INTRODUÇÃO
A temática da avaliação da qualidade do atendimento educacional, na Educação em geral, emerge num contexto de reformas orientadas e impulsionadas por ajustes do Estado brasileiro a interesses internacionais. Nos anos 1990, associado a um discurso de necessidade de maior controle e regulação dos serviços, o debate ganha visibilidade com a adoção de uma agenda neoliberal que incentiva a privatização, a maior autonomia do mercado e a flexibilização das formas de oferta educacional (BARBOSA, 2008; CÁRIA; OLIVEIRA, 2015; FREITAS, 2005). Esse discurso compunha a proposta de “modernização” da gestão pública e de institucionalização da avaliação, disseminado nas democracias ocidentais, com consequências particulares na América Latina (FARIA, 2005).
Os impactos dessas reformas, ao longo das últimas décadas, foram amplamente problematizados na discussão acadêmica, particularmente, seus efeitos deletérios na política de financiamento, na criação de avaliações em larga escala e, consequentemente, no direcionamento dos currículos e conteúdos (BONAMINO; SOUSA, 2012; SCHNEIDER; NARD; DURLI, 2018).
Para além desses problemas, esse processo distorceu as práticas de monitoramento próprias da gestão escolar e inerentes ao labor de professores na busca pelas mais adequadas formas de inserção das crianças e adolescentes na apropriação dos conhecimentos histórica e culturalmente construídos. Assim, ele acabou por desfocar, da prática avaliativa, seu sentido primordial, que, vista como atividade humana, está intrinsecamente vinculada a outras atividades submetidas constantemente ao questionamento e à crítica na construção de novas e melhores possibilidades de realização.
Na Educação Infantil brasileira, Rosemberg (2010) defende que os movimentos de luta por creche sempre associaram qualidade e expansão de vagas na busca pela superação das dicotomias quantidade X qualidade e reconhecimento da cultura local X rebaixamento das condições de oferta, além de assumirem um firme posicionamento contrário ao atendimento “pobre para pobre” preconizado por agências multilaterais aos países em desenvolvimento (ROSEMBERG, 2007). Em que pese a importância dessas lutas e dos avanços no campo científico, a própria autora não cansou de alertar para as desigualdades que atravessam a oferta de creche e pré-escola para as crianças brasileiras, constituindo enorme obstáculo na construção de uma Educação Infantil verdadeiramente democrática, ou seja, que contemple cobertura, equidade e qualidade do atendimento.
Essa herança histórica, de um conjunto articulado de desigualdades regionais, de classe, raça, gênero e local de moradia, clama por ações de diferentes atores sociais na elaboração e execução de políticas públicas que visem à democratização da Educação Infantil e à superação daquilo que a própria Rosemberg denomina de “maldição de Sísifo” (ROSEMBERG, 2003); uma metáfora que exprime as idas e vindas das políticas públicas de creche e pré-escola que sofrem revezes a depender das concepções de Educação Infantil, infância, pobreza e, principalmente, do papel do Estado. Essa condição, apesar de avanços, caracteriza a Educação Infantil como um problema público crônico, com demanda de tipo recorrente (RUA, 1997), que persevera na agenda pública.
É nesse contexto que ganha espaço e importância da avaliação na e da Educação Infantil (MORO; SOUZA, 2014; MORO, 2018), que se constitui como um campo de conhecimentos e práticas mobilizadoras de aspectos estruturantes para a área, que transitam do micro ao macro, ou seja, da competência dos diferentes agentes nos processos avaliativos às suas repercussões na efetivação da política pública e na redução das desigualdades.
A Educação Infantil, marcada por condicionantes históricos, políticos, sociais, culturais e institucionais, está submetida a disputas de atores sociais diversos, que se estendem no tempo e no espaço e que se traduzem na adoção de distintos modelos de avaliação (ALVARENGA; VIANNA, 2021; COUTINHO; MORO, 2017; NEVES; MORO, 2013; ROSEMBERG, 2001, 2013). Ao longo de sua institucionalização, ganhou complexidade o debate sobre a relação entre a avaliação focada no acompanhamento das crianças e aquela interessada nos determinantes da Educação Infantil (CAMPOS, 2020).
Até 2016, do ponto de vista macro, o Brasil priorizou a construção de uma política de avaliação da Educação Infantil com foco na análise das condições de oferta do atendimento, considerando que são elas as estruturadoras do serviço e, consequentemente, promotoras do desenvolvimento das crianças, da qualidade e da equidade. Esse posicionamento alinhou a política de avaliação da Educação Infantil a uma concepção crítica e resistente à importação de modelos de avaliação da qualidade adotados em outros níveis educacionais (NEVES; MORO, 2013). Estas políticas avaliativas, em vez de olharem para o contexto educativo de forma diagnóstica e formativa, pautam-se por avaliações externas que buscam medir o custo-benefício da política por meio do desempenho das crianças em testes e escalas, o que cria margem para exclusão e consolidação de processos classificatórios e discriminatórios (ALVARENGA; VIANNA, 2021; PIMENTA; SOUSA; FLORES, 2021).
Corsino (2021, p. 6) chama a atenção para o fato de que, no “campo de disputas, a inserção do debate sobre avaliação da/na Educação Infantil na LDB foi permeada por tensões entre visões teóricas e práticas opostas” e analisa que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/1996 (BRASIL, 1996) contém fragilidades quando faz menção apenas à avaliação na Educação Infantil. Foi necessário o desenvolvimento da área para se formular o horizonte da avaliação da Educação Infantil, atrelada a uma abordagem contextual, engajada em debates mais amplos que compreendem que os modelos adotados de avaliação, comprometidos com determinadas visões de mundo, tornam-se instrumentos de reificação, agravamento das desigualdades ou crítica e superação da realidade instituída.
Momentos de destaque nessa construção foram as articulações em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (BRASIL, 2010), do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) e de todo o processo de discussão institucional no Ministério da Educação que culminou na elaboração da Minuta de Portaria que propunha a criação da Avaliação Nacional da Educação Infantil - ANEI. Essas articulações fazem parte do que Rosemberg (2013, p. 48) identificou como tematização da avaliação da educação infantil como “problema social” que, dessa forma, passou a compor um campo de conhecimento delimitado e a fazer parte da agenda de negociações das políticas públicas, tornando-se um “território em disputa”.
Neste trabalho, defende-se que a avaliação na/da Educação Infantil deve ser submetida a uma chave de leitura que conceba o atendimento ofertado às crianças nas tramas da formulação e implementação de política pública de creches e pré-escolas. Assim, a escolha e a execução de modelos de avaliação da Educação Infantil são compreendidas em si como políticas de avaliação, mas também, como parte do chamado ciclo da política pública, composto por fases inter-relacionadas referentes à percepção e delimitação de problemas, definição da agenda, formulação, implementação e avaliação (RAEDER, 2014). Como nos alerta C. Souza (2006), a política pública é um campo objeto de investigação de inúmeras disciplinas do conhecimento e que mobiliza interesses individuais, institucionais, ideológicos e políticos nas tomadas de decisões para a solução de problemas públicos. Em razão de tais interesses e de seu papel na distribuição de bens sociais, ampliação de direitos e enfrentamentos às desigualdades sociais, as políticas públicas devem ser compreendidas como resultado histórico do embate entre os diversos grupos sociais e destes com o Estado (BOSCHETTI, 2009).
Dessa forma, Tonet (2015) nos adverte que é somente na compreensão da totalidade social que a política pública adquire sentido, uma vez que na sua elaboração e execução são travadas as lutas sociais e de classe em torno de concepções de sujeito e sociedade, de modelo de Estado e de modos de gestão. Nessas lutas entre atores coletivos, são construídas as formas hegemônicas das políticas públicas e das possibilidades de participação na sua elaboração; se os movimentos sociais, por exemplo, atuam na visibilidade do problema, tentando incidir na construção de uma pauta e da agenda política acerca de uma determinada problemática social, nem sempre esses atores estarão presentes na sua efetivação e implantação, dependentes de um modelo mais ou menos comprometido com a participação e a cidadania.
É com esse entendimento que o modelo analítico de ciclo - e o papel que nele desempenha a avaliação -; enxerga a política pública na sua natureza deliberativa e fundamentalmente dinâmica, a produzir conhecimentos e práticas que podem (ou não) aprimorar a efetividade da própria política pública (SOUZA, C., 2006). Cada etapa do ciclo da política pública tem sua complexidade e envolve diferentes propostas, problemáticas, metodologias e atores sociais. Não é irrisório dizer que essa separação nem sempre ocorre no mundo real, sendo útil principalmente para fins de análise (RUA, 1997). A avaliação, vista como política (tal como discute FARIA, 2005) e/ou como parte do ciclo de outras políticas públicas, tem sua importância por possibilitar uma compreensão ampla da ação do Estado ou de um programa e por guiar os processos de tomada de decisão, orientando os atores envolvidos acerca das necessidades de modificação ou acréscimo de elementos constitutivos da política pública avaliada (RAMOS; SCHABBACH, 2012).
A partir de uma experiência avaliativa de creches e pré-escolas na região de Ribeirão Preto, propõe-se a discussão sobre as potencialidades e tensões presentes em um tipo de avaliação que articula atores diversos, comumente chamada de avaliação mista.
A EXPERIÊNCIA AVALIATIVA
As reflexões aqui levantadas são fruto da implementação de uma proposta de avaliação de creches/pré-escolas efetivada no âmbito das ações do Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC) do Ministério Público do Estado de São Paulo, Núcleo de Ribeirão Preto.
O Ministério Público aparece como um novo ator social na chamada justicialização das políticas públicas (GOULART, 2013a) ou judicialização (PALHARES, 2019, p. 11) e, consequentemente, da pauta da Educação. Isto se dá, principalmente, a partir da mudança de sua missão institucional que, desde a Constituição de 1988, integrou a garantia e a defesa dos direitos difusos e coletivos. Essa mudança faz do Ministério Público um órgão de caráter resolutivo, que atua no controle e indução de políticas públicas, ou seja, como sujeito da política pública (GOULART, 2013a). No caso da Educação, ele tornou-se uma importante arena de discussão da implementação das políticas educacionais em conformidade com os preceitos da Constituição Federal e legislações afins, atuando com outros atores (como famílias, crianças, movimentos sociais e sindicais da educação) na vigilância junto a órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas educacionais.
O GEDUC foi criado no Ministério Público do Estado de São Paulo em 2010, Núcleo da Capital, e, em 2016, foram acrescidos mais dois Núcleos (Ribeirão Preto e Presidente Prudente), com a função de identificar e atuar, administrativa e judicialmente, nas situações de violação de interesses difusos relativos à Educação. O Núcleo de Ribeirão Preto abrange, em sua base territorial, 22 municípios que correspondem a duas Diretorias Regionais de Ensino de Ribeirão Preto. Compõem o GEDUC-RP o promotor de Justiça, a oficial e a assistente de promotoria e a equipe Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial Regional Ribeirão Preto - NAT (duas assistentes sociais e uma psicóloga). A assessoria de profissional da pedagogia é oferecida por outra instância do Ministério Público.
A nossa relação com o GEDUC ocorreu por meio da oferta de estágio a estudantes de Psicologia, para assessoria às decisões nos projetos da área da Educação Infantil, Educação do Campo, participação da família na escola, situações de superlotação de salas e avaliação de equipamentos escolares.
Sabe-se que a atuação do Ministério Público para a garantia de vaga em creche e pré-escola é reconhecida nacionalmente, embora nem sempre acompanhada de discussões sobre a qualidade do atendimento (FELDMAN; SILVEIRA, 2019), motivo pelo qual, em um dos projetos, foi necessário construir um modelo de atuação desse órgão para defesa da integralidade do direito à creche e pré-escola, que não se limita ao acesso à vaga. O projeto que serve de base para as reflexões aqui levantadas foi instaurado pelo promotor de justiça como um Procedimento de Acompanhamento de Política Pública (PAA) para atender a uma das metas do Programa de atuação do GEDUC-RP, sobre a qualidade das instituições Educação Infantil, em atenção ao marco legal da Educação Infantil brasileira e ao Plano Geral de Atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo.
O modelo construído no projeto, após debates teórico-metodológicos, técnicos e ético-políticos, conjugou instrumentos de avaliação externa, realizada pela equipe técnica do Ministério Público e de estagiárias/os, e uso de instrumentos de avaliação interna. Ele foi desenvolvido em duas fases. O modelo foi experimentado com 11 instituições, de quatro municípios distintos. Para a escolha, foram considerados o porte do município em relação ao conjunto de municípios que compõem a base territorial do GEDUC-RP e o atendimento ou não da demanda por vagas na Educação Infantil, ficando assim a seleção: um município que é uma referência regional, de grande porte e com demanda não atendida; um de médio porte regional e com demanda não atendida; um de pequeno porte com atendimento a toda demanda manifesta. Fizeram parte 9 instituições públicas (4 creches e 5 pré-escolas) e 2 conveniadas (2 creches).
A primeira fase consistiu na avaliação externa pela equipe técnica do NAT e estagiárias/os. As visitas aconteceram sem aviso prévio e buscavam acompanhar um período completo (manhã ou tarde) de funcionamento da instituição. A princípio, a equipe pedia para conversar com a gestora a fim de apresentar o NAT e o GEDUC, bem como o projeto ao qual a instituição foi selecionada, por amostragem, e como ele se enquadra no paradigma resolutivo do MP, da garantia dos direitos coletivos por meio da promoção de projetos. A equipe do NAT buscou se posicionar de maneira dialógica, considerando a necessidade de engajar as instituições no processo avaliativo, o que não evitou certo estranhamento destas e, em diferentes níveis, uma defesa em informar às avaliadoras o funcionamento da instituição.
Para esse momento, foi construída uma ficha composta pelas seguintes dimensões: estruturação legal; quadro de profissionais; espaço físico; materiais; tempos e quadro de rotina por turmas; atividades; documentação pedagógica; relação com as famílias; e alimentação e promoção de saúde. Cada avaliador(a) preenchia um formulário próprio e este era utilizado para um momento de posterior discussão sobre as impressões da instituição e a redação de Relatórios de Avaliação de cada instituição, com destaques para os pontos positivos e aqueles que demandavam atenção. Um relatório de Avaliação Geral, com recomendações para ações junto aos municípios, também foi elaborado.
A segunda fase consistiu na avaliação interna conduzida pela própria instituição, após participarem de uma reunião formativa com a equipe do NAT e estagiárias/os, em que foram convidadas a conduzirem a autoavaliação por meio de metodologia participativa, orientando-se pela aplicação e os procedimentos propostos pelos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009). Também seria necessária a elaboração de relatório com aspectos positivos e pontos para melhoria.
Após as aplicações, duas reuniões conjuntas foram realizadas: uma para apresentação das avaliações externas, com apontamentos de questões gerais a todas as instituições e de singularidades, discutidas entre coordenadores, diretores e equipe responsável pela avaliação; e uma reunião de apresentação da autoavaliação realizada pelas instituições com troca das experiências e discussão sobre a construção de um plano de melhoria da qualidade. Ao plano elaborado pelas creches e pré-escolas na avaliação interna, após as reuniões, foram acrescidas, pelas instituições, também a visão dos avaliadores externos (equipe técnica do Ministério Público). Essa construção, que conjugava os olhares internos e externos, compôs um Plano de Ação Institucional para Promoção da Qualidade entregue por cada creche e pré-escola ao promotor de justiça do GEDUC-RP, com previsão de ações distribuídas em um prazo de dois anos. A equipe técnica do Ministério Público e as estagiárias/os atuaram, ao longo desse período, no monitoramento do Plano e das ações, por meio de visitas e novas reuniões, construindo um processo de acompanhamento e aprendizados comuns.
POSSIBILIDADES E LIMITES DA AVALIAÇÃO EXTERNA
No cenário ampliado da avaliação de políticas públicas, recorre-se à avaliação externa como uma possibilidade de especialistas colaborarem na identificação do cumprimento de objetivos de um projeto ou programa.
Por vezes, seu uso pode aparecer associado à abordagem top-down (de cima para baixo) de formulação e implementação de política pública. Essa abordagem tem um caráter preocupado com elementos estruturantes e com um grau escalar ampliado da mudança pretendida, o que a faz apoiar-se, geralmente, em procedimentos e instrumentos quantitativos e em parâmetros construídos por referências universais. A avaliação externa assume que existem diferentes papéis em relação ao programa ou instituição avaliados, num sistema hierarquizado de competências e estabelecimento de metas e responsabilidades. Uma de suas críticas é que a abordagem top-down aposta em atores centrais, além de nela estar subentendida a separação dos processos de formulação e de implementação das políticas públicas (MOTA, 2020; NAJBERG; BARBOSA, 2006).
Na Educação, essa abordagem aparece principalmente nas avaliações em larga escala, cujo controle dos procedimentos de levantamento de informações e das análises está situado e concentrado em atores distantes da implementação dos programas e políticas, ou seja, externos à realidade cotidiana das instituições. A crítica a esse modelo, tal como adotado no país, foi amplamente documentada na área, que problematiza a que política pública esse tipo de avaliação se vincula e questiona a visão no mínimo simplista e linear do funcionamento da administração pública e do processo de implementação dos programas (ALMEIDA, 2020; FREITAS, 2005, 2016; NAJBERG; BARBOSA, 2006; SCHNEIDER; NARD; DURLI, 2018). Na Educação Infantil, Cançado e Correa (2020) afirmam que modelos avaliativos inspirados por essa visão são privilegiados e criticam o fato de que eles não investem nos agentes educacionais e na reflexão do próprio processo de trabalho, priorizando o foco nas crianças e nas habilidades a serem adquiridas.
Entretanto, cabe lembrar que, na escala do município, as equipes de supervisão, embora compostas por atores internos ao sistema municipal, atuam como avaliadores externos às creches e pré-escolas. Esse desenho serve a um importante papel para a legitimação social dessas instituições, o seu credenciamento, o controle da qualidade, o reconhecimento da proposta pedagógica e o impulsionamento de melhorias nas condições de estrutura física e de pessoal. Trata-se assim, de certa forma, de um sistema de contrapesos, em especial no acompanhamento das instituições e dos serviços da política de conveniamento.
Essa característica implica reconhecer que a avaliação externa, em si, não é maléfica e pode comportar estratégias de participação, acolhimento e diálogo. Contudo, ela tem limites, e os usos de seus resultados e a quem ela serve exigem vigilância. Dessa forma, a sua utilização, a sua valorização e seus impactos precisam ser dimensionados e analisados no balanço entre as contribuições que ela oferece e os limites de sua natureza, de forma a observar: os fundamentos da política pública que a sustenta; os objetivos do agente avaliador; a incidência na implementação da política; a abrangência e o grau de extensão da mudança pretendida; a relação entre os atores; as pretensões e o posicionamento sobre as diferentes etapas do ciclo da política pública; a fundamentação, as aspirações e os comprometimentos políticos de sua proposta e de seus atores.
As novas funções do Ministério Público e o apoio técnico ao promotor de justiça na avaliação das políticas públicas acabaram por colocar seus quadros no lugar de avaliadores externos aos programas e políticas públicas. Essa mudança insere também pedagogas/os, psicólogas/os, assistentes sociais e outros profissionais como novos sujeitos no ciclo da política pública, com funções diferenciadas na defesa do direito à Educação Infantil de qualidade. É em nome deste órgão público que os/as profissionais técnicos podem ter acesso ao desenvolvimento das políticas públicas da Educação Infantil e, por meio de visitas e avaliação de realidades distintas, constroem uma espécie de termômetro acerca da oferta e qualidade em uma escala mais ampla que a da instituição avaliada. Além disso, as informações coletadas podem gerar atributos que contribuam para o melhor planejamento e execução dos planos da Educação Infantil, uma vez que toda a avaliação externa gera relatórios que subsidiam documentos formais (CUNHA, 2018).
A novidade para esses profissionais, acostumados a atuar diretamente na implementação da política no interior das instituições, está em posicionar-se entre o conhecimento técnico e a utopia de sociedade e de Educação instituída pelos princípios da nossa Constituição Federal de 1988 e do marco legal na área, de modo a promover, por meio dos instrumentos do Ministério Público, a crítica do existente e “dar um passo adiante na longa marcha por uma Educação Infantil brasileira democrática” (ROSEMBERG, 2010, s.p).
Em grande parte das instituições que participaram do PAA desenvolvido no GEDUC-RP, foi possível perceber um incômodo com a presença dos avaliadores logo na chegada, transformando-a, em alguns momentos, em um evento tenso, com evidente postura defensiva das instituições, e necessidade de apresentação de uma imagem positiva.
A submissão ao olhar do outro, por parte de qualquer instituição ou profissional, não é uma ação humana tranquila e desprovida de mobilizações e desconfortos das mais diversas ordens. Mesmo que extremamente cuidadosa, a chegada às instituições, desde o lugar institucional do MP, mobiliza um conjunto de significações apoiadas em experiências culturais e vividas sobre a ação deste órgão. Identificar as significações presentes, destituir-se do papel de superioridade que qualquer desenho de avaliação externa comporta, além daqueles de punição associados aos agentes do sistema de justiça, sem perder de vista o mandato institucional, são desafios e tensões postas para esses atores que realizam a avaliação externa. Nessa tensão, o olhar de especialistas do Ministério Público, como um outro, por um lado, amplia as possibilidades de incidência na política pública de Educação Infantil e, por outro, carrega inegavelmente o risco de concentrar poderes e anular localidades, especificidades e sujeitos. Nesse sentido, é fundamental a escuta de quem participa e constrói a instituição, sofre suas problemáticas, carrega sua história e enxerga o que pode ser melhorado desde uma perspectiva da vivência (PALHARES, 2019).
POTENCIALIDADES E LIMITES DA AVALIAÇÃO INTERNA
A avaliação interna, em geral, está associada ao modelo de formulação e implementação da política pública denominado de bottom-up (de baixo para cima).
A abordagem bottom-up emerge como crítica à separação entre formulação e implementação de política pública e ao caráter estanque e fragmentado do ciclo das políticas públicas presentes no modelo top-down e reconhece o contexto ativo e de disputas no qual as avaliações se inserem (MOTA, 2020; NAJBERG; BARBOSA, 2006; OLIVEIRA, 2013).
Ela defende a existência de uma relação dinâmica entre esses processos e desloca o foco nos atores centrais para os atores do contexto de implementação da política, os chamados burocratas de nível de rua, terminologia proposta por Michael Lipsky (2010), cujos desdobramentos são discutidos por Cavalcanti, Lotta e Pires (2018). São os burocratas de nível de rua que utilizam dispositivos diversos na concretização cotidiana da política, conformando práticas de apropriação que fazem dialogar as incertezas das políticas e as pressões locais, ajustam as ações às demandas de seus beneficiários, exercem resistências e atuam com poderes diversos. Por meio de suas ações, a política sofre sempre um processo de adaptação às condições locais. Esse movimento imprime uma leitura de interdependência entre as etapas e entre os atores, além de pensar a redefinição e revisão constantes da política como um contínuo difícil de ser controlado, uma vez que sua efetivação está sempre situada na dinâmica das relações. Essa visão também se aproxima da proposta de Stephen Ball e Richard Bowe, que considera a política em uso como parte do ciclo de políticas, ou seja, os discursos e práticas no nível local; estas, portanto, estão sujeitas a interpretação e podem ser recriadas, transformadas e consolidadas (MAINARDES, 2006)
A avaliação interna pretende a promoção da escuta entre os pares e a discussão de formas não intimidatórias dos elementos positivos e negativos, compactuando acordos contextualizados para a melhoria do serviço (CUNHA, 2018).
Na Educação Infantil, a avaliação interna aparece atrelada aos chamados modelos de promoção da qualidade (BRASIL, 2009; PIOTTO et al., 1998), que valorizam processos em detrimento de produtos ou resultados e que são utilizados para alavancar movimentos de negociação e busca por pontos de interesses e valores comunais, sem desconsiderar as diversidades.
Defende-se que as diferentes concepções e expectativas presentes no programa ou instituição educacional possuem igual importância e são necessárias de serem incorporadas à avaliação. Além do rigor no planejamento e do instrumento utilizado, para Coutinho e Moro (2017), precisam estar presentes princípios democráticos, de modo a criar engajamento, gerar autorreflexão e tomada de consciência sobre os papéis de cada pessoa na escola e sobre as responsabilidades coletivas no processo de mudança e aprimoramento institucional.
Esses desenhos de avaliação são justificados por uma visão alinhada com a democracia e com a construção, mesmo que difícil e trabalhosa, de canais de diálogo entre os diferentes atores sociais e institucionais. Os debates educacionais centram-se, nessa perspectiva, na defesa do conceito de qualidade negociada (BONDIOLI, 2004), interessados não em estratégias de produção de dados quantitativos, mas em processos de construção de comprometimentos coletivos com os critérios de qualidade e com a sua promoção (FILIPE; BERTAGNA, 2017) ou, como aponta Freitas (2005), na construção de um “pacto” em torno das necessidades e compromissos dos múltiplos atores das escolas e do sistema de ensino para que as mudanças ocorram.
Na Educação Infantil, esse foi o modelo privilegiado quando da elaboração do instrumento brasileiro de avaliação de qualidade, os Indicadores da Qualidade da Educação Infantil (BRASIL, 2009). A própria elaboração dos Indicadores obedeceu a procedimentos que colocaram em conversa diferentes grupos, instituições e pesquisadores da área, numa dinâmica de escuta democrática na elaboração da política de avaliação, cuja continuidade também seguiu esses princípios, até a proposição da ANEI. A metodologia prevista pelos Indicadores - já desenvolvida pela Organização Não Governamental Ação Educativa para avaliação da qualidade no Ensino Fundamental (Indicadores de Qualidade Ensino Fundamental) (BRASIL, 2013) - implica a participação de gestores, professores, demais profissionais da creche/pré-escola e familiares na construção de um quadro apreciativo da qualidade do atendimento à criança. Outras iniciativas de elaboração desse tipo de instrumento ocorreram de forma a adaptá-lo a especificidades de redes públicas, sem perder de vista seus princípios participativos, como é o caso dos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil Paulistana (SÃO PAULO, 2016).
A avaliação interna, atrelada a essa perspectiva, reconhece que os critérios de qualidade são referenciados nas significações múltiplas de todos os sujeitos e circunscritos aos condicionantes sociais, econômicos, históricos e culturais das instituições.
No procedimento do Ministério Público, inicialmente, a proposta para a autoavaliação foi recebida como mais uma tarefa a ser realizada, dentre tantas outras, sendo necessário trabalhar as impressões geradas da proposta e as implicações de sua realização na complementação às avaliações externas.
As 11 creches e pré-escolas construíram estratégias diferenciadas para a mobilização das famílias e equipe escolar. A apresentação da avaliação interna, realizada pelas instituições, indicou o grau de autocrítica e de maturidade para a exposição coletiva. Instituições com uma autocrítica maior, com um quadro de profissionais mais engajados na avaliação, abertos para a novidade que o projeto propunha e menos receosos do Ministério Público, apresentaram avaliações por vezes mais exigentes do que as da equipe técnica. Entretanto, algumas instituições, com muitos pontos de atenção identificados pela equipe externa, expressaram autoavaliações muito positivas, com dificuldade de nomear aspectos a serem melhorados. Esse comportamento já havia aparecido em uma experiência de aplicação de um instrumento de autoavaliação em instituição pública, conveniada e particular, em meados dos anos 1990 (PIOTTO et al., 1998).
Dinâmicas de circulação de poder também emergiram nas apresentações; por vezes, secretários municipais acompanharam as apresentações numa evidente tentativa de controle da palavra dos diretores. Em outras, havia liberdade para expressão franca das dificuldades profissionais, das instituições e da gestão municipal. Essas diferenças indiciaram também as complexidades de poder no momento das autoavaliações, marcadas diferentemente por aceitação genuína das avaliações realizadas pelos atores ou por mecanismos de silenciamento e de produção de concordância baseados mais na coação que no consenso.
O CRUZAMENTO DE OLHARES: AVALIAÇÕES LADO A LADO
A avaliação mista constitui um dos modelos de avaliação de políticas públicas que combina procedimentos e instrumentos de avaliação interna e de avaliação externa aos programas de execução de uma determinada política pública. Esse modelo, assim como os demais, compõe-se de diferentes formas, considerando também: quem são as/os agentes responsáveis e/ou participantes da avaliação; o momento em que ocorre (ex ante, on going ou ex post a realização de um programa); o foco no processo ou no resultado (RAMOS; SCHABBACH, 2012).
Diversas instituições, públicas e privadas, responsáveis por processos de avaliação têm incentivado a combinação de ambas as perspectivas por meio do arranjo metodológico top-down/bottom-up como forma de apreender aspectos globais (a partir do olhar das equipes externas interessadas no impacto das intervenções da política pública) e aspectos contextuais das ações no interior das organizações (que aportam ao papel e às relações entre os executores e entre os beneficiários) (SILVA; SOUZA, J., 2011).
Também Osuna et al. (2000) destacam a insuficiência de um único método avaliativo e veem como mais importante a finalidade da avaliação. Os autores criticam as metodologias importadas, não criadas no contexto sociocultural da avaliação e que impossibilitam resultados significativos. Partilham da visão de que a avaliação deve dialogar com as políticas de Estado, compreender quem são os sujeitos do programa e assumir o território como horizonte. Defendem ainda que o arranjo top-down/bottom-up promove um sistema de retroalimentação, em que uma impulsiona e enriquece a outra, aproximando os olhares. Além da avaliação em si, deve-se ter como perspectiva que todos saiam mais capacitados desse processo e que os objetivos sejam atendidos (OSUNA et al., 2000). Mota (2020) situa essa abordagem como uma terceira geração, de teorias híbridas.
No PAA relatado, as avaliações externa e interna, analisadas separadamente, produziram resultados satisfatórios para seus propósitos, considerados também de forma isolada. Suficiente seria a apresentação, ao promotor de justiça, dos aspectos que necessitavam de melhorias em cada instituição, de acordo com o relatório da equipe externa. Essas informações já tinham a potência de instruir um conjunto de ações administrativas ou judiciais para providências junto às gestões municipais e para ampliação dos investimentos públicos nas condições de infraestrutura e de oferta das vagas nas creches e pré-escolas.
Também os debates e as discussões promovidas na avaliação interna resultaram, em maior ou menor grau, em percepções de aspectos problemáticos nem sempre conscientes para a comunidade escolar, o que foi possibilitado pelo exercício de olhar para si mesmos com as lupas e o tempo que o procedimento participativo dos Indicadores promoveu.
Entretanto, o que dinamizou ambos os processos foi exatamente adotar um desenho que colocou lado a lado as diferentes avaliações. A escolha pela avaliação mista ocorreu atrelada à visão de um Ministério Público resolutivo (GOULART, 2013b), que aposta na capacidade institucional de criar espaços de diálogo entre os diferentes atores da sociedade para potencializar a construção e corresponsabilização pela promoção de políticas públicas em todas as etapas do seu ciclo (ASENSI, 2010; RAEDER, 2014). A avaliação mista procurou ser um recurso para esse tipo de atuação e servir como um instrumento impulsor das dinâmicas da avaliação interna. A avaliação interna teria ocorrido de forma diferente e produzido outros resultados se seus efeitos e alcances estivessem circunscritos ao âmbito da instituição e de seus atores. Para algumas instituições (conforme avaliação do projeto com elas realizada em uma das reuniões), contar com a avaliação externa do Ministério Público foi tanto uma legitimação de suas boas práticas - o que as deixava realizadas - como também foi um apoio às suas demandas, muitas vezes sem eco na gestão municipal e nas secretarias de quem dependiam para a solução de problemas internos à instituição - o que as deixava esperançosas.
Assim, apesar dos receios em relação ao Ministério Público, a avaliação externa pelo GEDUC-RP atuava como uma importante aliada na busca interna pela melhoria da qualidade das condições que estruturam o atendimento às crianças nas creches e pré-escolas avaliadas. Por outro lado, para a equipe responsável pela avaliação externa, houve ampliação da potência de suas tarefas, uma vez que se posicionaram não apenas na construção de um parecer que é meio para um fim. O desenho misto permitiu superar os limites de uma avaliação externa realizada em uma visita e ampliar os conhecimentos sobre o conjunto de dimensões avaliadas, das instituições e relações. Além disto, ao potencializar todo o processo da avaliação, o desenho misto também melhorou o seu produto; a elaboração do Plano Institucional de Promoção da Qualidade resultou de um esforço de síntese, enriquecendo-o e dando um salto significativo entre a primeira versão (interna) e a versão que dialogava as avaliações interna e externa.
Outro ganho do cruzamento dos olhares, em especial pela promoção das reuniões coletivas entre as instituições de municípios diferentes, foi a possibilidade de transcender as singularidades das instituições e apreender problemas mais estruturais, ou seja, as mediações constituintes da escala dos municípios. Relatórios sobre as particularidades que atravessavam todas as instituições dos municípios, assim como todos os quatro municípios, foram elaborados adicionalmente em frentes diversas de atuação do GEDUC-RP, na incidência nas políticas municipais de: construção de creches e pré-escolas; segurança das estruturas físicas; compra de brinquedos e materiais; política de conveniamento; formação de profissionais; construção do projeto político-pedagógico; equipes de supervisão. Algumas dessas indicações desdobraram-se em novos PAAs; contudo, várias foram interrompidas em virtude da pandemia de COVID-19. Um dos PAAs seria a construção de Termos de Ajustamento de Conduta para que os municípios construíssem procedimentos participativos na elaboração de um Plano Municipal Permanente de Monitoramento da Qualidade na Educação Infantil.
O modelo de avaliação mista, lado a lado, mudou as compreensões que colocavam avaliação externa e interna em polaridades e geravam desconfortos e busca por alternativas a um modelo de atuação da equipe do Ministério Público. Contudo, realça-se que essa forma de avaliação, que coloca avaliadores externos e internos em interação e conversa, demanda sensibilidades interativas e habilidades nem sempre fáceis; e, não menos exigente de maturidade é a posição ocupada pelas equipes das creches e pré-escolas avaliadas. A situação dialógica produz zonas de conversas plenas de compartilhamento, mas também, muitos estranhamentos e evidentes disputas de espaço e poder. Houve engajamento e comprometimento por parte de algumas, mas também dúvidas sobre a relevância e necessidade da proposta, sem que o sentido real da corresponsabilização pela avaliação fosse apreendido.
Enquanto um órgão de controle, o Ministério Público imprime tensões sobre as instituições e seus atores, já que a realidade é marcada por desafios que são sentidos por aqueles/as que diariamente tentam fazer seu trabalho acontecer como executores do atendimento das crianças pequenas. Outra importante consideração é que essa forma de atuação do Ministério Público, por sua novidade a partir da Constituição Federal de 1988, ainda não se consolidou, estando também em disputa a hegemonia por esse modelo, o que gera conflitos e entendimentos diversos, mesmo entre seus atores, sobre as formas de atuação para a garantia de direitos difusos educacionais. Ademais, as limitações dos profissionais externos a uma instituição são também grandes, pois, ao não comungarem o cotidiano institucional, apreendem sempre versões e aspectos parciais e momentâneos. Essa tensão, antes de ser superada, deve ser reconhecida para que a abordagem respeite as instituições e sua condição de protagonistas de seus problemas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência de avaliação de creches e pré-escolas, provocada por um lugar não usual de atuação de seus participantes, incentivou a busca por aprofundamento sobre os limites e as potencialidades das propostas de avaliação mais discutidas na literatura, próximas a abordagens de formulação e implementação de políticas públicas conhecidas como top-down ou bottom-up.
Nesse processo, foi construído um desenho que associou estratégias e instrumentos externos e internos às instituições avaliadas. Foi a concretude da vinculação ao Ministério Público e o papel que ele ocupa na defesa da Constituição Federal, e consequentemente, na dinâmica do ciclo das políticas públicas, que pressionaram a criação desse tipo de desenho. Pedagogas/os, psicólogas/os e assistentes sociais desde esse lugar, convocados/as a assumir novos papéis, não diretamente implicados na implementação de políticas e programas, passaram a mediar ações que transitam entre a escala das instituições (implementação e execução da política de educação infantil) e a escala dos municípios, com incidência nas decisões do promotor de justiça para a defesa da Educação Infantil de qualidade. Trouxeram assim, também para a prática do Ministério Público, uma forma de avaliação sensível às localidades, carregada da experiência como burocratas de nível de rua que sua formação lhes dá, capaz de mediar atores diversos no entendimento de que as políticas estão também dependentes do ambiente de implementação. De outro lado, profissionais das creches e pré-escolas realizaram a autoavaliação sustentando as relações e compromissos internamente à instituição, mas também como um importante ator no controle das políticas públicas, ampliando suas funções na avaliação da Educação Infantil e sendo implicados numa leitura tanto das condições de sua oferta como dos efeitos de suas ações.
O desenho construído, de alguma forma, valorizou os agentes locais, mas não abandonou seu foco de atuação junto a agentes em postos decisórios, de forma a não dissociar aspectos macro e micro contextuais. De toda forma, não se pretende com esse desenho, necessariamente, a superação de outros tipos, por uma série de questões que a experiência levantou.
A experiência pavimentou a consciência de que lugares distintos demandam instrumentos e métodos também distintos. Os papéis sociais e institucionais dos atores situados nas dinâmicas do ciclo de formulação e implementação das políticas públicas constrangem possibilidades de atuação, mesmo que esses lugares não sejam exatamente fixos e possam ser exercidos de modo criativo. Assim, os instrumentos e procedimentos avaliativos são orgânicos a seus contextos de criação e ao papel de seus atores. No caso do Ministério Público, a presença da equipe técnica enquanto avaliador externo é sempre atravessada pelo caráter fiscalizatório que permeia o imaginário popular sobre esse órgão, o que pode dificultar uma avaliação que seja dialógica junto ao serviço avaliado, por mais que sejam realizados esforços de aproximação e de ocupação desse lugar desde um paradigma resolutivo (GOULART, 2013b).
Além disso, a experiência também consolidou os apontamentos feitos na área sobre a associação entre avaliação e a escala das mudanças almejadas. Se a proposta de uma avaliação mista, lado a lado, evidenciou uma relação de continuidade entre mudanças no interior das instituições e mudanças na escala da política municipal, ela também acenou que essa transição não se dá de forma harmônica; ao contrário, é constituída por conflitos, tanto entre os atores internos ao sistema de educação como entre eles e a equipe de avaliação externa. Também a perspectiva dialógica da avaliação mista, lado a lado, possui desafios que ela própria instaura na complexidade das relações entre as pessoas e os órgãos públicos. Relações de poder e tensões são intrínsecas às avaliações, isto porque elas estarão, como já discutido anteriormente, sempre em uma tonalidade de luta por modelos de sociedades. Toda e qualquer avaliação é sempre um instrumento de poder.
Essas questões apontam assim que, antes de serem superados e criticados os tipos de avaliação, são os seus usos e seus interesses que precisam ser explicitados e problematizados. Além disso, a junção de dois olhares distintos sobre o mesmo processo educativo precisa ser feita de forma planejada, de modo que gere benefícios para todos e, principalmente, que tenha a criança como seu horizonte.
Avaliações externas, internas ou mistas, que contrastam com as concepções construídas historicamente e consolidadas de Educação Infantil, precisam ser rechaçadas, assim como aquelas que, independentemente de seus desenhos, não coadunam com os princípios de participação democrática.
Evidentemente que, desde a experiência circunscrita aos atores participantes, a avaliação mista constituiu-se como uma estratégia possível na consolidação de uma atuação em consonância com o novo paradigma do Ministério Público e com os valores democráticos da sociedade brasileira atual. A mobilização de diferentes atores, locais e envolvidos com a gestão, e a construção conjunta de planos de ação comprometem a todos, coletivamente, com a educação infantil de qualidade e com a promoção de um Estado democrático de direito. O trabalho com políticas públicas envolve relações sociais diversas (GONÇALVES, 2013). Para uma postura mais democrática de exercício de poder, e na efetivação deste, as avaliações também devem ser construídas de maneira conjunta, com a participação dos múltiplos atores envolvidos nesse processo.
Os aprendizados da experiência reforçam que são os compromissos com a Educação Infantil brasileira democrática e com a concepção de Estado posta na Constituição Federal de 1988 que devem guiar a construção coletiva de políticas públicas de avaliação que superem os desafios históricos da área. Assim, ela deve estar associada a uma perspectiva crítica, que problematize o quanto a política pública tem conseguido expandir direitos, propiciar equidade e reduzir as desigualdades sociais (BOSCHETTI, 2009), além de apoiar-se em uma concepção que contrasta com visões de qualidade presentes nas políticas neoliberais (FREITAS, 2005). Reconhecimento e valorização das crianças e familiares como sujeitos de direitos, criação de espaços de participação, instauração de mecanismos de vocalização dos diferentes atores sociais, respeito às especificidades e dinâmicas locais, postura democrática e dialógica, fortalecimento da concepção do Estado de direito são horizontes, presentes nos princípios constitucionais, que balizam o olhar crítico e a avaliação das políticas de avaliação e dos seus diferentes desenhos. Com eles em mãos e em mente, como indicadores ou critérios para análise das políticas de avaliação, não é difícil distinguir estratégias que buscam a redução das desigualdades ou, ao contrário, fomentam e estigmatizam crianças e populações.