INTRODUÇÃO
A matemática é uma área complexa de aprendizagem que depende de diversos fatores externos e internos ao sujeito para que seu desempenho seja bem-sucedido. Entre os aspectos externos estão as questões familiares e sociais, bem como as práticas escolares, que devem priorizar um ensino hierárquico das habilidades de domínio específico (CORSO; ASSIS, 2017). Entre as questões internas está o funcionamento biológico do próprio indivíduo. Neste artigo, é investigada uma dessas possibilidades internas, o funcionamento neuropsicológico (que tem por base o funcionamento cognitivo do indivíduo) e sua relação com o desempenho aritmético (que possibilita acompanhar a evolução da aprendizagem aritmética)
Vê-se assim que lidar com a matemática oferece desafios, em maior ou menor grau, para todos os aprendizes. No entanto, para uma parcela grande de alunos, a matemática causa muitas dificuldades e compromete o rendimento escolar, de modo que defasagens nessa área contribuem para os alarmantes índices de fracasso escolar enfrentados pelo sistema educacional brasileiro (BRASIL, 2018). Naturalmente, o impacto de tal situação traz consequências adversas para o aluno e para toda a sociedade (PICCOLO et al., 2016). Estudos que associam contribuições da neuropsicologia e da educação, com foco na estimulação de habilidades cognitivas (CRAGG; GILMORE, 2014; CRAGG et al., 2017), evidenciam ganhos nos processos de aprendizagem da matemática e, desse modo, têm se mostrado promissores no enfrentamento de tal cenário (DIAMOND, 2013).
A propensão para o raciocínio matemático nos seres humanos pode ser identificada desde bebês, quando já são capazes de distinguir pequenas quantidades (DEHAENE, 1997; GEARY, 1995; STARKEY; COOPER, 1980). Trata-se de uma capacidade inata relativa às competências numéricas (ligadas à conhecimento de número, relações numéricas e operações numéricas), originada de um aparato biológico, que possibilita ao sujeito prestar atenção à numerosidade (DEHAENE, 2001). Ademais, as experiências sociais exercem um papel fundamental na construção do conhecimento numérico (SPINILLO, 2014; SILVA et al., 2015). No âmbito cerebral, estudos de neuroimagem revelam áreas do cérebro predispostas a desenvolverem habilidades matemáticas para fazer comparações, estimativas e cálculos mentais (BASTOS, 2016), o que indica não existir um centro específico para lidar com os números, mas sim diferentes regiões cerebrais envolvidas com essa função (CONSENZA; GUERRA, 2011). Portanto, a evolução da aprendizagem matemática é influenciada pelo desenvolvimento cerebral e pelas interações com o ambiente (DIAMOND, 2013).
DESEMPENHO ARITMÉTICO E FUNÇÕES NEUROPSICOLÓGICAS
A matemática é uma ciência que abrange variados domínios como a geometria, a estimativa, os sistemas de medida, a interpretação de gráficos e tabelas, entre outros (DOWKER, 2005). A aritmética é um desses domínios matemáticos que se dedica a estudar os números e as possíveis operações entre eles. Ela não é uma habilidade unitária, mas pode ser dividida em diferentes processos e cada um deles possui inúmeros subcomponentes: a) fatos aritméticos básicos, que correspondem aos diversos tipos de operações e cálculos matemáticos; b) habilidades procedurais, que compreendem os procedimentos aplicáveis a cada operação; c) compreensão conceitual, que envolve o entendimento de problemas matemáticos, bem como os princípios e as relações entre os conceitos da matemática (DOWKER, 2005).
Um desempenho matemático eficiente depende de várias habilidades subjacentes, e, quando algumas competências anteriores não estão bem desenvolvidas, como princípios de contagem, noções de grandeza e outros aspectos do senso numérico, as habilidades aritméticas são prejudicadas (CORSO; DORNELES, 2015; SILVA et al., 2015; GOLBERT; SALLES, 2010). O domínio matemático, conforme o modelo de Geary (2004), é composto por competências básicas conceituais e procedurais que, se não estiverem constituídas adequadamente, acarretarão, potencialmente, um desempenho escolar ineficiente, ou seja, abaixo dos níveis mínimos esperados para cada ano escolar. O autor sugere que a influência das funções executivas no desempenho matemático seja medida em competências de domínio específico.
Cragg et al. (2017) concluíram, a partir de pesquisa realizada por eles com sujeitos de 8 a 25 anos de idade, que as habilidades de funções executivas, em especial a memória de trabalho (MT), suportam processos de domínio específico da matemática, os quais, por sua vez, sustentam o desempenho geral da matemática. É possível observar pela Figura 1 a importância de conhecer o perfil neuropsicológico do aluno, uma vez que essas funções exercem uma interferência direta em seu desempenho aritmético.
A neuropsicologia é uma área interdisciplinar (BOLLER, 1999), pertencente à neurociência, que procura compreender as relações entre o cérebro e o comportamento (HAASE, 2016), mais especificamente entre o cérebro e as funções cognitivas (LURIA, 1981). O modelo cognitivo, estudado pela neuropsicologia cognitiva e que suporta teoricamente esse trabalho, visa entender “como as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação” (STERNBERG, 2008, p. 22). Entre as funções neuropsicológicas avaliadas nesse estudo estão: orientação, atenção, percepção, habilidades aritméticas, linguagem, habilidades visuoconstrutivas, memória e funções executivas (FONSECA; SALLES; PARENTE, 2009; SALLES et al., 2016).
A literatura aponta que uma das funções neuropsicológicas mais envolvidas com os processos aritméticos é a memória de trabalho (ou memória operacional). Ela refere-se à capacidade de armazenar e manipular informações, temporariamente, para executar tarefas cognitivas complexas (BADDELEY; HITCH, 1974). De forma teórica, ela é dividida em seus componentes executivo central, fonológico e visuoespacial (CHEN et al., 2017; CORSO, 2018; CORSO; DORNELES, 2015; HAASE et al., 2012; TOLL et al., 2011). Os últimos dois componentes citados (fonológico e visuoespacial) são fundamentais para o bom desempenho na aritmética (BULL; LEE, 2014; DORNELES; HAASE, 2018; GEARY, 2011; GONÇALVES et al., 2017; HAASE et al., 2012; PENG et al., 2012). Tais componentes são recrutados a todo instante durante a execução de um cálculo matemático. É preciso que o sujeito saiba organizar-se espacialmente para efetuar com sucesso os transportes durante os procedimentos aritméticos e fazer o enquadramento correto de vírgulas, unidades, dezenas e centenas. Já a memória fonológica é utilizada quando uma informação deve ser “segurada”, vocal ou subvocalmente, até ser escrita para a realização de cálculos mentais e também para os processos simples, como a contagem.
Peng et al. (2012) verificaram que alunos chineses, do 5.º ano do Ensino Fundamental, com dificuldades matemáticas apresentaram déficit apenas na tarefa de span numérico, que avaliava o componente fonológico, com desempenho adequado no span de palavras. No estudo com 302 alunos brasileiros, do 1.º ao 9.º ano do Ensino Fundamental (GONÇALVES et al., 2017), a memória fonológica foi um preditor de desempenho aritmético, independentemente da faixa etária e do conteúdo matemático que as crianças estavam aprendendo. O achado corrobora os estudos de Viapiana et al. (2016) que investigaram a validade do subteste de aritmética do Teste de Desempenho Escolar (TDE-II) com 111 alunos das mesmas etapas de ensino da pesquisa anterior. A memória de trabalho fonológica mostrou-se relevante para a automatização de fatos básicos, compreensão de conceitos, procedimentos e transcodificação numérica.
Sobre o funcionamento executivo, a inibição, a atualização (updating) e a alternância (switching∕shifting) são sinalizadas como funções de base para o bom desempenho matemático (BULL; LEE, 2014; BULL; SCERIF, 2001; CHEN et al., 2017; CRAGG; GILMORE, 2014; CRAGG et al., 2017; PENG et al., 2012; VAN DER SLUIS; DE JONG; VAN DER, 2004). A capacidade de atualização é a capacidade de substituir informações antigas da memória por outras mais recentes e relevantes e, para Bull e Lee (2014), foi o achado mais influente na esfera do aprendizado aritmético. A inibição é importante na medida em que ela dá ao indivíduo capacidade para controlar seus comportamentos, emoções e pensamentos, a fim de fazer aquilo que é adequado para a situação, como escolher um fato aritmético mais apropriado (DIAMOND, 2013; CRAGG; GILMORE, 2014). Nessa perspectiva, a inibição é um grande preditor do desempenho aritmético, principalmente do 1.º ao 5.º ano do Ensino Fundamental (GONÇALVES et al., 2017), quando essa função ainda está em processo de amadurecimento. Na matemática, ela auxilia na manutenção da atenção, ignorando estímulos externos, mantendo em mente as informações relevantes e suprimindo as irrelevantes que podem ocupar espaço na memória de trabalho (BULL; LEE, 2014; TOLL et al., 2011).
A alternância é caracterizada pelo desengajamento de um conjunto de tarefas ou estratégias irrelevantes e pela ativação subsequente de uma estratégia mais adequada (VAN DER SLUIS; DE JONG; VAN DER, 2004). No que concerne ao desempenho matemático, ela dá ao sujeito a oportunidade de trocar de estratégia entre diferentes etapas de resoluções aritméticas (TOLL et al., 2011). Como nos primeiros anos do Ensino Fundamental as tarefas não são tão complexas, os estudos indicam que, com o aumento da escolaridade, os alunos necessitam recrutar mais as habilidades de inibição e alternância (GONÇALVES et al., 2017; TOLL et al., 2011; VIAPIANA et al., 2016).
Explorar as associações entre a neuropsicologia e a educação pode auxiliar na promoção da aprendizagem aritmética, na prevenção de dificuldades nesse campo e, ainda, possibilita melhor compreender os processos cognitivos potencialmente necessários para o desenvolvimento aritmético. Na maior parte das vezes, os estudos focam apenas algumas funções neuropsicológicas, quando não uma única função como a linguagem, deixando de lado a discussão de outras importantes funções cognitivas que também são fundamentais para o desenvolvimento da aritmética.
Nesse contexto, o presente artigo teve como objetivo principal examinar as funções cognitivas associadas às dificuldades em aritmética, com foco em: a) analisar a relação entre o desempenho neuropsicológico e o desempenho em aritmética da amostra total de cada ano escolar; e b) investigar o desempenho dos alunos nas funções neuropsicológicas, divididos de acordo com o desempenho em aritmética, para cada ano escolar. As hipóteses levantadas são as de que o desempenho nas funções neuropsicológicas como funções executivas e memória associar-se-á ao desempenho em aritmética para essa amostra. Do mesmo modo, acredita-se que os estudantes com dificuldades em aritmética apresentarão um pior desempenho nas funções neuropsicológicas, especialmente nas funções executivas e na memória de trabalho, do que os alunos sem dificuldades em aritmética.
PARTICIPANTES
Participaram da pesquisa 167 alunos de 4.º e de 6.º ano do Ensino Fundamental, com idades variando de 9 a 12 anos (ver Tabela 1). Esses anos escolares foram escolhidos considerando que os alunos já estivessem plenamente alfabetizados (diminuindo as chances de déficits em linguagem por estarem em processo de alfabetização) e uma diferença de idade/ano escolar para verificar as diferenças entre desempenhos na aritmética e nas funções neuropsicológicas (levando em conta a idade-limite do instrumento em questão). A amostra foi composta por 91 alunos do 4.º ano (39 meninas - 43%) e 76 alunos do 6.º ano (49 meninas - 64%), de três escolas estaduais do município de Porto Alegre, RS, localizadas em uma mesma região, que apresentaram semelhanças na metodologia de ensino e nas características socioeconômicas e culturais, segundo os índices do Censo Escolar do Inep (2019).
Ano Escolar | Média | DP | Mínimo | Máximo | Mediana |
---|---|---|---|---|---|
4.º | 10,25 | 0,67 | 9,03 | 12,28 | 10,01 |
6.º | 12,00 | 0,38 | 11,44 | 12,97 | 11,91 |
Total | 11,04 | 1,03 | 9,03 | 12,97 | 11,43 |
Fonte: Autoras
Para compor uma das análises do estudo, os participantes foram divididos em dois grupos. No primeiro, estão alunos com dificuldades aritméticas (N = 20 de 4.º ano; N = 24 de 6.º ano), que apresentaram no subteste de aritmética do TDE escores inferiores aos esperados para seus respectivos anos escolares. O segundo grupo é constituído por alunos sem dificuldades (N = 71 de 4.º ano; N = 52 de 6.º ano), formado por aqueles que obtiveram um bom desempenho no subteste de aritmética.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o número 44047215.3.0000.5347. Foi apresentado aos pais dos alunos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) explicando todos os objetivos da pesquisa. Os critérios de inclusão para participação no estudo foram os seguintes: ser falante do português brasileiro, não apresentar doenças neurológicas ou psiquiátricas, apresentar escores acima do percentil 25 no teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (ANGELINI et al., 1999) e ter idade inferior a 12 anos, idade-limite para aplicação da bateria de testes neuropsicológicos utilizada.
INSTRUMENTOS
Questionário socioeconômico e de saúde (CORSO; SPERB; SALLES, 2013): Preenchido pelos pais ou responsáveis da criança, a fim de descartar da amostra alunos com diagnósticos graves, como doenças neurológicas (traumatismo cranioencefálico ou problemas do neurodesenvolvimento, como autismo e outros) e doenças psiquiátricas (por exemplo, depressão grave e outros), bem como conhecer os contextos familiares e sociais dos participantes. Foram coletados dados como idade, escolaridade, histórico de doenças do aluno e uso de medicamentos.
Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (ANGELINI et al., 1999): Instrumento utilizado para avaliar o quociente de inteligência (QI) não verbal. Foi considerado que os participantes teriam que desempenhar um percentil acima de 25 para serem incluídos na amostra (classificação intelectualmente na média ou superior).
Subteste de Aritmética do Teste de Desempenho Escolar (STEIN, 1994): Instrumento normatizado para a região Sul do Brasil e considerado sensível para identificar indivíduos com dificuldades aritméticas (GONÇALVES et al., 2017; VIAPIANA et al., 2016). Ele é composto por 38 questões, que engloba cálculos aritméticos com grau de dificuldade crescente. Alunos que obtiveram desempenho inferior, equivalente ao percentil 25 ou menor, para esse estudo foram considerados alunos com dificuldades em aritmética. Alunos com desempenho médio ou superior, equivalente ao percentil 50 ou maior, foram considerados alunos sem dificuldades em aritmética.
Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve Infantil - NEUPSILIN-Inf (SALLES et al. 2016): Verifica o desempenho neuropsicológico do estudante nas seguintes funções neuropsicológicas: orientação, atenção, percepção, memória, linguagem, habilidades visuoconstrutivas, habilidades aritméticas e funções executivas. O instrumento compreende 26 subtestes (Quadro 1). O instrumento possui normatização para as escolas públicas e privadas de Porto Alegre.
PROCEDIMENTOS
A primeira etapa da coleta de dados envolveu a aplicação coletiva do teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (máximo de oito participantes por grupo), realizada por uma psicóloga, com duração aproximada de 20 minutos por grupo. A seguir, o subteste de aritmética do TDE foi aplicado pela pesquisadora do estudo a cada turma, de forma coletiva. Por fim, houve a aplicação individual do NEUPSILIN-Inf, feita por graduandos de psicologia (após treinamento com psicóloga responsável), com duração de cerca de 40 minutos por aluno. As tarefas individuais foram realizadas em um espaço disponibilizado pelas escolas e a ordem de apresentação foi a mesma para todos os sujeitos.
DELINEAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS
Este estudo seguiu um delineamento transversal, comparativo de grupos e correlacional, com amostragem por conveniência. Foram realizadas estatísticas descritivas para caracterização da amostra e das variáveis de interesse. Para examinar a relação entre os desempenhos neuropsicológicos e os desempenhos em aritmética da amostra total para cada ano escolar, foi feita uma correlação de Pearson entre os escores z das funções neuropsicológicas avaliadas pelo NEUPSILIN-inf e os escores z alcançados no TDE. Ainda, foi utilizado o Teste t para observar as diferenças entre grupos, criados de acordo com o desempenho em aritmética no TDE (grupos com e sem dificuldades) com relação ao desempenho nas funções neuropsicológicas, investigadas pelo NEUPSILIN-Inf, e também quanto ao quociente de inteligência não verbal. A estatística d de Cohen foi executada para estudar o tamanho do efeito dessa diferença entre grupos, separados por ano escolar.
RESULTADOS
Na Tabela 2 são apresentados dados de caracterização da amostra em matéria de frequência e divididos por ano escolar. A grande parte da amostra total é composta por meninas; entretanto, o 4.º ano tem em sua maioria meninos. No tocante à repetência escolar, 21% da amostra do 4.º e do 6.º ano já repetiu algum ano escolar, e, segundo relato dos pais, 23% dos alunos desses dois anos escolares já apresentaram problemas anteriores de leitura e escrita.
Variáveis | 4.º ano (N=91) | 6.º ano (N=76) | |||
---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | ||
Sexo | Feminino | 39 | 43 | 49 | 64 |
Masculino | 52 | 57 | 27 | 36 | |
Repetência ano escolar | Não | 67 | 75 | 61 | 84 |
Sim | 22 | 25 | 12 | 16 | |
Dificuldade Visual | Não | 76 | 84 | 58 | 80 |
Sim | 14 | 16 | 15 | 20 | |
Usa óculos | Não | 77 | 86 | 63 | 85 |
Sim | 13 | 14 | 11 | 15 | |
Problemas anteriores de leitura e escrita | Não | 62 | 70 | 61 | 85 |
Sim | 26 | 30 | 11 | 15 |
Fonte: Autoras
A Tabela 3 apresenta os dados, com significância estatística, da correlação de Pearson realizada para verificar a relação entre o desempenho no TDE e o desempenho nos subtestes do NEUPSILIN-Inf. Para o 4.º ano, destacam-se as correlações positivas e moderadas entre os escores z do TDE e os escores z dos subtestes de Memória Semântica (r=0,4; p=0,001) e Cálculos (r=0,5; p<0,001) do NEUPSILIN-Inf. Portanto, quanto melhor o desempenho em aritmética, melhor é o desempenho desses alunos em evocar conhecimentos baseados em conceitos e também em realizar cálculos matemáticos simples.
Para o 6.º ano, evidenciam-se as correlações positivas e moderadas entre os escores z do TDE e os escores z dos subtestes de Span de Dígitos (r=0,4; p=0,002), Cálculos (r=0,5; p<0,001) e Fluência Verbal total (r=0,4; p=0,001) do NEUPSILIN-Inf. Logo, quanto melhor o desempenho em aritmética dos alunos desse ano escolar, melhor é o seu desempenho em: reter e manipular informações numéricas por um curto período de tempo, realizar cálculos matemáticos simples e organizar as estratégias utilizadas para a evocação de palavras do léxico. As demais correlações, por sua vez, mostraram-se positivas e fracas para ambos os anos escolares.
Variáveis | 4.º ano | 6.º ano | ||
---|---|---|---|---|
r | p | r | p | |
Orientação | Sem sig. estatística | 0,2 | 0,04 | |
Memória Episódico-Semântica (Verbal Imediata) | Sem sig. estatística | 0,3 | 0,01 | |
MT Span de Dígitos | 0,2 | 0,04 | 0,4 | 0,002 |
MT Visuoespacial | 0,3 | 0,01 | 0,3 | 0,01 |
Memória Semântica | 0,4 | 0,001 | Sem sig. estatística | |
Subtração Fonêmica | 0,3 | 0,001 | Sem sig. estatística | |
Consciência Fonológica | 0,2 | 0,03 | Sem sig. estatística | |
Processo Inferencial | 0,3 | 0,01 | Sem sig. estatística | |
Leitura de Sílabas | 0,2 | 0,04 | Sem sig. estatística | |
Escrita de Palavras | 0,3 | 0,004 | 0,3 | 0,01 |
Habilidades Visuoconstrutivas | 0,3 | 0,01 | Sem sig. estatística | |
Cálculos | 0,5 | <0,001 | 0,5 | <,0001 |
FV Ortográfica | Sem sig. estatística | 0,3 | 0,002 | |
FV Semântica | Sem sig. estatística | 0,3 | 0,02 | |
Fluência Verbal Total | Sem sig. estatística | 0,4 | 0,001 | |
Paradigma Go/no-go | Sem sig. estatística | 0,3 | 0,01 |
Nota: MT = Memória de trabalho; FV = Fluência verbal; r = Coeficiente de correlação de Pearson; p = significância estatística; sem sig. estatística = sem significância estatística.
Fonte: Autoras
Com relação à comparação do desempenho neuropsicológico (calculado pelo escore z) dos grupos com e sem dificuldade em aritmética, para os alunos do 4.º ano, foram encontradas diferenças significativas em três tarefas do NEUPSILIN-Inf apresentadas na Tabela 4. Os alunos sem dificuldade aritmética desempenharam significativamente melhor do que aqueles com dificuldade nos escores de habilidade aritmética, cálculos e habilidades visuoconstrutivas.
Sem dificuldade aritmética | Com dificuldade aritmética | Teste estatístico | ||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Variáveis (Escore Z) | N | M | DP | Mediana | N | M | DP | Mediana | t | Sig. | Tamanho de efeito | magnitude |
Habilidade Aritmética | 71 | -0,38 | 1,29 | 0,01 | 20 | -3,14 | 2,43 | -2,7 | 4,88 | 0,001 | -1,23 | grande |
Cálculos | 71 | -0,38 | 1,29 | 0,00 | 20 | -2,78 | 2,86 | -2,63 | 3,65 | 0,001 | -0,92 | grande |
Habilidade Visuoconstrutiva | 71 | -1,02 | 1,80 | -0,67 | 20 | -2,07 | 1,91 | -2,17 | 2,21 | 0,04 | -0,56 | médio |
Nota: N = número de participantes; M = média; DP = desvio-padrão; t = Teste t; sig. = significância
Fonte: Autoras
Relativamente aos alunos de 6.º ano, foram encontradas diferenças significativas em oito tarefas do NEUPSILIN-Inf, apresentadas na Tabela 5. Os alunos sem dificuldade aritmética desempenharam significativamente melhor do que aqueles com dificuldade nos escores de cálculos, habilidade aritmética, fluência ortográfica, fluência verbal total, memória de trabalho visuoespacial, memória de trabalho total, memória episódico-semântica e memória total.
Sem dificuldade aritmética | Com dificuldade aritmética | Teste estatístico | ||||||||||
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Variáveis (Escore Z) | N | M | DP | Mediana | N | M | DP | Mediana | t | Sig. | Tamanho de efeito | Magnitude |
Cálculos | 52 | -0,39 | 1,51 | 0,45 | 24 | -2,82 | 3,71 | -1,09 | 3,10 | 0,001 | 1,01 | grande |
Habilidade Aritmética | 52 | -0,12 | 1,59 | 0,45 | 24 | -2,76 | 3,68 | -1,03 | 3,37 | 0,001 | 1,08 | grande |
Fluência Ortográfica | 52 | -0,14 | 0,88 | -0,25 | 24 | -0,62 | 0,81 | -0,52 | 2,33 | 0,02 | 0,56 | médio |
Fluência Verbal Total | 52 | -0,28 | 0,72 | -0,27 | 24 | -0,77 | 0,78 | -0,88 | 2,62 | 0,01 | 0,67 | médio |
MT Visuoespacial | 52 | -0,14 | 1,43 | 0,15 | 24 | -1,29 | 2,00 | -0,80 | 2,53 | 0,02 | 0,71 | médio |
MT Total | 52 | -0,42 | 1,67 | -0,24 | 24 | -1,23 | 1,37 | -1,07 | 2,25 | 0,03 | 0,52 | médio |
Memória Episódico- Semântica | 52 | -0,65 | 1,06 | -0,72 | 24 | -1,30 | 1,12 | -1,04 | 2,41 | 0,02 | 0,61 | médio |
Memória Total | 52 | -0,56 | 1,24 | -0,22 | 24 | -1,41 | 1,66 | -1,36 | 2,24 | 0,03 | 0,61 | médio |
Nota: N = número de participantes; M = média; DP = desvio-padrão; t = Teste t; Sig. = significância; MT = memória de trabalho
Fonte: Autoras
As tarefas de Cálculos (4.º ano: t=3,65, d=-0,92; 6.º ano: t=3,10, d=1,01; p=0,001) e Habilidades Aritméticas (4.º ano: t=4,88, d=-1,23; 6.º ano: t=3,37, d=1,08; p=0,001) do NEUPSILIN-Inf foram as que apresentaram maior magnitude (tamanho de efeito) em ambos os anos escolares, ao comparar os grupos com e sem dificuldades na aritmética. Tal dado é significativo pelo peso importante que os grupos formados a partir do TDE (com e sem dificuldade) ganham, na medida em que outro teste confirma o desempenho semelhante, fornecendo validade aos subtestes envolvidos.
Um resultado importante ainda a ser considerado é observado no Teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven, que não apontou diferença significativa entre os grupos com e sem dificuldades aritméticas do 4.º ano, mas evidenciou tal diferença nos grupos do 6.º ano (ver Tabela 6). Tal resultado sugere que o fator inteligência (QI) não verbal não se mostra associado ao desempenho aritmético no 4.º ano, mas, para o 6.º ano, este parece desempenhar uma habilidade de domínio geral.
4.º ano | ||||||||||||
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Sem dificuldade aritmética | Com dificuldade aritmética | Testes estatísticos | ||||||||||
Variáveis Raven | N | M | DP | Mediana | N | M | DP | Mediana | t | Sig. | Tamanho do efeito | Magnitude |
Escore Bruto | 71 | 28,35 | 4,22 | 28 | 20 | 27,80 | 4,94 | 28 | 0,46 | 0,65 | -0,12 | desprezível |
Percentil | 69 | 75,87 | 19,45 | 80 | 20 | 73,95 | 21,19 | 80 | 0,36 | 0,72 | -0,09 | desprezível |
6.º ano | ||||||||||||
Escore Bruto | 51 | 31,43 | 3,29 | 32 | 24 | 29,04 | 2,68 | 29 | 3,34 | 0,001 | 0,77 | médio |
Percentil | 51 | 77,45 | 20,04 | 80 | 24 | 62,71 | 16,68 | 60 | 3,34 | 0,001 | 0,77 | médio |
Nota. N = número de participantes; M = média; DP = desvio-padrão; t = Teste t de Student; sig. = significância
Fonte: Autoras
DISCUSSÃO
Entre os objetivos propostos para este estudo, inicialmente, buscou-se: a) analisar a relação entre o desempenho neuropsicológico e o desempenho em aritmética da amostra total de cada ano escolar; e b) investigar o desempenho dos alunos nas funções neuropsicológicas, divididos de acordo com o desempenho em aritmética, para cada ano escolar.
Com relação ao primeiro objetivo, verificou-se que, para o 4.º ano, as funções neuropsicológicas concernentes ao desempenho aritmético são as seguintes: memória de trabalho, memória semântica, subtarefas de linguagem oral e escrita, cálculos e habilidades visuoconstrutivas. No 6.º ano, as relações apareceram de maneira significativa nas seguintes variáveis: orientação, memória episódico-semântica, memória de trabalho, escrita de palavras, cálculos e funções executivas. Os resultados vão na mesma direção que os apresentados por Zelazo e Carlson (2020), Viapiana et al. (2016) e Gonçalves et al. (2017), os quais demonstram que, quanto maior o nível escolar, mais recrutadas são as funções executivas, pois os conteúdos curriculares exigidos são mais complexos. Assim, os achados deste estudo corroboraram a hipótese elencada de que o desempenho aritmético apresenta-se associado às funções executivas e de memória, em especial na amostra do 6.º ano. Quanto à tarefa de cálculo do NEUPSILIN-Inf, que se correlacionou com o TDE para os dois anos, pode ser observado que essas variáveis convergem para o que se propõem a medir, podendo fornecer evidências de validade aos instrumentos e tarefas envolvidos. Importante lembrar que uma das oito funções neuropsicológicas examinadas pelo NEUPSILIN-Inf é a habilidade aritmética, avaliada por meio de tarefas de contagem e de cálculo aritmético. Constatou-se nesse estudo que tais tarefas do NEUPSILIN-Inf mostraram-se sensíveis para identificar dificuldades aritméticas, as quais foram medidas com base no Subteste de Aritmética do teste de Desempenho Escolar (TDE).
Para o 4.º ano, a memória semântica foi a “variável de memória” que mais se sobressaiu. É possível que esse componente semântico, com a linguagem oral e as habilidades visuoconstrutivas, mostre-se importante para o desempenho aritmético do 4.º ano, tendo em vista que a matemática inicial é pautada pelo ensino a partir da oralidade e do uso de materiais concretos (CARBONNEAU; MARLEY; SELIG, 2013).
Pesquisas com crianças desde a idade pré-escolar revelam que o desempenho em tarefas de linguagem é um preditor do desempenho aritmético posterior (FAZIO, 1994; LEFEVRE et al., 2010). A aprendizagem dos números está diretamente ligada ao vocabulário e à linguagem oral em função de que o aprendizado precoce da matemática está relacionado à audição e à fala (ZHANG, 2015), e a linguagem é uma expressão do pensamento. Cirino (2011) apresenta estudos (LEFEVRE et al., 2010; KOPONEN et al., 2007; KRAJEWSKI; SCHNEIDER, 2009) com crianças pré-escolares que possuem subtestes semelhantes aos do NEUPSILIN-Inf como nomeação, consciência fonológica e compreensão, que estão diretamente associados à competência matemática.
Um estudo recente com uma amostra de 23.220 crianças chinesas e americanas do 4.º ano revelou que a linguagem é uma habilidade de domínio geral muito influente no desempenho aritmético (MCCLUNG; ARYA, 2018), uma vez que a linguagem possibilita manipular informações matemáticas, como a contagem, e expressar o nome dos números. Sendo assim, em línguas menos transparentes, como é o caso do português, a relação entre linguagem e matemática torna-se ainda mais patente. Essa opacidade da língua é, inclusive, vista no próprio sistema de numeração decimal, quando números de dois dígitos possuem nomes irregulares (ZHANG; OKAMOTO, 2017). É relevante, portanto, que os nomes dos números e suas magnitudes sejam bem trabalhados, a fim de evitar um acúmulo de dificuldades matemáticas posteriores (MCCLUNG; ARYA, 2018).
Quanto ao segundo objetivo do estudo, constatou-se que, para o 4.º ano, as habilidades neuropsicológicas que diferenciam os alunos com e sem dificuldades são as habilidades aritméticas, os cálculos e as habilidades visuoconstrutivas. Com relação ao 6.º ano, são oito as funções neuropsicológicas que distinguem os alunos com e sem dificuldades. Para uma classificação clara será usada a divisão proposta pelo próprio instrumento NEUPSILIN-Inf: os subtestes de fluência ortográfica, fluência semântica e fluência verbal total configuram-se como funções executivas; memória episódico-semântica, memória de trabalho visuoespacial, memória de trabalho total e memória total configuram-se como a função memória; e linguagem oral, como linguagem (ver Tabela 2).
No 4.º ano, no tocante às habilidades aritméticas e aos cálculos, conforme esperado, o grupo com dificuldades aritméticas teve um desempenho muito inferior, se comparado ao grupo de desempenho médio e alto (considerado, nesse estudo, grupo sem dificuldades). Quanto às habilidades visuoconstrutivas, pesquisas apontam a importância dessa habilidade de domínio geral para uma boa competência numérica (CIRINO, 2011; ZHANG, 2015). Sabe-se que a educação matemática inicial é regida pelas habilidades visuais (CARBONNEAU; MARLEY; SELIG, 2013) com as de linguagem oral. Isso porque, especialmente no ensino da aritmética, os professores utilizam muitos recursos orais e concretos para pautarem seu ensino: contar em voz alta, fazer usos dos dedos, registros com desenhos e muitos meios concretos para desenvolver conceitos numéricos. Considerando o modelo do “triplo código” de Dehaene (1992), no qual o processamento numérico envolve linguagem oral (representação verbal do número), escrita (representação do algarismo arábico) e representada de modo não verbal (magnitude/quantidade), já seria possível compreender por que a linguagem e as habilidades visuais podem estar prejudicadas em crianças com dificuldades aritméticas. De acordo com esse modelo, a linguagem (mediante representação verbal e escrita) e as habilidades visuais (por intermédio de representação de magnitudes) dão sustentação ao processamento numérico e, portanto, defasagens nessas habilidades acabam por comprometer o desempenho aritmético.
Pesquisas trazem a MT, com ênfase no componente visuoespacial, como um dos preditores do desempenho matemático (BULL; JOHNSTON; ROY, 1999; SIMMONS; WILLIS; ADAMS, 2012; CHEN et al., 2017), mas poucas apresentam resultados sobre as habilidades visuoconstrutivas. É possível que isso ocorra porque as habilidades visuoconstrutivas e a MT visuoespacial estejam interligadas (ZHANG, 2015). Tendo em vista que esse estudo utilizou medidas de avaliação para ambas as funções, podemos distingui-las, dando relevo, de fato, ao achado estatisticamente mais significativo.
As habilidades visuoespaciais são percebidas em bebês e continuam a se desenvolver ao longo da primeira infância (SPELKE, 2000). Siegler e Booth (2004) assinalam que tais habilidades desempenham um papel crucial na aprendizagem inicial dos números, corroborando os achados de Zhang et al. (2014) que afirmam que a visualização espacial contribui para a compreensão numérica. Estudos com crianças em idade pré-escolar (ASSEL et al., 2003; BARNES et al., 2011; GUNDERSON et al., 2012; VERDINE et al., 2014; ZHANG; LING, 2015) apontam que as habilidades visuoespaciais predizem o desempenho aritmético das crianças anos depois, porque, ao aprenderem a contar, elas dependem de objetos concretos e, mesmo quando automatizam esse processo, fazem representações mentais dos números (ASSEL et al., 2003). Esses resultados também reforçam o modelo de Geary (2004; 2013) a respeito das possíveis causas das dificuldades em matemática com relação à contagem e aos procedimentos operatórios, que seriam subsidiados pelo sistema linguístico/fonológico e pelo sistema visuoespacial.
Contrariamente ao que foi hipotetizado, os alunos dessa amostra do 4.º ano com dificuldades aritméticas não demonstraram as funções executivas, com ênfase na memória de trabalho, menos preservadas. Sabe-se que muitos estudos apresentam relações positivas entre essas variáveis (CIRINO, 2011; ZHANG, 2015). Um aspecto a considerar para explicar tal resultado pode ser a escolha metodológica das diferentes investigações, levando em conta, por exemplo, a variação nas idades dos participantes, as distintas tarefas para medir as funções executivas e o desempenho aritmético (MEYER et al., 2010). Tais pontos reforçam a importância de as futuras pesquisas nesse campo atentarem para a busca de maior uniformidade nos instrumentos que avaliam aqueles domínios, tendo em vista a geração de dados de pesquisa possíveis de serem comparados e validados (CORSO, 2018).
Como apontado anteriormente, a linguagem e as funções executivas são habilidades subjacentes ao aprendizado da matemática e muito frequentemente diferenciam os alunos com e sem dificuldades de aprendizagem (GEARY, 2013; ZHANG, 2015; CIRINO, 2011). Para os resultados do 6.º ano, novamente é possível utilizar como respaldo teórico os modelos mais atuais de Geary (2013) e de Zhang (2015), que consideram que a linguagem e as funções executivas são habilidades subjacentes ao aprendizado da matemática.
A memória episódico-semântica, avaliada como uma memória declarativa, ou ainda explícita, configura-se como uma memória de longo prazo. O déficit desta em alunos com dificuldades aritméticas pode ser explicado pelo fato de que, possivelmente, eles tenham dificuldade de acessar informações de forma rápida e apurada. Isso dificulta, por exemplo, a possibilidade de recuperar, facilmente, os fatos básicos (HOPKINS; LAWSON, 2006; CORSO; DORNELES, 2015). Uma velocidade de processamento baixa, aliada a erros de contagem e uma MT pouco eficiente, explicaria o baixo desenvolvimento dessa memória (CORSO; ASSIS, 2020).
As funções executivas já são pontuadas, em estudos prévios, como muito relacionadas ao desempenho aritmético (BULL; LEE, 2014; BULL; SCERIF, 2001; CHEN et al., 2017; CRAGG; GILMORE, 2014; CRAGG et al., 2017; PENG et al., 2012; VAN DER SLUIS; DE JONG; VAN DER, 2004). A inibição e a flexibilidade cognitiva, avaliadas por meio dos subtestes de fluência verbal, apresentaram uma forte associação com o desempenho aritmético. A inibição auxilia na manutenção da atenção, na escolha do cálculo aritmético e suprime informações irrelevantes para não ocuparem espaço na MT (BULL; LEE, 2014; CRAGG; GILMORE, 2014; TOLL et al., 2011). A flexibilidade cognitiva, por sua vez, permite que o sujeito enfrente um problema a partir de uma perspectiva diferente e busque soluções alternativas ou novas, sem se fixar a padrões preestabelecidos de comportamento (DIAMOND, 2013). Durante a resolução de problemas matemáticos complexos, a flexibilidade possibilita que o indivíduo possa alternar variados procedimentos (adição e subtração, por exemplo), adaptando-se às demandas da tarefa.
A MT, mais até do que as demais funções executivas, aparece como uma função protagonista dos estudos que relacionam funcionamento neuropsicológico e desempenho aritmético, uma vez que todos os seus componentes estão envolvidos nos procedimentos matemáticos (CHEN et al., 2017; CORSO, 2018; CORSO; DORNELES, 2015; HAASE et al., 2012; TOLL et al., 2011). Todavia, diferentemente de alguns estudos que revelaram que a MT é um preditor de desempenho aritmético mais substancial do que o QI (ALLOWAY; ALLOWAY, 2008; BULL; LEE, 2014; KYLLONEN; CHRISTAL, 1990), o presente estudo, com relação ao 6.º ano, mostrou que a inteligência medida pelo teste de Raven apresentou uma grande significância estatística quando os grupos com e sem dificuldades foram comparados, significância esta maior do que os testes de memória.
Apesar de a MT Total ter tido uma alta associação com o desempenho aritmético, quando os subtestes são analisados separadamente, é possível observar que a MT visuoespacial foi mais relevante do que a MT fonológica. Tal achado corrobora os estudos de Simmons, Willis e Adams (2012) que afirmam que essa memória tem um papel mais evidente conforme a escolaridade avança, principalmente para atividades de escrita de números e julgamento de magnitudes.
Observou-se entre os anos escolares um aumento na porcentagem de alunos com dificuldades na aritmética (21,9% para o 4.º ano e 31,5% para o 6.º ano, ou seja, um crescimento de quase 10%), o que pode ser atribuído às demandas de conteúdos mais abstratos. A matemática possui uma estrutura hierárquica que deve ser respeitada: princípios de contagem, compreensão do sistema de numeração decimal, fatos básicos, recuperação dos fatos, compreensão do valor posicional, cálculos multidígitos e problemas (ANDERSSON, 2008; CASAS; GARCÍA CASTELAR, 2004; CORSO; ASSIS, 2017; GEARY; HAMSON; HOARD, 2000). Quando o ensino despreza essa hierarquia e desconsidera conteúdos que ainda não foram consolidados, as dificuldades acontecem e a aprendizagem não é efetivada.
O aumento das defasagens do 4.º para o 6.º ano também aparece com relação ao desempenho neuropsicológico, uma vez que o grupo com dificuldades do 4.º ano apresentou alguns subtestes de linguagem e as habilidades visuoconstrutivas em déficit; já o 6.º ano revelou vários subtestes das funções executivas, memória e linguagem prejudicados. Esse resultado demonstra que há um efeito crescente para o 6.º ano que se dá pelo maior número de funções neuropsicológicas em defasagem quando comparado ao 4.º ano. Nesse sentido, tais dados reforçam os estudos que mostram que, com o aumento da escolaridade e da complexidade dos conteúdos, os alunos necessitam recrutar mais suas funções neuropsicológicas (GONÇALVES et al., 2017; TOLL et al., 2011; VIAPIANA et al., 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados obtidos nesse estudo colaboraram para a literatura da área da educação e da neuropsicologia voltada ao ambiente escolar, uma vez que há poucas pesquisas brasileiras que fazem relação entre desempenho neuropsicológico e desempenho aritmético. Faz-se ainda mais significativo pelo fato de que abrange oito diferentes funções neuropsicológicas, a partir de 26 subtestes, possibilitando verificar as funções neuropsicológicas relacionadas ao desempenho aritmético. Nessa perspectiva, cabe lembrar que as tarefas que avaliaram as habilidades aritméticas e de cálculo do NEUPSILIN-Inf mostraram-se sensíveis para identificar dificuldades aritméticas. Tal achado é pioneiro, tendo em vista que esse é o primeiro estudo que estabelece uma relação entre essa bateria neuropsicológica em sua totalidade e o desempenho aritmético.
É pertinente enfatizar algumas implicações educacionais dessa pesquisa. Inicialmente, acredita-se ser essencial que as evidências científicas cheguem até os professores, a fim de que possam conhecer, refletir e dar mais significado a seu fazer docente, pois o ensino precisa estar baseado em evidências científicas, e não na intuição docente (DORNELES; HAASE, 2018). A investigação das diferentes funções neuropsicológicas relacionando-as ao desempenho aritmético de grupos de alunos com e sem dificuldades nessa área possibilita o delineamento de intervenções específicas para as funções que se mostram prejudicadas. Do mesmo modo, fornece a base para as práticas educacionais que possam prevenir as dificuldades na aritmética. Investigações desse tipo auxiliam também com subsídios para o desenvolvimento de avaliações consistentes, capazes de evidenciar alunos em risco de desenvolver dificuldades na aritmética. Por assim ser, os avanços nessa área de pesquisa são fundamentais e promissores. Conhecer esses aspectos propiciará ao professor de sala de aula um novo olhar sobre seu aluno, além de mais respaldo e autoridade para solicitar uma avaliação e intervenção multidisciplinar.
Convém lembrar algumas limitações do estudo. O tamanho da amostra e a homogeneidade dos grupos de alunos também podem ser um fator a prejudicar a generalização dos dados. Sugere-se que pesquisas futuras possam considerar amostras maiores e entre escolas com outras características sociodemográficas.
Realça-se a importância de mais estudos que investiguem as relações entre o desempenho aritmético e as funções neuropsicológicas, de tal modo que se amplie o conhecimento sobre as alterações e os impactos dessas associações nas diversas áreas acadêmicas. Também se faz necessário um maior investimento em instrumentos de avaliação e de intervenção em funções neuropsicológicas, bem como em formação de professores que possam estimular essas funções no âmbito escolar.