ciência e direcionam o educativo para exporem essa pureza imutável, é válido destacar, tal como fala Canclini (2008, p. 165) “[…] que a essa altura cabe esclarecer que não se nega aqui a necessidade das cerimônias comemorativas de acontecimentos fundadores, indispensável em todo grupo para dar densidade e enraizamento histórico a sua experiência contemporânea”.
O objetivo principal foi, então, o de construir e adornar uma casa de pau a pique e provocar o visitante, discutindo os objetos e usando elementos audiovisuais que (re)montem e (re)signifiquem, na perspectiva de uma hibridação cultural, o morar e o viver no Cerrado, procurando também trazer um pouco do que se entendia quanto à poesia de quem tem essa relação.
Convite à Casa e ao Habitar
Mas, seria possível pensar em um artefato outro, que vá, de alguma forma, além da interação? Artefato que não se dá só por apertar botões, com grandes painéis touchscreen, manivelas e luzes? Creio que sim. Com a ressalva de que imaginar um artefato que explore outras características não reduz a importância dos artefatos interativos, assim como outras formas de se esquematizar e apresentar informações e encantamentos. Não se trata de uma substituição ou comparação entre melhores e piores artefatos, mas de se fabular outras possibilidades que possam apresentar determinadas temáticas em museus de ciências de formas diferentes.
Para articular essas questões e dar movimento à casa, além de discutir os entrelaçamentos envolvidos, nada melhor do que habitá-la. Para isso, pensou-se em personagens que lá morariam e que seriam os responsáveis por receber o visitante para, quiçá, tomar um café e prosear. Uma tentativa de fabular histórias para essas personagens ganharem vida. Pensando que, embora personagens, elas pudessem ser reais. Ainda que, talvez, reais só aos olhos dos visitantes que as imaginassem. Possibilidades de pessoas que ainda vivem assim. Em casas de pau a pique. Personagens do cotidiano de um dado Cerrado. Para ocupar a casa e fazer dela um habitat. Estrutura essa que apresenta quatro cômodos, divididos em uma área de aproximadamente 30m2.
Na composição dos quatro cômodos, elementos e objetos diferentes seriam dispostos, em cada um deles, de forma a imaginar uma casa que se assemelhasse a uma casa ocupada por personagens, que não são identidades que já viveram, mas que ainda vivem. Assim como provoca Canclini (2008), quanto a procurar não trazer uma visão romântica. Passada. Pensando, sim, nas culturas populares de uma forma que destaque também o quanto elas vêm se transformando com o contemporâneo.
Cabe, então, dar alguns passos para que histórias possam ser contadas para quem queira ouvir. As duas personagens fabuladas inicialmente formam um casal. O senhor, conhecido na região como Webert, e a senhora, famosa pelos crochês e pela bela voz, Áurea. Tal como um conto, eles poderiam ser vistos com idades diversas. Depende de quem conta, de quem vê e de quem ouve. Praticamente atemporais. Sabe-se só, com a devida certeza, que vivem no Cerrado.
Para buscar o movimento das personagens, no artefato, foram pensados alguns elementos audiovisuais que possibilitariam que o visitante interagisse com o espaço, caso quisesse. Seja ao sentar no banco ou ao observar o quintal da casa pela janela. Como convites ficcionais que estariam distribuídos pelos móveis, pelos sons, pelos cheiros e pelas paredes de barro. Mesmo entre as rachaduras que nela se formaram. E, tal como um convite, cabe a quem visita o desejo e não-desejo de comparecer ao encontro. Sem obrigações. Fica, senta, deita ou passa com pressa.
Como proposta, logo ao entrar, alguns móveis e o chão de terra batida poderiam ser vistos. Próximo a uma das paredes, logo acima de um móvel de madeira, poderia se notar um rádio alimentado aparentemente por pilhas, já que fio não se veria sair dele. Desse mesmo rádio, é possível escutar uma voz pouco rouca, aparentemente de um homem, que expressa palavras simples, mas carregadas de experiência: Webert convidando o visitante a entrar na casa e contando um pouco do que se pode ver e de quem nela habita.
Entrando no quarto, é possível ver a janela aberta iluminando diretamente a cama. Mas, se se experimenta fechá-la ao menos um pouco, surpresa: uma projeção se tornaria visível. Uma mulher apareceria com um olhar cruzado, que ora olhava, e ora desviava. Olhar de quem, mesmo não falando, pareceria contar muito. Olhos que muito já viram e que ainda acompanham atentos os movimentos e danças do Cerrado. Das árvores que lá fora balançam quando o vento chama para fazer par. Sentada em uma cadeira de madeira, canta baixinho uma cantiga ou poema musicalizado que não se sabe se foi inventada por ela ou se foi passada pela família. Poderia também ter escutado de outro lugar. No YouTube, talvez: E lá fora via as bailarinas e os músicos/ Que dançavam e (se) tocavam/ Trocavam/ De lugar entre os passos/ Orquestrados/ Dos sopros que passavam por lá.
Enquanto cantarolava e olhava de quilha para os movimentos, faria com precisão fragmentos de crochê que, aos poucos, tomariam forma. Hora coberta. Outrora tapete. É de se notar carretéis e mais carretéis de linha que vão se desfazendo. E continua: E encantada com o movimento/ Inspiro a criar/ Desenhando com as linhas/ Orquestrando com as agulhas/ Ponto a ponto/ Hora alto/ Outrora baixo/ Até a carreira terminar.
Em outro cômodo, logo ali ao lado, uma mesa com diversos papéis poderia se destacar. É nela que Webert e Áurea deixariam um cantinho para que uma nova convidada por ali ficasse. Entre os papéis, poderia ser encontrado seu nome: Thais. Outra narrativa na casa. Cadernos com anotações e desenhos com viés científico, mas também artístico. Ilustrações científicas. Tal como na Biologia e suas coletas, a bióloga colecionaria patrimônios juntamente aos moradores da casa de pau a pique. Sejam eles materiais ou imateriais. Troca de singularidades com o senhor e com a senhora. Com o Cerrado.
Thais faria registros em diário de campo para além de um levantamento taxonômico. Seria também a oportunidade de interação e compartilhamento com os sujeitos que lá estariam, moradores da mesma casa, da vastidão do Cerrado. Mesmo que temporariamente, no caso dela, que muito viaja.
Na cozinha, seria o saber e o sabor. Ou o sabor e o saber. Não importaria a ordem. Ambos caminhariam juntos. A famosa receita de biscoito frito doce mergulhado no açúcar com canela, Áurea faria todos os domingos ou no café recém passado no final da tarde. Vez ou outra, os vizinhos se reuniriam para ralar o milho e refogá-lo em uma panela grande. Com a lenha acesa, a própria palha seria usada para embalar e assar a pamonha. As frutas que Webert buscaria no pé poderiam ser usadas para fazer doces e geléias. Haveria até um cochicho que os dois estariam pensando em vender esses produtos pela internet.
Ao lado da bacia em que tais produtos estariam, na tábua do meio da estante, ficaria o livro com as receitas. Ele estaria no meio justamente para que, quem quisesse, pudesse ver, ainda que o casal tivesse receitas tão secretas quanto às lendas que vagam pelo próprio Cerrado e que só pertencem à memória dos dois. Elas estão decoradas neles. Passadas de geração em geração, dizem alguns. Quando não usadas para as receitas, valeria comer as frutas também cruas. Com semente, casca e tudo. Isso quando não tivessem sido devoradas pelas crianças que subiam no pé ou pelas aves que sempre deixavam vestígios no chão da grande festa que haviam feito.
Do que Artefato (não) conta (ou de quem provoca essa Conversa)
Já foi comentado que artefato museal é por si só expressão de substituição por algumas questões, e exclusões de outras. Ao menos em sua apresentação. Ainda que museu seja uma instituição que muito abraça – quando quer –, não cabe tudo nessa ação museal. É também o que Malraux (2014, p. 11) comenta quando diz que “[…] os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus”. Com isso, essa ausência, seja de alguns artefatos, seja de algumas ideologias, convida quem a sente a fabular um museu que se diz imaginário. Um museu que não seja limitado ao que exibe ou com o que trabalha. Ao abraço em que nem tudo cabe. Mas, que no meio das suas metamorfoses, seja um lugar que necessariamente abraça quem o visita. Mas também quem nunca o visitou. Tem de ser espaço que instigue. Que seja um convite constante ao curioso. Um museu que também respeite a indiferença ou o desgosto; ninguém pode ser obrigado a se apaixonar, ou, pelo menos, não deveria ser.
Assim, a idealização e produção do artefato museal tem de ser uma abertura para quem o explora, e para quem o quer explorar, no seu tempo. Em relação a esses convites, são comuns artefatos museais que exploram fatores sensitivos tais como vídeos, sons, informações impressas, mecanismos que exibem algum sistema em funcionamento, assim como a capacidade de interação, permitindo, ao visitante, a modificação do artefato, encaixando peças ou apertando botões que emitem sons e luzes (Nascimento, 2013). Porém, havia um desejo de fazer da casa, de alguma forma, mais que isso.
Para dialogar com essas ideias e procurar torná-las tangíveis, foi feita uma confabulação com Mikhail Bakhtin e dois de seus conceitos: o tom emotivo volitivo e o momento único. Na roda dessa conversa, com o francês Bernard Guelton, foi pensado em suas contribuições a respeito das ficções artísticas. No centro da conversa, a casa de pau a pique e suas potencialidades.
A casa de pau a pique é moradia. Lá morariam, mesmo que na imaginação, Webert, Áurea e a ilustradora Thais. Personagens que recepcionariam aqueles que lá fossem visitar. Contariam histórias. Quiçá encantariam, ao menos, aqueles que permitissem. Movimentariam a casa. Casa essa que expõe uma arquitetura. É o barro trincado de cor avermelhada. A madeira da parede vez ou outra exposta. O chão de terra batida. Alguns móveis em madeira também ocupam o lugar. A luz entra pelas janelas abertas. Juntos, formariam um espaço que sugere, narra, possibilita, ao entrar de fato em outro espaço, em uma casa com suas minúcias, um transporte. Imersão, que, segundo Guelton (2013), “[…] pode ser concebida como um efeito de presença intensiva e variável, física e/ou mental e/ou emocional produzida em situação real ou em situação de apreensão de uma representação, realista ou ilusória”.
Pensar a casa, seus moradores, seus objetos e seus artifícios, enfim, seu contexto com a imersão que Guelton comenta. Um grande artefato que possibilite ser como uma máquina do tempo-espaço que transporta, que desloca para onde o visitante imaginar. E, embora construída, rígida e pesada, possa ir além da materialidade. Uma viagem com a bagagem de vida daquele que visita e se conecta no exato momento da experiência que possa ser fabulada quando se visita. Em outra cidade. Em outro canto. Onde quiser. Com outros moradores e mais ou menos móveis. Com um cheiro vívido de pão de queijo ou de terra molhada após a chuva. Como afirma Guelton (2013): “Um mergulho”.
Mas não seria uma máquina do tempo para todos, senão para quem quiser que seja. Ainda que haja a intenção de fazer da imersão não só uma possibilidade de encantamento como também de aprendizado, essa pode não afetar a todos que entrarem na casa. Ou afetar de formas tão singulares como as próprias singularidades daqueles que visitam. Como comentado anteriormente, ninguém pode ser obrigado a gostar do que vê. A ser tocado e a tocar. Ainda que seja uma grande estrutura, tal como a casa de pau a pique, ou que tenha vários artifícios interativos e objetos expostos.
Quanto a esses processos de singularidades, Bakhtin traz valiosas contribuições. Primeiro, que o lugar que ocupo como sujeito, em meus atos, são de inteira responsabilidade minha. Não podem ser repetidos por ninguém nem mesmo por mim. Quando penso, sinto e afirmo, estabeleço um momento. Momento único:
Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. E é ao redor deste ponto singular que se dispõe todo o existir singular de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca
(Bakhtin, 2012, p. 96).
E é também com esse momento único que a casa como um artefato de imersão foi pensada. Na singularidade daquele que visita e que fomentará ou não aquele determinado momento em que entra e caminha pela casa, um momento único. Uma entrega a uma memória ou um imaginário singular. Um sentimento, pelo que se vê, toca, cheira e escuta. Ainda que o momento único não se dê apenas pela beleza. Ao menos, não a beleza que o senso comum diz ser bonita. Aqui não se tem um senso comum como guia. Como pontua Bakhtin (2012, p. 128): “Não o amo porque é bonito, mas é bonito porque o amo”. Mesmo que talvez algumas percepções dos que visitam possam ser parecidas quando vistas de forma abrangente. Influência também da temática do artefato. E abraçado ao momento único, tem-se o tom emotivo volitivo:
Nenhum conteúdo seria realizado, nenhum pensamento seria realmente pensado, se não se estabelecesse um vínculo essencial entre o conteúdo e o seu tom emotivo volitivo, isto é, o seu valor realmente afirmado por aquele que pensa. Viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de modo algum, indiferente a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo-volitiva
(Bakhtin, 2012, p. 87).
Porém, isso é o que poderia ter acontecido, já que, feito algumas extinções, as ideias ficaram na memória: registros. A casa, tão viva na imaginação, permaneceu por muito tempo fechada já que não havia segurança suficiente, tanto estrutural quanto logística, para que quem visitasse o parque pudesse ocupar este espaço.
Ainda assim, com esses traços, foi pensado e desenhado a casa de pau a pique, mesmo que finalizando apenas na imaginação as personagens e os elementos, buscando esse vínculo essencial do qual Bakhtin fala. No desejo que ainda existe de que o artefato possa convidar aqueles que visitam a essa imersão através do emotivo-volitivo. Lado a lado com o momento único por ser também com ele que a experiência se dá. Daquilo que não se repete. Por isso a necessidade de uma visita livre. Descomprometida com o que deve ou não ser observado. Com o deve. Não. Não deve nada aqui. Não é cobrança. É deixar ser. Já que pensamos que seja assim que a imersão de fato se dê. Mesmo porque, trazendo novamente Bakhtin (2012, p. 129), “[…] o desamor e a indiferença nunca geram forças suficientes para nos deter e nos demorarmos sobre o objeto, de modo que fique fixado e esculpido cada mínimo detalhe e cada particularidade sua”.
Desejo que tem a intenção de, com isso, pensar uma proposta de um conceito experimental desse artefato outro. Artefato de imersão: experiência única, de caráter altamente emocional, proporcionada pelo encontro do sujeito com um artefato museal que usa elementos materiais e/ou imateriais, científicos, tecnológicos e artísticos, buscando simular uma dada realidade ou múltiplas dimensões, como um despertador de memórias ou mesmo um abridor de sonhos e imaginações.
Notas sobre o Habitar
Agora, na oportunidade de revisitar as palavras do que são essas memórias, cabe uma nova análise que não apaga o que foi feito, mas amplia possibilidades. Anos se passaram até que, com a pandemia, não só essa casa foi temporariamente fechada, mas o mundo todo se fechou. Ou, melhor, não o todo, mas apenas os animais humanos se fecharam ainda mais em suas casas. Curiosamente, talvez quem efetivamente morasse na casa de pau a pique dentro de um parque seria um dos que menos sentiriam o movimento abrupto de se isolar, tendo ainda uma vasta área com boa circulação de ar para caminhar.
Ainda que os habitantes imaginados e mencionados até agora não tenham feito morada nesse espaço, até mesmo pela ausência dos objetos, sons e imagens pensadas e apresentadas no decorrer dessa história, foi possível ver, só então – apenas com este texto e neste contexto de revisão de ideias e relações –, que sempre existiu, desde a construção literal da casa, quem a ocupasse. Outros seres que antes eram apenas mencionados ao serem observados pelas personagens fora da casa. Entre esses seres que hoje a ocupam, estão aves que entram e fazem ninho entre as folhas do telhado; formigas que ocupam e fazem festa nas frestas, aproveitando cada hora do lanche dos estudantes que lá visitavam; os fungos que se multiplicam pelo jardim com várias espécies vegetais que os acompanham; sem esquecer, claro, da microbiota que faz também, nesse ambiente, um ciclo eterno de reprodução com gerações e mais gerações, em histórias de vida não registradas. Ecologias em uma casa de pau a pique que não foram vistas antes, talvez porque antes só se via a narrativa de uma das espécies desse pontual, mas complexo ecossistema.
Esses outros seres que compõem a relação entre diferentes habitantes, outros que, remontam a uma possibilidade de analogia com as palavras de Duschatzky e Skliar (2001, p. 124), que falam das identidades humanas nos processos da alteridade que conduzem a ideia de que o “outro” é aquilo que o “eu” não é para justificar o que o “eu” pensa ser:
Necessitamos do outro, mesmo que assumindo certo risco, pois de outra forma não teríamos como justificar o que somos, nossas leis, as instituições, as regras, a ética, a moral e a estética de nossos discursos e nossas práticas. Necessitamos do outro para, em síntese, poder nomear a barbárie, a heresia, a mendicidade etc. e para não sermos, nós mesmos, bárbaros, hereges e mendigos
(Duschatzky; Skliar, 2001, p. 124).
Seria esse também o movimento de alteridade com os outros seres vivos não humanos? O natural como algo a ser desbravado, domesticado, dissecado, classificado ou taxidermizado, já que a lógica que persevera é da dominação desse outro, da diferença e do diferente? Ainda que fora da intencionalidade inicial na construção do artefato, existem nele outras lógicas a serem apreendidas por quem visita. Em ideias que habitam as frestas, vivendo de formas que possam ensinar outros modelos de se habitar não só o Cerrado, mas o mundo. Talvez seja necessário pensar em uma outra ideia de alteridade que entenda as diferenças entre os seres vivos sem critérios classificatórios totalizantes, pensando nas taxonomias como uma das possibilidades de registro das histórias de vidas dessa biodiversidade.
A respeito dessas outras formas de se apreender e aprender, Carvalho, Steil e Gonzaga (2020) trazem uma valiosa contribuição quando discutem sobre uma comunidade que utiliza o que chama de “plantas de poder” como uma forma de percepção e aprendizado do mundo, com as espécies vegetais tomando um papel muito mais importante na produção de conhecimento, na posição de mestras ou professoras, enquanto os participantes são “guardiões” ou “facilitadores” nesse processo.
Talvez seja necessário, além dessa revisita à história da criação da casa como um artefato museal, também fazer uma revisita à própria casa para conhecer seus moradores, em ecologias mutantes, buscando aprender com eles só o que eles podem ensinar. Nessa ação, abrem-se novas possibilidades para questionar tanto as intencionalidades na construção de um artefato museal como recurso no ensino de ciências, com suas provavelmente frágeis tentativas de representação de um mundo tão biodiverso, quanto a própria ideia de casa como um lugar muito além daquele que foi e é usado para se proteger do outro, seja ele animal humano ou mesmo o vírus, como foi feito na pandemia.