INTRODUÇÃO
Como parte da tendência mundial, a questão da avaliação dos sistemas educacionais ocupa um lugar privilegiado nas discussões da política educacional brasileira, desde os anos de 1990, resultando na consolidação de um sistema de avaliação nacional que abarca a educação básica e o ensino superior, com destaque para o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Seguindo o mesmo modelo, sistemas estaduais de ensino da educação básica implantaram seus sistemas de avaliação educacional, movimento que consolidou a centralidade da avaliação na condução das políticas educacionais no nosso país.
Destaca-se, nesse contexto, que, em momentos de maior exigência de controle sobre as políticas educacionais, o uso de avaliações externas aparece atrelado a estratégias de prestação de contas. Nesse sentido, Afonso (2001, p. 25) argumenta que:
As mudanças das dimensões do Estado sinalizam a transição de uma forma de regulação burocrática e fortemente centralizada para uma forma de regulação híbrida que conjuga o controle estatal com estratégias de autonomia e de auto-regulação das instituições educativas.
Em meio a esse debate, emerge um discurso que articula avaliação, responsabilização, regulação e accountability, que vai se expandindo e se fortalecendo no interior das políticas para educação e, ao mesmo tempo, se tornando cada vez mais complexo. Isso porque o referido discurso aparece na literatura com sentidos e significados diferentes.
Partindo desse contexto, nosso objetivo consistiu em analisar os sentidos discursivos do termo accountability a partir de uma amostra de trabalhos que se dedicaram a pesquisar políticas de avaliação da educação básica no Brasil. Consideramos que, à medida que se amplia a adoção de políticas de avaliação na educação básica nos estados subnacionais brasileiros,1 diversos pesquisadores se voltam para estudá-las de forma mais sistemática; por isso, inferimos, nesta pesquisa, o fortalecimento da discussão sobre accountability.
É importante destacar que as políticas de educação são tratadas como componentes do conjunto das políticas públicas de corte social, entendidas como a expressão da ação - ou não ação - social do Estado, cujo referente é a máquina governamental, no movimento de regulação do setor educacional em interação com distintos atores ou sujeitos coletivos constitutivos desse processo social (AZEVEDO, 1997; MULLER; SUREL, 2002).
A política educacional, nessa perspectiva, insere-se nos processos sociais de debate e de disputa de um projeto de sociedade. Consequentemente, a participação é fundamental na constituição da política pública, mas só pode ser efetivada/manifestada discursivamente. Assim, “[...] os objetivos e todo detalhamento das políticas públicas não podem ser expressos a não ser no e por meio do discurso. Portanto, não existem políticas públicas fora do discurso” (GOMES, 2011, p. 22-23).
Diante dessa concepção, refletimos sobre o discurso como fenômeno político que, nas sociedades contemporâneas, assume fundamental relação com os processos de conservação e de transformação social. Nesse sentido, temos trabalhado com as categorias da Teoria Social do Discurso, de Norman Fairclough (2001), a qual considera o discurso e a prática social dialeticamente relacionados. Isto é, o discurso é socialmente constitutivo da prática social, ao mesmo tempo em que é tanto moldado como restringido pela estrutura social. Assim, desenvolvemos o estudo com o aporte teórico-metodológico da Análise Crítica do Discurso (ACD), proposta pelo autor.
Os textos que compõem o corpus da pesquisa tomaram como objeto as políticas de avaliação e de accountability educacional. Para selecioná-los, acessamos o Portal de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e utilizamos os seguintes descritores: accountability, prestação de contas, responsabilização, avaliação, sistema(s) de avaliação, política(s) de responsabilização, bônus e bonificação para a realização da busca. Assim, destacou-se o período de 2013 a 2016, por apresentar um maior número de produções acadêmicas, compreendendo 16 teses e 19 dissertações, que passaram a constituir nosso corpus.
Este trabalho é composto por três seções, além desta introdução. Primeiro, discute-se o panorama teórico no qual se fundamenta a pergunta de pesquisa e a análise proposta: os sentidos discursivos do termo accountability educacional. Em seguida, apresenta-se a análise do discurso realizada, e, por fim, na última seção, os resultados das análises empreendidas.
O CONCEITO DE ACCOUNTABILITY EM EDUCAÇÃO: ENTRE OS PRESSUPOSTOS NEOLIBERAIS E DEMOCRÁTICOS
As políticas educacionais têm sido demarcadas por processos de accountability há mais tempo nos países centrais, como nos Estados Unidos da América (EUA) e na Inglaterra, que ocupam posições de protagonismo no cenário político-econômico e sociocultural no mundo. Mais recentemente isso tem ocorrido nos países ibero-americanos, a exemplo do Chile, referência para outros países (VIANNA, 2005; AFONSO, 2000, 2010; BROOKE, 2006; FREITAS, 2013), assumindo feições próprias de acordo com o contexto histórico político de cada nação e dos efeitos transnacionais do mundo contemporâneo globalizado. Sobre isso, Afonso (2010, p. 147-148) esclarece que:
[...] as políticas de accountability em educação, que contam já com um percurso relativamente longo em alguns países, têm sido, no entanto, marcadas, em muitos outros contextos, por oscilações mais ou menos acentuadas, a que não são indiferentes os regimes políticos, a natureza dos governos e os dinamismos emergentes das sociedades civis nacionais e transnacionais. Nestes processos não é de estranhar que surjam fragilidades em termos da construção e consolidação de uma cultura social e política democrática de accountability, sobretudo quando é ainda relativamente recente a transição para regimes onde a sociedade passou a exigir uma ampla concretização de direitos cívicos, políticos, sociais, econômicos e culturais.
Diante da polissemia do termo accountability, vários sentidos lhe são atribuídos. A dimensão da responsabilização tem assumido primazia nos debates sobre as políticas de avaliação e nos processos de accountability no Brasil, mesmo havendo uma compreensão de que o termo pressupõe também o conceito de prestação de contas. Inclusive, essas políticas educacionais têm recebido a denominação de “políticas de responsabilização”, concebida
[...] como uma tentativa de melhorar os resultados das escolas mediante a criação de consequências para a escola ou para professores individuais, sejam elas materiais ou simbólicas, de acordo com o desempenho dos alunos medido por procedimentos avaliativos estaduais ou municipais. (BROOKE, 2008, p. 94)
Esse autor tem respaldado a concepção de accountability educacional como “políticas de responsabilização”, e segue a classificação formulada por Anderson (2005), que entende a responsabilização em três modalidades, tomando como parâmetros o viés institucional (escola) e o comportamental (professor). Segundo os autores, as duas formas de responsabilização (a burocrática e a de reconhecimento profissional social) não geram consequências reais ou simbólicas (sistemas low stakes). Já a terceira forma de responsabilização - quando o professor é responsabilizado pelas autoridades e pelo público em geral pelo rendimento dos alunos, e essas consequências “são associadas às medidas usadas para aferir o desempenho dos alunos” (BROOKE, 2006, p. 380) - é chamada de sistemas high-stakes, exemplificada pela adoção de prêmios ou bônus aos professores.
Em perspectiva semelhante, ao estudarem as consequências das políticas de responsabilização na educação para o currículo escolar, Bonamino e Sousa (2012) apresentam três gerações de políticas educacionais, tomando como elementos interconectados a avaliação de rendimento escolar e as políticas de responsabilização, compreendidas como ações que responsabilizam a equipe escolar. A primeira geração corresponde à “avaliação diagnóstica da qualidade do ensino”, considerada uma política de responsabilização branda, “sem atrelar prêmios ou sanções a esses resultados, como é característico das políticas de responsabilização” (BONAMINO; SOUSA, 2012, p. 8), apresentando, como exemplos dessa geração, a Prova Brasil e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
As autoras supracitadas analisam as políticas educacionais contemporâneas por meio da ocorrência de consequências: fracas e fortes. Assim, compreendem as duas outras gerações articuladas às dimensões da avaliação e da responsabilização, aproximando-se da percepção trazida por Brooke, ao apresentarem os sistemas high-stakes como aqueles com consequências reais ou simbólicas à escola e seus profissionais. Nessa perspectiva, para Bonamino e Sousa (2012), as avaliações compostas por testes padronizados têm favorecido a implementação de políticas de responsabilização que imputam consequências fracas e fortes, criando uma situação de estreitamento curricular, tendo em vista a pressão, inculcada nos dirigentes escolares e nos professores. Para as autoras, essa pressão pelos resultados frente às metas estabelecidas tem gerado uma concentração das atividades educativas na preparação dos alunos em função dos conteúdos dos testes, negligenciando o currículo mais global.
Freitas (2013, p. 359), no entanto, é fiel combatente dessa ideia: “não existe para mim essa ideia de meia responsabilização e responsabilização plena ou responsabilização light e responsabilização dura”. Embora o autor refute essa classificação do termo “responsabilização”, ele remete a sua definição aos três elementos que caracterizam um sistema de accountability, inspirado em Kane e Staiger (2002). Ou seja, recorrendo a elementos como a aplicação de testes (a estudantes e a professores), a divulgação pública do desempenho e o estabelecimento de recompensas e de sanções, aproximando-se daquela visão que dá primazia à dimensão da responsabilização, admitindo quase que uma correspondência com um sistema de accountability (FREITAS, 2013). Contudo, o autor amplia o debate trazendo à discussão o contexto neoliberal instalado no Brasil, com a implantação de políticas educacionais verticalizadas, em consonância com os países centrais, como EUA e Inglaterra, esclarecendo que:
[...] obviamente, não se trata de desresponsabilização, mas de outras formas de responsabilização que existem, não tão verticalizadas, mas combinadas com ações horizontalizadas. Mesmo porque, temos, na própria lógica de medição que valorizamos, com tecnologia de ponta, dentro do próprio Pisa2, no topo do Pisa, países que são muito bem avaliados e que não adotam uma política de accountability. Então, não estamos condenados a uma política de accountability verticalizada. Há outras opções, e elas têm sido bem avaliadas também dentro do próprio Pisa. (FREITAS, 2013, p. 350)
Na visão de Freitas (2011), a educação contemporânea é traçada pelo viés neotecnicista, que, além de utilizar o universo epistêmico e conceitual do tecnicismo clássico, como a racionalidade técnica e as concepções advindas da psicologia behaviorista, da econometria, das ciências da informação e de sistemas, agrega a teoria da “responsabilização”, que também pode ser chamada de “meritocracia”, lançando mão de uma racionalidade na forma de standards das performances dos desempenhos das escolas e dos estudantes, medidos por meio de testes padronizados. O autor alerta para a distorção do uso dos testes na conjuntura atual da educação brasileira no que diz respeito à formulação de políticas de avaliação:
Os testes têm seu lugar no mundo educacional como uma ferramenta de pesquisa. O grave problema é que eles foram sequestrados pelo mercado e pelo mundo dos negócios, e nele as suas naturais limitações são ignoradas. Como vimos anteriormente, os testes associam à sua função de medir, o papel de controle ideológico dos objetivos da educação - mais pelo que excluem do que pelo que incluem - e têm o objetivo de controlar os atores envolvidos no processo educativo. Sem testes, não há responsabilização e meritocracia - teses fundamentais do mercado. (FREITAS, 2011, p. 10)
Parecem-nos relevante as considerações de Freitas (2011) a respeito do controle ideológico dos objetivos da educação e dos profissionais que atuam nela, no sentido de buscar avançar na compreensão dos pressupostos teórico-conceituais e dos princípios ético-políticos que norteiam a política educacional no Brasil contemporâneo, ampliando-se a análise restrita sobre as técnicas de medição ou sobre as estratégias de controle. Vale aqui salientar, segundo Afonso (2010, p. 148), que:
[...] os discursos que reclamam a introdução de mecanismos de accountability não são necessariamente democráticos, ou não são sempre motivados por razões explicitamente democráticas. Há também demandas que são influenciadas por razões mais instrumentais e de controle, ou que visam atender a lógicas que alimentam ou exacerbam desigualdades competitivas, ainda que, como acontece frequentemente em educação, pretendam justificar-se como sendo uma consequência compensatória inevitável da perda de poder, nomeadamente do Estado, em decorrência de processos de autonomia e/ou de descentralização. Estas perspectivas e lógicas contraditórias, com ênfases e consequências diversificadas, atravessam igualmente e de forma crescente as políticas públicas educacionais.
Campos (1990), tendo como referência os apontamentos de Frederich Mosher, compreende que o conceito de accountability, traduzido convencionalmente como responsabilização, tem várias acepções. Assim, a autora apresenta duas dimensões da responsabilidade: a subjetiva e a objetiva. A primeira diz respeito à responsabilidade internalizada no próprio sujeito, enquanto a segunda requer uma exigência externa, imbuída do caráter de obrigatoriedade. Acrescenta a autora:
Se esta não é sentida subjetivamente (da pessoa perante si mesma) pelo detentor da função pública, deverá ser exigida “de fora para dentro”; deverá ser compelida pela possibilidade da atribuição de prêmios e castigos àquele que se reconhece como responsável. (CAMPOS, 1990, p. 33)
A preocupação de Campos (1990) com o conceito de accountability aproxima o termo à questão dos direitos do cidadão, à democracia e ao controle burocrático, mas também à transparência e à autonomia dos agentes e das instituições públicas.
Pinho e Sacramento (2009) comungam da ideia de que não há uma definição única do termo accountability em português, aludindo à bidimensionalidade (responsabilização/prestação de contas) do conceito, compreendendo que
[...] accountability encerra a responsabilidade, a obrigação e a responsabilização de quem ocupa um cargo em prestar contas segundo os parâmetros da lei, estando envolvida a possibilidade de ônus, o que seria a pena para o não cumprimento dessa diretiva. (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1348)
Schedler (1999) relaciona o termo accountability ao exercício do poder, sugerindo que ele atua como uma palavra mágica que, nas últimas décadas, tem sido central para a preocupação com o controle e o monitoramento dos governos e das instituições públicas. Nessa perspectiva, o autor destaca que o termo se relaciona às formas de como prevenir, combater e corrigir as distorções do poder político, sendo comumente traduzido por “prestação de contas”, mas também por “responsabilização”.
Segundo Afonso (2009), a partir de apontamentos de Schedler (1999), o termo accountability conjuga em sua estrutura três dimensões substantivas: a informação, a justificação e a imposição ou sanção. Argumenta o autor que “[...] a prestação de contas pode ser o pilar que sustenta ou condensa as duas primeiras: o direito de pedir informações e de exigir justificações” (AFONSO, 2009, p. 59). Ele acrescenta ainda que as duas dimensões da prestação de contas - informar e justificar - prescindem de regulamentos, legais ou não, socialmente aceitáveis, que referendem a obrigatoriedade de atender a determinada solicitação. Portanto, a prestação de contas “[...] pode, assim, ser definida, em sentido restrito, como obrigação ou dever de responder a indagações ou solicitações (answerability)”3 (AFONSO, 2009, p. 59). Importa também destacar que, na visão de Schedler, a prestação de contas, imbuída de uma dimensão informativa e de uma dimensão argumentativa, pode “[...] num certo sentido, ser concebida como uma actividade comunicativa ou discursiva porque pressupõe uma relação de diálogo crítico e a possibilidade de desenvolver um debate público aprofundado” (AFONSO, 2009, p. 59).
Por outro lado, a concepção de prestação de contas assume uma feição, além da “[...] obrigação ou dever de dar resposta (answerability), não é apenas uma actividade discursiva, mais ou menos benévola, que se esgota na informação e na justificação; ela contém também uma dimensão impositiva, coacitiva ou sancionatória (enforcement)”4 (AFONSO, 2009, p. 59), denominada pilar da responsabilização.
Em relação a isso, a avaliação seria o primeiro pilar da accountability; contudo, é necessário considerar os diferentes modelos e as teorias, de caráter heterogêneo e muitas vezes contraditórios, da avaliação (AFONSO, 2009, 2012). Desse modo, é possível defender uma “[...] conceitualização progressista e alternativa de accountability”, exemplo que pode ser aplicado à “[...] avaliação democrática deliberativa (deliberative democratic evaluation)”, abordagem que faz alusão ao que preconizam Howe e Ashcraft (2005 apud AFONSO, 2012, p. 478). Nesse sentido, referenciam-se os princípios da inclusão, do diálogo e da deliberação, que anunciam a complexidade e a interconexão dos três princípios: “[...] como lembram Howe e Ashcraft (2005), sendo difícil perceber onde termina a inclusão e começa o diálogo, também é difícil perceber onde termina o diálogo crítico e começa a deliberação” (HOWE; ASHCRAFT, 2005 apud AFONSO, 2012, p. 478).
Além disso, destaca-se o sentido público da avaliação: quando prevê processos de decisão coletiva, “[...] supõe critérios e valores públicos” (HOUSE, 1994, p. 171,5apudAFONSO, 2012, p. 479). Segundo Afonso (2012, p. 479) “[...] o mesmo deverá acontecer em relação à prestação de contas e à responsabilização”.
Assim, há um deslocamento do conceito de accountability de um contexto neoliberal e conservador que se impõe na atualidade a processos democráticos e alternativos, contemplando os três pilares (avaliação, prestação de contas e responsabilização) integrados e baseados em princípios, processos e práticas participativos e formativos, pautados pela transparência e pelo direito à informação (AFONSO, 2010).
Nessa perspectiva, ancorados nas abordagens teórico-conceituais acerca da accountability educacional, apresentaremos, na próxima seção, uma análise crítica dos discursos que compõem nosso corpus de pesquisa.
TRAÇOS DISCURSIVOS ACERCA DE ACCOUNTABILITY EDUCACIONAL
Independente da diversidade dos objetos de estudo do material da amostra e de suas abordagens metodológicas, o que nos interessou de fato foram os aportes teóricos que indicavam os significados do conceito de accountability, de modo que nossa primeira constatação, não sem surpresa, é que os trabalhos relacionam esse termo ora à prestação de contas, ora à responsabilização, destacando-se o uso deste último sentido. Mas também há trabalhos que vinculam a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização ao conceito de accountability como elementos integrados e inseparáveis.
Assim, a partir da análise de 35 trabalhos acadêmicos, sendo 16 teses e 19 dissertações, constatamos que 16 trabalhos adotam o significado de accountability como responsabilização ou política de responsabilização, representando um percentual de 45,7% dos trabalhos analisados. Ainda, percebemos que 12 deles oscilam entre a concepção de prestação de contas e a de responsabilização, correspondendo a um percentual de 34,3%. Por fim, identificamos que as concepções que compreendem a accountability como uma articulação entre a avaliação, a prestação de contas e a responsabilização estão expressas em 20%, compreendendo sete trabalhos.
De todo modo, foi possível observar que a força do discurso sobre a accountability como responsabilização se faz presente nos trabalhos estudados, na esteira de um dos autores mais citados, Nigel Brooke, a exemplo do seu artigo tão conhecido no meio acadêmico “O futuro das políticas de responsabilização educacional no Brasil” (2006). O trabalho concebe a política de accountability como de responsabilização, evidenciando sua estreita relação com a avaliação em larga escala, realizada nacionalmente e por estados subnacionais, que, a partir dos resultados dos sistemas de avaliação estaduais e municipais, responsabiliza os profissionais da educação do chão da escola, debate que realizamos na seção anterior.
Autores da área da administração pública também são citados nos textos analisados, como Campos (1990), Pinho e Sacramento (2009), Abrúcio (2007), Costa (2010) e Medeiros (2006), bem como Filgueiras (2011), da área da ciência política, que entendem accountability como prestação de contas no âmbito da responsabilidade do servidor público e dos processos de democratização da sociedade. Os teóricos relacionam accountability à transparência, à participação e ao controle social. Fernandes e Gremaud (2009), autores da área da Economia Política, também citados, explicitam uma tensão na compreensão do termo accountability como responsabilização, estabelecendo uma relação diferencial entre responsabilidade, ou ter de prestar contas, e a culpabilização dos agentes escolares.
A questão da tradução do termo accountability é um dos fatores que tem sido mencionado na produção do conhecimento pesquisado. Embora muitas vezes afirme-se a existência de um consenso entre autores brasileiros de que seria sinônimo de responsabilização, há desconfianças de que o significado de accountability seja mais amplo, como afirma Cunha (2015, p. 7, grifos nossos):
O termo accountability não possui uma tradução exata na Língua Portuguesa, dessa forma, estabeleceu-se um consenso sobre o termo responsabilização. Porém, na verdade, o conceito de accountability é mais amplo e envolve outros parâmetros para além da responsabilização.
Não obstante esse consenso seja negado por outros autores, enfatiza Pereira (2014, p. 64) que “[...] o termo accountability não tem uma tradução exata para o português, embora alguns autores, ainda que sem consenso, o empreguem como sinônimo de responsabilização”.
Essa inconsistência apresentada nos discursos (“existe consenso”, “não existe consenso”, “não existe tradução exata”, “tem sido frequentemente empregado”, “tem sido traduzida”), como também a menção de que o termo seja mais amplo, demonstra uma disputa por uma hegemonia acerca da definição de accountability. O que nos faz supor que a concepção do termo na literatura brasileira não apresenta apenas um efeito discursivo; ao contrário, diferentes discursos, por vezes complementares, revelam que esse seria um debate ainda em construção. No entanto, consideramos salutar a observação de Afonso (2018, p. 10), ao sugerir que
[...] grande parte dos autores (principalmente lusófonos e ibero-americanos) parece aceitar acriticamente que o conceito de accountability seja traduzido de forma redutora (ora como prestação de contas, ora, mais frequentemente, como responsabilização), acabando por ser usada, pragmaticamente, uma ou outra tradução, consoante às necessidades da argumentação.
Destacamos também que há uma recorrente referência a experiências internacionais, fazendo comparação entre a política de accountability brasileira com a política de outros países, sendo a experiência dos Estados Unidos a mais enfatizada, como, por exemplo, em Cerdeira (2015), Assis (2014), Horta Neto (2013), Furtado (2015), Soares (2016), Cunha (2015), Pereira (2014), Lopes (2013), Lobo (2013), Costa (2016), Bergo (2016) e Carvalho (2014).
Esse movimento de comparação revela os efeitos da globalização, por um lado, do processo de definição das políticas, e, por outro, do processo de produção do conhecimento, elementos intrinsecamente conectados. É um movimento de influência que vem sendo deflagrado e que acaba contribuindo para firmar a avaliação e a accountability como elementos imprescindíveis para a melhoria da qualidade da educação.
Pereira (2014), com base nos estudos de Andrade (2008), descreve algumas características da política de accountability na educação norte-americana - definir padrões mínimos, realização de testes, divulgação dos testes, melhoria de desempenho e responsabilização dos profissionais da educação pelos resultados - e afirma que esses “[...] são os pilares sobre os quais se assentam a accountability nas escolas americanas e que influenciaram o desenho de modelos de accountability nos demais países” (PEREIRA, 2014, p. 67).
Semelhante, ou talvez mais contundente, Costa (2016, p. 25) afirma que “[...] o sistema de incentivos ao alcance de metas nas avaliações externas, tendo como recompensa o bônus, assemelha-se à ideologia de accountability (responsabilização) norte-americana, premiando os profissionais pelo desempenho dos alunos”. De mesma opinião, Bergo (2016, p. 8) assevera que “[...] as políticas de bonificação estão atreladas a um movimento mundial, em que se destacam os EUA e a Inglaterra como precursores do desenvolvimento de tais políticas de bonificação salarial”. É esse outro efeito discursivo que circula no debate sobre a política de avaliação e de accountability e que, associado à responsabilização, relaciona-se ao grau de impacto às escolas e aos educadores, frequentemente atrelado à bonificação ou à premiação por desempenho como um dos elementos da regulação do trabalho docente.
Esse movimento, revelado nos textos analisados, diz respeito aos estudos que abordam as políticas estaduais ou municipais. As pesquisas vão se basear no debate sobre accountability para analisar tais políticas. Nesse campo, Cerdeira (2015) considera a Prova Rio6 como uma política de responsabilização e afirma que ela é de média consequência - estabelece metas, divulga resultados, prevê premiação -, porém não prevê punição e amplia essa visão para o âmbito nacional: “[...] nesta perspectiva, podemos supor também que atualmente não existem políticas de altas consequências no contexto brasileiro” (CERDEIRA, 2015, p. 51).
Pereira (2014), investigando a incidência de política de responsabilização na esfera municipal no estado do Ceará, apresenta a visão de que existe um movimento de implantação de mecanismos de accountability:
[...] pode-se afirmar que, na área educacional, o estado do Ceará tem um caminho percorrido no sentido da implantação de políticas de accountability, com ações envolvendo a responsabilização e o uso dos resultados das avaliações externas como mecanismos de indução de melhorias na aprendizagem dos estudantes [...]. (PEREIRA, 2014, p. 86)
Esse mesmo autor retrata o questionamento de que ocorram políticas de accountability já consolidadas em Ipu, município do estado do Ceará. Apesar disso, reconhece que, em âmbito estadual, já se anuncia a implantação de um sistema de accountability e pondera que
[...] em um país em processo de consolidação da sua democracia, como ocorre no caso brasileiro, é algo processual, histórico e questionável, na medida em que as bases para que os pilares do sistema em construção se assentem vão se construindo igualmente de forma processual, ao longo do tempo e com todos os debates que tudo aquilo que não é muito compreendido suscita. (PEREIRA, 2014, p. 121)
No entanto, Horta Neto (2013) faz uma interpretação contrária, ao considerar as políticas de incentivos salariais (bonificação) como responsabilização com consequências materiais, mas, para Brooke (2006) e Bonamino e Sousa (2012), esse tipo de consequência é considerado de alto impacto. Desse modo, é possível depreender que o discurso da accountability e sua articulação com a responsabilização levam a um debate sobre as consequências que a adoção desse tipo de política implica para docentes e para gestores escolares.
Os trabalhos analisados revelam que os processos de bonificação implantados em alguns estados brasileiros são considerados como um dos fatores fundamentais para o desenvolvimento de políticas de responsabilização entendidas como políticas de accountability. Como afirma Brooke (2008, p. 105, grifo do autor):
[...] como os prêmios são uma parte crescente da cena educacional, e representam uma maneira de se recompensar desempenhos superiores sem o fomento de discórdia provocado por outras formas de cálculo de suplementos diferenciais de pagamento, é fácil ver como eles se tornaram um aspecto central da política de responsabilização.
Brooke (2013) também ressalta que estamos vivendo um aumento de exemplos de políticas de accountability, sobretudo na forma de sistemas de bonificação para escolas. Érnica (2013, p. 1333), ao também caracterizar a accountability hard - entre outros elementos, como avaliação externa e metas de resultados de escolas e de redes -, assinala “[...] prêmios e punições para profissionais das escolas” como uma dessas características. Freitas (2013, p. 359), apesar de não concordar com essa caracterização de accountability light e accountability hard, compreende que “[...] o núcleo da definição (de um sistema de accountability) está na existência de teste e na existência de recompensa”.
Oliveira (2016), seguindo a mesma interpretação de Horta Neto (2013), afirma que, em seu estudo, considera os termos accountability e responsabilização como sinônimos para responder a indagação sobre a efetividade da política de responsabilização no estado do Ceará por meio do prêmio “Escola Nota Dez”.7 Na mesma linha de raciocínio, Furtado (2015), ao analisar os impactos do Bônus de Desempenho Educacional (BDE),8 implantado em Pernambuco, compreende que o termo accountability é sinônimo de responsabilização.
Nessa mesma perspectiva, salientamos que os trabalhos de doutoramento de Cerdeira (2015), Oliveira, (2016) e Furtado (2015), que trazem em seu título a palavra responsabilização, a relacionam diretamente aos processos de premiação aos profissionais da educação, considerando que essas estratégias trazem consequências negativas ao espaço escolar e às relações entre os profissionais da educação. Ou seja, 11 trabalhos analisados, representando 68,7%, daqueles que articulam o sentido de accountability como responsabilização, apresentaram um forte vínculo com a implantação de políticas de incentivo salarial aos profissionais da educação, em especial aos docentes e aos gestores escolares (bônus, prêmio), assumindo uma assunção negativa. Ou, ainda, relaciona-se a um grau (baixo ou alto) das consequências da política para os educadores e a escola. Essas questões revelam certa limitação nesse debate, quando observamos a ausência de elementos discursivos que remetam também à questão da accountability e a sua relação com a questão da democracia, por exemplo, como já debatia Campos (1990).
Apesar de os traços até aqui desvendados seguirem uma tendência no sentido do significado de responsabilização, de consequências para os educadores, parecendo já estabelecerem uma certa hegemonia do discurso, é possível encontrar trechos discursivos que tendem a revelar novas ordens de discurso no debate sobre accountability educacional. São aspectos que indicam uma preocupação com outros elementos, como o da responsabilidade profissional e da relação com a coletividade.
Borges (2016, p. 57) questiona a centralidade da discussão sobre accountability educacional se restringir “[...] à responsabilização exclusiva dos professores e dos gestores escolares pela situação do ensino nas escolas”. Argumenta a autora que urge debater mais aprofundadamente a diversidade das formas de responsabilização, bem como dos atores envolvidos com a educação pública. Ela acrescenta que “[...] não pode nos impedir também de perceber a legitimidade do exercício da função do Estado e/ou de outros setores da sociedade sobre o que se ensina e como se ensina nas escolas públicas” (p. 57).
Em estudos sobre os efeitos do Saeb na gestão e na prática pedagógica do sistema municipal de Porto Alegre, Ghisleni (2015) aborda o conceito de accountability, pois considera importante e registra o seu lugar nas discussões sobre avaliação, concebendo que a noção de accountability ultrapassa a ideia de responsabilização, trazendo à discussão a complexidade da prática educativa:
[...] tem-se aqui a compreensão da noção de responsabilidade sobre o processo educativo e sobre os resultados a que ele deve almejar. A responsabilidade, cabe ressaltar, traz consigo a mesma carga de conexões entre diferentes fatores que interferem fortemente nos processos de ensinar e de aprender. Junto com isso, também precisa ficar evidenciada a ideia de coletividade que é inerente ao ambiente escolar. (GHISLENI, 2015, p. 45-46)
No viés de um debate que toma uma perspectiva democrática, Santos (2014), na esteira de Abrúcio (2007) e Medeiros (2006), compreende que accountability implica categorias como cidadania, participação ativa, avaliação e prestação de contas dos serviços públicos e transparência na condução das ações públicas. Silva (2016), apoiando-se em Costa (2010), também reforça a ideia de accountability relacionada à participação e ao controle social.
Além desses, também destacamos o pensamento de Augusto (2010) que reconhece a centralidade da avaliação para o direcionamento das políticas educacionais, com base na agenda global dos países ocidentais, aliadas aos princípios do conservadorismo neoliberal. Contudo, a autora, ao concordar com Afonso (2009, p. 14) que, “[...] nem tudo o que conta em educação, pode ser medido e comparado”, põe em questão a neutralidade política dos governantes e aponta para a busca de uma perspectiva mais democrática para o debate sobre accountability em educação.
Essa evidência desloca a interpretação redutora do termo accountability, que considera a responsabilização como uma das suas dimensões, afastando-se daquela representação negativa para adentrar na complexidade das relações sociais implicadas no processo de construção das políticas educacionais. Assim, o conceito de accountability tende a se expandir através das inter-relações entre os processos de avaliação, prestação de contas e responsabilização, articulando os diversos atores envolvidos com as especificidades e as nuances da complexidade das relações sociais implicadas nesse contexto.
Outra questão importante é destacada nos estudos de Silva (2013), que observa, ao estudar a política de responsabilização de Pernambuco, a inexistência, nos documentos oficiais, dos termos accountability e responsabilização. O autor afirma que “[...] o documento que lança o programa com metas para a educação não menciona a responsabilização, accountability ou qualquer outra referência direta ao discurso próprio da responsabilização educacional” (SILVA, 2013, p. 109). Isso também é evidenciado em Pereira (2014), ao analisar os documentos da política educacional do estado do Ceará.
Essa omissão do termo pode ser um indicativo de que o discurso de accountability ainda se encontra carregado de negatividade, ou seja, ainda há muito caminho a ser percorrido no sentido do fortalecimento de um discurso que articule o termo à questão da democracia. Questões complexas e intrínsecas da política educacional, mormente da educação básica, envolvem diversos atores sociais, inclusive o discurso acadêmico, cujas identidades e posições sociais, crenças e consciências são afetadas e afetam o discurso acerca da concepção da accountability educacional. Assim, o debate sobre a responsabilização, pautado no grau de consequências imputadas (simbólicas ou materiais) aos trabalhadores da educação, tem desordenado essa agenda democrática, embora haja discursos relacionados à transparência, coletividade, responsabilidade profissional e controle social.
ACCOUNTABILITY EDUCACIONAL: ALGUNS ELEMENTOS PARA O DEBATE
Retomando nossas ideias iniciais, o objetivo proposto para este estudo foi o de analisar os sentidos discursivos do termo accountability a partir de um corpus de trabalhos que se dedicaram a pesquisar políticas de avaliação da educação básica no Brasil. Os resultados revelaram uma diversidade de significados nos discursos sobre a concepção de accountability educacional, que tem sido frequentemente interpretada como responsabilização. E essa interpretação tem provocado uma limitação para os estudos aprofundados da temática, dada a sua representação negativa em virtude de compreender que a política de accountability é caracterizada por aquele espectro mais cruel, que é atribuir a responsabilização exclusiva aos gestores escolares e aos professores sobre os resultados do desempenho dos alunos. Essa visão é intensificada quando o ente governamental paga um incentivo salarial a depender dos resultados e também de metas a serem cumpridas. Nesse aspecto, Afonso (2018, p. 8) tem refletido sobre essa problemática e compreende que
[...] existem alguns equívocos e ambiguidades em muitas das análises disponíveis sobre as chamadas políticas de responsabilização. Esses equívocos e ambiguidades resultam, em grande medida, da tradução redutora e simplista da palavra accountability e, simultaneamente, da não problematização ou da naturalização da palavra responsabilização.
Concordamos com Afonso (2018); porém, supomos que ainda não atingimos um nível de naturalização do sentido de responsabilização, pois observamos que ainda existem disputas por uma concepção do termo. Os discursos analisados apresentaram heterogeneidade quanto à tradução do termo accountability, parte dos trabalhos afirma que há consenso, mas o contrário também é afirmado, que não há consenso, que não existe tradução exata, além da indicação de que a concepção é mais ampla do que responsabilização.
Encontramos nos textos analisados uma recorrente referência à política de accountability dos Estados Unidos da América - No Child Left Behind (NCLD) -, o que nos leva a identificar a ocorrência frequente dessa comparação com o Brasil. Assim, nosso trabalho identificou algumas lacunas que contribuem para uma agenda de pesquisa futura, que se apresentam em forma de questionamento. São elas: será que a experiência de um sistema high-stakes, que apresenta casos de fechamento de escolas e demissões de profissionais, tomou o espaço de análise do contexto brasileiro, enviesando as pesquisas, sobretudo em níveis estaduais e municipais, lugares em que se desenvolvem as políticas de incentivos salariais? Ou será que essa perspectiva de política de responsabilização, de maior exigência sobre as escolas e os professores, tenha provocado um temor diante da visibilidade que a educação e a escola assumiram com a sua expansão? Nessa perspectiva é interessante refletir sobre como é emblemático o modo que as políticas de incentivos salariais (bônus e/ou prêmio), desenvolvidas por governos estaduais e municipais, são abordadas nos estudos acadêmicos afiliados ao estatuto de política de responsabilização.
Além disso, também destacamos a referência à necessidade de um maior debate sobre as responsabilidades coletivas profissionais e institucionais, admitindo a legitimidade de o Estado realizar avaliações externas, como é o caso dos sistemas de avaliação nacional e dos estaduais (BORGES, 2016). A alusão da noção de responsabilidade profissional e o senso de coletividade, peculiar ao espaço escolar (GHISLENI, 2015), também é foco de indagações. Outro ponto relevante consiste na ideia de accountability da participação e do controle social, além da transparência na condução dos serviços públicos (SANTOS, 2014; SILVA, 2016; AUGUSTO, 2010). São questões em aberto que revelam que muito ainda há que ser pesquisado.
Por fim, ressaltamos a importância de esforços em direção à expansão e ao aprofundamento teórico-conceitual do termo accountability e de avaliação educacional, com afirmação da pluralidade e da complexidade de formas, modalidades, contextos, relações, articulações, conteúdos, entre outros aspectos, constituindo um movimento de reconfiguração do discurso sobre a política de avaliação e accountability educacional como uma forma de resistência ativa para uma agenda democrática.