INTRODUÇÃO
A marca central do processo de expansão da educação superior no Brasil é a massiva participação do setor privado. Dominando numericamente o sistema há mais de 40 anos, o setor tem sido o principal responsável pela diversificação do desenho institucional, resultando na criação de novos formatos organizacionais para além da tradicional universidade, em novos percursos formativos, cursos e modalidades de ensino. Nesse processo, destaca-se o investimento na oferta de vagas na educação a distância (EaD) que, desde o início do século XXI, cresce em proporção maior do que na modalidade presencial, construindo um cenário favorável especialmente para os grandes grupos educacionais do subsistema lucrativo, que hoje concentram a maior parte das matrículas na modalidade (BRASIL, 2020).1
A expansão da educação a distância é constante desde seu marco regulatório (Decreto n. 5.622/2005) (BRASIL, 2005). São dois novos, convergentes e quase simultâneos elementos que se colocam na organização da educação superior, com impactos diretos na sua dinâmica interna. De um lado, uma modalidade de ensino que se define em oposição ao formato clássico e tradicional de ensino presencial, que faz amplo uso de tecnologias da informação como instrumentos mediadores e que incorpora novas práticas profissionais na sua dinâmica. De outro, grupos empresariais que adotam estratégias de gestão com maior capacidade de redução de custos e adaptação aos novos ambientes de mercado e tecnológicos.
Dentre as estratégias de redução de custos das instituições lucrativas se destaca a figura do tutor, profissional com menor exigência de escolarização e maior flexibilização do regime de trabalho, que exerce a função de mediação no processo de ensino e aprendizagem e que constitui a principal força profissional na modalidade. Dados da Associação Brasileira de Educação a Distância - um importante agente de disputa no campo - revelam a maior presença de tutores que de professores na EaD (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - ABED, 2019). No entanto, órgãos oficiais de pesquisa, como o Censo da Educação Superior e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, não categorizam a função, tornando-a opaca para estudos, pesquisas, avaliações e políticas.
Nesse sentido, a questão principal que se coloca é entender em que medida o novo desenho institucional da educação superior brasileira, marcado pela ampla participação do subsistema lucrativo e pela expansão e consolidação da educação a distância, implica novas orientações para o levantamento de dados e para a avaliação das instituições de educação superior.
Para tratar das novas configurações da educação terciária, a próxima seção analisa os principais instrumentos legais alusivos à educação a distância e ao subsistema lucrativo, mostrando sua forte retroalimentação, em diálogo com informações dos microdados do Censo da Educação Superior. Tendo em vista a crescente participação da EaD e de novas práticas profissionais no exercício da docência, considera, na seção “Instrumentos de avaliação do MEC, Censo da Educação Superior e tutores”, as informações disponíveis para os tutores nos atos autorizativos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), e no Censo da Educação Superior, lançando luz sobre a invisibilidade desses profissionais no principal instrumento de levantamento de dados do órgão da administração federal responsável pela regulação da educação no país, o Ministério da Educação (MEC). A seção “Tutores invisíveis e desagregação docente” apresenta uma reflexão sobre a nova face da ocupação docente e a importância de adaptação do Censo, de modo a incluir as informações sobre os profissionais que, cada vez mais, dão forma e conteúdo à docência na educação terciária, com reflexos na qualidade da educação superior. Considerando a discussão estabelecida, propõe-se a incorporação de novas variáveis que irão permitir o aprimoramento do Censo da Educação Superior.
MARCOS LEGAIS DE UMA DUPLA E COMBINADA EXPANSÃO: EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E SUBSISTEMA LUCRATIVO
Os antecedentes da educação a distância no Brasil remontam aos cursos supletivos dos anos 1970, quando era entendida como uma “metodologia a distância” (Lei n. 5.692/1971) (BRASIL, 1971). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996) (BRASIL 1996), um marco da educação nacional, trouxe importantes inovações para a educação terciária. Por ela, a educação a distância supera a condição de “metodologia” e é enquadrada como “modalidade de ensino”. Uma profusão normativa sucede à Lei n. 9.394/1996 no regramento da EaD. Sua principal característica é a flexibilidade associada à prontidão nas atualizações, configurando uma dinâmica atenta e responsiva à demanda de ampliação do setor. Algumas atualizações foram fundamentais para a consolidação da modalidade, como se exemplifica: já em 1998, os Decretos n. 2.494 (BRASIL, 1998a) e n. 2.561 (BRASIL, 1998b) conceituaram a EaD e trataram de seu credenciamento e avaliação da qualidade. Em 2004, a Portaria n. 4.059 (BRASIL, 2004b) estendeu às graduações presenciais a possibilidade de incorporar 20% de disciplinas na “modalidade semipresencial” em suas grades curriculares. Essa previsão foi revogada em 2016 pela Portaria n. 1.134 (BRASIL, 2016a), substituindo a “modalidade semipresencial” pela “modalidade a distância”, ampliando, assim, seu escopo. Em 2005 foi decretado um dos principais marcos legais da modalidade, o Decreto n. 5.622/2005 (BRASIL, 2005). Nele foram estabelecidos novos aspectos funcionais, com destaque para o conceito de polo, que apareceu pela primeira vez para as atividades presenciais obrigatórias - avaliação de estudantes, estágios obrigatórios, defesas de conclusão de curso e laboratórios -, além da equivalência permitida aos diplomas de cursos presenciais e a distância.
Outro marco para a modalidade foi o Decreto n. 9.057/2017 (BRASIL, 2017a), que conferiu às novas instituições a possibilidade de buscarem credenciamento exclusivamente para cursos a distância, liberando-as da exigência de oferecer, como anteriormente, cursos presenciais. Esse mesmo Decreto inovou na admissão do regime de parceria entre a instituição de ensino credenciada para educação a distância e “outras pessoas jurídicas”. Já a Portaria n. 2.117/2019 (BRASIL, 2019a) ampliou a permissão de oferta de carga horária a distância em cursos presenciais para 40%. Na ocasião, o mercado financeiro respondeu rapidamente e, no mesmo dia, houve um aumento do valor, em bolsa, das ações dos grandes grupos de educação privada do país (RIVIEIRA, 2019).
Para o setor privado, esse foi um período de articulação de novas estratégias de indução para a expansão do mercado educacional. Ao intensificar a regionalização e a interiorização da oferta, diversificar os formatos organizacionais e, sobretudo, as modalidades de ensino, seu “crescimento pelas bordas” consolidou novos arranjos institucionais (SAMPAIO, 2011, p. 38). Nesse processo, a educação a distância ganha centralidade e cria um novo mercado para as instituições do subsistema lucrativo. É preciso considerar que o ensino presencial vinha passando por um período de alargamento desde meados da década de 1990, encontrando certa saturação a partir de 2014, quando as matrículas permaneceram no patamar de 6,5 milhões, com leve queda a partir de 2016. Nesse mesmo ano, assiste-se a um pico de crescimento da EaD, conforme mostram os gráficos 1 e 2 a seguir, que apresentam a curva de crescimento das duas modalidades e ilustram o caráter dinâmico dessa expansão.
Os gráficos indicam as diferentes trajetórias de crescimento das modalidades de ensino nos anos selecionados, ainda que saindo de patamares diferentes. O movimento mais acelerado na educação a distância, que começa a série com aproximadamente 41 mil matrículas e termina multiplicando esse número em 60 vezes, foi dinamizado, sobretudo, pelo subsistema lucrativo, responsável por 80% das matrículas em EaD. O dado sobre instituições credenciadas para oferta de ensino a distância entre 2016 e 2018 é eloquente: em 2016 havia 128 instituições ofertando 1.222 cursos, e em 2018, 441 instituições ofertando 3.557 (HOPER, 2018).
A suspensão das atividades presenciais e a substituição por aulas remotas durante a pandemia de Covid-19 completam a série normativa e contextual favorável à expansão e consolidação da EaD. A verticalização da curva de crescimento nos anos finais da série, somada ao impulso dado pela pandemia, indica que a modalidade tende a ser o principal meio de acesso às instituições de educação superior no país.
Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) revela que a aceitação da modalidade entre estudantes vem em um crescente, potencializado pelo uso do ensino remoto: em 2017, essa aceitação era de 19%; em 2020, no período pré-pandemia, de 40%; e durante a pandemia, 78%. Segundo a pesquisa, tal crescimento deve-se principalmente à perda de renda dos alunos, mas não apenas:
[...] analisando o comportamento dos prospects do Presencial e do EaD em 2020.2, vimos que 68% dos prospects do Presencial mudariam para o EaD para começar os estudos no segundo semestre de 2020, e os prospects do EaD que antes optavam pelo presencial afirmam que pretendem seguir no EAD mesmo se a condição financeira melhorar. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MANTENEDORAS DO ENSINO SUPERIOR - ABMES, 2021, p. 16)
Estima a ABMES que, até 2023, a modalidade assuma 64% do mercado de novas matrículas. Presencia-se, assim, uma tendência que poderá inverter a estrutura da educação superior no Brasil, especialmente considerando o uso intensivo de tecnologias da informação e da comunicação, com seu potencial de alterar ainda mais as dinâmicas internas de funcionamento das organizações, de forma ajustada à entrada do subsistema lucrativo. Os cursos de formação de professores já representam uma evidência dessa tendência, a despeito da previsão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de que a formação inicial de profissionais de magistério deveria dar preferência ao ensino presencial, e apenas subsidiariamente fazer uso de recursos e tecnologias de educação a distância. Hoje, mais de 50% das matrículas das licenciaturas estão em cursos a distância (BRASIL, 2020).
A permissão para que as instituições de educação superior adotassem formato lucrativo marca uma virada na educação superior (Decreto n. 2.207/1997) (BRASIL, 1997). Junto com a “Lei das S.A. da Educação” (Lei n. 9.870/1999) (BRASIL, 1999), as normativas publicadas no final do século XX deram as bases para a entrada de fundos de investimento e novos modelos de gestão e governança. Durante a primeira década do século XXI, uma série de mantenedoras, entidades que detêm uma ou mais instituições de ensino, se organizou em torno de grandes grupos educacionais, que são corporações de direito privado com capital aberto e listado em bolsa. São cinco as companhias de capital aberto na bolsa brasileira que possuem matriz no país: Cogna Educação S.A., Yduqs Participações S.A., Ser Educacional S.A., Ânima Holding S.A., Bahema Educação S.A. (TRICONTINENTAL, 2020). Juntas somam 19% do total de matrículas na educação superior, sendo maior a participação na educação a distância, com 30% dos estudantes matriculados (BRASIL, 2020). Esses grupos começaram a redesenhar o modelo de gestão e governança de suas marcas, com tendência permanente de controle e redução de custos (CALEFFI; MATHIAS, 2017).
Os grupos educacionais e as instituições lucrativas que dominam a EaD, com base no novo modelo de governança adotado, tendem a enxugar o maior fator de custo das instituições de ensino: o professor. A prática pode ser observada na alta relação professor-aluno encontrada em instituições que oferecem, sobretudo, cursos a distância. O Quadro 1 a seguir mostra as dez instituições com maior número de estudantes matriculados na modalidade, os grupos educacionais aos quais pertencem, o percentual de vagas na modalidade e a relação professor-aluno. Juntas, as dez unidades selecionadas concentram 83% do total de matrículas da educação a distância no país (BRASIL, 2020).
GRUPO EDUCACIONAL | NOME DA IES | MATRÍCULAS TOTAL | % EAD | NÚMERO DE DOCENTES | RELAÇÃO ALUNO/PROFESSOR |
---|---|---|---|---|---|
FAEL / VANTA EDUCATION | FAEL | 51.667 | 99,8 | 5.832 | 76 |
UNIASSELVI | UNIASSELVI | 282.694 | 99,7 | 3.047 | 79 |
UNINTER | UNINTER | 183.110 | 98,7 | 529 | 152 |
COGNA | UNOPAR | 375.395 | 96,9 | 283 | 193 |
CESUMAR | UNICESUMAR | 152.316 | 93,8 | 721 | 212 |
COGNA | UNIDERP | 153.071 | 92,5 | 565 | 269 |
YDUQS | ESTACIO RP | 54.635 | 91,3 | 786 | 477 |
CRUZEIRO DO SUL | UNICSUL | 80.646 | 63,6 | 483 | 379 |
YDUQS | UNESA | 241.612 | 55,7 | 262 | 1078 |
OBJETIVO | UNIP | 447.944 | 52,3 | 162 | 318 |
Fonte: Elaboração própria com base no Censo da Educação Superior (BRASIL, 2020).
Três características se destacam no Quadro 1. A primeira pode ser descrita como “estágio puro de oferta”, quando as instituições optam por ofertar, quase que exclusivamente, cursos na modalidade a distância, conforme previsto pelo Decreto n. 9.057/2017 (BRASIL, 2017a). Dentre as maiores empresas do subsistema lucrativo com oferta de cursos a distância, sete possuem percentuais acima de 90% de inscritos na modalidade. A segunda, consequência desse desenho institucional, é a alta relação professor-aluno, bem acima da média nacional de 22 alunos por professor (BRASIL, 2020). A terceira característica é a concentração de mercado em torno de poucas empresas educacionais. No quadro, dois gigantes do mercado educacional se destacam, os grupos Cogna e Yduqs, proprietários de quatro das dez instituições listadas. Existe um movimento de concentração empresarial e centralização financeira que pode ser lido a partir dos longos ciclos de inovações tecnológicas disruptivas que produzem mudanças significativas na composição orgânica do capital, nos níveis salariais e nas formas institucionais, permitindo que as classes dominantes liderem o processo de acumulação e alcancem posições monopolistas em suas regiões, com amplo uso da superexploração das forças produtivas (SANTOS, 2000).
De maneira inversa ao alentado conjunto legal, que progressiva e objetivamente ampliava as possibilidades institucionais quanto à EaD e ao subsistema lucrativo, documentos de força hierárquica inferior, expedidos pelo Conselho Nacional de Educação e pela Câmara de Educação Superior (Parecer n. 564/2015 e Resolução n. 1/2016) sobre Diretrizes e Normas Nacionais para a Oferta de Programas e Cursos de Educação Superior na Modalidade a Distância, são os que abordam o tema profissionais da educação, ainda assim de maneira evasiva e superficial.
A Resolução de 2016 descreve os profissionais da educação, discriminando, em dois parágrafos, os tipos de profissionais. No primeiro, o corpo docente. No segundo, os tutores. Ambos, reitere-se, profissionais da educação. Compõe o corpo docente da instituição de educação a distância
[...] todo profissional, a ela vinculado, que atue como autor de materiais didáticos, coordenador de curso, professor responsável por disciplina, e outras funções que envolvam o conhecimento de conteúdo, avaliação, estratégias didáticas, organização metodológica, interação e mediação pedagógica, junto aos estudantes, descritas no PDI, PPI e PPC.2 (BRASIL, 2016c, p. 04)
E são tutores na modalidade EaD, “[...] profissionais de nível superior vinculados à instituição, que atuem na área de conhecimento de sua formação, como suporte às atividades dos docentes e na mediação pedagógica, junto a estudantes” (BRASIL, 2016c, p. 04).
Quanto ao papel dos tutores, afirma o Parecer n. 564/2015: “[...] no contexto da EaD, os tutores desempenham importante papel no processo educacional e, especialmente, na mediação didático-pedagógica do ensino e aprendizagem, constituindo-se, desse modo, em profissionais da educação” (BRASIL, 2016b, p. 25). Partindo dessa compreensão, admoesta:
[...] um sistema de tutoria necessário ao estabelecimento de uma educação a distância de qualidade deve prever a atuação articulada entre professores e tutores, bem como política definida pelas IES sobre esses profissionais, incluindo as questões atinentes à formação (inicial e continuada), carreira, salários e condições de trabalho. (BRASIL, 2016b, p. 25)
Tais documentos não se fazem acompanhar de previsão coercitiva, impeditiva ou punitiva em caso de descumprimento. Pelo contrário, são diretrizes de ordem prescritiva ou valorativa, prevalecendo o campo semântico do “dever ser” por todo o texto.
É ainda importante destacar que os dados do Quadro 1, tabulados com base no Censo da Educação Superior, informam apenas a quantificação para o docente da disciplina, sem dados para os tutores.3 A despeito de sua importância, pouco se sabe sobre sua forma de atuação e condições de trabalho no principal instrumento de levantamento de dados para a educação superior, o Censo anual organizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), revelando uma forte incoerência do instrumento. Afinal, são ou não são profissionais da educação, e como tal deveriam ser tratados? Apesar de sua ausência no Censo, os tutores são sinalizados de maneira clara em outros instrumentos avaliativos do MEC. A próxima seção se dedica a explorar o estado da arte desses instrumentos.
INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO DO MEC, CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR E TUTORES
O processo de avaliação da educação superior no Brasil se constrói a partir de fins da década de 1970, inicialmente pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com a avaliação da pós-graduação. Nos anos seguintes são criados e aperfeiçoados novos instrumentos. Em 1983, o MEC criou o Programa de Avaliação da Reforma Universitária e, em 1993, o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras. O Exame Nacional de Cursos surge em 1996 e, em 1997, o Exame das Condições de Oferta. Esses são alguns dos antecedentes diretos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído pela Lei n. 10.861/2004 (BRASIL, 2004a) como forma de assegurar o processo nacional de avaliação das instituições, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes.
A finalidade do Sinaes está explicitada na Lei n. 10.861/2004:
[...] melhoria da qualidade da educação superior, a orientação da expansão da sua oferta, o aumento permanente da sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social e, especialmente, a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições de educação superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional. (BRASIL, 2004a)
Com relação às instituições de ensino, declara que objetiva identificar seu perfil e o significado de sua atuação por meio de suas atividades, cursos, programas, projetos e setores, considerando diferentes dimensões institucionais, dentre elas as políticas de pessoal, as carreiras do corpo docente e do corpo técnico-administrativo, seu aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional e suas condições de trabalho.
Finalmente, o Decreto n. 9.235/2017 (BRASIL, 2017c), que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação no sistema federal de ensino, nas modalidades presencial e a distância, em seu art. 1º, dispõe que a avaliação será realizada por meio do Sinaes, com caráter formativo, e constituirá o referencial básico para os processos de regulação e de supervisão da educação superior, a fim de promover a melhoria de sua qualidade. A realização dos processos avaliativos é responsabilidade do Inep.
O Sinaes, conforme referido, está fundamentado nas avaliações institucionais, de cursos e de estudantes. Trata-se de um sistema de avaliação que reúne um conjunto de instrumentos complementares. A avaliação das instituições, interna e externa, considera dez dimensões avaliativas, dentre elas as políticas de pessoal, carreiras dos corpos docente e técnico-administrativo, e a política para ensino, pesquisa, pós-graduação e extensão. Já a avaliação dos cursos é realizada levando em conta três dimensões: organização didático-pedagógica, perfil do corpo docente e instalações físicas.4 A avaliação dos estudantes é realizada pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).
Ainda integram o Sistema outros instrumentos complementares, como o Conceito Preliminar de Curso (CPC), o Índice Geral de Cursos (IGC), o Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD) e as informações do Censo da Educação Superior. O Conceito Enade e o IDD, juntamente com o CPC e o IGC, constituem os Indicadores de Qualidade da Educação Superior.
Passa-se a examinar esse profuso e complexo normativo sobre avaliação da qualidade da educação superior a distância, com foco nos tutores. Pelo já exposto, os elementos político-filosóficos e a pluralidade de instrumentos sugerem zelo do sistema avaliativo quanto a esses profissionais. Mas tomando-se a modalidade de ensino que mais cresce no país e a presença inevitável dos tutores, o que o Sinaes oferece à pesquisa e à própria possibilidade de aprimoramento da qualidade da educação? E o Censo da Educação Superior, como ferramenta de levantamento de dados subsidiária à criação e monitoramento de políticas públicas para a educação superior? A análise será realizada tendo em vista instrumentos do Sinaes e o Censo, na seguinte ordem: 1) atos autorizativos de instituições e cursos; 2) Enade; 3) CPC; 4) IGC; e 5) Censo da Educação Superior.
1) Atos autorizativos de instituições e cursos. Até 2015, todos os instrumentos de avaliação das modalidades presencial e a distância provinham de um único documento. Em 2017, foram separados em dois: a) de autorização e b) de reconhecimento e renovação de reconhecimento, ambos simultaneamente para as modalidades presencial e a distância. Examina-se, a seguir, os instrumentos vigentes, de 2017.
Com relação às instituições, referem-se ao credenciamento, realizado por meio de análise documental e avaliação in loco do Inep, e ao recredenciamento, realizado ao final de cada ciclo avaliativo, levando em conta os indicadores de qualidade resultantes dos processos de avaliação do Sinaes. Já os atos autorizativos dos cursos de graduação se dividem em três procedimentos: autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento. A autorização para abertura de um novo curso avalia a organização didático-pedagógica, o corpo docente e técnico-administrativo e as instalações físicas. O reconhecimento é solicitado quando a primeira turma do novo curso completa entre 50% e 75% de sua carga horária, a fim de avaliar-se o cumprimento do projeto apresentado para autorização. A renovação de reconhecimento é realizada de acordo com o ciclo do Sinaes. Na graduação a distância, os atos autorizativos consistem não apenas no credenciamento e recredenciamento das instituições para oferta de EaD, mas também dos polos de apoio presencial.
Em todos esses instrumentos encontram-se previsões sobre tutores. No ato de autorização, elas aparecem nas dimensões Organização Didático-Pedagógica e Corpo Docente e Tutorial. A primeira dimensão explicita, por exemplo, as “atividades de tutoria”5 (BRASIL, 2017e) e comenta sobre o “número de vagas”, que deve ser “adequado à dimensão do corpo docente e tutorial”, na modalidade a distância.6 Na dimensão Corpo Docente e Tutorial, há indicadores sobre experiência no exercício da tutoria na educação a distância; titulação e formação do corpo de tutores do curso; experiência do corpo de tutores em EaD; interação entre tutores (presenciais e a distância), docentes e coordenadores de curso. Essa dimensão, coerentemente, inscreve o Corpo Tutorial em seu título, uma vez definida a atividade tutorial previamente. Porém, avalia apenas o indicador “Regime de trabalho do corpo docente do curso”, que exclui os tutores, conforme apontado (BRASIL, 2017e).
No Glossário dos Instrumentos de Avaliação Institucional Externa (BRASIL, 2017e), também se encontram as definições de Tutor e de Corpo Docente como agentes distintos. Tutor é o “[...] profissional de nível superior vinculado à IES, que atua na área de conhecimento de sua formação, dando suporte às atividades dos docentes” (p. 53). Observa-se, aqui, uma redução de escopo do trabalho dos tutores em comparação ao descrito na Resolução n. 1/2016 (BRASIL, 2016c), que determina o suporte às atividades docentes mais a mediação pedagógica junto a discentes. Corpo docente, nesse Glossário, refere-se ao conjunto de profissionais “[...] com funções que envolvam o conhecimento do conteúdo, avaliação, estratégias didáticas, organização metodológica, interação e mediação pedagógica, como autor de material didático, coordenador de curso e professor responsável por disciplina” (BRASIL, 2017e, p. 49).
Interessante marcar que se observa a mesma hesitação quanto à definição de “tutoria (na modalidade a distância)” no documento de apresentação do Glossário pelo Inep (BRASIL, 2019c). Enquanto os outros termos são objetivamente definidos, quantificados e prescritos pelo instituto, a tutoria não é definida, e sim aludida, com o recurso a citações de cunho propedêutico. Mais uma vez presenciamos o diáfano, inseguro e impreciso tratamento da atividade.
2) Enade. O segundo instrumento em destaque é o Enade, especialmente o questionário do estudante,7 respondido por discentes de graduação presencial e a distância. Entre as 68 perguntas aparece tão somente uma alusiva à tutoria, a de número 60, indagando se “o curso disponibilizou monitores ou tutores para auxiliar os estudantes” (BRASIL, 2019f). Esse mesmo questionamento surge no questionário dos coordenadores, o que permite observar divergência entre coordenadores e estudantes, talvez por se tratar de resposta meramente impressionista.
Com relação à distribuição de conceitos do Enade entre ensino presencial e a distância, em 2019, confirmando os resultados de todas as edições, os presenciais obtiveram melhores desempenhos. Entre eles, considerando todas as instituições de ensino, 21% obtiveram conceito 4, e 6%, conceito 5. Na educação a distância, 11% alcançaram conceito 4, e 6%, conceito 5. Cerca da metade dos cursos EaD ficou abaixo da média: 46% com conceito 2, e 5% com conceito 1 (TOKARNIA, 2019).8
3) O CPC é o terceiro instrumento destacado. Seu propósito é avaliar os cursos em uma escala de 1 a 5. Para o cálculo, são considerados: o Conceito Enade (desempenho dos estudantes na prova do Enade); o Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado, que mede o valor agregado pelo curso de graduação ao desenvolvimento dos estudantes concluintes, considerando seus desempenhos no Enade e suas características de desenvolvimento ao ingressar no curso de graduação avaliado; o corpo docente (informações do CES sobre o percentual de mestres, doutores e regime de trabalho); e a Percepção dos estudantes sobre seu processo formativo (informações do Questionário do Estudante do Enade). A distribuição desses dados na formação do CPC é apresentada no Gráfico 3.
Nada menos que 1/3 do Conceito Preliminar de Curso, registre-se, advém diretamente da pontuação do corpo docente.
4) IGC. O IGC indica a qualidade da instituição de ensino, baseada na média ponderada dos cursos de graduação e de pós-graduação. Fazem parte do cálculo do índice a média dos CPCs do último triênio do Enade relativo aos cursos avaliados na instituição; a média dos conceitos de avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu atribuídos pela Capes na última avaliação trienal disponível e a distribuição dos estudantes entre os diferentes níveis de ensino - graduação ou pós-graduação stricto sensu.
5) Censo da Educação Superior. A LDB de 1996, em seu art. 9º, dispõe que à União cabe coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação, mas o Censo inicia no ano anterior, com publicação anual. Em sua apresentação, o Censo indica que se trata de um instrumento de “[...] obtenção de dados para a geração de informações que subsidiam a formulação, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas, além de ser elemento importante para elaboração de estudos e pesquisas sobre o setor” (BRASIL, 2019b, p. 3).
No caso em análise, o Censo falha. Contrariamente ao que se esperava pelas menções a tutores nos documentos já examinados, não levanta qualquer informação sobre eles. São absolutamente invisíveis. Na verdade, toda a situação docente é muito mal coletada, conforme será detidamente abordado na próxima seção. No entanto, a docência a distância é ainda mais obscurecida. As “Sinopses Estatísticas” do Censo,9 por exemplo, apresentam cruzamentos de matrículas dos cursos de graduação presenciais - e apenas destes - pela função docente em exercício com especificações de organização acadêmica, Unidade da Federação e categoria administrativa das instituições. No item “Recursos Humanos” das Sinopses, da mesma forma, nada se encontra sobre docentes EaD (BRASIL, 2019b).
Os dados sobre titulação docente (mestres e doutores) e regime de trabalho (tempo integral com dedicação exclusiva, tempo integral sem dedicação exclusiva, tempo parcial e horista) levantados no Censo reaparecerão em outros instrumentos. Ora, esses dados, de tamanha importância para o cômputo dos demais, conforme demonstramos, precisam ser examinados criticamente. Em relação à titulação docente, por força das exigências do MEC e do consequente aumento exponencial da oferta de pós-graduações nos últimos anos, houve um crescimento generalizado de mestres e doutores no país, em todas as áreas. Sobre o regime de trabalho, o mesmo se observa, com a diferença de que o setor público emprega seus docentes, sobretudo no regime integral em universidades, e as instituições do setor privado, concentradas em faculdades e centros universitários, agrupam seus docentes majoritariamente em regimes de trabalho parcial ou horista (VARGAS; ZUCCARELLI; HONORATO, 2021). De qualquer forma, sem menosprezá-los, considera-se que esses indicadores refletem, antes de tudo, exigências do Ministério, embora, como se verá a seguir, representem o segundo indicador mais elevado na composição do CPC, com efeitos no IGC.
Por outro lado, se fosse considerado o quantitativo de tutores nos cursos, e sua relação com o regime de trabalho e os discentes atendidos, certamente os resultados revelariam outra realidade, altamente comprometedora da qualidade da educação superior que se persegue. Conforme apontado, o Censo da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed) realizado anualmente oferece um vislumbre dessa realidade, mesmo assim com muita imprecisão, seja pela baixa representatividade das instituições respondentes, seja pela modificação dos Censos ao longo dos anos, em detrimento de dados quantitativos sobre tutores. Vejamos: considerando-se a série 2014-2018, temos: de 2014 a 2016, os censos apresentaram quantitativos de docentes e de tutores, e faixas salariais pagas a eles. Em 2017 e 2018, essas informações desaparecem, dando lugar a outra natureza de dados, como o que as instituições fazem para atrair bons tutores, o problema da evasão relacionado ao trabalho do tutor e a formação continuada de professores e de tutores10 (ABED, 2019).
Parece importante indagar, aqui, se não estamos diante de uma mensuração que gira em círculo vicioso. Ou seja: sobre instrumentos de avaliação falhos, como a avaliação do corpo docente ou as respostas do questionário Enade, criam-se outros indicadores, que ao incorporá-los, escamoteiam e se desviam daquelas falhas. Talvez, por isso, pesquisas no Cadastro do e-MEC (2020) sobre avaliação de cursos a distância tragam com padrão o seguinte resultado: o CPC dos cursos é maior que as notas do Enade e do IDD, de alguma forma tornando mais elástica e enviesada a informação.
A fluidez das regras e a fragilidade dos dados coletados na avaliação da educação a distância, aqui destacados, estão presentes no estudo encomendado pelo MEC, pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O relatório “Repensando a garantia de qualidade para o ensino superior no Brasil” (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO - OCDE, 2018) pontua, sobre educação a distância, que apesar de alguns pontos fortes, há preocupações sobre as regras que governam os provedores e programas de educação a distância, destacando:
No entanto, mudanças legislativas recentes facilitaram o estabelecimento de um grande número de “polos” de educação a distância (até 250 por ano) em vários locais, sem a necessidade de as instalações de cada local serem inspecionadas pelos avaliadores do Inep. Algumas partes interessadas no Brasil estão preocupadas que isso irá promover a expansão descontrolada da educação a distância, sem garantias de qualidade adequadas. Além disso, os critérios específicos de avaliação das instituições e programas de educação à distância usados atualmente são poucos e subdesenvolvidos à luz dos riscos associados a esse tipo de oferta (interação limitada entre equipe e alunos, risco de estudantes isolados, desafios da organização, avaliações rigorosas e exames justos, etc.). (OCDE, 2018, p. 23)
Pareceres disponíveis no site do MEC ilustram os desafios em garantir uma educação de qualidade na modalidade. É o caso do pedido de autorização de funcionamento de um curso a distância de uma Faculdade de Tecnologia, indeferido pelo Conselho Nacional de Educação, pela alta relação entre o número de docentes e de estudantes (3 mil alunos por docente) e pela sobreposição de funções, uma vez que os mesmos profissionais foram apresentados como tutores e coordenadores do curso (BRASIL, 2017d).
A próxima seção apresenta algumas hipóteses para a opacidade dos tutores no Censo da Educação Superior. Aborda a discussão sobre desagregação e especialização das funções como tendência do trabalho docente e discute em que medida o domínio do setor privado pode ser associado à ausência de dados essenciais para o mapeamento das condições de funcionamento da educação superior.
TUTORES INVISÍVEIS E DESAGREGAÇÃO DOCENTE
Conforme visto, o subsistema lucrativo administra a maior parte das vagas na educação a distância, o que coloca questões importantes quanto à qualidade da educação terciária, especialmente por conta das práticas de gestão e governança que adotam, com tendência permanente de enxugamento dos custos. E como o maior fator de custo das instituições de ensino é o docente, um novo movimento surge para adaptar as condições de atuação desse profissional com base na lógica que opera nas empresas educacionais.
Vale ressaltar que são poucos os países que permitem que as instituições de educação superior adotem o formato lucrativo. Na América do Sul, o Peru é o único país que aceita o formato. Em muitos países da Ásia e África, o formato lucrativo é permitido apenas para cursos profissionalizantes com percentuais baixos de matrícula. Nos Estados Unidos , observa-se crescimento desse formato, embora o percentual de matrículas ainda seja baixo (VERHINE; DANTAS, 2017).
A nova face da docência está diretamente ligada a esse processo. O tutor é o profissional que surge da separação da função docente tradicional, envolvida em torno do tripé ensino, pesquisa e extensão. A chamada desagregação da função docente tem a ver com uma variedade de forças associadas à modernização da educação superior, especialmente relacionada ao crescimento do uso das tecnologias digitais, e se refere à substituição do trabalho acadêmico por funções especializadas, notoriamente em contextos de crescimento do subsistema lucrativo (MCCOWAN, 2017). Dada a natureza e magnitude dessa transformação, alguns autores têm chamado a rápida substituição da tradicional função docente de “revolução silenciosa”, indicando que a fragmentação envolve também desqualificação e substituição da mão de obra por trabalhadores semiqualificados ou sem qualificação (FINKELSTEIN; SEAL; SCHUSTER, 1998). Essa noção tem sido empregada de maneira mais ampla para tratar da reorganização do modo de produção capitalista e da busca por aumentar a eficiência e a produtividade do trabalhador por meio da flexibilização da divisão do trabalho. No Brasil, a reforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017 - BRASIL, 2017b) tem sido interpretada como uma dessas medidas que favorecem as novas formas de vinculação trabalhista. No campo educacional, seus efeitos podem ser sentidos no aumento da contratação de docentes como pessoas jurídicas e, até mesmo, no embate ainda inconclusivo da possibilidade de terceirização da atividade. As consequências do processo se refletem na superexploração e enxugamento da mão de obra,11 com efeitos diretos na qualidade do ensino.
Assim, entende-se que o debate sobre o papel do corpo docente, em especial do tutor, se coloca como uma das medidas centrais para a construção da qualidade da educação terciária, o que implica estabelecer, entre outras questões, a visibilidade desses profissionais.
Um primeiro movimento em direção à atualização do Censo é incluir uma variável sobre os profissionais de ensino que atuam nas instituições, se docente ou tutor. Outras variáveis como o local de residência do docente, a região geográfica de atuação, o número de turmas e o de disciplinas que lecionam permitirão conhecer melhor as características socioeconômicas dos docentes e suas condições de trabalho. Todas essas variáveis estão presentes no Censo da Educação Básica, também organizado pelo Inep.
De igual maneira, é fundamental para o mapeamento das condições de trabalho docente e da qualidade do ensino a incorporação de medidas sobre formação do tutor, tempo de experiência no exercício da profissão, tipo de admissão, vínculo empregatício (pessoa física ou pessoa jurídica) e remuneração referente ao período ou ano trabalhado.
Destaca-se a diferença de apuração das informações entre os dois instrumentos produzidos pelo Inep porque se trata de um desnível de coleta que pode encontrar razões na relação público-privada dos dois segmentos. A educação básica no Brasil é majoritariamente pública, enquanto a educação superior é fundamentalmente privada. No primeiro caso, são 80% de matrículas em escolas públicas, enquanto no segundo, verifica-se 75% das matrículas em instituições do setor privado. Do ponto de vista da atuação dos grupos empresariais no Estado brasileiro, é amplo o número de entidades, fundações e empresas que costuram uma relação prática com a gestão pública, atravessando transversalmente gestões de diferentes partidos (FONTES, 2017). A atuação desses grupos tem permitido políticas públicas e regulações mais favoráveis ao setor e, nesse caso, a ausência de informações mais apuradas sobre o profissional que representa o maior custo das instituições se coloca como seu interesse direto.
É fundamental, portanto, lançar luz sobre a importância de que os próximos censos incorporem variáveis mais detalhadas acerca da condição de trabalho docente, incluindo a figura do tutor. Tendo em vista o modelo de avaliação em curso, esse passo se coloca como essencial para a avaliação da qualidade das instituições.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho apontou para a importância da incorporação de novas variáveis no Censo da Educação Superior considerando a reorganização da educação terciária, com destaque para a ampla atuação do subsistema lucrativo e a ampliação de vagas, cursos e matrículas na modalidade a distância. Essa é a modalidade que mais cresce no país, em ritmo mais acelerado nos últimos anos, impulsionado pelo clima regulatório favorável que, entre outros, possibilitou que pela primeira vez na história da educação superior brasileira houvesse maior número de vagas ofertadas e maior número de ingressantes do setor privado na modalidade. A pandemia de Covid-19 veio para acelerar um processo já em curso na educação terciária do país.
Ao mesmo tempo, a permissão para que as instituições assumissem o formato lucrativo e operassem na bolsa de valores criou um novo movimento para o mercado educacional. Diversas instituições passaram a se organizar em torno de mantenedoras que se juntam em grupos educacionais de direito privado com capital aberto, redesenhando o modelo de gestão e governança de suas marcas, com tendência permanente de redução de custos, concentração de mercado e centralização financeira.
Destacar as práticas de gestão do subsistema lucrativo é atentar para os movimentos recentes e simultâneos de flexibilização dos vínculos trabalhistas e das formas de atuação profissional. Ainda que se trate de um movimento mais geral de reorganização do capitalismo, no campo educacional implica a substituição da mão de obra por trabalhadores com menor qualificação e piores condições de trabalho, com impactos diretos na qualidade da formação terciária.
A desagregação da função docente em torno de práticas especializadas, relacionadas ao crescimento do uso das tecnologias digitais e das novas formas de gestão e governança das empresas educacionais, coloca questões importantes para a avaliação educacional. É por isso que conhecer a realidade dos profissionais que atuam em funções cada vez mais especializadas da docência é essencial para o monitoramento da qualidade da educação. No entanto, o Censo da Educação Superior, principal base de dados para compor os indicadores de qualidade preconizados pelo Ministério da Educação e também importante ferramenta para pesquisadores e gestores educacionais interessados nas dinâmicas da educação terciária, falha ao não trazer informações sobre os tutores. Também falha ao apresentar poucas informações sobre a atuação dos docentes, se limitando a parcos dados socioeconômicos e de atuação profissional. A gravidade da situação se revela na medida em que esses frágeis dados sobre docentes - e inexistentes sobre tutores - subsidiarão a construção de indicadores de qualidade, como o Conceito Preliminar de Curso e o Índice Geral de Cursos. Como vimos, a composição docente constitui o segundo indicador mais elevado na composição do CPC, que por sua vez repercutirá no IGC.
A invisibilidade dos tutores e as poucas informações disponíveis no Censo da Educação Superior estão relacionadas com o processo aqui descrito de ampla participação do subsistema lucrativo e de suas formas de atuação junto ao Estado nacional. Um dado relevante para essa hipótese é a comparação com a coleta de dados da educação básica. Nesse caso, considerando as particularidades de cada nível de ensino, chama a atenção o grau de detalhamento do Censo da Educação Básica. Ambos os censos são organizados pelo Inep, e muito provavelmente expressam as relações de poder dos diferentes agentes institucionais, segundo a natureza administrativa e o nível de ensino, implicados no detalhamento do instrumento.
O crescimento do ensino a distância, a concentração do mercado educacional em torno de poucos grupos educacionais e os novos modelos de governança adotados constituem elementos centrais para repensar os instrumentos avaliativos da educação terciária. Relembremos todo o arcabouço e a estrutura do Sinaes em direção à proposição de avaliações formativas e contributivas ao aprimoramento da qualidade da educação superior, em um país com oportunidades e retornos educacionais tão desiguais.
Assim, entende-se que a incorporação das variáveis sugeridas sobre o corpo docente, em especial sobre o tutor, se coloca como uma das medidas centrais para a construção e a avaliação da qualidade da educação superior, o que implica estabelecer, fundamentalmente, a visibilidade desses profissionais. Isso é importante porque a nova face da docência envolve justamente o profissional que aparece em maior número na modalidade de ensino que mais cresce no país e que tende a se tornar a principal via de acesso à educação terciária.