Fissuras epistêmicas
A princípio Benjamin e Boaventura que estão distanciados, temporal e espacialmente, poderiam nos sugerir a impossibilidade desse encontro. Entretanto, um olhar mais cuidadoso sobre o deslocamento teórico dos pensadores nos permite re-conhecer fragmentos benjaminianos por entre as conceituações de Boaventura em pleno século XXI. Quais os instrumentais teóricos, filosóficos e sociológicos que nos possibilitam leituras de mundo deslizando pelas alegorias de Benjamin (1984) e as epistemologias do Sul de Boaventura (2009)? Que argumentos nos fornecem para lutar por uma sociedade menos abissal que possa esta, sim, diminuir o fosso que separa grupos sociais hegemônicos e contra hegemônicos? Este texto pretende, exatamente, traçar uma cartografia de possibilidades teóricas em que fazem presentes interseções e tensões entre Benjamin e Boaventura.
O pensamento de Walter Benjamin tem nos fornecido pistas sobre o conjunto de transformações que regeram a modernidade em muitos aspectos e os seus ecos se fazem presentes na contemporaneidade. A ensaística benjaminiana perpassa alguns escritos de Boaventura, quer abordando a sua conceituação sobre História, quer analisando seu pensamento sobre o tempo. É exatamente nessa fissura, na ressonância dessas ideias, que aproximamos o pensador berlinense do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, propondo pensar, através e com eles, uma racionalidade mais cosmopolita que dê conta da diversidade epistemológica do mundo e, por correlato, de sua injustiça epistemológica (SANTOS, 2009). A construção do artigo não apresenta um percurso metódico, linear, mas flânerie1. Percorrendo o labirinto de Benjamin e Boaventura, vamos montando um mosaico possível, um diálogo pautado na convergência de olhares e de apropriações em torno da busca de sentidos que ainda possa valer para pensar a história, o tempo, o mundo, o homem, a mulher, as exclusões, os abismos abissais entre as diferentes classes sociais. As injustiças reforçam um modelo de mundo constituído assimetricamente, cujo acesso aos bens materiais e ao conhecimento, nas suas mais diversas expressões, ocorre de forma desumanizadora e aviltante.
Benjamin e Boaventura: escovando a História a contrapelo
Nas Teses sobre o Conceito de História, Benjamin (1994) propõe escovar a história a contrapelo, opondo-se à ilusão do progresso e de que a história segue em linha reta, em ascensão positiva. É em nome do materialismo histórico que Benjamin contesta as doutrinas do progresso ilimitado e contínuo da socialdemocracia alemã e do comunismo stalinista. A crítica do progresso é um tema que atravessa gritantemente o conjunto da obra de Benjamin, desde os seus escritos de 1914 até os últimos textos no final da década de 1930, imprimindo sua desconfiança tanto em seus ensaios teológicos quanto em seus artigos culturais ou políticos. Não nega que os conhecimentos e as atitudes humanas progrediram - nas Teses essa questão é apontada de forma explícita -, o que recusa, tanto no livro Passagens (BENJAMIN, 2006) quanto nos outros escritos de seus últimos anos, é o mito de um progresso que resulta necessariamente das descobertas técnicas, do desenvolvimento das forças produtivas e da dominação crescente sobre a natureza. Benjamin enfatiza, em sua crítica, a ideia de progresso vinculado exclusivamente ao desenvolvimento de bens materiais e também a sua legitimação, de forma ilimitada, nas forças que engendram a máquina da guerra. Benjamin vaticina: “O conceito de progresso deve ser fundamentado na ideia de catástrofe” (2006, p. 515).
O conceito de progresso está indissociavelmente ligado à concepção de tempo que foi engendrada na modernidade e que tem seu nascedouro na Idade Média Cristã (KUMAR, 1997). É, pontualmente, com o cristianismo que surge uma nova projeção do tempo e da história, que rompe com a concepção naturalista do mundo antigo, segundo a qual o tempo era cíclico pautado nas estações do ano. Era, portanto, um tempo circular e repetitivo. Para Elias (1998), o tempo é a maior invenção humana, pois, antes da criação do calendário, o que havia era o fenômeno natural de clarear e escurecer. O cristianismo introduziu significado e finalidade ao tempo, estabelecendo uma importância única, irrepetível e incomparável a um único evento: a vinda de Cristo. O tempo, a partir desse momento, estava dividido de forma irrevogável entre o tempo antes e depois de Cristo. Santo Agostinho, em Confissões (2001), esclarece que é através da recordação do passado e da expectativa dos eventos futuros que cada um de nós percebe o que é o tempo. Ao privilegiar a história humana e a sua dimensão futura, o cristianismo interpreta-a do ponto de vista de seu fim ou consumação final. A história é compreendida pela noção de tempo linear. O presente e o futuro não se inserem simplesmente em uma ordem cronológica, mas teleológica. O passado alcança significado de modo retrospectivo, isto é, o modo pelo qual formula suas contribuições ao futuro. A história desenvolve-se, como escreve Agostinho, à sombra do futuro. De fato, o cristianismo conta uma história orientada para o futuro, em que o presente é saturado com o objetivo de criar uma atmosfera de expectativa e tensão.
Santos (2010) defende a utilização de uma racionalidade mais cosmopolita frente a uma racionalidade cartesiana e iluminista. Portanto, uma racionalidade que contemple a diversidade epistemológica do mundo e posicione novos saberes e novas temporalidades. “A razão ocidental é definida pelo sociólogo como uma razão indolente, responsável pelo desperdício da experiência social que está aprisionada em um modelo único de pensamento” (MIKLOS; ARAÚJO, 2017, p. 4). A racionalidade de Boaventura se apresenta ancorada nas Sociologias das Ausências, Sociologias das Emergências e no Trabalho de Tradução; esses formam um tripé teórico. Sendo assim, parte de alguns pressupostos: o mundo não é só a concepção de mundo ocidental2; a consciência do mundo e a legitimação da prática de poder estão relacionadas às concepções de tempo e espaço. A racionalidade ocidental contrai o presente e amplia o futuro.
A contracção do presente, ocasionada por uma peculiar concepção de totalidade, consiste em transformar o presente num instante fugidio, entrincheirado entre o passado e o futuro. Do mesmo modo, a concepção linear do tempo e a uniformização da história permitiram expandir o futuro indefinidamente. (SANTOS, 2010, p. 95)
Santos (Ibid) pensa as epistemologias do Sul a partir das Sociologias das Ausências e das Emergências, “(...) definindo-as como o conjunto de procedimentos e práticas epistemológicas que se assentam nos grupos sociais que tenham sofrido as explorações do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado” (Ibid, p. 4). Logo, estrutura o pensamento sobre cidadania baseado em quem não é considerado cidadão – mesmo aquele que a tenha adquirido apenas formalmente - e não às avessas. Para o autor, o conceito de cidadania é bastante ocidental e originário da pólis grega, onde nem todos os indivíduos eram cidadãos, ou seja, mulheres, escravos e estrangeiros integram esse grupo.
A constatação de uma Sociologia das Ausências irá permitir a construção posterior de uma Sociologia das Emergências. A multiplicidade de práticas, fazeres e saberes inviabiliza uma teoria universal que dê conta de uma explicação global, pois correria o risco de uma aniquilação de diversas identidades culturais diferenciadas. “Não é possível hoje uma epistemologia geral, não é possível hoje uma teoria geral. A diversidade do mundo é inesgotável, não há teoria geral que possa organizar toda essa realidade” (SANTOS, 2007, p. 39).
A lógica universalista ocidental pauta-se em raízes da cultura ocidental cristã, europeia, branca e heterossexual. Os diferentes grupos sociais produzem conhecimentos que não são legitimados pelas universidades, mas aqueles conduzem e organizam suas práticas sociais. Neste sentido, podemos afirmar que o monopólio do saber, mantido pelas instituições de ensino superior, é uma fonte de controle político e epistemológico.
Para Santos (2009) só temos justiça social quando temos justiça epistemológica. Por isso, a produção de saberes, em diferentes grupos sociais, deve ser equiparada e igualmente respeitada pelos saberes produzidos na universidade. O velho continente ainda está distante de alcançar essa igualdade de concepção, porém a América Latina já demonstra, em diversos lugares, a busca por um reconhecimento de tais saberes e práticas oriundas dos grupos e movimentos populares. A concepção de que há diferentes fontes geradoras de conhecimento, quer seja na universidade, quer seja fora dela, proporciona cumplicidade e proteção mútuas.
Sendo assim, Santos (2010) propõe uma ecologia de saberes. Não é um ou outro, não é separar os saberes acadêmicos dos saberes populares, mas é a coexistência, o diálogo entre tais saberes, podendo até ser a complementação em alguns momentos. Miklos e Araújo (2017) citam como exemplo: “As cosmovisões de comunidades ameríndias ou afrodescendentes que revelam ao mundo outras formas de pensar, de se relacionar com a natureza, com os animais, com os outros seres humanos, com o planeta” (Ibid, p. 7). São essas populações e outras oprimidas e inferiorizadas que organizam práticas sociais e culturais que podem enriquecer a universidade.
No entanto, Santos (2010) também relaciona o pensamento abissal à existência de uma ampla sociedade civil incivil, já que a maioria das populações não é contemplada no acesso aos bens sociais básicos. Em nossas sociedades não conseguimos enxergar esse outro lado, o que o sociólogo chama de dialética da linha abissal. Em diálogo com Boaventura, Miklos e Araújo (2017) destacam:
Nas sociedades pós-coloniais não há um Estado protetor, este convive com o Estado não protetor, a cidadania convive com a não cidadania. Os indivíduos são mais objetos dos discursos dos Direitos Humanos, do que sujeitos dos Direitos Humanos. É o que Boaventura chama do surgimento de uma sociologia das ausências típica das epistemologias do Sul. (Ibid, p. 6)
Nas sociedades capitalistas atuais não há uma ética da cidadania e, sim, uma ética do mercado que gera enormes exclusões, nomeadas por Boaventura de exclusões abissais e se refere à população que nunca foi incluída. Nos países periféricos, na maioria ex-colônias, forma-se um Estado fraco que permite o surgimento, também, de um paramilitarismo. Aqui, no Brasil, vivemos uma violência do Estado que se materializa no corte de inúmeras conquistas dos trabalhadores, assim como da sociedade em geral. Diante desse dado de realidade, o Estado inicia um movimento de supressão de direitos, logo se criam estados de exceção em nome da soberania nacional, como podemos constatar na reforma trabalhista engendrada a partir de 2017.
Benjamin e Boaventura fazem parte de uma constelação de pensadores que lançam luzes sobre os escombros soterrados e as vozes silenciadas. O fragmento a seguir apresenta essa perspectiva:
É um esforço que busca revirar esses escombros, capturar a centelha fulgurante do fragmento, libertar a história do seu universalismo e propor uma nova abordagem para o tempo e o espaço, além de responder a questões emergentes contemporâneas quer sejam políticas, acadêmicas ou sociais. (MIKLOS; ARAÚJO, 2017, p.6)
A História é um tema que adquire centralidade tanto no rabino marxista3 quanto no sociólogo português, pois ambos acreditam na qualidade socialmente emancipadora da história, que esta seja capaz de vislumbrar o futuro a partir de um passado cujas vozes foram silenciadas. Miklos e Araújo (ibid) comparam essa reflexão à concepção de sankofa, ou seja:
(...) o pássaro africano que tem duas cabeças, uma para trás e outra para a frente - que encarna uma alegoria que nos permite pensar os aprendizados trazidos pela história vivida e a construção de um mundo outro, sem os mesmos equívocos passados e projetado no horizonte futuro. (Ibid, p. 7)
Para Benjamin o tempo presente é um tempo saturado de agoras, já o futuro se direciona ao passado para que este possa ser alforriado de sua permanente repetição como sofrimento e opressão. Na Tese XIX, a partir de um quadro de Paul Klee, Benjamin constrói a sua alegoria definitiva da história:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (1994, p. 226)
Boaventura se apropria da imagem de Klee e das palavras de Benjamin para refletir o processo histórico dos trabalhadores e dos povos do Sul para quem tão pouco interessa um futuro predatório sob o manto do progresso, uma vez que foi no seu bojo que se perpetuou a dominação e o seu silenciamento.
O anjo da história contempla, impotente, a acumulação de ruínas e de sofrimento a seus pés. Gostaria de ficar, de criar raízes nas catástrofes para, a partir dela, acordar os mortos e reunir os vencidos, mas sua vontade foi expropriada pela força que o obriga a optar pelo futuro para o qual está de costas [...] A capacidade de redenção do passado reside nesta possibilidade de emergir inesperadamente num momento de perigo, como fonte de inconformismo. (SANTOS, 2010, p. 53-54)
As alegorias benjaminianas inspiram Boaventura na sua travessia teórica, que as imputa ao tempo contemporâneo a fim de dar sentido a outras vias epistemológicas e libertárias. “O inconformismo dos vivos não existe sem o inconformismo dos mortos” (Ibid, p.54), afirma, em uma clara homenagem a Benjamin, para destacar que é crucial criar outros registros para o passado, restituindo-lhe, dessa forma, a sua capacidade de explosão e redenção. Boaventura constata que, neste início de século, há uma oportunidade para romper com essa tradição porque se instalou uma atmosfera de crise pela qual passa atualmente a ideia de progresso.
Como já afirmamos anteriormente, duas visões de progresso se impuseram do século XIX em diante: uma apresentou uma concepção evolutiva e a outra valorizou as rupturas e revoluções. O conceito revolução foi criado por astrônomos para descrever o curso regular dos corpos celestes e ainda está vinculado à compreensão de tempo cíclico que permeou a Antiguidade. Mas uma nova concepção foi criada no século XVIII: a ideia de corte e inauguração. A Revolução Francesa foi o exemplo clássico de uma revolução na fronteira dos tempos modernos para os contemporâneos e uma das principais expressões da nova consciência, anunciando o objetivo do período: a obtenção de liberdade sob a égide da razão.
Se a Revolução Francesa deu à modernidade sua forma e consciência, a Revolução Industrial Inglesa, no final do século XVIII, modelou sua matéria. As Revoluções Francesa e Industrial estão inseridas no final da Era Moderna e início da Contemporânea e nessa medida, compartilham a concepção contínua de tempo. A ideia linear do progresso – cara à filosofia das luzes – gera ações contrárias quer do messianismo benjaminiano, quer do posicionamento ético e político de Boaventura.
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie,” escreve Benjamin na sua VII Tese (1994, p. 225). A história oficial apresenta o ponto de vista dos vencedores, das elites, enquanto que excluiu e despreza os vencidos, os excluídos, os miseráveis. O conceito de história de Benjamin é preciso na sua clareza expositiva:
O desafio de Benjamin é construir um conceito de história que corresponda à verdade daqueles a quem a tradição da dominação e do ritmo contínuo da história fez calar. A concepção de história das Teses é contrária a qualquer linearidade evolutiva, não há uma ideia de ordem, de um telos. A história como construção é, então, inacabada, descontínua e sujeita a novas origens, e a tarefa do historiador materialista é tirar do esquecimento a história dos vencidos e impelir-se numa dupla libertação: a dos vencidos de ontem e os de hoje. O passado comporta outros futuros além deste que realmente ocorreu. (MIKLOS e ARAÚJO, 2017, p. 8)
No pensamento de Benjamin encontramos também constelações conceituais que Boaventura apresenta para explorar e questionar a razão indolente4, que é a expressão do conhecimento hegemônico, tanto filosófico como científico, produzido no Ocidente nos últimos duzentos anos: a razão metonímica e a razão proléptica. A consolidação do Estado liberal na Europa e na América do Norte, as revoluções industriais e o desenvolvimento capitalista, o colonialismo e o imperialismo constituíram o contexto sociopolítico no qual a razão indolente se desenvolveu. A partir dessa angulação Boaventura faz a seguinte ressalva:
Da minha perspectiva, para haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos é necessário começar por mudar a razão que preside tanto aos conhecimentos como à estruturação deles. Em suma, é preciso desafiar a razão indolente. (SANTOS, 2010, p. 97)
A razão metonímica nega que o entendimento do mundo é muito mais que o entendimento ocidental do mundo, congela a ideia de totalidade sob a égide da ordem, perpetrando a violência e a destruição como um modus operandi totalmente natural e reforça, nesse silenciamento, as dicotomias que geram relações de poder hegemônicas. A ampliação do mundo e a expansão do presente se representam no conceito que Boaventura nomeia como sociologia das ausências, cujo objetivo é transformar objetos impossíveis em possíveis, fazer as ausências tornarem-se presenças.
A contracção do presente esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotável das experiências sociais do mundo. Benjamin identificou o problema mas não as suas causas. A pobreza da experiência não é a expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar. (Ibid, p. 101)
A sociologia das ausências se estrutura na existência de não cidadãos, típica das epistemologias hegemônicas. Essas formas de exclusão perpassam todas as dimensões humanas e envolvem também as memórias, particularmente as memórias subterrâneas.
Também na obra de Benjamin podemos destacar o conceito de experiência (Erfahrung)5 que atravessa o conjunto de sua produção e trajetória intelectual - a ela, se associa de forma oposta o conceito de vivência (Erlebnis). Esta é associada ao inconsciente, à tradição, à memória, individual e coletiva; a vivência aponta para uma existência privada, fechada na solidão, circunscrita ao choque e à percepção consciente. Miklos e Araújo (2017) diferenciam experiência e vivência, na perspectiva de Benjamin, como sendo:
Nas sociedades modernas, o esvaziamento da experiência está relacionado a uma valoração da vivência que, aos olhos do filósofo berlinense, é um modo empobrecido do homem experimentar o seu habitar no mundo, não apenas no ambiente onde são estabelecidas as relações de trabalho capitalistas, mas igualmente no mundo da arte, da educação e do lazer. A experiência é um lento processo de sedimentação de várias experiências que, mesmo afastadas temporalmente, convergem, ressignificam e se fazem presentes a todo instante. Ao contrário, a vivência é uma série de presentes puros e não mais relacionados na linha do tempo. (Ibid, p. 10)
Prosseguindo em nossa flânerie, nos deparamos com o constructo da razão metonímica, a produção de não-existência6 ocorre quando uma expressão é desqualificada, tornada invisível, ininteligível ou, como mesmo destaca Boaventura, descartável de modo irreversível. “O que une as diferentes lógicas de produção de não-existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional” (SANTOS, 2010, p.102). A sociologia das ausências pretende valorizar as experiências produzidas como ausentes no contexto de relações que forçaram o seu apagamento e silenciamento, vizibilisá-las, portanto, é legitimar o seu percurso como alternativa que não cabe na totalidade e no tempo linear, é validar a sua credibilidade como fonte argumentativa e via de disputa política frente às experiências hegemônicas. No desmonte do pensamento hegemônico, Boaventura substitui monoculturas por ecologias,7 tendo em vista que aquelas são capazes de revelar a diversidade e a multiplicidade das práticas sociais e as diferentes temporalidades que as culturas geram no interior do seu sistema simbólico. Um eixo comum perpassa as cinco ecologias, a saber: o conceito de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe.
A face da indolência quando concebe o futuro a partir da monocultura do tempo linear é a razão proléptica que dilatou de forma colossal o futuro. Boaventura explica:
Porque a história tem o sentido e a direcção que lhe são conferidos pelo progresso, e o progresso não tem limites, o futuro é infinito. Mas porque o futuro está projectado numa direcção irreversível ele é, como bem identifica Benjamin, um tempo homogéneo e vazio. (SANTOS, 2010, p. 115)
A crítica da razão metonímica objetiva dilatar o presente por meio da sociologia das ausências, a crítica da razão proléptica materializa a contração do futuro por meio da sociologia das emergências que substitui o vazio do futuro segundo a lógica do tempo linear por um futuro de possibilidades plurais e concretas. “A possibilidade é o movimento do mundo” (Ibid, p. 117), escreve Boaventura que completa:
A sociologia das emergências consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre os quais é possível actuar para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade da frustração. (Ibid, p. 118)
Enquanto a sociologia das ausências amplia o campo das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências estende o domínio das experiências sociais possíveis. As duas sociologias estão intrinsecamente vinculadas, visto que quanto mais experiências estiverem disponíveis, mais experiências são possíveis no futuro.
E, fechando a tríade que potencializa e abre novas possibilidades para instauração de outras vozes epistemológicas, Boaventura apresenta o trabalho de tradução que é complementar à ação das duas sociologias e visa criar inteligibilidade, coerência e articulação dos saberes e práticas sociais em sua natureza múltipla e diversa. A razão cosmopolita, portanto, se concretiza na ação complementar desses três vetores conceituais e defende, como princípio categórico, que não é possível existir justiça social global sem justiça cognitiva global.
O objectivo da tradução entre saberes é criar justiça cognitiva a partir da imaginação epistemológica. O objectivo da tradução entre práticas e seus agentes é criar condições para uma justiça global a partir da imaginação democrática. (SANTOS, 2010, p. 115)
O esforço de Boaventura é criar uma alternativa teórica que autorize virem à tona outras narrações porque a história, tal como se configura na atual cartografia é a canonização do ponto de vista do projeto iluminista, uma espécie de beatificação dos vencedores, restando aos vencidos o caos, a catástrofe e a ruptura.
A teoria da história de Benjamin se baseia no conceito de alegoria. A revalorização da alegoria é a chave da estética benjaminiana. Sobra a importância da alegoria na obra de Benjamin, Miklos e Araújo (2017) afirmam que:
O ensaísta alemão orienta seus estudos, especialmente sobre o drama barroco, mostrando a importância essencial da alegoria na visão barroca do mundo. Em seu escrito capital A Origem do Drama Barroco Alemão (1923 -1925), Benjamin escreve que o objeto alegórico é a representação de outros e até dos vários outros, mas não do todo. Não há, na alegoria benjaminiana, uma representação do universal, pois a alegoria não é a representação da totalidade. A alegoria é fragmento e como tal é pluralista e não monista. Sua maneira de reportar-se ao todo consiste em aludir sem cessar ao outro. (Ibid, p. 11-12)
Cabe-nos ressaltar que Benjamin (1984) circunscreve a visão alegórica em uma perspectiva própria, como nos ilustra o trecho a seguir:
Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio. Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita a morte, desde sempre ela foi alegórica. (Ibid, p. 188)
Um fechamento possível
Benjamin e Boaventura personificam o alegorista, negam o universal da história que se mostra como o eterno retorno do mesmo em uma oca temporalidade; não aceitam o universalismo que petrifica conceitos, identidades, cria modelos, padrões de normalidade que modelam o estético, congelam o social, o político e o econômico e excluem a maioria das populações do mundo, tornando-as não cidadãos e invisíveis através da linha abissal. Isto é uma fantasmagoria dos vencedores. Boaventura afirma que tais exclusões são feitas pelo patriarcalismo, colonialismo e capitalismo.
A pobreza da experiência à qual se refere Benjamin, em vários de seus ensaios, não é apenas de caráter pessoal, mas de toda a humanidade. Há a consciência de fazer explodir o continuum da história por meio da experiência como a conceitua o filósofo berlinense e por meio da sociologia das ausências e da sociologia das emergências - segundo Boaventura - que apontam para interseções e caminhos potencializadores de emancipações epistemológicas.
Apesar de seu caráter por ora claramente embrionário, o cosmopolitismo subalterno contém uma promessa real. De fato, para captá-lo é necessário realizar aquilo que chamo de "sociologia das emergências", a qual consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo. O cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como "globalização neoliberal". (SANTOS, 2007, p. 83)
O encontro de Benjamin e Boaventura promovido, nesse ensaio, certamente um despertar, incita para uma experiência outra, que talvez possa inaugurar um outro começo onde as sociedades contentem-se com pouco e construam com pouco. É uma experiência que impõe uma vigilância ética e alimenta a esperança. Os pensadores que nos guiaram apontam para a construção de outras histórias, mais plurais, mais reveladoras de percursos, olhares, escutas e silêncios que não sejam imobilizadas com o peso de sua época. Homens e mulheres comprometidos com a criação, com as justiças cognitivas e epistemológicas.