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Estudos em Avaliação Educacional

versión impresa ISSN 0103-6831versión On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.34  São Paulo  2023  Epub 12-Dic-2023

https://doi.org/10.18222/eae.v34.9580 

ARTIGOS

QUESTÕES SOBRE A TECNOLOGIA: O QUE É AVALIADO NO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO?

PREGUNTAS SOBRE LA TECNOLOGÍA: ¿QUÉ SE EVALÚA EN EL EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO?

TECH QUESTIONS: WHAT IS ASSESSED IN THE EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO?

RUBIANA BRASILIO SANTA BÁRBARAI 
http://orcid.org/0000-0002-8674-438X

MARIA TEREZINHA BELLANDA GALUCHII 
http://orcid.org/0000-0001-5154-9819

CLEONICE APARECIDA RAPHAEL DA SILVAIII 
http://orcid.org/0000-0002-7181-8905

IUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil

IIUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil

IIIUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil


RESUMO

O presente estudo objetivou compreender o conhecimento sobre a tecnologia requerido do participante do Exame Nacional do Ensino Médio. À luz da Teoria Crítica, foram analisadas questões da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias dos anos de 2009, 2011 e 2020 no que se refere aos seguintes elementos: texto, situações-problema, enunciados e alternativas. Os resultados mostram que as provas avaliam se o participante sabe ou não usar a tecnologia, com ênfase na identificação, sem reflexão. O conhecimento sobre a tecnologia avaliado está voltado para uma formação adaptativa às exigências do capital flexível do século XXI.

PALAVRAS-CHAVE EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO; TECNOLOGIA; FORMAÇÃO; CONHECIMENTO.

RESUMEN

El presente estudio tuvo el objetivo de abarcar los conocimientos sobre tecnología requeridos por parte de los participantes en el Exame Nacional do Ensino Médio [Examen Nacional de Educación Media]. A la luz de la Teoría Crítica, se analizaron preguntas relativas a las pruebas de Lenguajes, Códigos y sus Tecnologías de los años 2009, 2011 y 2020, en lo que se refiere a los siguientes elementos: texto, situaciones problema, enunciados y alternativas. Los resultados muestran que las pruebas evalúan si el participante sabe o no utilizar la tecnología con énfasis en la identificación, sin reflexión. El conocimiento sobre la tecnología evaluado se orienta a una formación que se adapta a las exigencias del capital flexible en el siglo XXI.

PALABRAS CLAVE EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO; TECNOLOGÍA; FORMACIÓN; CONOCIMIENTO.

ABSTRACT

The present study aimed to understand the knowledge of technology required of participants in the Exame Nacional do Ensino Médio [National High School Exam]. We analyzed questions from the Languages, Codes and their Technologies exam from 2009, 2011 and 2020 in the light of Critical Theory, regarding the following elements: text, problem situations, statements and alternatives. The results show that the tests assess whether or not the participant knows how to use technology, focusing on identification, without reflection. The knowledge about technology evaluated focus on training adapted to the demands of flexible capital in the 21st century.

KEYWORDS EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO; TECHNOLOGY; TRAINING; KNOWLEDGE.

INTRODUÇÃO

Pi, pi, piiiii, pipi; Pi, pi, piiiii, pipi. Arrasta, clica, lê, digita, envia, curte, mensagem recebida. Clica, digita, arrasta, sobe, envia, curte. A racionalidade tecnológica apresenta-se como um dos elementos contemporâneos que asseguram certo padrão de comportamento dos indivíduos em sociedade. Como instrumento de dominação em tal contexto, exige-se que certas habilidades e competências de controle técnico de instrumentos sejam adquiridas para que os indivíduos façam parte da comunidade global tecnológica no contexto do capital flexível contemporâneo.

Nesse sentido, a razão como instrumento de adaptação é ampliada no indivíduo por meio da racionalização objetiva da subjetividade (Adorno & Horkheimer, 1985). O desempenho eficiente para o qual as pessoas são moldadas ultrapassa suas ocupações práticas no mundo produtivo, deslocando-se para as relações humanas. Redes sociais, blogs, vlogs, Instagram, Facebook e Twitter são alguns exemplos do processo de objetivação da subjetividade humana promovido pela racionalidade tecnológica do século XXI. Nesse contexto, o treino toma o lugar da reflexão, especializando o ato de pensar, mantendo-o no campo das vivências (Marcuse, 1999).

Mesmo que o especialista, atualmente, esteja em extinção em uma sociedade flexível, o processo de moldagem se reproduz, porque está sob a “racionalidade da competição em que o interesse racional foi substituído pelo interesse do mercado, e a conquista individual foi absorvida pela eficiência” (Marcuse, 1999, p. 97). Tal processo de massificação da vida e controle social é o cenário do qual faz parte a escola, bem como as condições e exigências para o ensino. Isso posto, objetiva-se compreender o conhecimento requerido do participante do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) sobre tecnologia, tomando como exemplo questões da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (LCT) aplicadas nos anos de 2009, 2011 e 2020.

A análise tem como base a Teoria Crítica, que não propõe um método, assim como não é uma teoria pedagógica, mas apresenta elementos para a reflexão sobre o uso da tecnologia na educação, possibilitando que sejam evidenciadas as suas contradições. A Teoria Crítica permite pensar a educação contra a barbárie; portanto, remete à formação para a resistência.

Com a análise do conhecimento avaliado no Enem, busca-se compreender o que se espera do indivíduo na sua relação com o mundo tecnológico, ou seja, se está atrelado a competências e habilidades para o uso e identificação da tecnologia, ou se prevalece a formação voltada para a emancipação, a autorreflexão crítica e a tomada de consciência.

Sabe-se que a importância da tecnologia há muito tempo vem sendo discutida, com destaque para a facilitação da comunicação e a eficiência no meio educacional e profissional, tendo ganhado força no cenário da pandemia de covid-19, que reiterou e acentuou o uso da tecnologia na educação. Assim, neste artigo,1 busca-se compreender o que o exame requer de conhecimento técnico para o uso da tecnologia, bem como o que é avaliado no que diz respeito à reflexão crítica, função primeira da educação. A técnica é importante, mas a reflexão em relação ao seu uso está ligada à função da escola e ao ensino.

Para Marcuse (1999, p. 73), “a tecnologia como modo de produção” significa tudo aquilo que marca a época das máquinas, ou seja, os dispositivos, os instrumentos, as invenções para “organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais”; todavia, o autor destaca a forma como é usada como controle do pensamento e do comportamento humanos. A tecnologia moderna é direcionada por grupos sociais que ditam como utilizá-la, as mudanças explicitam a funcionalidade entre as pessoas, as coisas e, portanto, as relações sociais nas quais a liberdade e a autonomia do indivíduo não têm espaço, prevalecendo o controle de uns sobre os outros.

A formação para a resistência requer que se traga à consciência a ideia de contradição. Ou seja, requer o exercício contínuo de pensar as contradições. Pensar, por exemplo, que, apesar dos avanços tecnológicos, muitos indivíduos não possuem o básico para viver; e pensar que o fato de as pessoas trocarem mensagens, estarem conectadas, terem acesso à informação e opiniões não significa que elas tenham acesso ao conhecimento ou que haja reflexão sobre o informado, ou seja, não oportuniza a conscientização.

Em tal contexto, as inovações escamoteiam o que deveria ser garantido como base antes de qualquer novidade na educação: saber ler, escrever, interpretar com reflexão, ter liberdade de expressão. Ou como explica Crochík (2010, p. 184) “pensar nas implicações da tecnologia educacional em um país onde o analfabetismo atinge parcela da população é diferente de pensá-las em países onde esse problema não seja tão expressivo”.

Dessa forma, quando se tem a compreensão das contradições entre inovações tecnológicas na educação e treinamento, entre autoritarismo e liberdade, entre escassez e abundância, entre alienação e conhecimento, entre máxima eficiência na produção e opressão e miséria, há um caminho para vincular a informação como dado imediato do campo das vivências a um plano mais profundo, como possibilidade formativa, como experiência. Marcuse (1999) coloca em evidência a contradição da tecnologia, que não controla os indivíduos por meio da força física, mas pelo condicionamento do comportamento mediante a valorização de habilidades e competências a serem adquiridas em relação à maquinaria. Assim ele explica:

Na Alemanha nacional-socialista, o reino do terror é sustentado não apenas pela força bruta, que é estranha à tecnologia, mas também pela engenhosa manipulação do poder inerente à tecnologia: a intensificação do trabalho, a propaganda, o treinamento de jovens e operários, a organização da burocracia governamental, industrial e partidária - que juntos constituem os implementos diários do terror - seguem as diretrizes da maior eficiência tecnológica. Essa tecnocracia terrorista não pode ser atribuída aos requisitos excepcionais da “economia da guerra”; a economia de guerra é, antes, o estado normal do ordenamento nacional-socialista do processo social e econômico, e a tecnologia é um dos principais estímulos desse ordenamento. (Marcuse, 1999, p. 74).

Pelo exposto, além de analisar a necessidade de reflexão sobre o uso da tecnologia no contexto atual, é necessário discutir a ampliação do acesso às tecnologias digitais de informação e comunicação. Seu uso de modo alienado torna precárias as possibilidades da experiência e da própria formação cultural. Todavia, não está na tecnologia o caráter pseudoformativo, mas sim na apropriação ideológica do meio digital para a manutenção do status quo. Tanto o acesso à tecnologia quanto a reflexão ética sobre o uso da tecnologia na atualidade fazem parte do mesmo projeto de formação educacional reivindicada na crítica realizada neste estudo.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada para a análise das questões sobre a tecnologia no caderno LCT do Enem envolve duas ações: a escolha das provas e os elementos analisados nas questões. Em relação às provas, foram escolhidas: 1) a de 2009, em que a Matriz de Referência passa a ser por quatro áreas: Ciências Humanas e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2013); 2) a de 2011, porque foi a última prova com Relatório Pedagógico na época em que foi realizada a análise (Inep, 2015); 3) a prova de 2020, aplicada em 2021, ou seja, dez anos após a prova de 2011 e marco do exame em plena pandemia de covid-19.

Os elementos analisados nas questões são: o texto, as situações-problema, os enunciados e as alternativas. Neste artigo, serão destacadas algumas questões para exemplificar a análise, tendo em vista que as questões do exame, no geral, têm um padrão.

O estudo das questões do Enem sobre tecnologia é uma forma de entender as condições objetivas que direcionam o pensamento do indivíduo. Trata-se de uma importante avaliação nacional e que se fortalece a cada ano, desde a sua primeira edição, em 1998, como fruto de políticas públicas e de reformas educacionais. As competências e habilidades exigidas no exame expressam o conhecimento necessário para que o indivíduo saiba lidar com a tecnologia. Entende-se que esse conhecimento concretizado em uma avaliação em larga escala é também o conhecimento esperado pela sociedade que tem como discurso a inovação e o empreendedorismo.

Adorno (2005) argumenta que se vive “a crise do processo formativo”, porém não especificamente no âmbito educacional; para o autor, a formação é algo que ocorre não apenas no contexto escolar, mas sim no âmbito das relações, o que inclui as possibilidades de acesso à cultura. No contexto histórico atual, parte significativa do acesso aos processos culturais tem sido mediada por computadores, tablets e smartphones. Nesse caso, a técnica envolvida nos produtos culturais, bem como as formas que a cultura toma devido à indústria cultural, modifica o indivíduo e sua compreensão do mundo. Vale ressaltar que a técnica é diferenciada da tecnologia, mas há o momento em que as duas fazem parte uma da outra. A técnica está relacionada ao saber e às formas de expressão, como a arte, a ciência e a reflexão; contudo, quando é desenvolvida pela tecnologia e como reprodução no sistema da indústria cultural, ela se torna forma de dominação e de expropriação das singularidades e subverte a individualidade que fortalece a ideologia (Marcuse, 1999).

Com as análises de Adorno e Horkheimer (1985), compreende-se que a técnica aliada ao mundo administrado é um dos elementos contrários à consciência verdadeira, contrários à experiência. A educação mediada a partir de pressupostos tecnológicos, de consumo e do mundo do trabalho tende a aderir a recursos tecnológicos. Nesse modelo de planificação técnica do conhecimento, o ensino passa a ser promovido de modo a privar os alunos dos conhecimentos em seu movimento histórico, pois tal dinâmica carece de debate, discussão, reflexão em conjunto com os demais colegas e o professor. Os alunos e os docentes precisam dominar e utilizar os recursos tecnológicos atuais, todavia a própria reflexão sobre a tecnologia não ocorre. Como afirma Adorno (1995, p. 132), o que impera é o “véu tecnológico”, e as pessoas esquecem-se de que a técnica é a “extensão do braço dos homens”.

Na análise das questões do Enem sobre tecnologia, compreende-se que as qualidades universais do indivíduo, como fantasia, indignação, liberdade, felicidade, foram transformadas em qualidades subjetivas, como a criatividade, o talento, a autonomia, entre outras, que remetem a uma felicidade no plano dos sentidos, ou seja, qualidades controláveis. Não era mais possível usar o corpo dos dominados como fonte de fruição para o mercado, explica Marcuse (2001), mas, dessa forma, é possível a fruição da mente, o que possibilita ao próprio indivíduo vender sua força de trabalho livremente, por meio de suas próprias decisões. De acordo com o autor (2001, pp. 46-47), é o que faz a “ideologia patriarcal-burguesa se pautar em raízes sociais e psíquicas”.

Para Marcuse (1999, p. 77), “a racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica”. Portanto, as novas qualidades humanas não se restringem aos indivíduos ligados às grandes empresas, sendo “um modo difundido de pensamento”, estabelecendo padrões de julgamentos e atitudes. As qualidades referentes à percepção e ao conhecimento tornam-se competências e treinamentos ordenados numa atuação padronizada.

Enem e tecnologia: da inovação à crise da formação na sociedade unidimensional

Alguns exemplos da tecnologia voltada ao uso, ao treinamento, à identificação podem ser visualizados nas questões do Enem dos anos de 2009, 2011 e 2020, que trazem as competências e habilidades como base, ou seja, as competências que avaliam o uso da tecnologia dizem respeito à competência de área 1, voltada para o uso da tecnologia. Também há a competência 9, que avalia o impacto tecnológico (Inep, 2013). Tanto a competência 1 quanto a 9 avaliam se o leitor é capaz de identificar, relacionar, reconhecer e resolver uma situação-problema; portanto, percebe-se que, mesmo que as competências mudem o foco da avaliação da questão, ou seja, do uso das tecnologias para o reconhecimento do seu impacto, prevalecem as mesmas orientações em relação às habilidades: identificar, recorrer, relacionar.

Fonte: Inep (2009, p. 2).

FIGURA 1 Questão n. 93 do Enem de 2009 

O conteúdo apresentado na questão diz respeito ao uso das redes sociais e está disposto em uma tabela, com o objetivo de avaliar se o leitor compreende que se trata de um teste que classifica a pessoa que utiliza essas redes como pragmática, fanática ou aprendiz. Trata-se, portanto, de uma “pesquisa” que reproduz uma situação comum em redes sociais. Avalia a competência de área 1, que consiste em “aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida”, e a habilidade 3, de “relacionar informações geradas nos sistemas de comunicação e informação, considerando a função social desses sistemas” (Inep, 2013, p. 20). No que se refere à capacidade de o leitor relacionar informações, resume-a, basicamente, à capacidade de usar uma rede de relacionamento. A situação-problema consiste em classificar as pessoas conforme seus comportamentos em sites de relacionamento e, mediante a identificação, aplicar uma correção para o desvio.

Essa classificação mostra como são criados os estereótipos do ser humano, ou seja, generalizando comportamentos, aspectos físicos e cultura. Como explica Türcke (2010, p. 38), “quem quer pertencer à sociedade tem que treinar como andar ereto, dizer frases inteiras, lavar-se, ler, calcular, escrever - puras habilidades que nunca entrariam no repertório humano sem coação”.

Dessa forma, é preciso saber comportar-se no mundo virtual. Para avaliar o conhecimento do leitor sobre a utilização da tecnologia, é apresentada a descrição de possíveis resultados de um teste de internet. Estabelecendo uma analogia com o que afirma Marcuse (1973, p. 183), pode-se dizer que “devemos usar os mesmos têrmos para descrever os nossos automóveis, alimentos e móveis, colegas e competidores - e nos entendemos uns aos outros perfeitamente”, ou seja, a linguagem tecnológica cria estereótipos e classifica os sujeitos.

Os enunciados que acompanham esse texto “ensinam”, na medida em que, no enunciado geral, informam que a tabela apresenta resultados de um teste de internet, ou seja, algo já realizado, embora digam que é para o leitor analisar. O enunciado específico aponta que os resultados apresentam hábitos e mudanças de comportamentos, ou seja, solicita ao leitor avaliado que acate as afirmações; ressalta, ainda, que há preocupação em relação aos hábitos, e que o teste estabelece um perfil, o que nos faz retomar Marcuse (1973, p. 19), quando fala que não é possível considerar a neutralidade da tecnologia, pois ela “opera no conceito e na elaboração das técnicas”. A própria tecnologia analisa e orienta comportamentos. Observa-se a reiteração de uma forma de crença em que um teste de internet é capaz de classificar todas as pessoas em três modalidades, a exemplo dos signos do zodíaco.

O teste orienta e, contraditoriamente, é o próprio site que comanda e mantém o internauta refém de hábitos predefinidos por um teste da internet; são hábitos que podem se assemelhar aos exigidos em situações avaliativas, nas quais cabem ao leitor as alternativas sugeridas. As alternativas da questão do Enem dão pistas de que o teste apresenta a preocupação com o usuário “fanático”, ou seja, o “usuário que reserva mais tempo aos sites de relacionamento do que ao convívio pessoal com os amigos”; em outras palavras, avalia o reconhecimento da utilização de sites, e não o conhecimento de que se trata de hábitos precondicionados, muito bem programados, a que todos estão expostos diariamente.

É preciso mencionar que o Enem é aplicado em diversas regiões do Brasil e que, mais do que atualmente, em muitas não havia acesso à internet em 2009, tampouco a redes de relacionamentos; portanto, mesmo que, à primeira vista, a questão possa parecer de nível fácil, pode ser difícil para quem não seja usuário de um tipo de tecnologia cujo domínio e uso possa significar acesso a informações, embora se apresente como representante de uma “sociedade do conhecimento”.

Fonte: Inep (2009, p. 8).

FIGURA 2 Questão n. 110 do Enem de 2009 

Considerada de desempenho médio, a questão contempla a competência de área 1, que visa avaliar a capacidade de “Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida”, e a habilidade 3, avaliando a capacidade de “relacionar informações geradas nos sistemas de comunicação e informação, considerando a função social desses sistemas” (Inep, 2013, p. 18). É interessante observar que a questão do acesso à tecnologia é colocada como sinônimo de acesso ao conhecimento. Portanto, é preciso refletir sobre o fato de que se trata de uma questão de uma avaliação nacional, em 2009, que considera o uso da tecnologia da informação como algo comum a todos os sujeitos dos diferentes rincões do Brasil e independentemente das suas condições econômicas e sociais. Refere-se à existência de um portal que disponibiliza obras como sinônimo de democratização do conhecimento, sem fazer menção às condições objetivas necessárias para tal, como acesso a computador, celular, internet, conhecimento sobre a forma de navegação, até o nível de leitura dos sujeitos. Como um portal de domínio público pode ser considerado instrumento de democratização do conhecimento se o meio para o acesso não é democratizado? Sem desconsiderar a importância desse portal, há que se refletir sobre o acesso à educação como direito de todos e sobre a desigualdade que impossibilita esse direito.

Como um texto pode avaliar a reflexão sobre o portal se um número expressivo de pessoas não tem contato com a tecnologia? O Portal Domínio Público é importante porque, de fato, possibilita o compartilhamento de muitas obras, contudo não está nele a garantia da democratização do conhecimento. O próprio conteúdo da questão já descarta as pessoas que não tenham acesso à tecnologia da informação; talvez por isso seja considerada como desempenho médio, já que, do ponto de vista da compreensão do texto, as informações estão explícitas, mas, se o leitor não souber o que significa “Domínio Público”, a questão não lhe fará sentido. O leitor pode, também, inferir o que significa, se souber cada palavra separadamente; todavia, trata-se de informação mediante a palavra, e não de conhecimento sobre o fenômeno na relação com os fatores que nele estão envolvidos.

O enunciado “Considerando a função social das informações geradas nos sistemas de comunicação e informação, o ambiente virtual descrito no texto exemplifica” informa e afirma o uso do ambiente virtual, sem fazer referência ao conhecimento do leitor sobre esse ambiente. Conduz o leitor à escolha de uma alternativa que aponta a tecnologia como algo positivo, sem possibilitar a reflexão sobre a sua ambiguidade.

As alternativas conferem ao portal o status de poder levar o leitor a compreender a democratização da informação. A resposta correta, além de afirmar que o acesso à internet corresponde à democratização da informação, por meio da disponibilização de conteúdo cultural e científico à sociedade, ratifica o conteúdo do texto, que põe em primeiro plano o uso do portal e a sua função social de democratizar o conhecimento. Da mesma forma, outras três alternativas, mesmo não sendo corretas, tratam da tecnologia como ampliação e possibilidade de interação, de acesso a diversas produções culturais e de facilidade de acesso dos acadêmicos e educadores à cultura disponibilizada na internet. Assim, não há abertura para reflexão sobre o conteúdo das alternativas; elas estão fechadas e direcionadas para o pensamento afirmativo a respeito do uso da tecnologia para a democratização do conhecimento. De certa forma, tal como as alternativas de outras questões, presta-se mais a informar o leitor do que a avaliar, de modo a retroalimentar o sistema escolar.

É interessante destacar que essa questão foi aplicada na prova do Enem de 2009; todavia, depois de quatro anos, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apresentou um estudo intitulado O uso da internet por adolescentes, demonstrando que 70% dos aproximadamente 15 milhões de adolescentes tinham acesso a computador e internet, mas um número importante estava fora desse público, cerca de 30% dos jovens, ou seja, aproximadamente 6 milhões de adolescentes (Fundo das Nações Unidas para a Infância [Unicef], 2013). Para uma melhor reflexão sobre o conteúdo de questões que fizeram parte do Enem, vale trazer o convite que a Unicef fez ao debate:

Quantos são afinal os adolescentes excluídos da internet? Por esta pesquisa, seguindo os padrões internacionais, os adolescentes excluídos da Internet somam aproximadamente 30%. No entanto, é importante ressaltar que mesmo entre estes, 9% acessam a Internet com freqüência abaixo de uma vez por semana. É preciso questionar se estes meninos e meninas possuem uma vivência satisfatória dessa ferramenta, ou seja, se de fato possuem seu direito de acesso garantido. (Unicef, 2013, p. 11).

Em 11 de dezembro de 2017, o jornal El País apresentou reportagem intitulada “Acesso à tecnologia: o novo indicador de desigualdade” (Peiró, 2017), cujo lide afirmava: “Relatório da Unicef mostra como as enormes lacunas no acesso à internet na infância afetam a educação e entrada no mercado de trabalho”. O texto dizia que “o mundo digital com todas as suas vantagens não chega a todos da mesma forma. O acesso à internet pode marcar a diferença entre a exclusão social e a igualdade de oportunidades”.

Já o relatório Information Economy Report 2017: Digitalization, trade and development (United Nations Conference on Trade and Development [Unctad], 2017) apresenta o Brasil como o quarto país com maior número de pessoas conectadas. É importante destacar que a pesquisa tem a intenção de verificar a propensão de os internautas realizarem compras on-line, em que as habilidades digitais são necessárias, ficando claro o motivo da preocupação com a democratização da tecnologia e do domínio do seu uso. Dessa forma, vários estudos têm explorado questões relativas a países em desenvolvimento, ao comércio e à digitalização, evidenciando impactos mensuráveis da internet que são influenciados pelo contexto econômico e institucional (Unctad, 2017, p. 43, tradução nossa). Segundo esse relatório, o Brasil está entre as “Top 10”, ou seja, está entre as dez principais economias pelo valor agregado dos serviços de Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC), em 2015. A Unctad (2017) mostra o Brasil em sétimo lugar, com o valor de 54 bilhões de dólares em TDIC, produção de serviços de informações e serviços de comunicação.

Observa-se que não considera o contexto apresentado anteriormente pela Unicef (2013) e é contraditório a outra pesquisa da Unicef (2018), a qual revela que seis em cada dez crianças vivem em pobreza extrema no Brasil, ou seja, 60% das crianças e dos adolescentes são pobres. Isso não significa somente em relação à renda, mas ao acesso ao conhecimento, à internet e à educação; em outras palavras, é uma “pobreza multidimensional” (Unicef, 2018).

Fonte: Inep (2011, p. 19).

FIGURA 3 Questão n. 135 do Enem de 2011 

Considerada uma questão de desempenho médio, com 52% de acerto pelos participantes (Inep, 2015, p. 135), seu texto apresenta a ferramenta digital Twitter, colocando-a como instrumento importante para o aprimoramento da escrita. De forma positiva, enaltece a concisão, ou seja, uma escrita com precisão, cujo conteúdo não importa, podendo, inclusive, ser uma fofoca. Ao leitor, cabe identificar a situação-problema que coloca o Twitter como recurso vital; portanto, avalia o impacto da tecnologia na formação de comportamentos em diferentes âmbitos, inclusive na capacidade de utilizar poucas palavras para transmitir uma mensagem. Por isso a comparação do ato de escrever com o ato animal de piar.

Avalia a competência 9 e a habilidade 29, ou seja, se o leitor é capaz de reconhecer o impacto das tecnologias de informação na vida pessoal e social dos sujeitos (Inep, 2013). Avalia se o leitor identifica o Twitter como uma forma de levar o usuário a produzir frases claras e objetivas, já que existe um limite de caracteres a ser utilizado. Em vez de levar o leitor a refletir sobre as implicações de uma ferramenta, com a qual o seu usuário deve expressar-se com no máximo 140 caracteres, sobre o desenvolvimento do pensamento dos sujeitos, sobre a sua formação, sobre a sua personalidade, sobre a sua capacidade de expressar e de debater ideias, sobre a sua capacidade de argumentar, exalta-a como uma forma moderna de os indivíduos se expressarem, independentemente do assunto e da sua qualidade. A experiência se distancia, já que a reflexão e o pensamento são substituídos pela situação cotidiana. Trata-se de uma ferramenta que afasta a possibilidade de contraposição, de contradição, como explica Marcuse (1973, p. 32):

Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que êles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida . . . . Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais.

O Twitter não diz respeito somente à concisão na escrita, mas ao hábito de limitar o pensamento, servindo para a expressão de opiniões sobre fatos do cotidiano e, recentemente, como veículo de campanha eleitoral e de comunicação “oficial” do poder executivo - “serve para coordenar idéias e metas com as que são reclamadas pelo sistema prevalecente, para incluí-las no sistema e para repelir as que sejam irreconciliáveis com o sistema” (Marcuse, 1973, p. 33).

Novamente a tecnologia é enobrecida no enunciado - “o Twitter se presta a diversas finalidades, entre elas, à comunicação concisa” -, sendo o leitor direcionado a entender positivamente as finalidades da ferramenta e já sendo informado de que a resposta correta tem a ver com a comunicação concisa.

Entre as alternativas, as que trazem informações negativas sobre o Twitter, por exemplo, “interfere negativamente no processo de escrita” e “é restrita à divulgação de textos curtos e pouco significativos”, apesar de serem verdadeiras do ponto de vista do seu conteúdo, contradizem a resposta considerada correta - “estimula a produção de frases com clareza e objetividade” - ou seja, a questão apresenta um texto que exalta o fato de haver uma forma de comunicação moderna que instrumentaliza o pensamento. Para acertá-la, é necessário prestar atenção no enunciado e relacionar aos termos “concisas”, “clareza” e “objetividade”, sem refletir sobre o próprio conteúdo apresentado pelo texto.

Fonte: Inep (2011, p. 6).

FIGURA 4 Questão n. 97 do Enem de 2011 

O texto do gênero infográfico tem como característica a ênfase em elementos gráfico-visuais, ou seja, há elementos como fotografias, desenhos, diagramas, entre outros, juntamente com textos. É um texto da revista Superinteressante que, apesar de retratar um gênero textual, apresenta como situação-problema os prós e contras para a escolha ou não da amizade pelo uso da tecnologia para a comunicação e a relação entre as pessoas. A amizade, relação destacada, é inserida num contexto tecnológico e sem humanidade, é dividida em “amizade simétrica” e “amizade assimétrica”, que podem ser firmadas via sites e outras formas virtuais, sendo modos estereotipados de dividir o ser humano.

Embora haja conceitos da matemática numa questão sobre o uso da tecnologia, o que amplia a possibilidade de pensar além do que apresenta o texto, a simetria, implicando harmonia de representação de duas figuras idênticas que se correspondem ponto a ponto, e a assimetria, que diz respeito às diferenças proporcionais nas figuras, o que exigiria do leitor o conhecimento de outras áreas, por esse infográfico o leitor é direcionado a pensar esses termos próximo do conceito de reciprocidade ou não reciprocidade nas relações humanas.

O tema da questão leva o leitor a centrar-se no uso da tecnologia para escolher suas amizades e a forma como se relacionar, o que já é algo do cotidiano de muitos; aquele que não aderiu a essa forma se vê excluído da própria “convivência”, já que esta se tornou virtual. Para Costa (2002, p. 22), em Estética da violência, a mass media estabelece “modelos de personalidade, a estereotipia de natureza etnocêntrica e discriminatória contra minorias sociais e a criação de expressões e juízos que substituem rapidamente o pensamento autônomo e firmado na experiência”.

Essa forma de classificar a amizade promove o que Türcke (2010, pp. 76-77) chama de “déficit de tato”, a perda de experiências, ou, como o autor o explica, “a perda em palpabilidade será tão mais opressivamente vivenciada quanto mais difusa, quanto mais aquilo que se perde não forem objetos determinados, mas a própria objetivação”. Nas condições audiovisuais na identificação de “amizades pós-modernas”, o leitor é levado a classificar as amizades, a usar a tecnologia para esse fim, quando a (i)racionalidade desse processo poderia ser o centro da reflexão. Seria interessante pensar que a mesma ferramenta que possibilita a aproximação é a que possibilita o distanciamento; a mesma ferramenta que possibilita tudo saber da vida dos “amigos” é a que faz com que ninguém saiba nada dos amigos, sobre seu sofrimento, angústia, já que as divulgações são, geralmente, aparências que a sociedade do espetáculo valoriza.

O enunciado avalia se o leitor sabe o significado de uma amizade assimétrica na internet, ou seja, ele não precisa ler o infográfico todo, nem mesmo buscar o conhecimento da área da matemática, pois é direcionado pontualmente para o termo assimétrico e o seu significado na tecnologia, nas redes sociais. Nesse sentido, o leitor necessita conhecer o significado de assimétrico, reciprocidade, simétrico e comunidade, o que é importante, mas estão retidos num universo tecnológico e de controle, porque se tornam conceitos ligados a um estilo de vida, a um “padrão de pensamento e comportamento unidimensionais”, tornam-se operacionais (Marcuse, 1973, p. 32).

As alternativas ratificam os pontos positivos do uso da internet para a relação entre pessoas e destacam como a alternativa correta a que remete o fato de as pessoas terem interesses comuns ao conceito de comunidade. Os prós e os contras são apontados como fatos, não como aspectos sobre os quais refletir. Ou seja, todas as alternativas centram-se numa amizade funcional e não extrapolam na reflexão sobre o que se tornaram as relações humanas.

A alternativa correta relaciona o termo assimetria à “facilidade de interação entre as pessoas em virtude de interesses comuns”; portanto, afasta-se do que assimetria representa - a falta de igualdade e de semelhança -, o que por sua vez se afasta do conteúdo apresentado no infográfico a respeito da amizade assimétrica ligada à não reciprocidade, que significa que um amigo pode seguir o outro sem o seu consentimento. Ou seja, primeiro a alternativa relaciona assimetria com a facilidade de interação, o que é contraditório; ao mesmo tempo, afasta-se do conteúdo do infográfico, que informa que seria uma amizade que existe sem que uma das partes saiba.

Coloca-se a questão para falar da tecnologia; contudo, também retrata a sobreposição dos gêneros textuais em relação ao conhecimento que veicula. Mais uma vez é marcada a forma estereotipada de conceber o ser humano. Para Adorno et al. (1950, p. 623, como citado em Crochík, 2006, p. 133),

. . . quanto mais estereotipada se torna a vida, tanto mais seguro se sente o estereopata, tanto mais vê confirmado pela realidade o seu modo de pensar: As comunicações de massa modernas, modeladas à imagem da produção industrial, difundem todo um sistema de estereótipos que, se bem em essência seguem sendo “incompreensíveis” pelo indivíduo, lhe permitem aparecer em qualquer momento como pessoa bem informada que “está a par de tudo”.

A tecnologia cria estereótipos para que os indivíduos se enquadrem nessa forma. Isso nos remete ao aforismo “mãos de tesoura”, em que Adorno (2008, p. 37) retrata as relações humanas que, outrora, possibilitavam uns tirarem os chapéus aos outros; agora, em vez de cartas, as pessoas se comunicam por “office communications”, sem ao menos cabeçalho e sem remetente. Se atualizar a crítica de Adorno, pode-se dizer que, na era da internet, do WhatsApp, dos e-mails, do Twitter, do Facebook e de outras redes sociais, dos jornais on-line abertos a comentários de leitores, dentre outros, vive-se um monólogo, embora todos falem com todos. Não se trata de saudosismo, mas a possibilidade de rememorar experiências, não somente em busca de cortejos e delicadezas, mas de não permitir que a barbárie se repita.

Fonte: Inep (2020, p. 7).

FIGURA 5 Questão n. 12 do Enem de 2020 

O conteúdo é apresentado em texto imagético. O texto visual permite que o leitor processe a leitura mais rapidamente do que por um texto escrito, muito próximo da lógica tecnológica, que permite que o usuário realize múltiplas leituras por hipertexto. A questão avalia a competência de área 9 e a habilidade 29 (Inep, 2013), ou seja, a capacidade de identificar a tecnologia da informação e comunicação. A situação-problema requer apenas que o avaliado compreenda a imagem do ser humano rodeado por informações sem a necessidade de mover o corpo, em que as imagens chegam até o indivíduo com velocidade, simultaneidade e quantidade expressivas.

O enunciado limita a compreensão da imagem, conceituando a realidade virtual como tecnologia da informação e principalmente apresentando a sua funcionalidade. A mímesis, quando o exterior se torna o modelo ao qual o interior se ajusta, tornando o estranho familiar (Adorno & Horkheimer, 1985), é controlada pelo ambiente virtual que a realidade virtual e a realidade aumentada possibilitam ao indivíduo. A realidade virtual controla a reação orgânica ao medo, a alegria, a adrenalina por meio de gadgets, como os óculos, sensores que fazem o corpo ter a experiência mediada da sensação de que está vivendo aquele momento por meio de efeitos sonoros, visuais e táteis. Assim como controla a informação acessada e favorece a “passagem da mimese refletora para a reflexão controlada”, o corpo/interior se ajusta ao ambiente (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 169).

Também a falsa projeção não é menos preponderante nessa tecnologia de informação, pois é verdadeira a transposição do interior do indivíduo para o exterior, e “caracteriza o mais familiar como algo de hostil” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 174). Nesse mundo virtual, o indivíduo tem dificuldades de discernir o que é real do que é virtual, assim como na falsa projeção o sujeito é incapaz de “discernir no material projetado entre o que provém dele e o que é alheio” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 175).

As alternativas apresentam a manipulação de conhecimento, escolhas profissionais e mais emoção nos jogos virtuais. A leitura das alternativas não leva ao pensamento dialético, apenas à irracionalidade da funcionalidade da realidade virtual para o êxito e emoções na vida cotidiana. Não há o pensamento em relação à tecnologia e à coletividade, ou à tecnologia e ao indivíduo, mas à tecnologia e aos ambientes virtuais que ela mesma promove. Nesse sentido, até mesmo o indivíduo é desconsiderado. Não há possibilidade de essas alternativas induzirem a pensar a retomada histórica com o uso da realidade virtual, nem a elaborar o passado, considerando que, para que a tecnologia possa revisitar o passado, é preciso que o pensamento e as emoções estejam controlados.

Fonte: Inep (2020, p. 13).

FIGURA 6 Questão n. 29 do Enem de 2020 

Com um texto informativo, a questão busca oportunizar elementos ao leitor para que reflita sobre o preconceito e o uso da tecnologia de informação e comunicação num software antigo utilizado pela universidade britânica de medicina de St. George para seleção de candidatos para entrevista, programado com critérios de sexo e origem racial, relacionando-o com a ferramenta Google. A impressão que o texto passa ao avaliado é de que são as ferramentas que discriminam, e não o contexto social no qual estão inseridas.

A questão avalia a competência de área 1 e a habilidade 3 (Inep, 2013, p. 18), propondo ao indivíduo que relacione as informações que são “geradas nos sistemas de comunicação e informação” para mostrar situações sobre a sociedade. Desse modo, a situação-problema consiste em que o participante compreenda que a forma como a triagem dos candidatos foi realizada há anos pela faculdade de medicina ainda persiste, também por meio da tecnologia. Envolve tecnologia e tema atual sobre o preconceito. As tecnologias de informação e comunicação seriam o “disfarce da injustiça objetiva”, havendo “a crítica, mediante esses meios, à técnica e às injustiças sociais, mas eles, em si mesmos, por vezes, não são criticados” (Crochík, 2003, p. 97). O meio reproduz aquilo para o que foi programado, a sua criação não é independente da sociedade, mais especificamente depõe sobre a sociedade excludente. A técnica não é neutra.

Contudo, o texto não deixa espaço para compreender a história da discriminação, embora cite que ocorreu há tempos e que recentemente ainda ocorre o preconceito, mas como fruto da tecnologia, e não do poder de uns sobre outros. Um texto como esse não deixa espaço para o avaliado perceber que ele mesmo é alvo de discriminação quando muitos não tiveram a possibilidade de se preparar para o Enem por falta de tecnologia.

O enunciado orienta para a resposta correta e direciona o pensamento para a tecnologia promotora do preconceito. As alternativas revelam a resposta correta, já que é, dentre elas, a única ligada diretamente às palavras “negros”, “origem racial” e “sexo”.

CONCLUSÕES

A Teoria Crítica, desde seu nascedouro, propôs-se a analisar a razão como instrumento a serviço da dominação social. O que se verifica no Enem é uma forma de atualização dessa instrumentalização. As análises das questões mostram que a avaliação no Enem sobre a tecnologia expressa essa orientação ideológica ao questionar o estudante sobre o uso instrumental da tecnologia, sem questionar também sobre as formas de superação da instrumentalização do conhecimento mediante a tecnificação da vida. O caráter excludente do modelo social vigente fica evidente quando ignora que uma parcela significativa de jovens, público majoritário do Enem, não tem acesso às TDIC ou mesmo à internet.

Quando a tecnologia é desvinculada das questões políticas, econômicas, sociais e culturais e das formas de dominação da sociedade, é certo que haja a exaltação do progresso tecnológico. Nesse sentido, consagram-se discursos em que a tecnologia é superior ao que é antiquado, ultrapassado; assim, as vantagens “da digitação sobre a escrita, todas as vantagens da fotografia sobre a pintura, todas as vantagens do romance filmado sobre o escrito” (Crochík, 2003, p. 98). Acontece que, com essas “vantagens”, todo o processo que desenvolve o pensamento, a linguagem, a experiência do indivíduo se esvai.

Quando é possível compreender o conhecimento que envolve o pensamento sobre a tecnologia na educação, fica nítida a proximidade com a racionalidade industrial. A partir da pesquisa realizada sobre as questões do Enem, os resultados das análises mostram que a prova avalia se o participante sabe ou não usar a tecnologia, o que já exclui de imediato quem não tem acesso à tecnologia e que, portanto, é contrário ao discurso democrático da avaliação. A apreciação das questões específicas para a tecnologia leva à compreensão de que estão voltadas para a eficiência na sociedade unidimensional. Para Marcuse (1973, p. 144), “a racionalidade e a manipulação técnico-científicas estão fundidas em novas formas de controle social”. Embora se trate de avaliação, por meio dela é possível perceber como os itens são abordados e que, da forma como são apresentados, estão mais para informar do que para avaliar.

Diante desse controle, é preciso ressaltar que a tecnologia trouxe avanços em muitas áreas, mas ela é, como afirma Marcuse (1973, p. 150), “indiferente aos fins políticos - pode revolucionar ou retardar uma sociedade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo tempo a uma administração capitalista ou socialista”. E, em vez da “instrumentalização das coisas”, torna-se “instrumentalização dos homens”, em vez de “Logos da técnica”, transformou-se em “Logos da servidão contínua” (Marcuse, 1973, p. 154).

Adorno explica, em “Imagem enigmática”, que, no capitalismo tardio, em que o desenvolvimento técnico abriria espaço para todas as funções, qualquer indivíduo poderia alcançar o privilégio da admissão no topo; contudo, o que prevalece é que cada indivíduo pode ter o privilégio, mas será chamado, preferencialmente, aquele que melhor se adapta, constituindo a elite, a minoria. Esse mesmo indivíduo faz parte também da mobilidade da ordem econômica e está sujeito a cair não por incompetência, mas porque a insegurança é uma igualdade que ameaça a todos. “A desqualificação dos homens converte-se em sua igualdade” (Adorno, 2008, p. 190).

Ao destacar as contradições que envolvem a tecnologia, Marcuse (1999, pp. 77-78) a considera como um processo social e ao mesmo tempo como um “fator parcial”. Se, por um lado, a tecnologia pode ser considerada uma forma de controle em que o homem se torna “personalidade objetiva”, em razão de sua aptidão e conhecimento serem transformados em treinamentos; por outro lado, ela seria a possibilidade da transcendência, haja vista que tem potencial para levar à transformação social, desde que a competição estimulada ao longo de seu desenvolvimento histórico se converta em cooperação. A exclusão de seus objetivos competitivos permitiria ao homem o desenvolvimento das suas raízes naturais, e permitiria “individualizar-se” com vistas à realização humana (Marcuse, 1999, p. 103).

Nesse sentido, ao considerar o processo social que constitui a tecnologia, Marcuse (1999) deixa perceber seu potencial emancipatório, ou seja, a possibilidade de se constituir como instrumento para o desenvolvimento da consciência histórica, na medida em que contribui para a percepção de que o progresso mediado pela tecnologia na contemporaneidade traz em si a barbárie. A apologia à tecnologia leva “os homens a desacreditar nos instrumentos potenciais que poderiam libertá-los”, retirando a possibilidade de acesso à técnica com vistas à democratização e à realização humana em sua plenitude (Marcuse, 1999, p. 101). O progresso tecnológico aponta para a economia de tempo e energia em prol das necessidades da vida, o que culminaria em abundância, mas a labuta, a fome e a escassez permanecem. Além disso, aqueles que dizem ter aversão à técnica se alinham à tecnocracia terrorista, de modo que a vida digna de ser vivida e a paz prometida pelos avanços tecnológicos permanecem abaladas pelas constantes ameaças de guerra.

Daí a importância de se pensar a relação entre educação e tecnologia de duas formas, ou seja, entender que, por um lado, essa relação pode reproduzir a sociedade alienada, mas, por outro lado, ela também pode oferecer as condições para a resistência (Maia, 2009).

Nessa perspectiva, convém questionar: qual conhecimento sobre tecnologia é necessário ao indivíduo? Pela avaliação, assim como pelos documentos citados neste texto, compreende-se que a sociedade requer pensamentos uniformizados não para a reflexão, mas para o uso da tecnologia. As questões das provas analisadas apresentam o mesmo padrão, por vezes textos que poderiam suscitar reflexões importantes; contudo, o enunciado e as alternativas limitam o participante a pensar no uso das tecnologias. As competências e habilidades não permitem que o indivíduo extrapole o pensamento, e o conhecimento fica ligado ao imediatismo do saber fazer para resolver situações-problema. Portanto, não há mudanças em relação ao que é avaliado do participante em termos de conteúdo e forma nas provas de 2009, 2011 e 2020.

O conhecimento sobre a tecnologia deve envolver a tomada de consciência e a autorreflexão crítica sobre a própria tecnologia para além do saber usar envolvido em propostas que têm por base as competências e habilidades que impedem o indivíduo de compreender as contradições de uma sociedade unidimensional. Diferentemente desse pensamento, o conhecimento exigido sobre a tecnologia, possível de ser visualizado a partir do Enem, está voltado à eficiência e à aplicação sem que sejam reveladas as contradições que a perpassam. Dessa forma, o indivíduo é impelido para a adaptação irrefletida à sociedade.

Essas exposições sobre a avaliação da tecnologia no Enem não significam aversão ao uso das tecnologias, mas sim a necessidade de colocá-la em contradição, para que o indivíduo não sucumba à submissão alienada aos fins. Para tanto, a crítica deve ser permanente.

1 Este artigo apresenta partes da tese de doutorado de Santa Bárbara (2019).

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Recebido: 23 de Maio de 2022; Aceito: 06 de Outubro de 2023

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