Considerações iniciais
Dedicam-se hoje esses reverentes cultos, estes custosos aplausos, estes grandes festejos, estes devidos obséquios, e toda esta nova, e grande celebridade ao glorioso, e invicto mártir São Gonçalo Garcia, crédito, lustre, honra, e glória, de todos, os que pela sua cor se chamam Pardos. (JABOATÃO, 1758a, p. 168)
O discurso na forma de sermão é, de certo modo, uma aula, uma exposição didática feita por um clérigo/mestre. Sermo é derivado do verbo latino serere, porque quem discursa semeia uma doutrina (BARCIA, 1863, p. 217). A aula, assim como o sermão, tem conotações nobres e solenes. O sentido latino de aula, e que existia no português arcaico, era espacial: palácio, corte ou sala de honra. Por metonímia, a ação discursiva ou oratória, realizada em espaços amplos e acolhedores de um maior número de pessoas, passa também a ser nomeada “aula”. As naves das igrejas, de dilatadas dimensões construtivas, que não descuidam da inevitável acústica, são mais propriamente aulas, no sentido remoto do termo. O púlpito, estrategicamente posicionado, é ocupado por um clérigo, autorizado a predicar e a ensinar. Em francês, a palavra clerc, com dupla acepção, pode significar tanto membro do clero, quanto intelectual. É o “intelectual”, nascido na Idade Média, o protótipo do professor no Ocidente que atuava nas escolas vinculadas às catedrais (LE GOFF, 2011, p. 22). Da aula/templo, passamos à aula/escola, que, na sua forma escolar, guarda muito daquela arquitetura material e simbólica. Ambas são lugar de poder e da linguagem a serviço do poder (BARTHES, 1978).
A Igreja era a única escola aberta aos pobres na Colônia. As festas populares, as suas grandes oportunidades de trocas de conhecimentos e de experimentações coletivas a céu aberto. Vigorava uma pedagogia suportada na oralidade, nas imagens, nos movimentos e nos símbolos e cujos resultados eficazes e duradouros operavam nos indivíduos e nas comunidades aprendizagens para toda a vida.
Não é nossa intenção, neste artigo, discutir as relações entre campos ou domínios da história. Mas sentimos a necessidade “de reunir duas formas de história - da cultural e a da educação -, que só muito raramente andam juntas”, conforme alertou Falcon (2006, p. 328). Lima e Fonseca (2003) também nos serve de referência ao examinar a história da educação, do ponto de vista da historiografia contemporânea, com ênfase na história cultural. Segundo a autora,
{..,} a contribuição que a história cultural, como campo dotado de aportes teórico-metodológicos, pode dar ao avanço da história da educação está no descortinamento de dimensões ainda pouco exploradas, fora da escola e da escolarização, bem como a imposição corajosa de novos olhares sobre essa que é uma dimensão já tradicional. (LIMA E FONSECA, 2003, p. 72)
Nessa direção, Lima e Fonseca (2009) faz um balanço da escassa produção referente à historiografia da educação que trata especificamente do Brasil colonial, praticamente concentrada no exame da atuação educacional escolarizada da Companhia de Jesus e das aulas régias surgidas das reformas pombalinas. Enseja o uso de outras fontes e perspectivas teóricas que trabalhem com a ideia de práticas educativas, tributária do conceito de práticas culturais, desenvolvido por historiadores e sociólogos, como Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Roger Chartier. Sob esse ponto de vista, não faz sentido demarcar fronteiras entre a história cultural e a história da educação, pois as duas não se equivaleriam como campo historiográfico. Todavia, a história da educação utiliza-se dos procedimentos metodológicos, dos conceitos e dos referenciais teóricos, bem como de muitos objetos de investigação pertencentes à história cultural, e é no âmbito dessa última que devemos situá-la (LIMA E FONSECA, 2003, p. 59). Importa, aqui, abrir possibilidades de diálogo entre diversos campos do conhecimento, a história, a educação, a religião, a arte e os demais domínios da cultura, de modo a permitir conexões entre os espaços intradisciplinares surgidos no transcurso do movimento de pesquisa.
A festa da nova e grande celebridade parda
Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779), mestre formador e grande orador sacro, em 12 de setembro de 1745, foi escolhido para dirigir ao povo do Recife o sermão que intitulou “Discurso histórico, geográfico, genealógico, político e encomiástico, recitado em a nova celebridade que consagraram os Pardos de Pernambuco: o Beato Gonçalo Garcia” (JABOTÃO, 1758a, p. 167)1. O título, por sua extensão, é revelador dos objetivos do pregador seráfico por ocasião dos festejos motivados pela entronização da imagem de São Gonçalo Garcia na Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos, na cidade de Recife.
Verdadeira aula magistral!
O principal objetivo da aula de Jaboatão foi utilizar a saudação panegírica ao Pardo Santo, natural de Baçaim, na Índia (1556), e martirizado em Nagazaki (1597), para exaltar e habilitar todos os mestiços. Chama-os de Pardos, substantivo grafado em letra maiúscula, em todas as ocasiões em que aparece ao longo da peça escrita. Por causa da cor de sua pele, sofriam os pardos todo tipo de preconceito e discriminações. Pois, conforme aquilatou o pregador, “quantas calúnias, quantos opróbios, que de desprezos e irrisões não têm ouvido os Pardos” (JABOATÃO, 1758a, p. 169). Podemos imaginar o impacto gerado por esse discurso no seio de uma sociedade baseada no regime de escravidão e cuja economia, lastreada na produção de açúcar, que, mesmo em crise, dependia de grandes fluxos de importação de mão de obra trazida da África!
A importância e o valor da Festa de São Gonçalo Garcia, evidentemente, ensejaram diversos trabalhos acadêmicos (ARAÚJO, 2001; BEZERRA, 2010; DIAS, 2010). O mais relevante e a fonte principal de todas essas investigações, a Summula triunfal da nova e grande celebridade do glorioso e invicto mártir São Gonçalo Garcia, de Soterio da Silva Ribeiro, editado pela primeira vez em Lisboa, em 1753, e reeditada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1928, está disponível na Internet, em site do próprio IHGB. Essa facilidade de acesso aos interessados exime que nos ocupemos com a descrição minuciosa acerca dos diversos eventos que deram fôlego à duração temporal da grande festa popular e cujo poder mobilizador convocou de alto a baixo os estratos da sociedade recifense.
A gênese desse culto, em Pernambuco, e cuja culminância foi a festa popular consubstanciada em atividades que se estenderam ao longo de duas semanas, começou de uma iniciativa particular. Segundo a Summula de Ribeiro (1928, p. 12) - na verdade, um pseudônimo usado pelo frade franciscano, Frei Manuel da Madre de Deus, irmão religioso, natural da Bahia -, a imagem do beato Gonçalo Garcia havia sido trazida de Portugal a Recife por um “homem pardo”, de nome Antonio Ferreira. Não relata, porém, de qual cidade lusitana teria trazido a imagem. Lahon (2003, p. 138, 146) atesta a existência de diversas irmandades que agregavam os pardos em Lisboa, no século XVIII; no Porto, havia uma Irmandade sob a invocação de São Gonçalo Garcia, e, em Torrão, a Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios dos Homens Pardos. Segundo o mesmo autor, em 1740, Gonçalo Garcia tornou-se patrono dos pardos da cidade do Porto (LAHON, 2003, p. 161). Por certo que esse culto a Gonçalo Garcia remonta as primeiras décadas do século XVIII. Mesmo que possamos presumir sua origem através da simples menção ao nome do mártir na identificação da irmandade de pardos do Porto, permanecerá ainda a dúvida.
Quanto à data em que Antonio Ferreira desembarcou com a imagem no Recife, a Summula nos fala que “haverá pouco mais de trinta anos” (RIBEIRO, 1928, p. 12). A contar da data da festa, em 45, podemos supor que tenha chegado em torno de 1715. No entanto, o ano da publicação da Summula é de 53. E, se tomarmos como referência a data da edição, no que pese o interregno entre a escrita e a impressão, chegamos a uma data anterior a 1723, tal como pensou Viana (2016, p. 10). À diferença do Recife, onde o culto permaneceu privado, até 1745, na Bahia, há informações, datadas de 1720, sobre a institucionalização de culto obrigatório ao Mártir Gonçalo Garcia, no seio da Venerável Ordem dos Cordigérios da Penitência do Patriarca São Francisco, na Vila da Cachoeira, criada por pardos livres (AHU, 1720, p. 13). Significa dizer que o culto ao pardo mártir não teve origem em Pernambuco, mas, provavelmente, na Bahia.
Trouxe-a de Portugal Antonio Ferreira ao Recife “com a notícia que lá lhe deram de ser o Santo da sua mesma cor, e acidente” (RIBEIRO, 1928, p. 12). Durante o tempo que a conservou, tentou disseminar a opinião que trouxera do Reino, a de ser o santo da cor parda. Assentado apenas na opinião vigente em Portugal, não conseguiu a autoridade necessária para atestar e alargar tal convicção. Não obstante o pardo devoto haver buscado o apoio de “algumas pessoas Religiosas, e Doutas {para} este negócio, nenhum concordava em que o Santo (sendo natural da Índia) pudesse ter aquela cor” (RIBEIRO, 1928, p. 12). Não conseguiu maior êxito do que “deixar na memória dos mais o desejo do seu culto, o qual de presente avivado, e incitado pelo Religioso, que já dissemos, não se resolviam com tudo sair à luz com o seu projeto” (RIBEIRO, 1928, p. 12). Frustrados os seus intentos de estabelecer no Recife um culto ao Santo de sua cor, análogo ao que conheceu no Reino e vindo a falecer, Antonio Ferreira deixou a imagem “a uma devota matrona desse País”, sendo depois conservada no “oratório do Síndico dos Religiosos de Santo Antônio do Recife, Manoel Alves Ferreira” (RIBEIRO, 1928, p. 12s.). Portanto, a imagem de Gonçalo Garcia ficou longe dos olhares públicos, oculta em local onde habitaria o administrador laico do Convento de Santo Antônio do Recife.
Diz a Summula, de forma indeterminada, que “buscaram ultimamente ao R. P. Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão, como fiduciados no seu douto parecer, e prudente conselho” (RIBEIRO, 1928, p. 13). Evidente que os principais interessados nessa causa eram os pardos congregados pela Irmandade de Nossa Senhora do Livramento. Quem mais do que eles se moveriam com o objetivo de validar o culto a um santo que, apesar de desconhecido, era portador de “acidente de cor”, até então, estranho aos cânones da santidade? Mas, por se tratar de um mártir ligado à Ordem Franciscana, o assunto também despertará interesse dos frades de Santo Antônio, em especial, de Frei Jaboatão.
A polêmica avocada pelo “polêmico” Jaboatão: "nomen vestrum tamquam malum"?
A alguém ouvi dizer, (será talvez por chiste) que do beato Gonçalo Garcia uma só coisa duvidava, e era, que fosse santo sendo Pardo, com os seus termos vulgares. (JABOATÃO, 1758a, p. 170)
Na verdade, a cor do santo passou a ser objeto de uma polêmica que se instalou no Recife por anos. De acordo com a mentalidade corrente, a santidade e a cor negra, e mesmo a parda, por estar contaminada de “sangue infecto” (o designativo utilizado à época para os que possuíam ascendência negra, moura ou judia), repugnavam-se. O raciocínio é simples: ora, se a Igreja reconheceu a beatitude de Garcia, logo não poderia ser a sua cor parda. Além do mais, argumentava-se que, sendo natural da Índia e filho de um português e de uma mulher indiana, não seria autenticamente pardo.
Aqui entram os franciscanos, especificamente Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779), para conferir a autoridade necessária e deveras ansiada, porém até então não lograda. Diz a Summula que Jaboatão garante aos que lhe consultavam “que podiam estar na certeza de que o Beato Gonçalo Garcia, como natural da Índia, tinha da cor parda tudo aquilo, que bastava para que eles o pudessem ter por Santo da sua cor, e acidente” (RIBEIRO, 1928, p. 13). Mais tarde, no sermão proferido na missa de domingo celebrada em memória do Mártir, Jaboatão defende a tese de “que o Beato Gonçalo Garcia é pardo legítimo por natureza e descendência” (JABOATÃO, 1758a, p. 192). A antiga pretensão de torná-lo patrono dos pardos parece ter encontrado, finalmente, o advogado de que precisavam. O fato de os pardos ganharem um santo da sua cor conferiria extraordinário efeito simbólico aos anseios e às lutas por ascensão social e econômica daqueles que formavam importante contingente da população brasileira, em especial, em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No entanto, o objetivo de Jaboatão é bem mais sutil do que a defesa da santidade de um homem pardo. Seu esforço retórico não enfoca a santidade de Gonçalo, isso todos o sabem, por mais razão por se tratar de um mártir já “canomizado”, alertará o próprio orador sacro. O tema central do seu discurso é a cor parda: “Festeja aqui um Pardo Santo, que sabendo-se até agora que era Santo, não se conhecia fosse Pardo” (JABOATÃO, 1758a, p. 168, grifo nosso). A proposital construção semântica, a que antepõe a cor à santidade, faz de Pardo nome, o substantivo, e de Santo, um adjetivo. Desejou, ainda, rechaçar as ideias correntes que atribuíam à cor uma essência maléfica: “e por este Pardo Santo, verem todos os da sua cor tornado bom aquele Nome, que se supunha até agora mau” (JABOATÃO, 1758a, p. 168). Utilizando como mote retórico as Bem-Aventuranças do Evangelho de Lucas (6, 22-23), Jaboatão colocou-se contrário ao que “o mundo julgava {…} e não queria admitir, que sendo Pardo fosse santo, só porque tinha aquele nome: nomem vestrum tamquam malum” (JABOATÃO, 1758a, p. 171)2.
Daqui suponho se está percebendo, que não venho hoje pregar da bem-aventurança, e glória, que o beato Gonçalo Garcia goza no céu, como santo, nem tampouco hei de discorrer sobre a declaração, que o Sumo Pontífice faz de sua santidade, porque isso não é hoje coisa nova, e nem padece dúvida alguma: a declaração que me parece devo fazer hoje, é daquilo, que pode ter, e com efeito tem alguma contrariedade, e faz repugnância a alguns, que é a natureza, e cor parda desse santo. Esta cor parda é a que eu venho hoje beatificar, ou declarar bem-aventurada. (JABOATÃO, 1758a, p. 173)
A atitude de habilitação, seguida da exaltação da cor parda como “mais perfeita que a branca, e que a preta” (JABOATÃO, 1758a, p. 212) - é o que dirá textualmente em parte mais adiantada do seu sermão -, vai bem mais além do que poderíamos classificar de uma posição corajosa de um frade pregador na primeira metade do século XVIII. Jaboatão revela também um espírito avançado para a época, inquieto, crítico, polêmico, às vezes considerado indisciplinado. Numa carta de 24 de agosto de 1770 dirigida a Dom José I, Frei Manuel da Epifania, guardião do Convento de Salvador, acusa nominalmente seu confrade de ser o causador de perturbações internas e de angariar apoios de pessoas de fora da comunidade religiosa e “por cujo motivo os Prelados Maiores não podem remediar os seus orgulhosos procedimentos, inquietando a paz comum, fomentando discórdias, agregando outros a sua natureza só a fim de incitar motins {…}” (ALMEIDA, 2012, p. 45ss.). Tudo muito genérico. E, possivelmente, não era apenas Jaboatão o agente único de confusões. Em verdade, a sua província religiosa, entre 1770 e 1780, viveu um clima de insatisfação em razão das disputas internas entre os partidos de frades brasileiros e portugueses para preencher os cargos de governo, sem privilegiar um ou outro grupo, o que era sempre muito difícil, diríamos mesmo, impossível. Tratamos de um idiossincrático caso de “nativismo” franciscano intramuros (COSTA, 2002, p. 74s.). Era natural que o convento de Salvador, por ser a casa provincial, sede do governo, tivesse se tornado um ambiente cujas rixas e contendas atingissem proporções mais gravosas. Para promover a ordem e a paz interna dos conventos, foi criada a chamada Lei da Alternativa, por breve pontifício, determinando a alternância dos partidos no preenchimento dos cargos de governo e nas demais funções de importância no interior das comunidades.
À luz dos Estatutos da Província Franciscana (capítulo CXI), que faziam referência explícita aos “perturbadores da paz”, à gravidade de tal comportamento, e às penas que lhes são devidas, os que cometiam tal “crime” deveriam ser tratados como conspiradores (ALMEIDA, 2012, p. 45). Somos levados a crer que algum tipo de punição foi imposto a Frei Jaboatão pelos seus superiores. Não temos como saber qual teria sido a pena, sequer precisar por quanto tempo possa ter durado. Talvez o período de silêncio, persistindo por quase uma década, coincidiu com os seus últimos anos de vida. Daí a alguns se confundirem ao marcar a data de sua morte, cerca de dez anos antes de seu real passamento, justo porque parou de circular, de escrever e de pregar, certamente contra sua vontade, causando a imprecisão dos desavisados (HIPÓLITO, 1940, p. 66). Situação surpreendente, se de fato acontecida, haja vista a autoridade de que gozava Frei Jaboatão, não apenas por ter exercido funções importantes na Ordem, como a de Lente de Filosofia, Definidor e de Cronista oficial de sua Província, mas, sobretudo, por suas reconhecidas qualidades pastorais, acadêmicas e literárias, de orador sacro, poeta e genealogista.
Sua autoridade era reconhecida fora do claustro, o que comprovam as constantes solicitações ao frade de pedidos que incluíam, desde pareceres oficiais por parte de autoridades civis e eclesiásticas sobre questões disputadas, à aprovação de obras, ou à confecção de sermões e de escritos poéticos para ocasiões sociais e festivas as mais diversas. O próprio Jaboatão fez constar alguns desses documentos em um dos seus livros, que reúne numerosos escritos, e que intitulou de “Obras Acadêmicas”, permanecendo, no entanto, manuscrito (JABOATÃO, 1759). Em 1778, aos 81 anos de idade, seu parecer também foi solicitado pelos superiores da Ordem sobre questões que envolviam disputas de jurisdição entre o Arcebispo da Bahia e os Prelados da Ordem envolvendo as missões sob a administração franciscana (ALMEIDA, 2012, p. 46).
A reconhecida autoridade pública de Jaboatão, mais que o fato de ser ele próprio franciscano, pode explicar o endereçamento de mais uma causa polêmica: a cor de Gonçalo Garcia, natural da Índia e mártir franciscano, no Japão. A posição política, pedagógica e social assumida por Jaboatão em plena sociedade colonial escravista, ao apoiar a causa legítima da luta pelo reconhecimento igualitário dos pardos, merece destaque pelo seu singular significado, em especial, pelo seu modo de pensar avançado ante as barreiras mentais e culturais do seu tempo.
Vários contemporâneos de Jaboatão, ao se depararem com a questão da pretensa cor parda de um santo Mártir nascido na Ásia, negaram composição tão insólita. Diz Ribeiro (1928, p. 14) ter chegado aos seus ouvidos o motivo alegado para a recusa de um indiscreto eclesiástico a quem fora encomendado um sermão: “não haver aprendido a pregar impossíveis”, pois não se “moldava com tal acidente a santidade, o que sinceramente se pode entender da sua natural impossibilidade”. Outro caso é o do franciscano Frei José dos Santos Cosme e Damião, Lente de Filosofia e de Teologia, um dos mestres de Jaboatão quando estudante na Bahia, afamado orador sacro, qualificador do Santo Ofício e também confrade de seu ex-discípulo na Academia dos Esquecidos. Em sermão proferido em 1746, na festa do mesmo Santo, na Bahia, demonstrou constrangimento ao abordar o tema. O discurso, talvez na tentativa de criar suspense, retarda o anúncio da cor da pele do bem-aventurado, pois aos ouvintes não desejara abruptamente “assustar como coisa certa e indubitável”, a sua origem parental, “mas também o específico predicado ou atributo, ainda que de alguns mal avaliado, e menos preciado (não quisera proferir por não escandalizar os vossos ouvidos; mas permite-me o dizer uma vez), de mulato, ou mestiço” (LINS; ANDRADE, 1986, p. 503). O pregador se escusa ao se sentir obrigado a proferir o designativo “mulato” como a um palavrão ou algo que ferisse suscetibilidades! E, de fato, em nenhuma outra parte do sermão, faz menção à cor do santo. Poderia o eminente pregador ter escolhido a expressão “pardo” a “mulato”, essa última, em geral, utilizada de forma pejorativa, no período colonial (HILL, 2012; PESSOA, 2007). Certamente, o uso do termo “mulato” daria maior efeito retórico à revelação bombástica anunciada aos fiéis: eis que um mulato é elevado aos altares!
O pardo: o elemento mais plástico e dinâmico da sociedade colonial
Mas como a natureza sempre aspira aperfeiçoar-se, e mais a mais, comunicando-se, ou misturando-se a cor preta com a branca, por meio da mesma natureza, assim se vai com a branca aperfeiçoando-se a preta, até tornar ao seu princípio, e ficar no seu natural. E quem negará que a cor parda, que resulta assim da preta, e da branca, não aspira toda a perfeição desde o seu primeiro princípio? (JABOATÃO, 1758a, p. 209)
O mulato ou pardo, salvo o que dissemos anteriormente sobre a conotação insultuosa que carregava a palavra “mulato”, corresponde ao mesmo tipo humano: filho gerado de branco com negro. Essa é a definição que Jaboatão retira do primeiro dicionário enciclopédico da Língua Portuguesa, de autoria de Raphael Bluteau (1638-1734), clérigo regular da Ordem de São Caetano, e reconhecido orador sacro em Lisboa. Publicado em Coimbra, no início do século XVIII, inclui dois verbetes: “mulato” e “mestiço”. Bluteau apoiou-se no comentário que fez Manoel de Faria e Souza sobre texto de Camões, deixando evidente que a miscigenação entre negros e brancos fazia parte do cotidiano nas colônias portuguesas desde o século XVI (HILL, 2012, p. 19s.).
Mais que fazerem alusão a especificidades fenotípicas, como cor da pele e demais caracteres corporais, mulato ou pardo, como “qualidade de cor”, referem-se a uma condição social composta de indivíduos em rápido processo de ascensão social (GUEDES, 2014). A causa principal e justificadora desse êxito hierárquico nos remete ao próprio corpo mestiço, cujos traços melhor se conformam aos padrões e aos sinais da branquetude. Escamoteiam, assim, mais facilmente o estigma da escravidão identificado com a negritude. Negro, mais que designar alguém que tem a pele preta, conota o escravo. Nesses termos, negro é tão ou mais pejorativo que mulato.
O pardo é percebido como um elemento perturbador da ordem social que se desejaria conservar, mas que, inexoravelmente, está em constante devir. E perturba porque é o elemento socialmente mais plástico e dinâmico da nossa formação (FREYRE, 2004, p. 30). O pardo, de modo geral, é filho de genitor português e membro da casta superior. Bastardo, mas protegido pelo “padrinho”, e não raro tratado como filho, e, mesmo não gozando do reconhecimento do pai, tem o acesso facilitado à casa grande dos brancos.
Em cenários de início do século XVIII, Schwartz observa a importância da cor nas estatísticas dos pardos libertos. Entre os adultos, os pardos constituíam 35% do total, número talvez duas vezes maior do que sua presença estatística no total da população escrava. Entre as crianças, os pardos constituíam mais de 78% dos libertos, evidenciando a flagrante vantagem dos pardos no processo de emancipação durante a infância (SCHWARTZ , 2001, p. 193).
Os ex-escravos e os seus descendentes nascidos livres, mesmo os que experimentavam ascensão econômica, não escapavam da discriminação praticada abertamente ou mesmo de maneira mais sutil pela sociedade colonial. Por ser um grupo com mais possibilidade de acesso à cultura dominante, era também capaz de utilizar a palavra escrita, ferramenta até então monopolizada pelos brancos, para produzir petições, processos e demais documentos reivindicatórios acerca de seus direitos pessoais e de grupos, bem como de redigir defesas e manifestos contra injustiças que lhes eram perpetradas. Dessa forma, não obstante os impedimentos oficiais, alguns poucos pardos conseguiam se habilitar a ocupar cargos na administração pública, lograr patentes militares e a ingressar no clero (OLIVEIRA, 2014), situações que, por lei, foram-lhes vedadas. Ingressavam também em milícias específicas de homens pardos, da mesma forma em que eram arregimentados os negros para o Terço dos Henriques (MOTA, 2014). Erigiam irmandades e confrarias de homens pardos, conforme o costume de negros e de brancos, sob os auspícios do catolicismo. Gozando de liberdade, em geral, em vilas e cidades, ocupavam-se com os trabalhos manuais e mecânicos, com as atividades do comércio e na prestação de pequenos serviços. Não era raro que fossem proprietários de escravos, sinal evidente de ascensão econômica e social.
À época, o pardo vira mulato quando não se conforma aos lugares que a ele julgam devidos. Gregório de Matos (1636-1696), em vários de seus versos satíricos, alude ao “mulato desavergonhado”, “ousado” e “atrevido”, que desafia a ordem natural das coisas. Contra o Padre Lourenço Ribeiro, que era mulato, o Boca do Inferno desfere crudelíssimo escárnio, após sofrer críticas do vigário, um de seus desafetos:
Imaginais, que o insensato
do canzarrão fala tanto,
porque sabe tanto, ou quanto,
não, senão porque é mulato:
ter sangue de carrapato
ter estoraque de congo
cheirar-lhe a roupa a mondongo
é cifra de perfeição:
milagres do Brasil são. (CHOCIAY, 1993, p. 144)
Em 1711, Antonil elogia as propensões polivalentes dos mulatos ao exaltar a sua condição de bons trabalhadores. Julgava-os habilitados a exercerem bem qualquer ofício manual. Não obstante, alerta que “muitos deles usando mal dos favores dos senhores, são soberbos e viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo” (ANTONIL, 1837, p. 32); razão pela qual alerta o jesuíta que “não se lhes há de dar tanto a mão, que peguem no braço, e de escravos se façam senhores” (ANTONIL, 1837, p. 32). A contrariedade da elite colonial com a rápida e “espúria” ascensão social dos pardos reverbera na pena de Antonil ao grafar a antológica frase: “o Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas” (ANTONIL, 1837, p. 32).
A descoberta de ouro na região das Minas, no fim do século XVII, provocou uma corrida ao interior do Brasil, em busca do eldorado, não apenas por parte dos colonos. O número de portugueses emigrados para Colônia aumentou sensivelmente. Outro efeito humano foi um renovado incremento do tráfico de negros, em especial para suprir as necessidades da nova atividade aurífera em Minais Gerais e Goiás. Algo similar ao acontecido a partir de 1600, em Pernambuco, para abastecer de escravos a empresa açucareira em regime de Plantation. Nessas regiões de maior riqueza e afluxo de pessoas a buscar fortuna ou a padecer sob a exploração, evidente que o número de mestiços se tornou consideravelmente expressivo. Mas a economia aurífera superou, em importância, a açucareira e mudou características significativas da organização social. A sociedade que até então ocupava a colônia portuguesa na América - predominantemente latifundiária, estamentária e rural - passou por mudanças bastante originais. O comércio de bens e serviços diversos cresceu significativamente, em virtude da demanda que surgiu em torno da atividade principal de exploração do minério, o que proporcionou vigor a uma economia paralela, geralmente desconsiderada pela historiografia tradicional, que sustentou a tese dos ciclos econômicos para dividir didaticamente a história econômica nacional. As classes sociais se diversificaram. Não mais se compunham, basicamente, de duas, a dos proprietários e a das propriedades, os escravos. Surgiram também diversos pequenos negociantes e prestadores de serviços, entre os quais se contava crescente número de negros e pardos libertos, alçados a essa condição por diferentes meios, inclusive o da compra da própria alforria, por intermédio de poupança acumulada ao longo de anos. A ascensão na escala social havia sido maleabilizada. Outra mudança importante, a cidade, ali, passara a concentrar pessoas como jamais o fizera na Colônia. Expressiva concentração populacional na cidade fez que essa tivesse se tornado o centro das atividades sociais, substituindo o campo/fazenda nessa função (BOXER, 2000). Nesse novo ambiente urbano, as mudanças demográficas, em curso acelerado, ganharam visibilidade, com o aumento de negros e de pardos, tanto escravos quanto foros, e compuseram o grupo mais numeroso da população.
As configurações sociais do Brasil Colonial, a partir do século XVIII, ao se tornarem mais complexas, precisaram ser tratadas com maior cuidado conceitual. Antes de tudo, é preciso afirmar com veemência que a empresa escravista é um “moinho de gastar gente” (RIBEIRO, 1995, p. 106). O cativeiro, na América, fundado na apropriação de seres humanos através de atrozes violências e coerção permanente, “atua como uma mó desumanizadora e desculturadora de eficácia incomparável” (RIBEIRO, 1995, p. 118). Índios e negros são transformados em coisas. Podem ser vendidos, trocados e usados ao preço do sacrifício da vida para girar a máquina colonial. Como afirma Ribeiro (1995, p. 118), é espantoso que os índios, como os pretos, postos nesse “engenho deculturativo”, consigam permanecer humanos: “só o conseguem, porém, mediante esforço inaudito de autorreconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento” (RIBEIRO, 1995, p. 118).
Entre a violência desumanizante e a força de autorreconstrução de que fala Darcy, surge uma brecha para pensar a escravidão sob outras perspectivas. Para Igor Kopytoff (1982, p. 221s), a escravidão não deve ser definida como um status, mas, antes, como um processo de transformação de status, que poderá prolongar-se ao longo de toda uma existência e mesmo estender-se às gerações subsequentes. O escravo chegado ao cativeiro é um outsider. Passará, em seguida, por um processo que o transformará num insider. Um indivíduo, despido de sua identidade social original, é posto à margem de um novo grupo social, que, no entanto, impõe-lhe uma nova identidade. Conclui que a sua condição de estranho (outsidedness) não se trata de questão étnica, mas sociológica
O sistema escravista brasileiro, a partir do século XVII e à diferença do sistema caribenho francês e inglês, marcou-se por praticar um tráfico transatlântico volumoso, mas que, ao mesmo tempo, concedia constantes e numerosas alforrias, o que era muito dificultado naqueles outros sistemas. Certamente por isso, Kopytoff, em suas análises sobre a escravidão brasileira, buscou não separar escravidão e manumissão por serem partes de um mesmo processo institucional. Isso nos permite dizer que as gerações de negros nascidos no Brasil, os crioulos, fossem eles escravos ou forros, experimentavam adiantado processo de deculturação. Enraizados, gradativamente, numa nova configuração social, gozavam de status bastante superior ao dos seus progenitores e antepassados africanos. A ascensão social na sociedade escravista torna-se viável na transposição jurídica da condição de escravo à de forro, e de forro à de livre. Mas é preciso estar atento à ideologia da assimilação que, a um só tempo, promove a ascensão e inferioriza o ascensionado.
A miscigenação entre brancos, índios e negros, em curso desde o início da colonização, e a “crioulização demográfica” (PARÉS, 2005, p. 88), mais característica das áreas de maior fluxo de escravos empregados na economia açucareira, no século XVIII, foram facilitadoras da flexibilização da desigualdade estamental. A rigidez hierárquica do primeiro século de colonização cede lentamente ao movimento de “brasileiração”. Os pardos, forros ou nascidos livres, ao ocuparem um status intermediário entre a liberdade e a escravidão, experimentam situações paradoxais. Pardo refere-se, sobretudo, à condição jurídica de livre, não obstante pesar-lhe pela cor o estigma de sua ascendência negra. Segundo Ribeiro (1995, p. 223), o mulato se “humaniza no drama de ser dois, que é o de ser ninguém”, uma vez que transita entre dois mundos conflitantes, o do negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita. O mestiço “é um estranho, um outro construído na distância entre dois polos radicais. Seria o elo de um mundo novo?”, indaga Sá (2013, p. 168).
No entanto, “os negros que ocupavam uma oposição de classe superior identificavam a si mesmos como membros da comunidade branca” (COSTA, 1999, p. 379), pois, conforme um antigo dito popular adaptado por Freyre, “quem escapa de negro, branco é” (PIERSON, 1945, 205). Referindo-se ao Brasil, e especificamente a Pernambuco, destacava Jaboatão que, entre os que ocupavam cargos de destaque, encontravam-se muitos pardos, tal é que “podíamos fazer de todos uma boa lista, se assim como lhe sabemos os nomes, não achássemos alguns com cores mudadas” (JABOATÃO, 1758a, p. 205, grifo nosso).
Os séculos seguintes ampliarão as categorizações sociais e tornarão mais complexa a hierarquização social brasileira. Russel-Wood (2005, p. 120s) percebeu que o conceito de pirâmide aplicado às sociedades escravocratas do Novo Mundo apresentava limitações. Em se tratando das sociedades e das culturas da América Portuguesa e Espanhola, seu uso torna-se ainda mais restrito e deve ser feito com reserva. A sociedade dos trópicos, afirma Russel-Wood (2005, p. 119), possuía “sua própria dinâmica interna de evolução, revolução ou retrocesso - que era mais caracterizada pela mudança e pelo conflito do que pela continuidade”. A mobilidade não é apenas vertical, mas também horizontal ao diferençar membros do mesmo grupo. Entre os vértices extremos que separam o senhor e o escravo, surgem pontos intermédios, que se combinam mui diversamente para compor as mais variadas formas de inserção dos indivíduos na sociedade: nascimento; sexo; religião; pigmentação; situação legal; atributos sociais; recursos financeiros; ligações familiares; fluência em português e grau de alfabetização; tempo de residência na América; profissão; cronologia; residência urbana ou rural e região da colônia; aptidões. Cada um desses temas cobre espectros inteiros, de modo a transitar da ortodoxia católica às religiões africanas, se o tema for religião; da absoluta ignorância do idioma ao domínio das línguas africanas, em se tratando de fluência em português; do negro ao branco, quando se nuança a cor da pele; e de escravo a livre, ao considerar o estatuto jurídico (RUSSEL-WOOD, 2005, p. 120).
A mestiçagem, ao envolver gerações, e, portanto, mais que a aquisição de riqueza ou prestígio, ou o domínio da língua ou a adesão à fé oficial, custa demasiado tempo. E, todavia, é a forma mais segura e perene de ascensão. Os casamentos inter-raciais, sob a ideologia de branqueamento, nem sempre motivados por intencionalidades conscientes, em geral, caracterizaram-se pela iniciativa seletiva do homem negro enriquecido que se casa com uma mulher branca ou de pele mais clara. Certamente, sua prole gozará de outra condição, que lhe facilitará oportunidades que não costumam privilegiar gente negra.
Exegese da mestiçagem: a cor de uma gente nova
Agora duvido assim: se as gentes, que se nomeiam aqui para coroarem a Igreja, são as que habitam as quatro regiões do mundo, como não são as coroas também quatro? As coroas há de ser três, significadas naqueles três veni, veni, veni coronaberis; e as gentes divididas em quatro partes: de Líbano, de Amaná, de Sanir, de Hermon? Sim; por que? Porque ainda que as partes do mundo sejam quatro, as gentes, que as habitam, constam só de três cores, que são a branca, a preta, e a parda; porque fora dessas três cores não há gente no mundo de outra cor. E daqui se ficará entendendo que fora do branco, e preto, tudo o mais se deve reduzir a cor parda, e buscar nessa cor a própria estação. (JABOATÃO, 1758a, p. 217)
A mistura de gentes de cor pareceu a Jaboatão um caminho natural e desejável ao Divino Criador. Segundo seu entendimento, a humanidade é composta de gentes de três cores: brancas, preta e parda, como se lê na epígrafe acima. O pardo é um “misto {…} que participa de ambas as cores, preta, e branca” (JABOATÃO, 1758a, p. 179). Os “morenos”, “baços”, “pardos” ou “mulatos”, todos os mestiços, portanto, inclusive os indianos, como Gonçalo Garcia, e os vermelhos, naturais da América, são “descendentes de preto, e branco” (JABOATÃO, 1758a, p. 196).
Homem do seu tempo, ante os textos da Escritura Sagrada, Frei Jaboatão, em geral, adotou os usos exegéticos e hermenêuticos que se apoiavam na “opinião comum dos sagrados expositores” (JABOATÃO, 1758a, p. 199), conforme a tradição da Igreja. Se, de um lado, fazia uma abordagem gramático-histórica, com ênfase na literalidade textual (Adão era realmente Adão, o dilúvio de Noé foi realmente um dilúvio), de outro, procurava descobrir o sentido teológico da textualidade. Por sua vez, a prática da exposição exegética das Escrituras, com finalidade homilética, leva-o a retirar dos relatos bíblicos, sem prejuízo ao contexto histórico, um sentido espiritual oculto, que será encontrado por meio da alegoria. Os dois usos estão presentes nos seus sermões. Dessa forma, os negros, descendentes de Cam, filho amaldiçoado de Noé, carregam na pele o estigma e o sinal da maldição, a cor preta. E, sobre Adão, criado da terra, “não se há de negar que a primeira matéria, e o primeiro princípio natural do nosso corpo foi o barro” (JABOATÃO, 1758a, p. 210).
Para buscarmos outros referenciais, que não apenas os eclesiásticos, igual opinião colhemos nos Diálogos da Grandeza do Brasil (1618), cujo autor, cristão novo e senhor de engenhos, na Paraíba, Ambrósio Fernandes Brandão, afirma que os negros da Guiné e da Etiópia “haviam de ser descendentes de Adão, e depois de Noé, que foram de cor branca” e “descendentes do perverso Cam e de seu filho Canaã” (ABREU, 1956, p. 40s).
Até aí, nada de novo!
A exegese do seráfico orador começa a surpreender quando interpreta que o protótipo de todos os homens não foi nem branco, nem negro, mas pardo. Porque parda é a autêntica coloração do barro. E, por ditas razões naturais, conclui que Deus quis dar “àquela primeira imagem do homem {…} só a {cor} Parda, porque a Parda era mais perfeita que a preta, e que a branca {…}”; ora, e a mais perfeita obra saída das mãos de Deus, “devia ser adornada com a mais perfeita cor; a cor foi a Parda” (JABOATÃO, 1758a, p. 212).
Surpreende, também, quando entende que, em consequência dos opróbrios e dos sofrimentos padecidos, os pardos são apresentados como merecedores e destinatários da prometida bem-aventurança evangélica. Tal bem-aventurança, todavia, funda-se numa escatologia bastante arrojada, que não é aquela escapista e típica da época. Aliás, bem contrária à tradição em que foi tratada pelos grandes teólogos e pregadores, a exemplo do Padre Vieira, a quem recorremos, não por originalidade, mas por ter sido a grande expressão dessa doutrina na Colônia. Encontrando alguma razão de bem na escravidão, o mestre inaciano foi capaz de ensiná-la aos negros, seus preferenciais ouvintes das dezenas de sermões do Rosário que escreveu e proferiu. Sob a inspiração da felicidade post-mortem alcançada pelo pobre Lázaro do Evangelho, profetiza o pregador jesuíta: “{…} Virá tempo, e não tardará muito, em que esta roda dê volta, e então se verá, qual é melhor fortuna, se a vil e desprezada dos escravos ou a nobre e honrada dos senhores” (VIEIRA, 1945, p. 113). Haveria menor mal na escravização dos negros tornados cristãos pelo Batismo, do que permanecerem pagãos numa terra de danações: “{…} a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus {…}, por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão um milagre, e grande milagre (VIEIRA, 1945, p. 305)!”. E convicto de um dualismo meio estoico, meio platônico, é capaz de exortar os escravos: “Sois cativos n’aquela metade exterior e mais vil de vós mesmos, que é o corpo; porém na outra metade interior e notabilíssima que é a alma {…}, não sois cativos, mas livres” (VIEIRA, 1945, p. 340). É bem verdade, caso se convertam, acrescenta o Padre.
Jaboatão, na contramão, prega uma teologia pé no chão, a fruição da felicidade em vida, no aqui e agora, misturada ao sofrimento e ao gáudio, sem negar aquela felicidade desencarnada e etérea de quem passou e só no céu conquista o prêmio eterno.
A bem-aventurança, ou glória, de que o Senhor aqui fala, não é a do céu, é a da terra; não é a que se goza lá na pátria, é a que se pode ver nesse mundo: é aquela glória, aquele prazer, aquele gosto, que costuma sobrevir, depois de vencido o trabalho, desfeito a calúnia, e passada a tribulação: é o sentido literal do texto: porque tudo o que nele se trata é coisa, que havia passar cá no mundo, e entre homens, adonde a glória, que pode haver, não passa de um prazer, e gosto, que passa: Beati eritis. Gaudete, exultate. (JABOATÃO, 1758a, p. 173)
Não vem para conclamar os pardos ao padecimento paciente e expectante duma alegria escatológica que há de vir, nem lhes profetizar vitórias a se conquistar em tempos de futura graça. Sua aula é a do anúncio de que, naqueles dias da celebração da cor de Gonçalo Garcia, coincidentes com a ocasião em que “apuraram e apertaram mais as tribulações dos caluniadores do seu nome {Pardo}” (JABOATÃO, 1758a, p. 172) - num tempo kairológico, portanto -, cumpriu-se a profecia prometida por Cristo aos pardos.
Cristo dizia aos discípulos, que havia ter um dia destes; mas não lhes declarou quando havia de ser este dia; talvez, porque quis que pelo dia de hoje viéssemos em conhecimento daquele dia. {…} Pois agora é o tempo, já chegou o dia. {…} Agora, sim, que cresceram, e cresceram a seu termo as calúnias do vosso nome {…} agora é o tempo de se publicarem as vossas glórias: Beati eritis, já chegou o dia do vosso grande prazer, e gosto: Gaudete in illa die, exultate”. (JABOATÃO, 1758a, p. 172)
As bem-aventuranças dos pardos, em sentido escatológico, ou como quer Jaboatão, para fruição na imanência e concretude de seus dias na terra, enchem-se de potência com a teoria filosófica que defende sobre os mistos: “Na boa filosofia o corpo misto elementar é mais perfeito que cada um dos elementos, e a razão é: porque o corpo misto elementar contém em si todas as qualidades elementares, e participa da perfeição de cada uma delas” (JABOATÃO, 1758a, p. 212).
E, dando vários exemplos para fundamentar a sua afirmação, concluiu: “Logo, se a cor parda inclui, e participa as perfeições da negrura, e alvura; bem se segue que a cor parda é a mais perfeita que a branca, e que a preta” (JABOATÃO, 1758a, p. 213), tese bem diferente daquela dos seus contemporâneos e das que ainda viriam, dois séculos depois, defender a degenerescência dos mistos humanos.
Já nos referimos às teses que sustentavam uma pretensa contaminação pelo sangue considerado infecto, daí a ser comum a expressão “raça infecta”. Ter raça significava fazer referência a alguém que descendia de mouro, judeu ou preto. Um cristão não pertenceria a uma raça. O uso do conceito de raça é anacrônico e, portanto, inadequado para o entendimento das classificações sociais no Antigo Regime (RAMINELLI, 2012). Por isso, só bem mais próximo de nós, ocorre a introdução do conceito de “raça” (tal qual o conhecemos) e das teses da existência de raças superiores e inferiores, subsidiárias de teorias positivistas, evolucionistas e darwinistas, todas, até então, desconhecidas. A partir de fundamentos diversos, essas teses defendem que a miscigenação, a mistura de cores ou de raças, ocasionaria a degenerescência da prole, que não herdaria as qualidades superiores das raças de nenhum de seus progenitores. De origem europeia e sendo enunciadas pelos seus mais ilustres homens de ciência, ganharam credibilidade nessas partes do Novo Mundo. Entre diversos teóricos, são merecedores de atenção George-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788), com a sua tese da “infantilidade do continente”, e de Cornelius de Pauw (1739-1799), com a tese da “degeneração americana” (SCHWARTZ, 2015, p. 61). Não podemos nos esquecer de Gobineu (1816-1882), o mais comentando pelos que tratam do tema. Cremos que é sempre mais lembrado não por suas qualidades científicas, mas em razão de seus vaticínios apocalípticos, que chegaram ao cúmulo de datar o desaparecimento da população brasileira, tal a proporção de mestiços que encontrou no Brasil e o grau de degeneração que identificou nesses “homens de cor” (RAEDERS, 1988).
Entre os nacionais, destacamos o médico maranhense e professor da Faculdade de Medicina da Bahia Nina Rodrigues (1862-1906), um dos destacados representantes do racismo científico no Brasil. Em trabalho de sugestivo título, Mestiçagem, degenerescência e crime, afirma:
O cruzamento de raças tão diferentes, antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições de luta social das raças superiores. (RODRIGUES, 2008, p. 1161)
Em outro texto, Nina Rodrigues (1862-1906) acolhe as palavras de Luís e Elizabeth Agassiz, naturalistas suíços que haviam empreendido viagem ao Pará, Amazonas e Rio de Janeiro, entre 1865 e 1866, e que atribuíram à mestiçagem o motivo real da degradação dos povos que viviam na região Amazônica.
O resultado de não interrompidas alianças entre sangues mistos é uma classe de homens nos quais o tipo puro desapareceu, e como ele todas as boas qualidades físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar um povo degenerado, tão repulsivo como esses cães, produto de uma cadela de caça, como um gozo, com horror dos animais da sua espécie, entre os quais é impossível descobrir um único indivíduo tendo conservado a inteligência, a nobreza, a afetividade natural que fazem do cão de tipo puro o companheiro e o favorito do homem civilizado. (AGASSIZ, L.; AGASSIZ, E. apudRODRIGUES, 1938, p. 178)4
Até meados do século XIX, quando ainda não se escreviam discursos tão assombrosos quanto o de Agassiz, e sem ainda dispor das ferramentas teóricas mais sofisticadas da Biologia, a tese monogenista era a dominante e aglutinava a maior parte dos homens de ciência. Os intelectuais, desafiados a pensar a origem do homem conforme a Bíblia, acreditavam que a humanidade era una. O homem teria se originado de uma fonte comum. A variedade dos tipos humanos seria o resultado de uma virtualidade ou da consecução teleológica, havendo por base a filosofia essencialista de Aristóteles, um tanto prejudicada pelo dogma da queda do gênero humano, que fez degenerar a natureza criada. Em pleno século XVIII, os referenciais aristotélicos gozavam de notória autoridade, não apenas da parte dos jesuítas, mas também de filósofos, como Leibniz, para quem, nas obras divinas, “há uma harmonia, uma beleza já preestabelecida” (LEIBNIZ, 1988, p. 239). Ao contrário da noção de evolução, que ganhará credibilidade a partir da segunda metade do século XIX, é relativamente consensual que todas as coisas já estavam prontas desde o princípio. Nada de novo nasce ou surge. Aperfeiçoa-se o que já existe anteriormente.
É nítido, no ensino de Jaboatão, que a perfeição e a degeneração são equidistantes do Éden. Quanto mais próximo da origem, maior a perfeição. Daí que a cor parda, por ser a original, figura como a mais perfeita, mesmo havendo de ser produto da mistura de outras duas. A seu turno, a preta, por ser causada em consequência de um pecado, possui menor perfeição, ao se afastar da ordem original. Mas, paradoxalmente, com o desenvolvimento da ciência, nem negros nem mestiços escapariam às terrificantes conclusões dos naturalistas, que não viam a possibilidade de salvação para uma humanidade misturada e saturada de elementos danosos. Em suma, passamos da “edenização” à “detração” (SCHWARTZ, 2015, p. 58).
Entusiasta da utopia franciscana, e cujos esboços começaram a se delinear na escrita do Novo Orbe Seráfico Brasílico, o pensamento de Jaboatão, na perspectiva da diferença, comporta o entendimento de que o pardo é, sobretudo, uma gente nova que, menos desigual ou mais igual (BARROS, 2014, p. 26), aponta ao futuro promissor do Brasil - Orbe Novo, e Seráfico -, como também da humanidade (ALMEIDA, 2012). Essa inspiração faz-nos referir, de imediato, à utopia de Darcy Ribeiro, vinda a lume no apagar do século passado, mas em continuidade à tradição conjugada pelas contribuições de Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Gilberto Freyre, entre outros que desenvolveram um olhar positivo acerca da mestiçagem:
É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um povo mais homogêneo, linguística e culturalmente e também um dos mais integrado socialmente da Terra. {…} Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante. {…} Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor porque incorpora em si mais humanidade. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentadas na mais bela e luminosa província da Terra. (RIBEIRO, 1995, p. 454s.)
O Pensamento de Darcy atualiza a utopia franciscana, enraizada no Brasil, que tem fundamento no carisma do próprio São Francisco. Os ideais franciscanos fomentam a fraternidade universal, a alegria, a paz e a reconciliação dos homens entre si e com a natureza. Nas palavras do antropólogo, não deixam de ecoar as bem-aventuranças proclamadas pela aula de Jaboatão, na igreja dos pardos.
Considerações finais
O ensino do franciscano Frei Jaboatão esmerou-se em privilegiar as gentes mestiças, não antes por serem melhores, mas porque mais sofridas e injustiçadas; e, de acordo com as categorias teológicas, calcadas na Boa-Nova, e com forte apelo social, quando o Reino de justiça vem, são elas as primeiras e as principais beneficiárias (Mt 6, 33; Rm 14, 16-18). Pertinente, então, indagar, tomando o mesmo nexo soteriológico, se os negros não precederiam aos pardos no advento da Justiça Divina? Por concentrar a preleção na valorização da cor Parda do mártir indiano, não tratou Jaboatão da escravidão, flagelo dos negros. Nem foi o Frade defensor libertário a condenar o regime escravista. Parece que a mentalidade reinante o dava como algo consumado a que se devesse tolerar ou minorar suas sequelas. Não se eximirá do tema, em outra parte de sua obra, porque também foi ardoroso divulgador do culto a São Benedito, o negro franciscano feito santo pela devoção popular antes da canonização oficial. Sem resvalar na mitificação do mestiço, Jaboatão tomou partido pela causa dos subalternos, lugar social em que se inscrevem os pardos, não sem projetar uma utopia para a humanidade. Por ora, cabe concluir destacando que a mestiçagem se tornou elemento crucial para o entendimento das sociedades coloniais, como também daquelas pós-coloniais. A mestiçagem suplantou os referenciais biológicos e raciais, alcançando, sobretudo, o âmbito cultural, e sua formulação tornou-se elemento inescapável para o entendimento das sociedades contemporâneas.