INTRODUÇÃO
Em termos de pesquisa acadêmica, já não se pode considerar que os temas da avaliação da educação e da gestão escolar democrática sejam fenômenos atuais. É possível, inclusive, inferir que tais temáticas se ajustam, no caso brasileiro, em uma historicidade contemporânea, emergente a partir da década de 1980, quando se asseverou o processo de globalização de uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo como modo de vida da modernidade ocidental. Período em que, no Brasil, rompia-se com um modelo de gestão autoritária das instituições públicas, plasmado por uma ditadura civil-militar. Com efeito, o retorno do Estado democrático de direito, do qual derivou o princípio constitucional de gestão democrática do ensino público, sofreu (e ainda sofre) a forte influência de uma agenda político-econômica global que pressionava os países periféricos a fim de convertê-los aos novos princípios de organização das sociedades capitalistas (MARTINEZ, 2019). No contexto global, o Estado assumiu um perfil avaliador, controlador, performático e alinhado às políticas econômicas do neoliberalismo (AFONSO, 2013), provocando tensão com a gestão democrática das instituições públicas.
Nesse cenário, intensifica-se no país o discurso político alinhado ao novo bloco hegemônico que aponta para a necessidade de implantação de sistemas de avaliação de larga escala, com a finalidade de modernizar e elevar os padrões de qualidade da educação pública (ALAVARSE; BRAVO; MACHADO, 2013). Iniciam-se, desse modo, debates sobre o fortalecimento de um sistema nacional de avaliação em termos de rendimento escolar das/dos estudantes, assim como se dão os primeiros passos para instituir a avaliação dos sistemas de ensino, que, a partir da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), foram organizados em três níveis administrativos: municipal, estadual e federal. Com essa nova configuração dos entes federados, proliferam-se reformas educacionais em todo o país, incorporando sistemas de avaliação de larga escala.
Nesta investigação, entende-se que esse movimento, de adequação dos sistemas de ensino ao contexto de desenvolvimento da ordem societal capitalista, inicia-se com a própria emergência da sociedade moderna ocidental e eurocêntrica entre os séculos XVIII e XIX. A racionalidade oriunda desse processo pretendeu homogeneizar padrões de comportamentos sociais, culturais e econômicos, utilizando como principal instrumento a instituição de um sistema de ensino de massas e universalista, com a pretensão de civilizar o mundo (BOTO, 2017; POPKEWITZ, 2007).
Embora, neste século XXI, estejamos vivenciando avanços em termos de direitos sociais e culturais, respectivamente de justiça social redistributiva e de reconhecimento (FRASER, 2006), materializados por políticas públicas sociais, a relação dos sistemas de ensino com a ordem capitalista tem se mantido bastante estreita no sentido de produzir identidades sociais cujos núcleos de significados são constantemente abastecidos pela ideologia capitalista. Afinal, Bourdieu (1996) há muito chama atenção ao fato de que as estruturas sociais não se reproduzem sozinhas, mas por meio da reprodução das estruturas mentais que lhes correspondem. Certamente, a escola de massas e universalista, por isso pública, sempre teve um papel importante na construção dos padrões de comportamentos coletivos atrelados ao modelo hegemônico de sociedade vigente.
Em face da argumentação iniciada acima, este artigo trata de uma experiência de política de avaliação participativa da educação, a qual apresenta características que fogem do modelo hegemônico de avaliação de larga escala disseminado pelo Estado avaliador, focado na performance gerencial e nos resultados, seja das/dos estudantes, seja dos sistemas de ensino, sem considerar o contexto social e cultural no qual estão inseridos. Nessa política, destaca-se o desenho metodológico do processo avaliativo, em que todos os atores do sistema de ensino devem participar da avaliação dos indicadores escolares por dimensão e área. Com esse desenho, a política integraria todas as dimensões da educação pública em um processo avaliativo que lhe conferiria qualidade social, mais propícia a garantir a justa distribuição dos bens econômicos e culturais (FRASER, 2006), bem como descentralizaria a culpa pelo fracasso escolar da/do estudante, professora/or, diretora/or, para o próprio sistema capitalista, o qual propaga valores que tendem a reproduzir a desigualdade social e educacional (CATTANI, 2019).
Embora essa ação pública apresentasse um perfil diferenciado, ela estava inserida na ordem global capitalista, utilizando, inclusive, recursos do Banco Mundial. Contudo vislumbram-se elementos com efeitos que poderiam recair sobre o fortalecimento da gestão democrática da escola pública, que exigia (e ainda exige) a participação de todos os atores escolares na tomada de decisões, a partir de uma organização escolar horizontalizada em relação às posições ocupadas nesse espaço. Em face disso, estudos (MOREIRA, 2021; BATISTA, 2018a; 2018b; CONTI; LUIZ; RISCAL, 2013; HYPOLITO; LEITE, 2012; SOUZA, 2012) têm demonstrado que o objetivo democrático de gerir a escola pública, compartilhando o poder de tomar decisões com todos os segmentos da comunidade escolar, não tem apresentado êxito nesses mais de 30 anos em que se deu a conquista do princípio constitucional de gestão democrática do ensino público. Tais estudos apontam que há uma resistência na ordem do sistema educacional, reproduzida pelas escolas, que resulta na perpetuação de uma hierarquia escolar que se confronta, constantemente, com políticas educacionais com foco direcionado à participação paritária dos diferentes atores escolares na tomada de decisões.
Assim, propõe-se, neste artigo, analisar uma experiência de política de avaliação institucional participativa implementada na rede estadual de ensino (REE) do Rio Grande do Sul (RS) no período de 2011 a 2014, que consistiu em uma avaliação de larga escala (abrangeu em torno de 2.570 escolas, 30 coordenadorias regionais de educação - CRE - e a Secretaria de Estado da Educação - Seduc). Estabelece- -se, como recorte analítico, a investigação da dimensão da gestão institucional, em específico o indicador 1 (existência de planejamento e monitoramento de metas e ações de gestão democrática), o qual pertencia ao eixo da política intitulado qualificação e democratização da gestão. Toma-se, como base empírica para a análise, a avaliação do citado indicador por 232 escolas estaduais da 1ª Coordenadoria Regional de Educação, nomeadamente as justificativas para a existência ou não de metas e ações de gestão democrática da unidade escolar.
A questão que norteou esta investigação se deu com o objetivo de entender se aquela experiência de política de avaliação participativa da educação, formulada pelo governo daquele período (2011-2014), no contexto da prática das escolas, possibilitou ou não a desestabilização da organização hierárquica das posições institucionalizadas no espaço escolar, favorecendo relações de poder mais horizontalizadas nas decisões sobre os assuntos da escola pública.
Compõem as fontes os textos das justificativas emitidas pelas 232 escolas da 1ª CRE (região de Porto Alegre) ao avaliarem o indicador 1, bem como os documentos produzidos pela política. Para constituir um corpus de justificativas representativas das avaliações das 232 escolas, utilizou-se o software QSR NVivo 10 (frequência de palavras-chave, bem como associação entre palavras-chave), que contribuiu com análises qualitativas a partir da organização de informações não estruturadas, como é o caso das justificativas inseridas nos formulários de avaliação diagnóstica pelas escolas.
Arrolam-se ao pressuposto epistemológico-metodológico, para analisar políticas educacionais em contextos da prática escolar, as orientações de Ball, Maguire e Braun (2016), as quais propõem que as políticas não podem ser analisadas meramente por seu papel normativo de preservação do aparato formal do governo à formulação de políticas. Elas são um processo, tão diverso e repetidamente contestado e/ou sujeito a diferentes interpretações, à medida que são encenadas (colocadas em cena, em atuação em vez de implementação) de maneira original e criativa dentro das instituições escolares. Contudo possuem limitações postas pelas possibilidades de discurso. Assim, nesta investigação, analisam-se as repercussões de uma política de avaliação participativa da educação no contexto da escola, entendendo-a como texto e também como processos discursivos que são complexamente configurados, contextualmente mediados e institucionalmente marcados. A política é feita para a comunidade escolar, que é composta por atores-sujeitos, que são, por sua vez, sujeitos e objetos da política.
Concomitantemente à definição de política educacional e escolar citada acima, utilizam-se os pressupostos metodológicos da análise crítica do discurso (ACD) com vistas a desvelar estruturas e estratégias ocultas no discurso dos atores escolares presentes no texto das justificativas para a existência ou não de metas e ações, como forma de fomentar práticas democráticas na escola. Sob essa orientação, entende-se que existe uma associação entre as estruturas e as relações sociais, que podem tanto configurar os discursos quanto por ele ser influenciadas, reproduzidas ou questionadas. Logo, a preocupação desta reflexão analítica se dá em função da regulação social da produção, recepção e circulação dos discursos, tendo em vista as implicações sociais e políticas das ideologias, das representações dos acontecimentos e dos atores sociais que emanam do discurso (ORLANDI, 2015; BOURDIEU, 1996). Considera-se que os significados, os sentidos com que as palavras são empregadas pelos atores escolares, entram em disputas em um campo de lutas mais amplas, que são as correlações de forças nas sociedades capitalistas, uma vez que as estruturas particulares das relações entre palavras e das relações entre sentidos de uma palavra são formas de hegemonia (FAIRCLOUGH, 2016).
A organização textual desta investigação propõe, após esta introdução, uma segunda seção para contextualizar as políticas de avaliação da educação no Brasil em sua interface com a gestão democrática da escola pública. Nessa seção, reflete-se, ainda, sobre a influência de uma agenda político-econômica global que afeta a ação pública no âmbito dos Estados nacionais capitalistas, com efeitos diretos sobre a educação pública. Na terceira seção, caracteriza-se a política de avaliação institucional participativa implementada no RS, bem como apresentam-se os resultados da investigação mediante análise do discurso dos atores escolares. Por fim, nas considerações finais, retoma-se a questão central do artigo, submetendo-a a interpretações de cunho conclusivo, ainda que provisórias, no escopo desta investigação.
AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO E INTERFACE COM A GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA PÚBLICA
A década de 1980 se constituiu, para a sociedade brasileira, em um período marcado pela organização da cidadania nacional a fim de romper com a gestão autoritária do Estado implantada pelo golpe civil-militar de 1964, ainda que para os economistas de orientação neoliberal tenha sido vista como a década perdida em termos de crescimento econômico (VIEIRA, 2015; BATISTA, 2013). Tal organização coletiva se desdobrou em um movimento social1 que, revelado nas correlações de forças político-ideológicas da época, culminou com a instalação de uma Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição Federal, sancionada em 1988 e logo chamada de “Constituição Cidadã” (NARDI, 2016; DUARTE; SARAIVA, 2016). A nova normatividade constitucional do Estado brasileiro propunha princípios2 calcados na construção de uma sociedade justa, democrática e participativa, destacando-se o princípio de “gestão democrática do ensino público”, estendido para os sistemas de ensino municipal, estadual e federal (BRASIL, 1988).
Em 1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), também elaborada em um contexto de disputa político-ideológica, regulamentou o princípio de gestão democrática do ensino público, estabelecendo que os sistemas de ensino definiriam as normas para a sua implantação de acordo com as peculiaridades locais (art. 14), indicando a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola (inciso I), bem como da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalente (inciso II)3 (BRASIL, 1996).
Cumpre, porém, observar que a década de 1990 traria outras perspectivas para as políticas públicas dos Estados nacionais periféricos e/ou semiperiféricos (SANTOS, 2016), que, no caso brasileiro, iriam de encontro às demandas da sociedade civil organizada,4 que reivindicou, no contexto de ruptura com a ditadura militar, uma relação orgânica entre educação e democracia participativa. Nesse cenário, o núcleo de significados que deu sentido à gestão democrática na década de 1980 passou a disputar, em termos discursivos e de práticas, com outros sentidos oriundos de uma agenda global para a educação (DALE, 2004) nas sociedades capitalistas ocidentais.
A agenda político-econômica global impactou, mais visivelmente, a sociedade brasileira a partir da criação do Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare) em 1995, inserindo o Brasil no contexto mundial de reestruturação dos Estados nacionais com vistas a uma readequação ao modelo normativo global, baseado nos princípios de descentralização, privatização e flexibilização das políticas públicas (OLIVEIRA, 2015; PERONI, 2003). A reforma do Estado, que ocorreu sob o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ressignificou os objetivos democráticos para a gestão das instituições públicas, postos na Constituição de 1988, ao propor: a promoção de um incremento significativo do desempenho estatal mediante a introdução de formas inovadoras de gestão e de iniciativas destinadas a quebrar as amarras do modelo burocrático; e a descentralização dos controles gerenciais flexibilizando normas, estruturas e procedimentos; além de trabalhar em prol de uma redução do tamanho do Estado mediante políticas de privatização, terceirização e parcerias público-privadas, tendo como meta alcançar um Estado mais ágil, menor e mais barato (BRASIL, 1995).
Na concepção de Dale (2004), a globalização é um conjunto de dispositivos político- -econômicos para a organização da economia global, conduzido pela necessidade de manter o sistema capitalista, mais do que qualquer outro conjunto de valores. A adesão aos seus princípios é veiculada por meio da pressão econômica e da percepção do interesse nacional próprio. Já Ball (2014) argumenta que esse é um movimento de políticas globais no qual as fronteiras entre o Estado e o mercado - o global e o local - entram em processo de debilitação. Contudo, o autor chama a atenção ao fato de que as novas formas de fazer política redefinem os Estados nacionais da mesma maneira que são continuamente redefinidas por eles, sem que essas mudanças signifiquem o seu debilitamento. É importante não subestimar o poder do Estado, mas é também importante não subestimar o poder do Estado em abstrato, nem o tratar como um ente indivisível.
Lima (2012, p. 15), ao analisar o papel do Estado na produção de políticas de avaliação da educação de larga escala, afirma que:
O atual protagonismo da avaliação, no quadro das políticas educacionais, não apenas remete para as suas dimensões instrumentais e de controle, a serviço de novas modalidades de regulação e meta-regulação estatal das políticas públicas. A avaliação educacional mais do que isso, é uma das máximas expressões, substantivas, das políticas educacionais contemporâneas, seja em escala nacional e local, seja em escala transnacional.
Com a adesão dos países periféricos ao modelo global de desenvolvimento social associado ao crescimento econômico, segundo interpreta Afonso (2013), as políticas de avaliação institucional incorporaram a marca de uma regulação baseada na administração gerencial e competitiva, que deram suporte à emergência do Estado avaliador a partir da radicalização da interferência e controle do Estado por meio da avaliação sistêmica. O autor afirma, ainda, que nos países que iniciaram há mais de duas décadas reformas neoliberais e neoconservadoras, a avaliação constitui-se ela própria como uma política estatal. Representa, portanto, um conjunto de instrumentos da ação dos Estados e governos, tendo estreita relação com leituras internas das especificidades nacionais, ainda que filtradas e interpretadas por novas orientações ideológicas então emergentes - nas quais, em certos casos, os aspectos simbólicos tenham sido ampliados (e dramatizados) por oposição a outras realidades nacionais.
Os desdobramentos do citado contexto recaem sobre a construção de um modelo sistêmico de avaliação da educação, na sociedade brasileira, fundamentado por meio de uma regulação cuja lógica, frequentemente, relaciona-se aos diagnósticos de organismos internacionais, destacadamente o Banco Mundial articulado com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esses órgãos postulam em seus discursos uma crise de ineficácia do sistema educacional para atender às demandas da cidadania nacional, marcadamente a dos países periféricos da América Latina, como é o caso do Brasil (MARTINEZ, 2019; CORSETTI, 2012). Com essa orientação, a culpa da crise da escola pública (MAGALHÃES; STOER, 2002) é localizada no desempenho das(os) estudantes, das(os) gestoras(res) e das(os) professoras(res) (BALL, 2005). Retira-se o foco, desse modo, do processo de reestruturação do próprio sistema capitalista, que careceu/carece de reorganizar a educação escolar com a finalidade de atender às demandas de formação para uma cidadania competitiva e para o trabalho flexível, requerida pelas novas necessidades do modo de produção das sociedades capitalistas em contexto global (ANTUNES; PINTO, 2017; TEDESCO, 2012).
Imerso no citado ordenamento para as sociedades capitalistas, o Estado nacional brasileiro, atendendo à solicitação da agenda político-econômica global, de ajuste estrutural das contas públicas, dá início à modificação da forma de atendimento das demandas sociais, inclusive da educação escolar pública. Para tal, já em 1991, o Ministério da Educação criava o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), dando início às avaliações de larga escala.5 Na época, o Saeb tomou, como um dos indicadores da avaliação, o desempenho em provas de matemática e leitura a partir de uma amostra de estudantes dos ensinos fundamental e médio de todas as unidades federadas (BONAMINO; SOUSA, 2012).
Em 2007, as avaliações de larga escala se viram fortalecidas com a instituição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep),6 que teve/tem como objetivo monitorar a evolução da situação educacional por meio de dados sobre rendimento escolar combinados com o desempenho das(os) alunas(os) constantes no Censo Escolar e no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), compostos pela Avaliação Nacional da Educação Básica e pela Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), também conhecida como Prova Brasil. A partir dessas estratégias, o Estado nacional brasileiro passa a regular o desempenho dos indicadores educacionais com a finalidade de garantir maior eficácia e eficiência (fazer mais com menos recursos financeiros) dos sistemas de ensino e, com isso, avançar para o exercício de um Estado avaliador (GATTI, 2014; AFONSO, 2013).
Tal desenho de avaliação terá consequências sobre o modo de gerir a escola pública, obrigada a adaptar-se aos modelos de avaliação de larga escala, bem como à lógica da agenda global para a educação (DALE, 2004). Com o discurso da eficácia e eficiência gerencial emanado dos organismos internacionais, os problemas das escolas públicas brasileiras, marcados pela desigualdade social, passam a ser dimensionados sob uma ótica reducionista e economicista, sendo apontados como problemas de gestão e abordados de forma meramente técnica (HYPOLITO; LEITE, 2012), confrontando o modo de gerir democrático, exalado do princípio constitucional de gestão democrática do ensino público, que exigiria a participação de todos os atores escolares nos processos de tomada de decisões. Sob a perspectiva gerencialista, as decisões sobre os assuntos escolares concentram-se na figura do gestor ou gestora unipessoal (BATISTA; PEREYRA, 2020; BATISTA, 2018a; LIMA, 2018).
A lógica da agenda político-econômica global, que visa mais à legitimação do que à eficácia e à eficiência do sistema educacional, retoricamente celebrada pelos organismos internacionais, induz a modelos organizacionais normativistas/pragmáticos, que, na atualidade, influenciam as políticas públicas de educação por força de orientações gerencialistas e produtivistas (LIMA, 2012).
Ball (2014) afirma que a lógica neoliberal desponta como uma política de regulação do Estado que produz um modo de ser e viver em sociedade que vai muito além das políticas de governo. Trata-se de uma construção discursiva que desempenha papel determinante na implantação das reformas estatais (reforma da previdência, reforma trabalhista, reforma da educação, etc.) como necessidade vital, como inevitável parte da globalização e da necessária competência para disputar posições no mercado internacional e numa sociedade cada vez mais baseada no conhecimento. A esse diagnóstico neoliberal, afirma o autor, se impõem respostas e solu- ções gerencialistas.
A POLÍTICA DE AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL PARTICIPATIVA DA REE-RS: A ATUAÇÃO DOS ATORES NO CONTEXTO DA ESCOLA
Em face das discussões expostas, em 2012, o governo do estado do Rio Grande do Sul,7 composto por uma coalizão de partidos de esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores, com um discurso que tensiona a agenda global para a educação, deu início à implementação da política de avaliação institucional participativa em toda a rede estadual de ensino (REE) ao criar o Sistema Estadual de Avaliação Participativa (Seap-RS).8 A proposta dos formuladores da política, no que tange às escolas, fundamentava-se discursivamente na participação de toda a comunidade escolar na avaliação diagnóstica da situação de indicadores escolares, apontando o conselho escolar9 como protagonista da organização desse processo nas escolas públicas estaduais. As 2.570 escolas, distribuídas em 30 coordenadorias regionais de educação,10 avaliaram 50 indicadores considerando seis dimensões: gestão institucional; espaço físico; organização e ambiente de trabalho; políticas para acesso, permanência e sucesso na escola; formação dos profissionais da educação; e práticas pedagógicas e de avaliação. A escola elaborava um diagnóstico da situação escolar a partir da avaliação dos indicadores, para cada dimensão, com valores que transitavam entre: (1) situação crítica; (2) situação precária; (3) situação boa; (4) situação muito boa; e (5) situação excelente. Todas as situações dos indicadores apresentavam descritores que detalhavam a sua condição. Ao avaliar e pontuar o indicador, os atores escolares atribuíam-lhe uma justificativa (RIO GRANDE DO SUL, 2012).
Nesta investigação, conforme já apontado, analisa-se a dimensão da gestão institucional avaliada por 232 escolas da 1ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE-Porto Alegre), mais especificamente o indicador 1 (existência de planejamento e monitoramento de metas e ações de gestão democrática), pertencente ao eixo da política intitulado qualificação e democratização da gestão. Parte-se do pressuposto de que a gestão democrática da escola pública exige mudanças na organização e nas práticas escolares. Contudo, não há a intenção de deter-se na análise do potencial da política como instrumento de mudança, mas na (re)ação/atuação dos atores escolares diante de uma ação pública que pode possibilitar mudança organizacional na unidade escolar.
Argumenta-se que a avaliação da educação pode ser, por um lado, fruto da austeridade das recomendações de organismos internacionais para as contas públicas de Estados nacionais com diferentes contextos sociais, econômicos e culturais, ou seja, um mero instrumento para impor modelos de gestão estatal que promovam a adequação dos sistemas de ensino e as escolas às metas e objetivos da economia capitalista (MOREIRA, 2021). Por outro lado, a avaliação pode ser um recurso indispensável para diagnosticar a situação educacional dos sistemas de ensino e das escolas em todas as suas dimensões, com o propósito de garantir o direito à educação para toda a cidadania nacional, atendendo, desse modo, ao princípio constitucional de gestão democrática do ensino público. Esse princípio tem estreita relação com a justiça social e escolar (DUBET, 2014; FRASER, 2006), em termos de oferta de condições de igualdade de oportunidades de acesso ao conhecimento e ao sucesso escolar, para todas(os) as(os) estudantes de escolas públicas.
As justificativas das 232 escolas da 1ª CRE para o indicador 1, referentes ao ano de 2013-2014, foram selecionadas com a utilização do software QSR NVivo 10, num primeiro momento, em função da maior frequência de palavras por escola, obtendo-se o seguinte resultado: planejamento (96 vezes) e monitoramento (85 vezes),11 reduzindo, para a análise, o universo de justificativas/escolas. A partir da pré- -análise das justificativas selecionadas, elas foram classificadas em duas categorias: razões que dificultam a gestão democrática da escola pública; e razões que facilitam a gestão democrática da escola pública. O Quadro 1 aponta as principais recorrências nas justificativas das escolas, segundo a categorização realizada.
Indicador 1 - Existência de planejamento e monitoramento de metas/ações de gestão democrática | |
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Razões que dificultam a gestão democrática da escola pública | Razões que facilitam a gestão democrática da escola pública |
Falta de recursos humanos e/ou verbas; falta de tempo; processo em construção; precariedade da infraestrutura escolar; ausência de previsão no projeto político- -pedagógico; atender a demandas da mantenedora (Seduc); imprevistos do cotidiano escolar; planejamento sem monitoramento das ações. |
Realização de reuniões pedagógicas semanais; participação do conselho escolar no planejamento e monitoramento das ações escolares; prestação de contas à comunidade escolar em assembleias e informativos; envolvimento da equipe diretiva, de professores e funcionários; planejamento descentralizado; participação dos segmentos escolares; adequação das ações escolares à realidade da escola. |
Fonte: Elaborado com base em dados de UFRGS (2015).
Nessa primeira classificação já é possível perceber a contradição da avaliação dos atores escolares entre a resposta estruturada e a resposta não estruturada. No primeiro caso, ao observar a estatística das respostas fechadas (UFRGS, 2015), todas as escolas da 1ª CRE (232) apontaram as situações 4 e 5 na escala de valores a serem atribuídas aos indicadores, o que significa, respectivamente, situação muito boa e excelente, caracterizadas pelos seus descritores da seguinte forma: muito boa - existência de planejamento sistemático de metas e ações de gestão democrática que envolvam questões administrativas, pedagógicas e financeiras, mas sem monitoramento de todas as questões; excelente - existência de planejamento e monitoramento sistemáticos de metas e ações de gestão democrática que envolvam questões administrativas, pedagógicas e financeiras. No segundo caso, nas respostas abertas e não estruturadas, foi possível identificar que a maioria das escolas indicou justificativas nas quais predominam as razões que dificultam a gestão democrática da escola pública.12
No que diz respeito às dificuldades (maioria das justificativas) encontradas pela escola para implementar as metas de gestão democrática, as justificativas, em contraste com as avaliações muito boa e excelente aferidas para o indicador 1, concentraram-se em explicar as razões para a não existência de metas e ações para a gestão escolar democrática. Já nas justificativas elencadas pela presença de elementos que indicam as facilidades (minoria das justificativas) para a gestão democrática, predominou a preocupação em apontar instrumentos e processos.
Em relação à última assertiva, salta à reflexão analítica o fato de as unidades escolares que estabeleceram relação entre a avaliação do indicador e as facilidades para a gestão democrática evocarem, em seu discurso, elementos de uma escola cuja base de gestão centra-se na participação da comunidade escolar e no conselho escolar como órgão gestor. Tal verificação pôde ser comprovada na associação das palavras planejamento e monitoramento de forma composta com a palavra conselho escolar (tendo como base as 232 justificativas/escolas), resultando em 12 justificativas (12 escolas) que estabeleciam essa relação.
Ainda considerando as categorias dificuldades e facilidades para a gestão democrática da escola pública, observa-se que, nessa segunda associação de palavras-chave, tanto as dificuldades (cinco justificativas) quanto as facilidades (sete justificativas) estão relacionadas com a atuação do conselho escolar no planejamento e monitoramento das ações escolares. Nas dificuldades, as escolas apontaram a não participação do conselho escolar como um fator negativo para o cumprimento das metas e ações para a gestão democrática; já as facilidades, indicadas pelas escolas, guardam relação direta com a participação da comunidade escolar e local, bem como do conselho escolar, para o cumprimento das metas e ações citadas.
Com efeito, a contradição encontrada nas justificativas (com destaque à dificuldade de implementação da gestão democrática) das escolas em relação à escolha da situação do indicador 1 (muito boa e excelente) tende a expressar a forma de atuação dos atores escolares na interação com políticas governamentais, com orientações político-ideológicas divergentes das orientações das políticas hegemônicas (neoliberais) em contexto global e, com um matiz universalista, sobre as políticas locais. Os governos pautam projetos políticos13 em ação que atribuem diferentes margens de liberdade à participação dos sujeitos-atores na construção de sentidos para as políticas em contextos de prática. O grau de influência de contextos político- -ideológicos externos se percebe, no contexto da prática da escola, pela forma como as políticas são (re)interpretadas e traduzidas em práticas escolares.
No caso das escolas públicas estaduais do RS, as políticas de avaliação da educação conhecidas, até a criação do Seap em 2012, estavam fortemente voltadas para o modelo de avaliação de larga escala, com foco na avaliação do desempenho/performance das(os) estudantes (com base no Saeb). Um exemplo dessa metodologia avaliativa foi o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul (Saers), implementado no governo de Yeda Crusius (PSDB - 2007-2011) e de viés gerencialista, orientado pela agenda global para a educação, focado nos resultados quantitativos e sem análise de contexto das escolas (SALERNO; LUCE, 2018; WERLE; KOETZ, 2012). Ou seja, essa política restringia a participação dos atores escolares na construção de sentidos para a ação escolar, impondo um modelo de avaliação hierárquico tanto na implementação (da Secretaria de Educação para as escolas) como na proposição metodológica. A avaliação se dava por meio de amostra em escolas de ensino fundamental, em que alunas(os) realizavam provas de Português e Matemática, elaboradas por agências de avaliação privadas e aplicadas por diretoras(res) e professoras(es) nas unidades escolares selecionadas (WERLE; KOETZ, 2012).
Já a política de avaliação implementada nas escolas estaduais com a criação do Seap, substituto do Saers, no governo de Tarso Genro (PT - 2011-2015), propunha a participação de todos os atores educacionais na sua implementação, abrangendo a avaliação de indicadores em todas as dimensões da educação e a avaliação de tais indicadores pelos atores da rede estadual de ensino - Seduc, CRE e escolas (RIO GRANDE DO SUL, 2012). Conquanto, na sua formulação, possa ter sido uma política elaborada centralmente pela Seduc, sem a participação das escolas (SALERNO; LUCE, 2018), permitia às unidades escolares e a seus atores a inserção de novos sentidos na política; nesse caso, de (re)interpretação e (re)contextualização no âmbito discursivo e das práticas (a tradução), conforme indicam Ball, Maguire e Braun (2016).
Tradicionalmente, os governos implementam políticas educacionais sem desestabilizar as hierarquias das posições escolares (BOURDIEU, 1992) estabelecidas na organização da escola moderna, de massas e universalista (BOTO, 2017; MAGALHÃES; STOER, 2002), pois certamente terão maior eficácia na tradução positiva dos significados da política proposta no espaço escolar. No caso das políticas de avaliação da educação de base gerencialista, que incentivam modelos organizacionais normativos/pragmáticos, a discursividade produz um certo tipo de conhecimento sobre as escolas, estabelece nexos de causalidade e esclarece aquilo que é considerado relevante avaliar, bem como os instrumentos que devem ser adotados. Tais políticas apontam, ainda, o caminho das inovações a seguir e das mudanças a operar, como parte de um programa de modernização das organizações escolares (LIMA, 2012), causando a sensação de ordenamento universal e, por isso, de naturalização pelos atores escolares. Já as políticas de avaliação participativa, quando incentivadas por modelos organizacionais do tipo analítico/interpretativos, que propõem, em sua discursividade, o protagonismo das escolas e de seus atores para a construção dos processos de produção de conhecimento e avaliação por meio da participação paritária, desestabilizam as hierarquias das posições escolares, pois buscam produzir representações múltiplas para a construção social da realidade escolar “[...] sem a imposição centralista de um mundo monológico” (LIMA, 2012, p. 20).
Assim, os atores escolares, ao interpretar e traduzir uma política de governo para o contexto de prática, questionam as suas prioridades institucionais e políticas em contraposição ao que mais está em jogo e às consequências de agir ou não (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). Logo, as avaliações (muito boa e excelente versus prevalência de justificativas apontando dificuldades), supostamente contraditórias, das escolas estaduais da 1ª CRE para o indicador 1 (metas e ações para a gestão democrática), podem representar uma escolha (não agir) dos atores escolares com o intuito de garantir a manutenção da estabilidade organizacional, para além das possibilidades de mudanças.
A avaliação e a escolha das situações muito boa e excelente para a gestão democrática impunham a não intervenção sobre o indicador, ou seja, a necessidade de interpretá-lo e traduzi-lo em práticas escolares. Por outro lado, essa escolha não criava conflito com a política formulada centralmente pelo governo. Já o discurso de dificuldade (maioria) para o cumprimento de metas e ações para gestão escolar democrática pode ser entendido na perspectiva da real situação do contexto escolar frente à interpretação de políticas que podem desestabilizar a organização hierárquica das posições institucionalizadas no espaço escolar, causando conflitos.
Tal assertiva pode ser corroborada pelo contraste das justificativas das escolas com o nível de participação dos segmentos no processo de avaliação dos indicadores escolares, do que resultou a prevalência da participação, na interpretação e tradução da política, da equipe diretiva e das(os) professoras(es), respectivamente, de 98,59% e 87,32%.14 Ainda que os outros segmentos escolares tenham participado, mesmo que em minoria, a condução do processo foi realizada pelos atores citados (UFRGS, 2015). Esses percentuais são significativos perante o fato de que o texto da política indicava que deveria ser o Conselho Escolar (com representação paritária de toda a comunidade escolar) o protagonista do processo de implementação da política na unidade escolar (RIO GRANDE DO SUL, 2012). Nesse sentido, cabe questionar sobre o lugar de enunciação dos atores escolares, predominantes na condução do processo de avaliação, na hierarquia da organização escolar e sobre o quanto seus discursos são determinados e legitimados pelas instituições e estruturas sociais bem como constitutivos destas (FAIRCLOUGH, 2016).
Argumenta-se que a escola pública, por ser um constructo social e histórico, é um espaço de atuação onde os atores escolares reagem às políticas governamentais como forma de interpretá-las e traduzi-las. Isso ocorre por meio de um núcleo de significados institucionais marcado por elementos que recompõem constantemente o seu papel legitimador: de categorias de competência na sociedade, de classificações publicamente aceitáveis de pessoas e conhecimentos, de acesso a postos mais valorizados na estrutura social. As escolas fazem o que supõem ser preciso fazer, ou seja, transmitir cultura e conhecimento da forma mais eficiente possível (POPKEWITZ, 2007), formatando uma organização escolar burocrática e com base em relações hierárquicas e centralizadoras de poder. Do ponto de vista de Bourdieu (1992, 1998), essa lógica resguarda o poder simbólico das instituições, um poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber-se sujeitos a ele ou responsáveis por exercê-lo. Isto é, o sistema de ensino moderno guarda na especificidade de sua estrutura e de seu funcionamento o fato de que:
[...] foi instituído para produzir e reproduzir (pelos próprios meios da instituição) as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de inculcação quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou as classes, reprodução social. (BOURDIEU, 1992, p. 64)
Para romper com o modelo de reprodução social e cultural e de imposição de um conhecimento monológico, a gestão democrática da escola pública necessita ser concebida sob um modelo organizacional do tipo analítico/interpretativo (LIMA, 2012), o que supõe justiça organizacional (ESTÊVÃO, 2001), a fim de construir o que Moreira (2021) chama de gestão democrática radical não limitada às ideias hegemônicas da democracia representativa burguesa. Uma realidade na qual a abertura para a participação paritária e a representação (FRASER, 2006) de todos os atores escolares fortaleça a tomada de decisões horizontais diante da tradução de práticas democráticas na escola pública. Isso envolve, necessariamente, opções políticas, visões de mundo e interesses que traduzirão diferentes prioridades às ações escolares considerando a realidade concreta de cada escola (LIMA, 2012).
Com as bases empírica e teórica apresentadas até aqui, esta investigação sustenta que, na atualidade, a escola pública brasileira e do RS vive um contexto de conflitualidades (BATISTA, 2010), dado o aumento das desigualdades sociais (CATTANI, 2019; ARRETCHE, 2015) causado pelo ordenamento global, o que impõe às sociedades capitalistas da América Latina a redução de recursos públicos destinados às políticas sociais, entre elas, a educação pública (MARTINEZ, 2019). No caso brasileiro, essa situação agravou-se com a conquista do reconhecimento do direito à educação na Constituição de 1988, quando os grupos sociais historicamente excluídos da escolarização (pessoas negras, indígenas, pobres, transgênero) passaram a integrar o espaço escolar, inserindo nele a marca de sua origem socioeconômica e cultural e desestabilizando a escola homogênea e formadora de consenso social. No entanto a obrigatoriedade e a gratuidade da educação básica pública para a sociedade brasileira, dos 4 aos 17 anos, não proporcionam, hoje, as condições de ordem material (justiça redistributiva) e cultural (justiça como reconhecimento) que garantam o êxito escolar para todas(os) as(os) estudantes (BATISTA, 2018a).
Considerando o contexto indicado nesta pesquisa, os atores escolares tendem a responder às políticas, em especial àquelas que vislumbram possibilidades de mudanças nas práticas escolares, reproduzindo, em seus discursos e práticas, o papel designado originalmente para a escola universalista, que institucionalizou uma organização escolar burocrática, hierárquica, disciplinar e centralizadora das decisões (POPKEWITZ, 2007). Essa organização escolar, que é reprodutora das desigualdades sociais, tende a gerir os conflitos escolares não como parte do processo de ensino e aprendizagem, mas como uma relação que deve ser reprimida em função de uma suposta coesão e equilíbrio social, como interpretou Durkheim (2012) ao tratar a emergência do sistema de ensino ocidental europeu, com intenções civilizatórias e, por esse motivo, de massas e universalista.
Em última instância, pode-se inferir que o discurso dos atores escolares expressa as condições sociais e históricas de sua produção e emergência. Como parte de uma instituição histórica que, na sociedade moderna, tem a função de produção e reprodução cultural, os atores escolares realizam no discurso e nas práticas a eficácia simbólica dos objetivos instituídos (BOURDIEU, 1992). Assim, mesmo diante de uma política educacional que discursivamente traz uma proposta de desnaturalização da escola autocrática e centralizadora, o sentido comum da vida cotidiana das escolas acaba reescrevendo as mesmas regras existentes que ordenam e classificam os sujeitos, esvaziando os processos de mudança (POPKEWITZ, 2007).
A análise exposta da avaliação de indicadores escolares corrobora o estudo de Murillo, Román e Castilla (2011), que aponta a avaliação educativa como sendo, sem dúvida, uma componente-chave não só para acompanhar e dar conta dos erros e acertos dos propósitos e caminhos eleitos pelas escolas, como também para orientar e iluminar os sentidos e metas que vão envolver e caracterizar a educação. Nessa perspectiva, é fundamental incluir e discutir a avaliação da educação como peça fundamental no debate a respeito de que tipo de educação os estados nacionais e os sistemas de ensino devem oferecer para avançar na construção de sociedades justas, participativas e democráticas.
CONSIDERAçõES FINAIS
Nestas considerações finais, com base em Ball (1994), infere-se que as políticas e seus textos são sempre frutos de múltiplas influências e agendas e que suas formulações envolvem intenções e negociações na esfera do Estado e nos processos de elaboração. Já a política como discurso incorpora significados e sentidos e utiliza proposições e palavras, expressando o contexto em que certas possibilidades de pensamento são construídas. Logo, os discursos estão estritamente relacionados com o que pode ser dito e pensado, mas também com quem pode falar, quando, onde e com que autoridade.
Desse modo, entende-se que recorrer a explicações teórico-metodológicas como instrumentos para a análise e como sistema de reflexão e interpretação não implicou desconhecer as capacidades criativas das quais são dotados os atores escolares como elaboradores de políticas intraescolares. Considerado esse aspecto, retoma-se a questão inicial deste artigo com o intuito de atribuir-lhe reflexões interpretativas de cunho conclusivo, ainda que abertas ao contínuo fluxo de produção de conhecimento crítico sobre o tema.
A partir da análise da avaliação aferida ao indicador 1 (existência de planejamento e monitoramento de metas/ações de gestão democrática), por 232 escolas públicas estaduais, pretendeu-se compreender em que medidas a política de avaliação participativa da educação possibilitou ou não a desestabilização da organização hierárquica das posições institucionalizadas no espaço escolar, favorecendo relações de poder mais horizontais nas decisões sobre os assuntos da escola pública. Como foi possível perceber, a formulação da política de avaliação institucional participativa nas escolas públicas estaduais do RS foi fruto de um contexto sociopolítico cuja lógica de implementação, referenciada pela participação paritária dos atores escolares, apresentou possibilidades de avaliação de indicadores pela comunida- de escolar, em especial os de gestão escolar democrática, frequentemente associados a ideologias político-partidárias e não a um princípio de organização e gestão da escola pública com vistas ao cumprimento do direito à educação, reconhecido na Constituição Federal de 1988 como direito social.
Com efeito, se identifica, nas recorrências das justificativas das 232 escolas da 1ª CRE para o indicador 1, uma interpretação que demonstra os limites do discurso dos atores escolares. A análise indica que, nas justificativas para as situações muito boa e excelente aferidas no indicador 1, os argumentos tendem a explicar, por um lado, as razões que dificultam a implementação da gestão escolar democrática e, por outro, as razões que a facilitam. Todavia prevalecem, no maior número de justificativas, as razões que dificultam a implementação de metas e ações para a gestão democrática da escola pública, do que se pode concluir que a maior parte das 232 escolas públicas estaduais da 1ª CRE-RS ainda não estabeleceu a gestão democrática como princípio de organização das práticas escolares. Mesmo que se possa observar que as escolas que salientaram as facilidades (minoria) agiram para interpretar e traduzir o indicador 1 por meio de seus processos e práticas democráticas.
Já o contraste dos níveis de participação dos segmentos escolares, presente nas justificativas, sinalizou a predominância da equipe diretiva e das(os) professoras(es) na avaliação dos indicadores escolares. Essa prática, partindo da noção de que a linguagem, como matéria do discurso, “[...] depende da posição social do locutor que comanda o acesso que lhe abre à língua da instituição, à palavra oficial, ortodoxa, legítima” (BOURDIEU, 1996, p. 87), possui um efeito de distribuir vozes, apontando o que é permitido pensar (BALL, 1994), porque a equipe diretiva e as(os) professoras(es) seriam portadores legítimos da autoridade escolar.
Nessa direção, pode-se afirmar que os atores escolares estão submetidos à reprodução de uma hierarquia escolar institucionalizada nas mentes (BOURDIEU, 1998). Essa condição transcende os próprios processos de mudança, em especial quando essas mudanças estão referenciadas por teorias e práticas que propõem romper com a hierarquização das posições escolares, como é o caso da gestão escolar democrática. É nesse sentido que o uso linguístico da palavra institucionalizada se transforma em instrumento de poder e de naturalização do instituído.
Para finalizar, assume-se uma posição favorável às inferências de Fraser (2006) sobre a participação em esferas públicas institucionalizadas, como ação e interação que produz justiça social na dimensão do direito à redistribuição socioeconômica e do reconhecimento cultural. Com isso, reforça-se a ideia de que, para desestabilizar as estruturas sociais de reprodução de uma organização escolar hierárquica e centralizadora, é preciso desenhar espaços participativos e construir uma institucionalidade correspondente, que respeite a legitimidade das decisões dos diferentes atores escolares nos diversos processos de interação social na escola. A emergência desses espaços de socialização possibilita que a comunidade escolar e a local sintam-se partícipes na construção de sentidos para as políticas intraescolares e de governo. Com essa perspectiva, oportuniza-se a todos os atores escolares enfrentar a reprodução social e cultural por meio da participação na interpretação e tradução dos discursos em disputa no espaço escolar.