INTRODUÇÃO
Olhar
Ferreira Goulart
o que eu vejo
me atravessa
como no ar
a ave
o que eu vejo passa
através de mim
quase fica
atrás de mim
o que eu vejo
- a montanha por exemplo
banhada se sol-
me ocupa
e sou apenas
essa rude pedra iluminada
ou quase
se não fora
saber que a vejo
Goulart (2010, p.352) neste poema nos põe diante da pergunta: o que eu vejo? E conclui com a resposta de que “saber o que se vê” nos tira da condição de ser quase o objeto visto, ou seja, nos humaniza. Não basta olhar, é preciso tomar consciência do que se está vendo. Pesquisas têm evidenciado (KRAMER, 2009) que as práticas educativas na Educação Infantil, muitas vezes, acontecem sem a tomada de consciência do porque se faz o que se faz e que a intencionalidade pedagógica nem sempre tem sido fruto de reflexões coletivas. Entendemos que esta tomada de consciência do olhar - e aqui tomamos o olhar enquanto metáfora da própria ação humana-, é fundamental para que o fazer seja uma praxis (FREIRE, 1982) e não uma ação vazia. E neste processo, outro poema completa a reflexão: “o seu olhar, o seu olhar melhora/melhora o meu “(ANTUNES, 1995). O olhar do outro melhora o meu, pois como alerta Bakhtin (2003) só o outro pode ver de mim o que não vejo (como ver a minha nuca), só o outro com o seu excedente de visão pode dar acabamento às minhas ações e reflexões. Nesta perspectiva, entendemos que a avaliação de contexto tem muito a contribuir com a construção de uma praxis educativa coletiva e desencadeadora de um fazer dialógico. Um diálogo com a gente mesmo, no sentido de nos interrogarmos sobre os nossos propósitos, as nossas concepções sobre criança, as nossas crenças educativas. Diálogo com as situações que nos dispusemos a verificar e nossas suposições à luz do que as situações, cuidadosamente investigadas, sugerem. Como um movimento avaliativo reflexivo, participativo e formativo, que desafia os participantes a “saber o que eles veem”, a avaliação de contexto tem potencial para alterar o fazer de todos e provocar a melhoria do contexto educativo de creches e pré-escolas.
O presente trabalho tem como objetivo analisar uma das etapas da avaliação de contexto, em duas experiências distintas: uma realizada no Rio de Janeiro-RJ e outra em Pinhais-PR.A avaliação de contexto consiste em uma metodologia de auto e heteroavaliação que objetiva promover a melhoria da qualidade das práticas educativas. Bondioli e Savio, baseadas em Guba & Lincoln (1989), definem a avaliação de contexto como uma avaliação de quarta geração, ou seja, uma avaliação que busca não apenas romper com o paradigma positivista, das medições quantitativas, da desconsideração do contexto, da eliminação de caminhos alternativos para se pensar o objeto da avaliação, mas também atender às reivindicações, preocupações e questões dos grupos de interesse. Trata-se de uma avaliação dialógica, responsiva, formativa que tem a participação como princípio. Neste artigo, propomos como recorte a análise da terceira etapa da avaliação de contexto, em duas realidades diferentes e com instrumentos distintos. Esta fase consiste na discussão do instrumento que serve de base para o processo avaliativo, se refere ao debate coletivo e democrático de cada descritor do instrumento escolhido pelo grupo e dá início ao processo de negociação da qualidade educativa. Assim, antes de seguir imediatamente com a discussão acerca da relação entre avaliação e qualidade, cabe tecer considerações a partir de alguns interlocutores no que tange à conceituação de qualidade.
Para Dourado, Oliveira e Santos (2007) definir e conceituar uma educação de qualidade, requer acompanhar as modificações históricas e as particularidades locais, considerar as transformações sociais e as novas exigências delas decorrentes. Cury (2014) ao discutir o Plano Nacional de Educação (PNE) afirma que a qualidade educativa é multidimensional, pois depende da formação docente inicial e continuada, de planos de carreira, de salários mais dignos, de condições estruturais e de recursos pedagógicos adequados e da garantia de aprendizagens significativas, que entende-se estar disposta na documentação escolar - projeto pedagógico, planejamentos, entre outras - e nas práticas educativo-pedagógicas. Para este autor o PNE contempla tais dimensões legitimando os valores que elas expressam.
Com isso, interessa enfatizar em concordância com Peter Moss (2008, p. 17), que “o conceito de qualidade não é neutro nem isento de valores”, é uma questão subjetiva, um modo específico de se ver o mundo. Assim, a definição de qualidade é baseada em valores e crenças. É um conceito relativo, articulado de acordo com cada contexto e construído socialmente. (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2019). Para Moss (2008) definir qualidade é um processo e esse processo é importante per se.
Segundo Anna Bondioli e Donatella Savio (2013, p. 17), para pensar a qualidade educativa é imprescindível considerar “a finalidade própria de tais instituições, a de serem lugares de vida, de cultura, de “cuidados”. A qualidade de uma instituição educativa é o que lhe consente buscar do melhor modo possível essa finalidade (BONDIOLI; SAVIO, 2013, p.17, grifo das autoras). E nesse sentido parecem concordar com Moss, quando referem que:
Qualidade não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não é adequação a padrões ou a normas estabelecidas a priori e vindas do alto. Qualidade é transação, ou seja, debate entre indivíduos e grupos que têm um interesse pela instituição, que têm responsabilidades em relação a ela, que com ela estão envolvidos de algum modo e que trabalham para explicitar e definir de maneira consensual valores, objetivos, prioridades, ideias sobre como é a instituição e sobre como deveria ou poderia ser. (BONDIOLI; SAVIO, 2013, p.23).
Moss (2017, p.20-21) trata do processo de definição da qualidade como,
[...]oportunidades para compartilhar, discutir e entender valores, ideias, conhecimento e experiência;
- o processo deve ser participativo e democrático, envolvendo grupos diferentes que incluem crianças, pais, parentes e profissionais da área;
- as necessidades, perspectivas e valores desses grupos podem divergir às vezes;
- definir qualidade deve ser visto como um processo dinâmico e contínuo, envolvendo uma revisão regular e nunca chegando a um enunciado final, “objetivo” (grifo do autor).
Dahlberg, Moss e Pence (2019, p. 119) propõem o “discurso da construção de significado”, que pretende aprofundar o entendimento do trabalho pedagógico na instituição educativa por meio de um processo dialógico e de reflexão crítica com os outros. De acordo com Savio (2018), "avaliar um determinado contexto significa definir o seu perfil de qualidade, os pontos fortes e as instabilidades por meio da comparação e da negociação” (p. 75). Nessa perspectiva a qualidade é compreendida como o resultado de processos de confronto e negociação entre os sujeitos que compõem o contexto educativo, mediados por um participante externo, formador/pesquisador. Trata-se de uma metodologia participativa e formativa que tem como princípios a "negociação da qualidade" e a "promoção a partir do interno”.
Bondioli e Savio (2015) compreendem a "negociação da qualidade” como um processo de explicitação e ajuste de concepções e valores entre os integrantes do contexto avaliado. Nesse processo é importante que os sujeitos compartilhem as suas intenções e aspirações a fim de que se chegue a consensos mínimos entre aqueles que fazem parte do contexto educativo em questão (BONDIOLI, 2014). É através do diálogo entre eles que vão sendo tecidas as negociações dos seus valores e definidos os que são imprescindíveis e compartilhados pelo grupo. Os parâmetros e critérios de qualidade são debatidos no diálogo colegiado com o objetivo de se criar uma consciência coletiva acerca do que se irá avaliar. Freitas (2005), destaca que por “qualidade negociada” não se quer indicar que cada instituição defina “autônoma e isoladamente seus indicadores de qualidade. Isso poderia conduzir à perpetuação de desigualdades econômicas sob a forma de desigualdades escolares e vice-versa (BOURDIEU; PASSERON, 1975; BOURDIEU, 2001) ou da constituição de “escolas para pobre”.” (p.924). O autor também assevera que:
É importante frisar que a definição de indicadores, apesar das características locais que fortemente explicarão as dificuldades ou facilidades de realização, é estabelecida no conjunto das necessidades e dos compromissos do sistema público de ensino. Ressalte-se ainda que, para o setor público, a qualidade não é optativa, é obrigatória. Neste sentido, a interface inteligente e crítica com a comunidade local e com as políticas públicas centrais é uma necessidade (FREITAS, 2005, p. 924).
A "promoção a partir do interno” diz respeito à reflexão da prática educativa em relação aos indicadores de qualidade propostos no ou nos instrumentos avaliativos de modo individual e coletivo pelas/os participantes do processo. Savio (2018) afirma que esse processo reflexivo se dá em dois níveis. O primeiro deles envolve a observação pontual das ações educativas em torno do que está em avaliação no contexto educativo e a desnaturalização do que é habitual, reflete-se sobre elas no sentido de se questionar acerca do “por que se faz aquela ação”. A intenção é questionar qual é objetivo do que se faz e quais são os alicerces e referências que o sustentam. O segundo nível diz respeito a comparação entre "o que se faz" e "por que se faz" com "o que poderia ser feito" ou "como gostaria de fazer”. É nesse processo reflexivo, na investigação das diferenças entre esses dois níveis - o que acontece, por que acontece, como poderia ser e como posso fazer para melhorar - que se dá a "promoção a partir do interno". Ao refletir sobre suas práticas educativas as/os profissionais tomam consciência delas e das suas intencionalidades e podem pensar possibilidades e estratégias, coletivas e individuais, para a melhoria do contexto educativo.
A metodologia de avaliação de contexto é caracterizada pelo uso de instrumentos com itens, indicadores, a serem avaliados e pela articulação entre autoavaliação e avaliação externa, num processo avaliativo que não se esgota na constatação, mas que visa um plano coletivo de ações de melhoria institucional. O instrumento eleito para o processo avaliativo visa propor e fomentar reflexões sobre o que está em avaliação numa dada realidade educativa, tais como: o ambiente físico, relacional ou social; as práticas educativas, as estratégias e intervenções educativas; o currículo em ação; a organização do trabalho entre profissionais etc - com a intenção de uma maior conscientização sobre as escolhas feitas (BRASIL, 2015). Para Bondioli (2004) um instrumento confiável demonstra quais são os aspectos relevantes a serem observados e propõe parâmetros de qualidade baseados em critérios explícitos, permitindo um confronto entre a escola real e a ideal. Impõe um descentramento a respeito da própria visão situada, convida à produção de dados e de informações para a emissão de um juízo, impulsiona o debate. Cada instrumento delimita o objetivo da avaliação assim como define os critérios da avaliação. Por meio do instrumento são trazidas questões fundamentais para reflexão dos sujeitos do contexto educativo envolvidos no processo avaliativo, funciona como um mediador do processo reflexivo-formativo.
Para a realização do processo avaliativo no seu todo, de acordo com a abordagem metodológica em questão, devem ser seguidos passos sucessivos acompanhados pelo formador/pesquisador de modo reflexivo e transacional. Geralmente, são realizados sete passos:
- o passo inicial é a explicitação do interesse de realização do percurso auto e heteroavaliativo de avaliação de contexto por uma determinada realidade educativa. Com base na ideia de "promoção a partir do interno”, a comunidade educativa levanta quais membros se interessam em participar para formar os grupos de trabalho (GTs), de no máximo 20 partícipes, assim poderá haver um ou mais GTs, que estarão envolvidos em todo percurso avaliativo.
- o grupo de trabalho negocia e define quais são os objetivos da avaliação e o que será avaliado.
- acontece a escolha do instrumento a ser usado no processo avaliativo e a sua análise crítica mediada pelo formador/pesquisador externo ao grupo, que pode ser um especialista ou um profissional mais experiente.
- é realizada a avaliação de contexto a partir do instrumento escolhido e analisado pelo grupo. A partir do instrumento, são realizadas observações em um tempo comum da prática educativa pelos envolvidos nos percursos avaliativos, formador/ pesquisador e professores, a fim de avaliar as práticas educativas em questão. Ou seja, são marcadas as respostas do instrumento com base no que foi observado e atribuídas pontuações.
- são confrontadas as respostas e pontuações do instrumento atribuídas pelo formador/pesquisador/avaliador externo e professores/avaliadores internos com objetivo de serem discutidas as discrepâncias. Desse processo emergem os pontos fortes e os que precisam ser melhorados, o que possibilita ao pesquisador/formador identificar quais são as características educativas próprias daquela instituição e captar quais os pontos a serem discutidos e negociados com o grupo.
- são discutidos os pontos a serem melhorados e são negociadas decisões, estratégias e metas pelo grupo, mediados pelo pesquisador/formador com vistas à melhoria da qualidade educativa.
- por fim, é avaliado o processo da avaliação de contexto, em seu todo - a escolha do instrumento, a realização de cada um dos passos, a mediação do formador/pesquisador, as interações dos professores entre eles e deles com o formador durante o processo, se foi alcançado o objetivo etc.
Em todas as etapas da avaliação de contexto é importante que cada participante compartilhe o seu ponto de vista livremente, que haja empatia e confiança entre os integrantes e que se construa um coletivo comprometido com o contexto avaliado.
Neste artigo, analisaremos o terceiro passo da metodologia de avaliação de contexto em duas experiências com objetivos avaliativos, instrumentos e realidades educativas distintas. Uma delas foi realizada em uma Escola de Educação Infantil da rede pública municipal do Rio de Janeiro - RJ. Teve como objetivo avaliar as práticas educativas no campo da linguagem na pré-escola por meio do Instrumento de Avaliação de Contexto das Práticas Educativas de Oralidade, Leitura e Escrita - IAPEOLE, desenvolvido para a realização desse processo avaliativo. Já a outra investigação foi desenvolvida junto à rede pública municipal de Pinhais - PR (MORO et al., 2022), com o objetivo de debater o tema da brincadeira e a possibilidade dessa rede vir a realizar um processo avaliativo a partir do instrumento da Boa Creche Lúdica (SAVIO, 2011). O texto está organizado em três partes. Na primeira parte fazemos uma breve caracterização dos dois instrumentos elaborados para a metodologia de avaliação de contexto. Em seguida, analisamos a terceira fase da metodologia nas duas experiências e discutimos o que as atravessa. Por fim, concluímos com reflexões sobre possibilidades da metodologia no processo de auto e heteroavaliação institucional no que tange à tomada de consciência das práticas educativas pelos professores e à sua potencialidade de reflexão para que sejam estabelecidas perspectivas futuras de melhoria da qualidade da prática educativa.
BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS: “AVALIAÇÃO DE CONTEXTO DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS DE ORALIDADE, LEITURA E ESCRITA-IAPEOLE” E “BOA CRECHE LÚDICA”
O Instrumento de Avaliação de Contexto das Práticas Educativas de Oralidade, Leitura e Escrita- IAPEOLE foi desenvolvido por Branco, Corsino, Bondioli e Savio (2020) com o objetivo de se pensar uma prática educativa dialógica, para as crianças de 3 a 5 anos e 11 meses, coerente com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (BRASIL, 2009), que consideram as crianças como centro do processo educativo e as interações e a brincadeira como eixos do trabalho pedagógico. Além deste documento, o instrumento teve como referencial teórico de base os estudos de Bakhtin (1995, 2003) que consideram a linguagem na sua dimensão discursiva e constituinte do sujeito.
O instrumento se sustenta em dez princípios que são explicitados na sua introdução. Entre eles destacaremos alguns a seguir. As crianças são consideradas sujeitos ativos e criativos que se constituem na relação com o outro. Elas não apenas recebem a palavra do outro, como também interpretam e transformam. As interações que estabelecem com o outro e com o seu entorno são entendidas como interlocuções, pois se vinculam à produção de sentido. São respostas que desencadeiam novas perguntas e novas respostas, num fluxo interlocutivo ininterrupto. A brincadeira, escrita no singular por se referir ao jogo simbólico de faz de conta, se articula às interações, já que é tomada como uma importante voz das crianças, por ser a forma como elas ressignificam o que vivem e sentem, participam da(s) cultura,(s), produzem cultura nas relações com seus pares, interagem entre si, se desenvolvem, além de outros processos inerentes. As práticas de oralidade, leitura e escrita, para fazerem sentido para as crianças, precisam se desenvolver em situações significativas, reais e/ou imaginárias. A expressão oral, que vem acompanhada de gestos e entonações, é vista como possibilidade de falar de si, do outro e do mundo, de narrar, argumentar, defender um ponto de vista etc. A leitura é entendida como uma ação significativa em que os sujeitos ampliam o seu universo simbólico, suas referências e seus conhecimentos de si, do outro e do mundo. É o lugar para fabulação, imaginação e criação, encontro e interação com o outro, assim como de uso da língua e de reflexão sobre ela. A participação das crianças em práticas de escrita é tomada como possibilidade de registrar situações diversas, tanto pelas próprias crianças, com escrita espontânea e desenhos, quanto pela professora, mas sempre como parte de um processo discursivo. A performance do adulto que lê e escreve permite que as crianças conheçam diferentes gênero, funções e materialidades.
O instrumento partiu de algumas indagações: como a oralidade, a leitura e a escrita são consideradas nas práticas educativas com crianças de 3 a 5 anos e 11 meses? Como o contexto educativo se organiza de forma a provocar e sustentar situações e brincadeiras nas quais as crianças possam se expressar oral e graficamente, registrar de diferentes formas, ler, ouvir, narrar e criar histórias, falar, conversar, entre outras? Que materiais estão disponíveis e que tempos são destinados a estas práticas? Qual a função do adulto neste processo? O que tem sido priorizado no planejamento das professoras?
O processo de construção do instrumento baseou-se nos documentos: “Contribuições para a política nacional: avaliação em Educação Infantil a partir da Avaliação de Contexto” (BRASIL, 2015); o “Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil” (BRASIL, 2016), especialmente o Caderno 5, e o instrumento Auto Valutazione della Scuola dell'Infanzia - AVSI (BONDIOLI; FERRARI, 2008). A partir deles, chegou-se a 10 princípios e 71 perguntas, agrupadas em três áreas: i) materiais e organização do ambiente (espaço tempo), ii) proposta educativa e função do adulto e iii) planejamento; sendo que as duas primeiras são subdividias em dois blocos: oralidade e leitura/escrita. Estas três áreas correspondem também a princípios orientadores. Cada pergunta é pontuada em relação ao que se observou ao longo do período da pesquisa, numa escala de 0 a 1 da seguinte forma: sim (1 ponto) - corresponde aos quesitos que foram observados como presentes de modo constante no contexto educativo; às vezes (0,5 ponto) aos quesitos vistos pontualmente ou com pouca frequência e não (0 ponto) aos que não foram observados no período. Às respostas “às vezes” e “não” são solicitadas justificativas que servirão para subsidiar o confronto dos pontos de vista entre a autoavaliação e a avaliação externa. Cabe destacar que o instrumento é composto também por uma definição geral de cada área e de cada bloco.
À título de exemplificação, trazemos a seguir os indicadores relativos ao bloco oralidade na área i) materiais e organização do ambiente (espaço tempo)
A1. Oralidade
Até mesmo antes do nascimento as crianças são nomeadas, referenciadas, fazem parte de enunciações e interlocuções diversas. Ao nascer, a mãe dá o seio, o colo, o afago e também a palavra que vem revestida de tons, ritmos, toques, afetos. O verbal vem acompanhado de acentos apreciativos, de expressões não verbais, de presumidos, de sentimentos, de vida. É inicialmente com o próprio corpo que a criança dialogicamente experiencia o mundo, numa contínua relação com o outro, que exige também uma constante negociação de significados e produção de sentido. Os processos interativos são processos interlocutórios, ainda que, muitas vezes, sejam não verbais, pois partilham significados e vão constituindo a linguagem, a fala, o pensamento e a consciência. Quando nos referimos à oralidade está em questão processos verbais e não verbais como os gestos, entonações e o contexto enunciativo. Toda compreensão é entendida como réplica e não existe a primeira nem a última palavra, pois penetramos num fluxo enunciativo ininterrupto. Oralidade se relaciona a este fluxo. Vale destacar que cada esfera de atividade humana constitui práticas discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros. Cada gênero tem uma estrutura composicional, relativamente estável, que é apropriada e utilizada pelos interlocutores. Aprendemos a falar também em gênero. Neste item, a avaliação de contexto incide sobre o quanto os espaços e materiais disponíveis bem como o tempo para a sua exploração podem provocar e sustentar os processos enunciativos das crianças.
O Instrumento da Boa Creche Lúdica (SAVIO, 2011) reconhece a brincadeira como crucial para o crescimento e bem-estar da criança e “prevê a participação ativa da criança e indica a brincadeira como “voz autêntica da infância, o instrumento principal para poder realizá-la” (SAVIO, 2013, p.257). A partir dos estudos da sociologia da infância, sobretudo os de Corsaro (2011) e de Mayall (2007), e da psicanálise, em especial de Winnicott (1975), parte do pressuposto de que a brincadeira é a voz da criança, sua principal forma de expressão. Observar a brincadeira é uma via privilegiada de ouvir e de escutar essa voz de modo a acolher o ponto da vista das crianças. É também um importante meio de promover a participação infantil nos contextos educativos destinados a elas. Savio (2013, 2011), para além das contribuições de tais autores, dialoga com J.Piaget, l. S. Vygotsky, J. S. Bruner, C. Garvey, S. Isaacs, S. Freud; M. Klein, A. Bondioli, T. Musatti, entre outros. A autora sinaliza que a observação como instrumento para potencializar a participação da criança não isenta que os adultos, em especial as professoras, mantenham e reverberem questões complexas, como, por exemplo: ouvir a voz da criança sem distorcê-la, de modo a não se basear nos seus referenciais adultocêntricos para a sua interpretação; quando e como reportar-se às crianças para dar-lhes espaço sem renunciar ao seu lugar educativo enquanto adulto.
O instrumento tem como questão principal: quais condições educativas são as melhores para a brincadeira infantil? Foi elaborado coletivamente num processo investigativo-formativo liderado por Donatella Savio que envolveu 90 profissionais de creches municipais e conveniadas de Módena, na Itália. O instrumento parte de um mapa conceitual que traz os significados e valores educativos de referência e seis indicadores (que sub-divididos perfazem o total de dez itens) com aspectos da qualidade a serem avaliados para qualificar uma boa creche, na sua dimensão lúdica. São eles: projeto educativo e brincadeira; espaços para brincadeira; materiais para brincadeira; tempos para brincadeira; formação de grupos para brincadeira; e adultos e brincadeira. Os indicadores relativos ao espaço e aos materiais se desdobram em outros três, a se considerar a sala de referência, as áreas comuns internas e as externas.
Assim, cada um dos dez indicadores traz a descrição de circunstâncias que caracterizam uma "boa creche lúdica" e são avaliados com base em critérios estabelecidos de modo a orientar o olhar atento e sensível das/dos profissionais, desde uma ausência de qualidade até uma qualidade de excelência em relação à oferta cotidiana de possibilidades para as brincadeiras das crianças. São sete critérios para cada indicador. A seguir no Quadro 1 pode-se conhecer um dos indicadores que compõem o instrumento, à guisa de exemplificação.
A pontuação segue uma escala de “0” a “1”, conforme melhor contemple o atendimento aos requisitos de cada critério; sendo “0” se não atender de modo algum àquele requisito, “0,5” se corresponder ao atendimento parcial daquele requisito e, “1” se corresponder ao atendimento integral do critério em questão. Cada indicador poderá não receber nenhuma pontuação - quando todos os critérios do “a” ao “g” não forem pontuados; até a pontuação 7 - quando todos os critérios receberem a pontuação “1”. Assim, a pontuação dos indicadores poderá variar entre “0’ e “7”.
Para Bondioli (2004) a validade do processo avaliativo no seu todo depende da adesão das/os participantes do ou dos grupos de trabalho aos critérios e aos parâmetros de qualidade propostos pelo instrumento. O debate sobre os indicadores e critérios de avaliação constantes do instrumento propicia a reflexão (base de um percurso de avaliação formativa) sobre a própria ideia de qualidade, implícita no esforço de julgar se as propostas do instrumento coincidem com as da instituição. Bons instrumentos de avaliação delineiam, de fato, um modelo de objeto avaliativo; determinam quais informações serão coletadas, declaradas, para cada elemento essencial que engendra um ambiente como educativo; definem os critérios de avaliação e perspectivam para cada elemento específico um ideal realizável. Seguindo o paradigma da avaliação de contexto das pesquisadoras de Pavia, uma investigação no Brasil voltada à construção ad hoc de um instrumento acerca da brincadeira, possibilitou ao grupo de profissionais envolvido uma ampliação da consciência quanto às perspectivas individuais e coletivas relacionadas ao tema. Propiciou, também, o aprofundamento de conceitos afins e uma modalidade de formação continuada bastante singular no que tange à brincadeira (COUTINHO; MORO; VIEIRA, 2019).
DISCUSSÃO DOS INSTRUMENTOS
Visões sobre linguagem, oralidade, leitura e escrita
O processo avaliativo realizado a partir do IAPEOLE foi desenvolvido numa Escola de Educação Infantil da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Vale destacar, que a rede municipal de educação da cidade do Rio de Janeiro atende a 634.007 crianças e jovens, distribuídos em 1.544 escolas. São 144.206 crianças matriculadas em turmas de creche e pré-escola. São 536 unidades escolares exclusivas de Educação Infantil e mais 73 unidades que atendem a pré-escolas e anos iniciais do Ensino Fundamental.
A escola campo da pesquisa está localizada na Zona Sul da cidade, à época do estudo, atendia cerca de 140 crianças, em sua maioria de classe popular, de 3 anos a 5 anos e 11 meses, distribuídas em sete turmas de horário integral. A escolha da escola campo da pesquisa se deu pela solicitação de um dos membros da equipe gestora para a realização do percurso avaliativo.
Dos 12 professores da escola, 7 participaram voluntariamente do Grupo de Trabalho e da discussão do instrumento, da qual também participaram a coordenadora pedagógica e a diretora adjunta e uma bolsista voluntária de Iniciação Científica que atou como observadora externa a fim de registrar o processo. Para a discussão do instrumento foram realizados 2 encontros com duração de 2 horas cada um deles, que só foram possíveis devido à colaboração dos professores não participantes da pesquisa ao se prontificarem a ficar com as turmas dos integrantes do grupo de trabalho durante as discussões.
As professoras integrantes do GT receberam o instrumento com antecedência e foram solicitadas a fazerem uma leitura crítica individualmente para virem para os encontros com dúvidas e sugestões. Nos dois encontros de discussão do instrumento a pesquisadora/formadora procurou criar um ambiente acolhedor e de participação horizontal (MIGNOSI, 2001; BONDIOLI, 2015). A intenção foi dar à discussão um tom de conversa para que todas se sentissem à vontade para participar. Após a leitura de cada item do instrumento - princípio ou pergunta- era aberto o espaço para discussão do que havia sido lido. Para fomentar o debate, a pesquisadora/formadora procurava fazer perguntas para o grupo ou para um dos participantes, tais como: o que acharam? Qual é a opinião de vocês sobre essa questão? Está clara? Tem algum ponto que chamou atenção?
Ao longo dos encontros, foi observado o quanto a participação não está dada de antemão, especialmente em contextos hierarquizados como se observa nas escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro. Assim, a participação foi sendo construída no processo democrático que se procurou instaurar na discussão do instrumento no qual a confiança na pesquisadora/formadora e a percepção do grupo de que a voz de cada integrante importava foram conquistas fundamentais para se selar o compromisso com a avaliação. Foi nítida a diferença de participação entre o primeiro e o segundo encontro e as reflexões suscitaram demandas por aprofundamento das reflexões. Muitos foram os momentos em que pontos de vistas divergiam e que as diferenças se confrontavam. A seguir, destacamos três eventos discursivos que trazem momentos das discussões da leitura coletiva do instrumento. É importante mencionar que, por questões éticas, os nomes citados são fictícios.
Linguagem: representação do pensamento, instrumento, área de trabalho?
A pesquisadora/formadora lê o primeiro princípio do instrumento: “A linguagem é concebida sob a perspectiva discursiva e constituinte do sujeito, intimamente relacionada ao pensamento e à consciência, por isso, não pode ser considerada apenas como mero instrumento ou área de trabalho”. Pergunta: - O que acham sobre esse princípio?
Eu concordo. Eu vejo como é que a linguagem diferencia as crianças, as pessoas. [A diferença está] na forma como cada um se expressa, na forma como elas usam essa linguagem. É dissociada daquela [perspectiva] em que o sujeito é o que fala. - Carla fala em tom de crítica ao que seria uma outra perspectiva.
Ela é a representação do pensamento mesmo. Se a criança não fala, o pensamento fica quase que fechado. -Laura complementa a fala de Carla.
(…) E dessa parte aqui em que diz “não pode ser considerado um mero instrumento ou área de trabalho”, [o que acharam]? - Pergunta a pesquisadora/formadora a fim de fomentar a participação de outros membros do grupo.
Ela constitui o indivíduo. Então, ela não pode ser só instrumento. - Laura
Permeia todas as outras atividades que a gente faz. - Carla
Ela é trabalhada o tempo inteiro. A gente não planeja trabalhar [oralidade ou escrita], a gente não separa as atividades [não divide em atividade] de linguagem oral e de escrita. Na verdade, se está trabalhando com a linguagem o tempo inteiro. - diz Vanda.
Ela faz parte do próprio corpo assim dizendo, como o pé ou a mão ou a perna. É instrumento de convivência. Não dá para dizer que é só um objeto de estudo ou uma coisa que a gente possa trabalhar. (…) - Laura fala assim que Vanda termina.
(Diário de campo, 9 de agosto de 2018)
Carla mostra compreender que cada um se expressa e se apropria da linguagem de forma diferente, de acordo com as suas características. Para ela a linguagem vai para além da fala ao dizer que “(...) está dissociada daquela [perspectiva] em que o sujeito é o que fala”, podendo ser expressa de diferentes maneiras. Quando a pesquisadora/formadora questiona novamente o grupo diz que a linguagem “permeia todas as outras atividades que a gente faz”. Complementa a fala anterior e traz a ideia da linguagem como constituinte do sujeito, não vista como instrumento, nem área de trabalho. Procura dialogar com a perspectiva de linguagem presente no instrumento.
Já Laura afirma que a linguagem é "representação do pensamento mesmo". Acredita que "se a criança não fala, o pensamento fica quase que fechado”. Isso vai na contramão das interações que estabelece com as crianças. Por exemplo, no plano fonético, a criança começa a falar uma palavra, porém, no plano semântico, a primeira palavra pronunciada é uma frase completa que contém o significado de um todo, ou seja, o pensamento não coincide diretamente com a fala (VIGOTSKI, 2001). Em um segundo momento Laura afirma que a linguagem “constituí o indivíduo” e “não pode ser só instrumento”, procura dialogar inicialmente com a perspectiva de Carla. Essas afirmativas parecem indicar que entende a linguagem como constitutiva do sujeito e para além de um mero objeto. Entretanto, mais à frente diz que: "a linguagem é parte do corpo; é um instrumento de convivência”, ao buscar sintonizar a sua fala com a de outra colega Vanda. Por fim, diz que não é “só um objeto de estudo ou coisa que a gente possa trabalhar”. As falas de Laura revelam que, por um lado, busca afinar o seu discurso com a concepção de linguagem presente no instrumento, mesmo não tendo claro os conceitos que faz referência.
Vanda procura relacionar o princípio do instrumento com as práticas educativas presentes na escola. Mostra considerar que a linguagem está presente em todas as ações educativas, sendo a linguagem oral e a linguagem escrita abordadas de modo indissociável. Nesse sentido diz que “[não divide em atividade] de linguagem oral e de escrita” por trabalhar a “linguagem o tempo inteiro”. Por um lado, parece que a perspectiva de linguagem presente na fala dela dialoga com o primeiro princípio do instrumento, mas por outro parece não reconhecer as especificidades da linguagem escrita. Fato que depois é problematizado em outra parte do instrumento.
Bakhtin (1995) postula que a compreensão da palavra de outrem significa se orientar em relação a ela, “encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente” (p. 132). As professoras procuravam buscar esse lugar adequado, em alguns momentos suas falas dialogavam com o instrumento e em outros não. Fica evidente, nas falas analisadas - em especial, de Laura e, às vezes, nas de Vanda - a tentativa de diálogo com a concepção de linguagem presente no instrumento, mesmo sem compreendê-la muito bem.
"Durante 50 minutos do dia as crianças eram livres para decidir"
(...) Uma das professoras lê todas as perguntas da subárea oralidade da Área materiais e organização do ambiente (tempo e espaços. (…) Assim, que termina a leitura uma das professoras retoma a pergunta se “na jornada diária há tempo destinado a interação das crianças com esses materiais [materiais usados para atividades linguísticas (fantoches, fantasias, livros etc)]?”.
É [sobre] essa questão da rotina. A gente tem que incluir esse momento para acessar os materiais [linguísticos e para a livre expressão] na nossa rotina, ou seja, tem que se dedicar um tempo dentro da rotina, seguir uma rotina que tenha tempo para incluir atividades com esses artefatos. - diz Ângela tentando compreender.
Na época em que eu era regente de Educação Infantil (...) tinha a hora do lanche, que era da escola toda, e a hora do pátio, em que saía da sala. Mas, (...) dentro da rotina diária eu tinha um momento que eu colocava no planejamento de atividades diversificadas em que as crianças tinham a liberdade de escolher o espaço que queriam utilizar. Então, ficava uns na casinha, outros nos jogos. (...) Durante 50 minutos do dia as crianças eram livres para decidir [o que queriam fazer]. A gente combinava que não dá para fazer tudo em 50 minutos. Um dia podia fazer um desenho, no outro dia no outro canto e no outro em outro (...). Havia também a preocupação de a estante dos jogos ser sempre mexida, trocar o acervo. Porque eles vão perdendo o interesse por aquele brinquedo que fica ali. Eles tinham sempre essa possibilidade. - diz Laura, em tom explicativo. (…)
(Diário de campo, 9 de agosto de 2018)
Ângela ao ouvir a pergunta compreende que ela diz respeito à organização da rotina, sobretudo no que tange à organização de um tempo delimitado para que sejam realizadas atividades com os materiais linguísticos. Parece não entender que a pergunta se refere à interação das crianças com esses materiais, de modo que possam se expressar livremente, sem o direcionamento do adulto.
O mesmo pode ser observado na fala de Laura, membro da equipe gestora da escola. Ela tenta explicar como se dava a interação das crianças com os materiais linguísticos, durante a rotina que instituía com sua turma: organizava a sala em cantos com proposta de trabalho diversificado. Entretanto, delimitava o tempo a 50 minutos diários, evidenciando uma organização do tempo institucional e não necessariamente relacionado a necessidades e ritmos das crianças.
O instrumento parte do pressuposto de que “o contexto adequadamente organizado é capaz de sustentar a ideia de criança competente” (FORTUNATI, 2009, p.84). Isso significa permitir que essa competência se manifeste ao organizar um contexto educativo que esteja centrado nas crianças, com suas especificidades e ritmos, e não do adulto. A criança como centro da proposta pedagógica, como postulam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), pressupõe uma organização do contexto que dê autonomia às crianças. O próprio instrumento apresenta os materiais e a organização do ambiente como possibilidade de promover interações e experiências significativas.
Assim, tanto Laura quanto Ângela parecem não terem apreendido a proposta do instrumento em relação aos materiais e à organização do ambiente. Interpretaram a pergunta relacionando à oferta de propostas direcionadas e controladas pelo adulto. Fato que foi discutido e retomado no momento do confronto de pontuações e que se apresentou como um dos pontos a serem melhorados na escola.
“Agora eu estou vendo o quanto é importante”.
(...) Durante a discussão do instrumento, a pesquisadora lê uma das perguntas da subárea leitura da área proposta educativa e função do adulto:
“Os professores convidam as crianças a “ler” os textos (livros, jornais, gibis etc.) colocados à disposição delas (por exemplo: me conta/nos conte qual é a história deste livro...)?” - Em seguida, pergunta: - O que vocês acharam dessa pergunta?
As professoras se entreolham em silêncio. Até que Rosa diz:
Eles pedem para fazer um reconto de uma história. As crianças colocam essa vontade. - diz de modo como se fosse algo natural. Aí, no caso [o instrumento se refere] é a gente. Se a gente convida [as crianças a lerem histórias] - explica Juliana pensativa.
Faço isso às vezes - reflete Rosa
Não faço isso. (...) Acho que não valorizo isso. Talvez, não seja de forma intencional. Eu nunca parei para separar um espaço de valorização da criança fazer isso. Agora, estou vendo o quanto é importante. - diz Juliana como se estivesse refletindo
(...) Eu conto a história e as crianças falam: professora, posso ler a história agora do meu jeito. Eu respondo: pode. Às vezes, um quer e todos querem também. Não dá para ir todo mundo, mas um ou dois dá. O espaço do livro está ali. - Clara (...)
(Diário de campo, 17 de agosto de 2018)
A professora Rosa no primeiro momento não se dá conta de que o instrumento está se referindo ao adulto convidar as crianças a “lerem" os diferentes tipos de texto colocados à disposição delas. Logo, diz que trata de um movimento natural das crianças, o que fica evidente na entonação que esta não é uma ação pedagógica intencional. A pergunta do instrumento suscitou reflexões das professoras sobre a valorização ou não da leitura espontânea das crianças, sobre a importância da disponibilidade do acesso aos livros em sala para que as crianças possam criar e recriar diferentes narrativas. Quando Clara diz "o espaço do livro está ali “restringe sua atuação a organizar o espaço do livro. Sem dúvida este é fundamental, mas seria suficiente?
A pergunta fez Juliana se deparar com o fato de que não convidava as crianças a “ler” de “forma intencional” e a perceber que esse convite seria uma forma de colocar a criança no centro processo educativo. Juliana, ao compartilhar a sua reflexão, leva Rosa e Clara a pensarem sobre as suas práticas.
Diante disso, é possível notar a potência do instrumento quanto a possibilidade de fomentar reflexões sobre as próprias práticas e o compartilhamento entre o grupo de professores de modo a umas conhecerem as práticas das outras, a dividirem conhecimentos e concepções, problematizarem coletivamente.
Visões e entendimentos sobre a brincadeira e o brincar
O percurso empreendido a partir do instrumento da “Boa Creche Lúdica”, (SAVIO, 2011), que passou a ser identificado na investigação como “Avaliação de Contextos Lúdicos na Educação Infantil”, teve como propósito a leitura, o estudo e a análise da tradução do mesmo, com o intuito de se considerar a potencialidade e adequação em deflagrar um processo de reflexão e de melhoria da qualidade da oferta de brincadeiras aos grupos de crianças nas unidades educativas da rede municipal de Educação Infantil de Pinhais, região metropolitana da capital do estado do Paraná. (MORO et al., 2022).
A referida Rede dispõe para atendimento regular de crianças até os 5 anos e 11 meses de 21 Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e 22 Escolas Municipais; sendo que a maioria das turmas finais da Educação Infantil (Infantil 5) é ofertada nas escolas de Ensino Fundamental. Entretanto, também para estas unidades, a orientação e acompanhamento do trabalho pedagógico são realizados pela Gerência da Educação Infantil (GEINF).
Em relação ao percurso realizado, as primeiras reuniões entre a equipe técnica (5 profissionais) da GEINF/SEMED e a pesquisadora-formadora tiveram curso a partir do segundo semestre de 2019, a fim de debater sobre o brincar na educação infantil e sua centralidade no fazer educativo da Rede. Foram 5 encontros de aproximadamente 2 horas cada. Para a avaliação do instrumento de avaliação, o roteiro disposto no Quadro 2 serviu de base para as discussões no interior deste grupo menor e iniciante na pesquisa-formação.
Em seguida, na continuidade do processo elegeu-se um grupo de seis unidades educacionais, para uma pesquisa piloto com o uso do instrumento traduzido e adequado à Rede, no qual houvesse ao menos uma unidade: i) exclusivamente para crianças de 0 à 3 anos; ii) exclusivamente para crianças de 4 à 5 anos; iii) para crianças de 0 à 5 anos; iv) que atendesse somente o Infantil V e com diferentes dimensões dos espaços internos/externos, v) reduzidos ou vi) amplos e; vii) na qual a equipe gestora já tivesse iniciado debates acerca do brincar com as docentes e/ou demais profissionais. Foram realizados 4 encontros com as pedagogas/pedagogos e diretoras das 6 unidades, todos on line., com 2 horas e meia a 3 horas de duração. E os 3 encontros finais para apreciação e debate do instrumento, ocuparam 3 horas de trabalho cada um e envolveram o grande grupo, também reunido on line via plataforma Google Meet. Compôs-se pela pesquisadora-formadora, pelas 5 profissionais da GEINF, por 118 educadores/educadoras, 9 pedagogos/pedagogas, 8 professores/professoras e 6 diretoras1. Ao todo 147 participantes estiveram envolvidos no processo.
A fim de introduzir a discussão com o grupo ampliado de educadoras e professoras organizamos um formulário no Google Docs para obter informações sobre o grupo e sobre suas compreensões quanto à brincadeira e sua função no cotidiano educativo das unidades. Para além de solicitar alguns dados sobre as/os participantes e vinculação com a etapa e com a Rede municipal, levantou-se algumas ideias a partir das perguntas listadas no Quadro 3, como segue.
Nesse levantamento as/os profissionais relataram imagens romantizadas em relação à brincadeira: “crianças felizes brincando em grupo, sorrindo, se divertindo”, “brincadeiras antigas e de roda”, “muitos brinquedos espalhados”, “crianças correndo ao ar livre”, “espaços amplos”, “situação de imaginação solta”. E outras imagens associadas a aspectos mais escolarizantes, como “crianças aprendendo enquanto brincam”, “a brincadeira tem papel fundamental para o aprendizado e o desenvolvimento integral”, “para o desenvolvimento da criatividade, da imaginação e da abstração, para construir conhecimentos e desenvolver habilidades”.
Sobre a relação entre a oferta de qualidade da brincadeira pela instituição, houve referência: às crianças terem “liberdade de brincar e se expressar”, a valorização da brincadeira na Proposta Pedagógica, a possibilidade de brincar todos os dias da semana, a organização dos ambientes e seleção de brinquedos pelas professoras/educadoras, a participação destas nas brincadeiras, o contato com brinquedos estruturados e não estruturados, o respeito e o envolvimento das crianças como protagonistas e “arquitetas” no brincar, ao ter vez e voz no planejamento dos espaços e escolha dos brinquedos. Também relevante para o grupo é a instituição realizar formação sobre o brincar e outras temáticas afins.
Após a análise desses dados preliminares, dando continuidade ao percurso investigativo-formativo as equipes das unidades tiveram acesso à tradução do instrumento para leitura individual seguida da resposta a outro formulário também proposto via Google Docs, no qual havia 5 questões relativas à análise do documento e que serviria de base para mobilizar a discussão da temática nos encontros on line. A seguir constam as questões presentes no formulário que foram respondidas por 141 profissionais - educadoras (a maioria), professoras, pedagogas e diretoras. (Quadro 4).
A leitura e apreciação crítica do instrumento suscitou no grupo reflexões essenciais que recolocaram questões sobre as quais se poderia pensar não haver dúvidas, contudo a tomada de consciência acerca do papel da brincadeira no cotidiano educativo das instituições implica perguntar-se o que constitui a brincadeira? Como pode ou como deve ser a intervenção docente para que a brincadeira não se revista de atividade didática? Como definir e diferenciar “brincadeira livre” de “brincadeira dirigida”? O que é o brincar heurístico? Essa etapa do processo avaliativo acaba por ser fulcral para a compreensão e discussão de determinados conceitos e da noção de qualidade implícita nos diferentes critérios de cada indicador. Assim, como pensar sobre quão importantes e determinantes são: o planejamento e organização dos tempos e espaços e o papel dos adultos, docentes e demais profissionais que compartem as vivências cotidianas nas instituições de Educação Infantil.
A análise do instrumento também levou a pequenos ajustes, alterações textuais, desde que não desvirtuassem a ideia original, no intuito de melhor articulá-lo à realidade educativa da Rede de Pinhais e para que pudesse ser utilizado em contextos educativos para crianças de 0 a 6 anos incompletos. A apreciação crítica do instrumento permitiu o envolvimento colegiado, com participação atenta e curiosa das profissionais em torno do tema da brincadeira, potencializando a dimensão formativa implicada no processo. Questões afetas ao tema e que direta ou indiretamente estão pautadas no instrumento foram destacadas como aspectos a serem melhor entendidos e oportunizados às crianças, como: o brincar na e com a natureza e com recursos e materialidades naturais; a importância do tempo destinado ao brincar dentro na rotina pedagógica”; o maior aproveitamento dos espaços externos à unidade, como parques; o valor de oportunizar mais momentos de socialização e de brincadeira entre crianças de diferentes idades; o uso de materialidades variadas; implementar e/ou ampliar as ofertas do brincar heurístico; abordar a brincadeira, periódica e sistematicamente, na formação continuada, em serviço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Avaliação e reflexão são processos intrinsecamente ligados e convergentes. Avaliar os fatores que garantem e “fazem” a qualidade de um contexto, como prática reflexiva, é um processo de conscientização sobre as opções pedagógicas de base e sobre os problemas educativos concretos. Trata-se de um processo formativo autêntico. (BONDIOLI, 2004). Autêntico porque é fruto de um deslocamento, de um movimento de descentração que permite olhar as práticas pedagógicas estabelecidas de um outro lugar, abrindo, assim, possibilidade de desvio de um fazer, muitas vezes, vazio. O refletir com o outro sobre “o que se faz” e buscar entender coletivamente o “porque se faz o que se faz” é um processo formativo autêntico porque se origina do campo e volta-se para ele.
Bondioli e Savio (2015), baseadas em Guba e Lincoln (1989), definem a avaliação de contexto como uma avaliação de “quarta geração”, ou seja, uma avaliação que busca romper com a hegemonia do paradigma positivista, das medições quantitativas, da desconsideração do contexto, da eliminação de caminhos alternativos para se pensar o objeto da avaliação, da não-responsabilização ética do avaliador pelo que emerge da avaliação ou pelo uso dos seus resultados, entre outros. A avaliação de contexto busca um paradigma dialógico, participativo, responsivo, no qual as reivindicações, preocupações e questões do grupo de interesse são a base para determinar as informações necessárias para avaliação e cujo resultado dá suporte para o desenvolvimento de projetos e propostas de melhoria da qualidade do contexto avaliado. Como qualidade é um conceito polissêmico e contextual, que implica em concepções e valores, o uso de um instrumento na avaliação de contexto se apresenta como um parâmetro de qualidade do aspecto a ser avaliado. Parâmetro que é posto à prova pelo grupo, que analisa criticamente cada descritor, podendo refletir, questionar, concordar, discordar e negociar seu ponto de vista no coletivo. O instrumento, ao colocar o habitual em cheque, seja para afirmar uma perspectiva, seja para opô-la, provoca deslocamentos; e é justamente esse movimento que, quando explicitado no coletivo, potencializa a busca de consensos e aponta mudanças.
A avaliação de contexto, neste paradigma de “quarta geração”, rompe com a ideia de avaliação como constatação ou checagem de descritores, elaborados de fora e muitas vezes desconhecidos pelos integrantes do contexto avaliado, para firmar com os integrantes do processo um compromisso sustentado nos princípios de participação, reflexão e perspectiva de mudança. Uma visão de avaliação que é formativa desde a escolha do instrumento, passando pelo compartilhamento dos pontos de vista dos participantes, até a definição consensual sobre os pontos fortes e críticos da instituição, em seus aspectos estruturais e processuais. Trata-se de uma avaliação de natureza social e política, na qual todo processo dialógico que lhe é inerente- com reflexões, considerações e opiniões dos integrantes- favorece a compreensão do contexto investigado de forma aprofundada e dinâmica e permite reformulações contínuas a partir das demandas do grupo.
Como foi observado ao longo do artigo, as reflexões a partir das análises dos instrumentos, que foram construídas pelas pesquisadoras-formadoras, é uma importante etapa do percurso avaliativo. Os instrumentos, ao serem colocados à prova, individual e coletivamente, com perguntas direcionadas favoreceram reflexões que não estavam dadas à priori. Analisamos esta etapa da avaliação de contexto em duas realidades distintas, com instrumentos e procedimentos diferentes para evidenciar o ponto de inflexão que caracteriza este paradigma avaliativo. Não se trata apenas de conhecer previamente o que será avaliado, mas de refletir sobre a própria avaliação, questionar os descritores, confrontá-los com a realidade a ser avaliada, tomar conhecimento de questões teóricas que os sustentam. O processo é formativo em diferentes dimensões, especialmente pela possibilidade de o grupo buscar entendimentos e consensos fundamentados. As pesquisas mostraram que a análise do instrumento é um divisor de águas no processo avaliativo, pois já é parte da avaliação. Como já apontamos anteriormente, avaliação e reflexão são processos intrinsecamente ligados e convergentes. A escuta atenta das reflexões com uma mediação horizontal e dialógica das pesquisadoras-avaliadoras mostrou-se fundamental no processo, o que evidencia que a escolha deste/desta profissional exige critérios que dizem respeito não apenas ao conhecimento teórico da área que será avaliada e domínio do instrumento, como também de uma postura democrática. Assim, faz-se necessário, investir em um processo formativo de especialistas em Educação Infantil que possam integrar uma postura mediadora de acolhimento que fomente, simultaneamente, a reflexão e a participação ativa, tanto no que diz respeito ao compartilhamento de pontos de vista quanto de experiências, dos sujeitos envolvidos no processo avaliativo. É o modo como é feita a mediação do processo que define a característica do avaliador externo de facilitador e formador, uma vez que a participação dos integrantes da avaliação de contexto tem relação direta com a forma como a mediação é realizada.
Tanto o processo de análise do instrumento “Avaliação de contexto das práticas educativas de oralidade, leitura e escrita”, realizado com as 7 professoras da escola municipal da cidade do Rio de Janeiro, quanto o processo de análise do instrumento “Boa Creche Lúdica”, que envolveu 147 profissionais que atuam na Educação Infantil do município de Pinhais-PR, mostraram a potência formativa da metodologia. Os instrumentos colocaram em discussão: i) concepções- de linguagem, de brincadeira-, ii) a relação tempo e espaço com a materialidade que se oferece às crianças nas instituições de Educação Infantil, ii) papel/função do adulto e iv) a importância do planejamento das propostas. Estas quatro dimensões, que atravessam ambos os instrumentos, têm sido entendidas no campo da Educação Infantil, como pontos-chaves para se pensar a qualidade educativa de creches e pré-escolas. Podemos afirmar que as análises dos indicadores dos instrumentos traçaram um panorama sobre qualidade educativa em relação à oralidade, leitura e escrita e à brincadeira. A tomada de consciência das professoras desses indicadores, que se deu no processo participativo e democrático, possibilitou às equipes a construção de alguns entendimentos comuns, desencadeou um processo formativo e também demandou o entendimento da necessidade de estudos e aprofundamentos. Voltando ao poema da epígrafe (GOULART (2010, p.352) a explicitação dos descritores nos instrumentos favoreceu a tomada de consciência das integrantes sobre as práticas educativas, colocando-as na condição de quem “sabe o que vê” e abrindo perspectivas de mudança para a melhoria da qualidade da oferta de Educação Infantil.