Introdução
Situadas geopoliticamente no sul global, nós, mulheres negras gestamos um pensamento fronteiriço denominado de hermenêutica negra feminista.1 Sua tarefa principal consiste em reabilitar a nossa ancestralidade no mundo bíblico, para contribuir com a reconstrução de nossa identidade afro-feminista. Falamos em reconstrução porque temos consciência dos danos do racismo epistêmico e ontológico sobre nossa subjetividade e na relação intersubjetiva. Racismo esse que levou à invisibilização de nossa ancestralidade no mundo bíblico, que legitimou e ainda legitima as múltiplas formas de violência contra as culturas e religiões de matriz africana. Cremos, portanto, que a superação do racismo e, consequentemente, da intolerância religiosa, passa pela reabilitação da presença negra na Bíblia. Falamos de recuperar a presença negra na Bíblia por dois motivos. Primeiro, porque essa presença não é evidente, visto que o processo tradutório e interpretativo a invisibiliza (Maricel MENA LÓPEZ, 2006, p. 23). Segundo, tal invisibilização contribuiu para que a Bíblia servisse de “ferro em brasa” para legitimar a escravidão e a desumanização dos povos de origem africana por meio da conquista e da colonização. Por isso se faz necessário o imperativo da decolonização2 da teologia e da Bíblia, para que elas recuperem a sua essência decolonial. E cremos que isso passa pela reabilitação de suas raízes afro-asiáticas.
Por outro lado, o desenvolvimento de uma hermenêutica negra feminista decolonial implica o processo de emancipação e libertação da sujeita negra, que assume a sua exclusão como locus enunciativo - e neste lugar marginal elaborar um conhecimento a partir, por e para as sujeitas que habitam a sua exclusão com criatividade (Patricia Hill COLLINS, 2016, p. 100). Na esteira do pensamento feminista negro, isso só é possível quando nós, mulheres negras, reconhecemos que desfrutamos de certo “privilégio epistemológico” (Joaze COSTA-BERNARDINO; Ramón GROSFOGUEL, 2016, p. 18), de alguém que desfruta do status de uma “estrangeira dentro” (COLLINS, 2016, p. 100). Trata-se, de um lado, de habitar a exclusão com consciência de sua marginalização e, por outro lado, de assumir um compromisso ético-político na produção de um conhecimento fronteiriço que se elabora a partir da experiência subalterna.
Uma hermenêutica negra feminista em perspectiva decolonial não apenas desconstrói as interpretações racistas e sexistas, mas também coloca em relevo as resistências epistêmicas que podem consistir em testemunho de um projeto comunitário do bem-viver, uma política outra, no qual a mulher negra exerce um poder participativo e inclusivo. Trata-se de colocar em evidência que se, por um lado, a teologia e a Bíblia legitimaram os projetos de dominação, por outro lado, no seu interior encontramos narrativas que dão testemunho de memórias de outros tempos, que podem constituir vestígios da resistência dos sujeitos negados e invisibilizados. Neste horizonte, reconstruir “genealogias perdidas” (Walter MIGNOLO, 2007, p. 26) se torna o núcleo do desenvolvimento de uma hermenêutica negra em perspectiva decolonial, que contribua para a reconstrução do nosso imaginário sociorreligioso de que um outro mundo é possível, urgente e necessário. Faz-se necessário, antes, porém, desvelar o papel do cristianismo imperial na estruturação e manutenção do sistema-mundo, passando pela crítica desconstrucionista até a crítica decolonial, para que ele possa recuperar a sua essência, isto é, o seu messianismo originário.
1 Da cristandade ao messianismo
Os pós-modernos desconstrucionistas não veem saída da crise civilizatória sem assumir o humus cristão da sociedade, pois o consideram um dos elementos estruturantes do Ocidente, como se houvesse uma simbiose entre Ocidente e cristianismo.3 Esta nova racionalidade faz severas críticas ao cristianismo, mais especificamente à cristandade, em seu vínculo com a vontade de poder e a cumplicidade com o pensamento totalitário que o influenciou por séculos. Para o cristianismo, assumir essa crítica pós-moderna implica renunciar os aspectos totalitários e recuperar sua essência kenótica enquanto esvaziamento de si mesmo (Cleusa CALDEIRA, 2018a, p. 1276-1286). E isso em função da sua identificação com uma forma de relato unívoco de totalidade e de seu discurso absoluto antropocêntrico e do desejo de onipotência que o atravessou por séculos de história.
Inserido na crítica niilista, o cristianismo se abre à reabilitação de sua experiência fundacional pascal de Cristo, que do ponto de vista antropológico e fenomenológico assume o rosto da superação do ódio e o nascimento de uma identidade relacional marcada pela gratuidade amorosa. Nesse horizonte, o traço característico do cristianismo pós-moderno passa pela reabilitação do messianismo originário como uma experiência da temporalidade messiânica e kairológica; da subjetividade redimida de sua violência fratricida e sororicida que encontra sua concreção histórica na vida das vítimas da história, que seguem imitando o desejo de autodoação do Messias Jesus (CALDEIRA, 2018b, p. 315-319).
Contudo, como aponta Nelson Maldonado-Torres (2008), mesmo fazendo severas críticas à Modernidade, a racionalidade pós-moderna acabou “esquecendo a colonialidade” (p. 73). E, por isso, essa racionalidade niilista permanece cúmplice do eurocentrismo. Sem negar, pois, o valor da crítica pós-moderna ao cristianismo em sua vontade de poder, é preciso superar o eurocentrismo que estabelece a Europa como centro e assumir a exterioridade da Modernidade. Neste horizonte, para postular a decolonização da Bíblia e da teologia, deve-se partir da constatação do “papel histórico do cristianismo como arma colonial de controle religioso e dominação desejada” (Joseph DUGGAN, 2013, p. 12).
Na atualidade, coube ao pensamento decolonial explicitar o papel fundamental da teologia cristã em fornecer o fundamento para a racialização da humanidade. A gênesis desta fundamentação reside no debate sobre os “Direitos das gentes”, com o frei Bartolomeu de Las Casas, Gines de Sepúlveda e o frei Francisco de Vitoria, que questionou se os indígenas eram seres humanos com plenos direitos teológicos e jurídicos. Essa discussão transitou do reconhecimento de sua possível humanidade à afirmação de sua animalidade ou barbárie. Aos ameríndios se deu, ao final, o reconhecimento de sua humanidade, legitimando, assim, a agência evangelizadora do Novo Mundo; visto que seres considerados bestas não poderiam ser evangelizados. Entretanto, esse reconhecimento da humanidade dos ameríndios incrementou a demanda pelos escravos africanos, sob o status de não humanos e, por isso, passíveis de serem escravizados. Assim, para Nelson Maldonado-Torres (2007), esse “ceticismo misantrópico”, isto é, a suspeita teológica acerca da humanidade do outro, foi crucial para desenvolver a colonialidade do ser e do saber, juntamente com o racismo e a exclusão ontológica (p. 145). Desta forma, a decolonização do cristianismo aparece como um imperativo ético e epistêmico, sem a qual parece difícil acessar o messianismo originário inaugurado por Jesus de Nazaré.
1.1 Decolonização da teologia
Enrique Dussel (2013), em seu artigo “Descolonização epistemológica da teologia” (p. 19-30), afirma que uma teologia decolonizada implica a reabilitação do messianismo originário. Ora, a necessidade de recuperar o messianismo originário revela que houve, ao menos, dois momentos específicos na história em que este se distanciou de sua Fonte e Horizonte, que é Deus em linguagem monoteísta. O primeiro se deu na integração do cristianismo ao Império romano, com Constantino, que fez surgir a cristandade com sua fé no Cristo Pantocrator, o Todo-Poderoso, o Uno. Dussel (2013) chama este movimento de integração de “inversão do ‘messianismo’ para o ‘cristianismo’ triunfante [...]. Os ‘messiânicos’ [...] deixam de ser críticos do império para serem seus decididos partidários, seus membros, e com o tempo seus defensores” (p. 20-21). Estruturou-se, assim, uma nova cultura como fruto da síntese da cultura greco-romana e cristã; inicia-se a era da cristandade, mas ainda marginal em relação ao restante do mundo.
O segundo momento de distanciamento do cristianismo de sua essência foi a partir de 1492, data simbólica do nascimento da modernidade e encobrimento do outro, sob o projeto expansionista da Europa, quando a cristandade assume uma face ainda mais “nefasta” (DUSSEL, 1994, p. 7). É quando surge o cristianismo monocultural que se constituirá na “quinta essência”, isto é, na “coluna vertebral” do eurocentrismo (DUSSEL, 2013, p. 28). Emerge, assim, a cristandade imperial e colonial, que “crucificará indígenas em nome do Crucificado” (DUSSEL, 2013, p. 23). Não apenas crucificará indígenas, mas legitimará a redução do outro à inumanidade, em vista de sua escravização e instauração do sistema/mundo moderno/colonial, que funciona sob o binômio centro-periferia; sendo a Europa [Norte] o centro do mundo e os demais continentes [Sul] a periferia (MIGNOLO, 2015, p. 150-158).
A decolonização da teologia, por sua vez, engendra-se quando novos sujeitos teológicos situados geopoliticamente no sul global assumem a visão de mundo do sistema/mundo moderno/colonial e se situam em um novo espaço como locus enunciativo e hermenêutico e, nesse lugar preciso, isto é, desde a periferia, refazem toda a teologia. Neste horizonte, uma teologia decolonizada implica a superação da geopolítica de Estado de conhecimento euro centralizado e a assunção de uma geopolítica de Estado de alteridades negadas, de sabedorias outras, de espiritualidades outras, de políticas outras, de economias outras etc. Isso requer o advento da “transmodernidade” enquanto projeto epistemológico alternativo à modernidade eurocêntrica.
[O] conceito estrito de “transmoderno” indica essa novidade radical que significa o surgimento - como se a partir do nada - da exterioridade, da alteridade, do sempre distinto, de culturas universais em desenvolvimento, que assumem os desafios da Modernidade e, até mesmo, da pós-modernidade euro-americana, mas que respondem a partir do outro lugar [...], do ponto de sua própria experiência cultural, diferente da euro-americana, portanto capaz de responder com soluções completamente impossíveis para a cultura moderna única (DUSSEL, 2016, p. 63).
A transmodernidade pressupõe a pluriversalidade como o resultado de um autêntico diálogo intercultural. Ora, esse diálogo intercultural necessita, por sua vez, ser transversal: um diálogo a partir da periferia para a periferia; um diálogo sul-sul. Enfim, a “transmodernidade é um projeto de libertação das vítimas da Modernidade, e o desenvolvimento de suas potencialidades alternativas, a ‘outra-cara’ oculta e negada” (DUSSEL, 2007). No horizonte de uma transmodernidade, afirma Dussel, somente uma “trans-teologia” poderá dizer sua palavra, assumindo sua contextualidade e vozes outrora silenciadas.
Na idade Transmoderna que se aproxima (para além da Modernidade e do capitalismo) será necessária igualmente uma trans-teologia para além da teologia da cristandade latino-germânica, eurocêntrica e metropolitana, que ignorou o mundo colonial, e em especial as cristandades coloniais [...] que devem superar a colonialidade e a modernidade capitalista, invertendo a cristandade para retornar a um cristianismo messiânico profundamente renovado (DUSSEL, 2013, p. 29-30).
Isso significa que a teologia já não poderá pretender dizer a última palavra como um novo universal imperial; antes se apresenta como um saber localizado e inacabado, visto que toda teologia é contextualizada. Ela deve apresentar-se como um convite ao diálogo, acolhendo e reconhecendo a alteridade; buscando formas de escutar os distintos gritos daquelas alteridades outrora silenciadas e negadas.
Se, por um lado, a decolonização da teologia resulta na ‘trans-teologia’, por outro, a decolonização da Bíblia pode pôr em relevo os projetos decoloniais implícitos no corpus bíblico.
1.2 Decolonização da Bíblia
Por causa do status de Palavra de Deus, falar de decolonização da Bíblia resulta numa tarefa extremamente complexa (Luiz José DIETRICH, 2018, p. 19-37). Diante disso, apenas lançaremos pistas para uma leitura decolonizadora da Bíblia, na qual o sujeito teológico diaspórico diz sua palavra. Nesse horizonte, ao contrário do que se afirmou com a leitura eurocêntrica da Bíblia, o mundo antigo consistia de uma experiência multicultural, na qual havia inúmeras tradições veneradas, todas estavam abertas a modificações. E a Bíblia, enquanto livro canônico, é o registro dessas experiências multiculturais. De fato, fechado o cânon, já não se pode mais modificar o texto (Pablo Richard ANDIÑACH, 2015, p. 30). Mas é possível - com os avanços da leitura crítica da Bíblia e, em especial, com a hermenêutica moderna - perguntar por tradições que foram subjugadas, não sem violência, à tradição que coloca Moisés e culto em Jerusalém no centro.
Isso implica reconhecer que a Bíblia é fruto da experiência concreta de mulheres e homens que viviam dentro e fora de Israel. Ela é o registro dessa experiência multicultural que, ao longo dos anos, foi contada/cantada, recontada/recantada e escrita, dando origem a diversas tradições. Evidentemente, todas “as tradições bíblicas foram de alguma forma tradições orais” (José Severino CROATTO, 1986, p. 19). Conclui-se, portanto, que o texto é o resultado dessas tradições. Ele não é uma entidade isolada, mas faz parte de um contexto maior e constitui-se em um dos elementos do processo de comunicação linguística (Wilhelm EGGER, 1994, p. 29).
A Bíblia é, portanto, a palavra de Deus em palavras humanas. Afirmar isso implica assumir que a “fé lê o Deus atuante na história, mas supõe-se que na história dos homens e não numa história especial para os cristãos. Em outras palavras, os acontecimentos humanos têm de ser decifrados pela fé, como lugar da revelação de Deus” (CROATTO, 1981, p. 8) - de maneira que a releitura da Bíblia parta da experiência do povo sofredor, colocando em suspensão de juízo uma interpretação dos textos bíblicos fora da história e da temporalidade (Hans de WIT, 2017, p. 226). Essa aproximação ao texto bíblico a partir da experiência constituiu a novidade da hermenêutica latino-americana, em contraposição à interpretação tradicional que prevaleceu por séculos, na qual a revelação é um “depósito”, cujo significado se esgotou na primeira manifestação, que o presente em nada pode contribuir.
Na teologia clássica se interpreta a revelação como se fora um depósito já feito, um acontecimento fechado, realizado no passado. Nela o presente não pode ter uma função complementária, crítica ou desmitologizadora. Daí a falta de interesse da teologia e da hermenêutica clássicas no presente (CROATTO, 1973, p. 52-53).
A interpretação tradicional se preocupa com o passado e o sentido original do texto, isto é, com a historicidade do texto bíblico. Mais que a historicidade, importa perguntar pelo sentido e pela mensagem teológica do texto. Para isso, é preciso perguntar pela “função” dos textos para revelar o ímpeto imperialista e colonizador (DIETRICH, 2016, p. 151-158). Uma leitura decolonizada e decolonizadora, segundo Dietrich, leva em consideração as reformas de Ezequias (± 700 a.C), passando pelas reformas de Josias (± 600 a.C), culminando na teocracia sacerdotal do período atribuído a Esdras (± 400 a.C). Esses períodos marcam o processo de redação dos textos bíblicos até receberem sua forma final, quando muitas tradições foram ocultadas, negadas, rechaçadas em prol do projeto de nação; originando o judaísmo que se configura como uma simbiose de nação e religião (Rainer ALBERTZ, 1999, p. 587).
A crítica desconstrucionista, nesse sentido, perguntaria pelo papel fundamental do poder, da ideologia e da exclusão no processo de tessitura e interpretação da Escritura. Isso possibilitaria uma aproximação ao texto sagrado em direção à reconstrução do que foi “proibido”, “movido”, “rechaçado” ou “postergado” (WIT, 2017, p. 452). Tal aproximação ao texto bíblico se concentraria no “trágico, o não resolvido, o inacabado, o não-válido, o excluído”. Buscaria recuperar “a validade do que está fora da lei, fora da moral existente” (WIT, 2017, p. 453). Mas é preciso compreender que não se trata de destruir os significados em si, antes de “descobrir os significados protegidos”. E mais, “quer saber por que somente certas explicações são aceitas como válidas” (WIT, 2017, p. 453). Assumir, pois, a decolonização da Bíblia é, consequentemente, assumir que o processo de fechamento do texto final das Escrituras pressupõe essa lógica do oculto dentro.
Uma leitura decolonizada e decolonizadora da Bíblia passa, portanto, pela reabilitação daquilo que foi considerado parasita, o excluído, o ilegal, o estranho, mas que está dentro. Esta leitura pode responder à pergunta: o que “acontece quando o-que-não-é, o excluído, resulta ser o fundamental para se determinar o-que-é?” (WIT, 2017, p. 455). Nesse sentido, mais que explicitar os projetos de dominação implícitos nas narrativas bíblicas, uma hermenêutica decolonial busca reabilitar a história que se pretende negar e excluir, como uma outra história de redenção, um outro projeto de humanidade em que caibam as diferenças.
1.3 Não há decolonização sem despatriarcalização
Neste processo de decolonização da Bíblia, retomamos a hermenêutica da suspeita do feminismo que contesta a história escrita por homens, vencedores e poderosos, reconhecendo que - ao longo da história - a Bíblia tem sido instrumentalizada para manter as mulheres na sujeição e impedir sua emancipação. Uma evidência disso é que a interpretação masculina da Bíblia praticamente assumiu um significado canônico (Jonneke BEKKENKAMP; Fokkelien van DIJK, 2000, p. 75). Nessa esteira, biblistas feministas põem em relevo o travestimento ‘das experiências’ do mundo bíblico pelo patriarcado, com o processo canônico, como uma história escrita por varões. A superação do patriarcado, segundo a biblista Elizabeth Schüssler Fiorenza (1992), passa pelo desenvolvimento de uma “hermenêutica bíblica feminista” a partir da interpretação das tradições e textos contraculturais, heréticos e igualitários, para reconstruir uma teologia e história escriturísticas. Isso significa reclamar a teologia e a história bíblica primitiva como história e teologia das mulheres. Evidentemente, uma história, não somente de opressão e sofrimento, mas, sobretudo, de libertação e agência de poder religioso. Assim, a crítica feminista colocou em questão o patriarcado e o androcentrismo no exercício interpretativo da Bíblia como o maior obstáculo à emancipação e libertação da mulher (p. 64).
Entretanto, o feminismo decolonial ajuda a compreender certo limite do feminismo hegemônico e, analogamente, da hermenêutica bíblica feminista, por reduzir suas lutas em torno da desigualdade de gênero e a luta pela emancipação das mulheres. Para o feminismo decolonial, a luta pela superação do caráter androcêntrico e patriarcal não elimina o processo de produção de novas subalternas, visto que o feminismo hegemônico assume uma visão universal da mulher. E, por isso mesmo, na luta pela emancipação da mulher [branca burguesa], o feminismo hegemônico acaba ignorando a simultaneidade da opressão a que padecem outras mulheres não europeias - latinas, negras, indígenas; tornando-o cúmplice na colonialidade (Brenda MENDOZA, 2014, p. 97).
Assim, o feminismo decolonial segue afirmando: sem a despatriarcalização não há decolonização, uma vez que foi no corpo de mulher que a humanidade aprendeu a oprimir (Arturo ESCOBAR, 2014, p. 11-12). Ele, no entanto, vai além ao afirmar que “não há despatriarcalização sem descolonização que não seja racista” (María LUGONES, 2012, p. 129). Assim, situando-se geopoliticamente no sul, o feminismo decolonial se movimenta na fronteira entre as análises da colonialidade e do racismo, pois compreende que este não se trata de um fenômeno, mas de uma episteme intrínseca à modernidade e suas falácias de projetos de libertação. Fulcral, portanto, é considerar que tanto a classificação social de gênero quanto a classificação social de raça são constitutivas da colonialidade do poder e suas consequências na organização da vida, na produção do conhecimento, na constituição de subjetividades, na espiritualidade, na política, na economia etc.
Neste sentido, Lugones (2008) apresenta a ideia de “sistema moderno/colonial de gênero” para pensar a raça, o gênero e a sexualidade como coconstitutivas da episteme moderna colonial, de maneira que é impossível pensá-las fora desta e separadas umas das outras (p. 16). Com o “sistema moderno/colonial de gênero” compreende-se que: 1) a primeira classificação da colonização impôs a divisão entre humano e não humano [o racismo epistêmico e ontológico]; 2) a invenção de gênero é análoga à supremacia do homem branco e europeu [acrescento, cristão], possuidor de direitos sobre as mulheres brancas; 3) ao resto do mundo não europeu se impôs uma ordem natural de serviço à supremacia branca, de modo que o sistema de gênero não se aplica aos povos subordinados (LUGONES, 2012, p. 129-140).
Ora, aos povos subordinados está destinada a não ética da guerra, fazendo com que os indivíduos racializados e colonizados tenham de viver constantemente sob a mira do ‘ego’ dominador.
O racismo moderno, e por extensão a colonialidade, pode entender-se como a radicalização e naturalização da não ética da guerra [...]. A guerra, no entanto, não trata só de matar e escravizar o inimigo. Esta inclui um trato particular da sexualidade feminina: a violação. A colonialidade é uma ordem das coisas que coloca a gente de cor sob a observação assassina e violadora de um ego vigilante. O objeto privilegiado da violação é a mulher. Mas os homens de cor também são vistos com estas lentes. Eles são feminizados e se convertem para o ego conquiro em sujeitos fundamentalmente penetráveis (Karina OCHOA MUÑOZ, 2014, p. 110 [tradução nossa]).
O conceito “colonialidade do gênero” torna-se, assim, uma ferramenta do feminismo decolonial para analisar a vinculação entre controle do sexo, do trabalho e a colonialidade do poder. Em outras palavras, constata-se que a organização social passa pela violência de gênero sistematicamente racializada, isto é, que o gênero e a raça foram construções coloniais para racializar e generizar as sociedades.
Necessariamente os índios e negros não podiam ser homens e mulheres, senão seres sem gênero. Enquanto bestas eles foram concebidos como sexualmente dimórficos ou ambíguos, sexualmente aberrantes e sem controle, capazes de qualquer tarefa e sofrimento, sem saberes, do lado do mal na dicotomia bem e mal, montados pelo diabo. Enquanto bestas, eles foram tratados como totalmente acessíveis sexualmente pelo homem e sexualmente perigosos para a mulher. ‘Mulher’ então aponta a europeias burguesas, reprodutoras da raça e do capital (LUGONES, 2012, p. 130 [tradução nossa]).
Essa jerarquia dicotômica, prossegue Lugones (2012), nega e destrói o que constitui cada pessoa e comunidade; bem como as suas práticas, saberes, relações com tudo o que existe no universo, sua compreensão de universo e sua maneira de formar comunidade. Sob a agência colonial, isso implicou o processo de esvaziamento da memória, para enchê-la com a cristandade e a cosmologia dicotômica, jerárquica, violenta, cristã e racional (p. 129-140). Por isso, lutar por emancipação do patriarcado não é suficiente, visto que sempre haverá subalternas. Faz-se necessário considerar a interseccionalidade da opressão a que padecem os corpos das mulheres negras e indígenas, isto é, que a colonialidade segue a todo vapor com sua dinâmica racista e dicotômica. Necessitamos, portanto, de libertação das estruturas de poder do sistema/mundo moderno/colonial. Isso significa que uma teologia que se pretenda libertadora deve assumir a despatriarcalização e a luta antirracista, caso não queira permanecer cúmplice nos processos de dominação e aniquilação do outro, do diferente. Em vista desta despatriarcalização e luta antirracista, nos aproximamos do texto bíblico porque acreditamos que ele contém projetos decoloniais que podem empoderar a comunidade negra em diáspora, que teve sua ancestralidade bíblica capturada e invisibilizada para legitimar o processo de dominação e aniquilação.
2 O protagonismo espiritual das mulheres negras na Bíblia
Reabilitar nossa herança bíblico-teológica e redescobrir genealogias encobertas constituem a tarefa fundamental da hermenêutica negra feminista, que se elabora em três passos interligados: 1) desconstruir as traduções e interpretações racistas e sexistas que ocultam o protagonismo negro; 2) recuperar outra genealogia e geografia vinculante às culturas afro-asiáticas e; 3) redescobrir as raízes espirituais de matriz africana da fé judaico-cristã, isto é, o poder espiritual da mulher negra no mundo bíblico (CALDEIRA, 2013, p. 1189-1210).
2.1 Ocultação e invisibilização do protagonismo negro
Há séculos, milênios, uma personagem vem sendo invisibilizada pela história traditiva e interpretativa. O que sabemos dela pela interpretação tradicional baseia-se, sobretudo, em Números 12.1-16 (In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) mais especificamente no v. 1, que diz: “Miriam e Aarão falaram mal de Moisés, por causa da mulher cuchita que ele havia tomado, pois havia tomado uma mulher cuchita”.4 Essa queixa desencadeia um conflito no seio da comunidade israelita.
A história interpretativa, de cunho patriarcal e eurocêntrica, tem uma série de explicações para essa narrativa. Desde a afirmação de que o conflito se origina por ciúmes de Miriam e Aarão, visto que Moisés se casou pela segunda vez, agora com uma mulher cuchita, até a defesa de que o conflito se instala por conta de uma reação xenofóbica e racista, uma vez que a designação de “mulher cuchita” a identifica como uma mulher negra. Esta interpretação parte do pressuposto de que Moisés, Aarão e Miriam são caucasianos e a única negra da narrativa é a mulher cuchita. Entretanto, como afirma Peter Thedore Nash (2002), não há dados arqueológicos e antropológicos que sustentem que os povos do Antigo Oriente eram caucasianos. Antes, precisamos conceber o mundo bíblico bem mais negro do que se costumou pintar nos últimos 300 anos (p. 5-27). Ainda ligada à interpretação tradicional, afirma-se que essa narrativa trata de um problema familiar entre Moisés, Miriam e Aarão, no qual a cuchita serviu apenas de pretexto para despertar o problema familiar (Matthias GRENZER, 2002, p. 85).
Isso explicaria o fato de a mulher cuchita ser citada no início da narrativa, mas não pronunciar nenhuma palavra e sumir de cena. De modo geral, o que se percebe é que em todas essas interpretações os protagonistas são Moisés, Aarão e Miriam. A mulher cuchita segue invisibilizada.
Com a crítica feminista, mulheres biblistas se aproximam desta narrativa para denunciar a violência de gênero contra Miriam, uma vez que somente ela é castigada por se queixar contra Moisés - “por causa da mulher cuchita” - juntamente com Aarão (cf. Nm. 12.2. In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014). E perguntam: por que somente Miriam foi castigada com lepra, e Aarão não?
Para as feministas, o castigo de Miriam se inscreve dentro de uma disputa de poder como crítica ao modelo de poder piramidal e hierárquico. Miriam teria recebido o castigo porque ousou contestar a exclusividade do poder masculino e reivindicar para si o direito de exercer sua liderança no seio da comunidade. O castigo de ser tratada como um “aborto” e de ficar “com lepra” (cf. v. 10 e 12) serve para intimidar outras mulheres a não se oporem ao projeto de reconstituição nacional (Mercedes Garcia BACHMANN, 2009).
Mais que pensar num conflito familiar ou racial, a interpretação feminista, sobretudo com a biblista argentina Bachmann, situa o conflito no período pós-exílio da liderança sacerdotal e política em Judá. E assim se pergunta pelas relações de poder que estão em choque, representadas nos personagens Moisés, Miriam e Araão.
Para Bachmann (2009), há dois motivos que podem explicar o conflito em relação à mulher cuchita e à liderança de Moisés. De um lado, tem a ver com a resistência pós-exílica à mescla com não judaítas vindas do desterro; por outro lado, estão os modelos divergentes de lideranças convenientes à chamada comunidade pós-exílica, retro aplicadas a “Moisés” e resistidos por “Miriam” e “Aarão”.
Essa análise nos parece pertinente, sobretudo, porque desvenda as ideologias que sustentam o conflito dos grupos distintos, inseridas dentro da proposta de reorganização da vida social no período do pós-exílio [539-333 a. C]. Esta reorganização social, com o apoio do império persa, se formatou em torno do Segundo Templo e no aparato sacerdotal exclusivamente masculino, para legitimar a estrutura de poder masculino e, consequentemente, a subordinação e exclusão da mulher; especialmente a mulher estrangeira. Detalhes desse programa de reestruturação social estão registrados nos livros atribuídos a Esdras e Neemias. Evidente, porém, que essa estrutura social sob o poder masculino no livro de Números não aparece de maneira linear; antes, podemos perceber oposições a essa hierarquia dos sadoquitas por meio de resistências, como parece denotar Nm. 12.1-16 (Nancy CARDOSO, 2002, p. 11).
Sem desqualificar o esforço feminista em recuperar o protagonismo de Miriam e desvelar as disputas de poder de diversos grupos político-religiosos, intuímos que elas são insuficientes para dar conta das lutas, das opressões e, especialmente, de alimentar as resistências das mulheres negras. Isso porque nessas análises feministas a mulher cuchita permanece invisibilizada.
2.2 Desvelando as raízes afro-asiáticas do mundo bíblico
Uma leitura pós-hegemônica e decolonizadora não busca apenas denunciar a violência sexista nas narrativas bíblicas e suas interpretações racializadas, mas pergunta pelas personagens invisibilizadas, silenciadas e negadas. Não apenas isso, mas questiona em que medida esses personagens invisibilizados dão testemunho de um outro mundo, que a narrativa oficial quer ocultar. Não questiona apenas os modelos de lideranças [representados nas figuras de Moisés, Miriam e Aarão], mas, também, a própria ideia de religião exclusivista e excludente de outras espiritualidades [prefiguradas na figura da cuchita?]. Por este motivo, mulheres negras situadas geopoliticamente no sul se propõem a uma aproximação a partir das margens à mulher cuchita, para reabilitar seu poder espiritual bem como o contexto multicultural e multirreligioso do mundo afro-asiático.5
Um traço fundamental da urgência da decolonização da teologia aparece com a colonização do imaginário bíblico enraizada na ideia de que o povo de Deus era um povo de uma única raça/etnia (NASH, 2002, p. 102). Esse imaginário eurocêntrico presente no processo tradutório e interpretativo dos textos bíblicos sustenta que o mundo do Antigo Oriente era um mundo caucasiano. A tarefa da hermenêutica negra consiste, todavia, em superar esse eurocentrismo e etnocentrismo no exercício tradutório e interpretativo das narrativas bíblicas.
Evidentemente, a pergunta pela presença negra na Bíblia é um anacronismo, visto que o negro e a raça “são as figuras gêmeas do delírio que a modernidade produziu” (Achille MBEMBE, 2018, p. 12). Do ponto de vista natural físico, antropológico ou genético, raça não existe. “Raça é uma das matérias-primas com as quais se fabrica a diferença e o excedente, isto é, uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou dispensada sem reservas” (MBEMBE, 2018, p. 73). Entretanto, os etíopes, os cuchitas, os egípcios, enfim, os africanos e africanas seriam os negros - conforme os padrões eurocêntricos de classificação racial.
Pesquisadoras e pesquisadores negros, assim, recuperaram a presença desses povos afro-asiáticos na Bíblia [Egito, Cuch/Etiópia, Sabá], bem como as influências socioculturais e religiosas na configuração da cultura judaico-cristã. Com isso, passou-se a considerar a África como uma das perspectivas culturais e religiosas na compreensão do Israel bíblico e pós-bíblico. A biblista afro-colombiana Mariel Mena López (2006) resume as razões de falar das raízes afro-asiáticas na Bíblia.
Reivindicamos a necessidade de que a teologia se enegreça, olhando para a África, rompendo com muitos paradigmas. Dizendo que também as tradições israelitas se fundam em espaço africano. Nosso grito é também uma necessidade de contar a história bem contada. Não propomos buscar e listar a presença negra, mas colocar nossa presença no centro; somos um outro centro, ao lado do centro judaico. Israel se fundou tomando muitos elementos da África [...]. É necessário perguntar, finalmente, por que sempre tomamos a Síria, a Babilônia, a Mesopotâmia [...] e não também a África para elaborar nossas ‘histórias de Israel’ (p. 22).
Com isso, nos meados dos anos 2000, dá-se uma ruptura paradigmática na América Latina, com a redescoberta da influência afro-asiática no mundo bíblico. Com essa ruptura paradigmática, a pesquisa bíblica supera a visão hegemônica que invisibiliza a presença negra na Bíblia e, sobretudo, da racialização no processo tradutório e interpretativo (NASH, 2002, p. 20).6 Antes dessa ruptura, a leitura bíblica na perspectiva negra ainda ficava condicionada pelo imaginário eurocêntrico, afirmando a subalternidade da presença negra no mundo bíblico. Um exemplo disso pode ser observado no artigo “Sofonias, filho do negro”, de Sebastião Armando Gamaleira Soares (1989), no qual o autor afirma que: “o Segundo Livro de Samuel nos conta de um escravo cuxita [cuchita], encarregado de levar ao rei Davi a trágica notícia da morte de seu filho e adversário Absalão. Escolhe-se o escravo para portador da notícia por sua nota de tragédia” (cf. 2Sm. 18.21-32 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) (p. 23 [grifo nosso]). O negro [cuchita] é visto como um escravo e sua cor da pele como sinônimo de má notícia.
Entretanto, o biblista afro-americano Peter Nash (2002) desvela a prevalência do racismo nos estudos do Antigo Testamento, no qual imperam as pressuposições racializadas da superioridade ariana sobre a africana, somada à ideia errônea de que os israelitas e judaítas eram caucasianos. E mais, segundo Nash (2002), “não existem dados que sustentam a proposição de que os israelitas tivessem pele clara”. Isso porque a negritude “é um elemento em alguns textos e um pressuposto cultural presente em quase todas as narrativas bíblicas até o fim do exílio (=/- 538 a.C) e a entrada dos persas na história sagrada. Os persas formam o primeiro povo não afro-asiático que conseguiu dominar a Terra Santa” (NASH, 2002, p. 107).
Seguindo a linha de Nash (2002), interpretações como a de Soares (1989) sobre a aparição do cuchita em 2Sm 18.21-32 estão marcadas pela racialização, que traz à luz um típico exemplo de “sequestro de um negro livre e escravizado por mais de 85 anos” pela pesquisa bíblica. E, assim, Nash (2002) prossegue questionando o racismo:
O que é notável é que não há nada no texto que sugira que esse kuchita [cuchita] seja um escravo. Como Heidorn mostrou, nos séculos VIII e VII os kuchitas [cuchitas] desfrutavam de boa reputação por suas habilidades como guerreiros, treinadores de cavalos e cocheiros. Eles eram membros respeitados da sociedade assíria, sendo até mesmo conhecidos por nomes assírios (p. 22).
Provavelmente, o soldado cuchita foi eleito como portador desta notícia por suas habilidades supracitadas e não porque a cor de sua pele pressagiaria a trágica notícia de que era portador. Ademais, possivelmente, tanto o cuchita quanto Joabe acreditavam que a notícia seria uma boa notícia e que o rei Davi também a acolhesse assim. Enfim, depois de afirmar que os cuchitas desfrutavam de uma boa fama no mundo antigo, Nash pôde libertar o cuchita “escravizado” pela interpretação eurocêntrica e reintroduzi-lo em seu provável contexto, isto é, como um benjaminita (ou judaíta) - de modo que a afirmação de ser um judaíta e, ao mesmo tempo, um afrodescendente, é compatível para um habitante do mundo bíblico (NASH, 2002, p. 24). De posse deste novo instrumental, isto é, a ruptura paradigmática das raízes afro-asiáticas no mundo bíblico, as pesquisas bíblicas na América Latina passaram a recuperar a mútua influência entre a África e Israel antigo e também o cristianismo bíblico, desmistificando interpretações racistas que subjugam e invisibilizam o protagonismo negro.
2.3 Revelando o protagonismo da sacerdotisa africana Zípora
Partindo do reconhecimento dessa mútua influência entre África e Israel, o acesso ao rosto negro africano e ao protagonismo da mulher cuchita na história bíblica advém de uma leitura intertextual de Números 12.1-16 e Êxodo 4.24-26 (NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014). Assim, seremos capazes de recuperar o nome próprio desta mulher negra invisibilizada e silenciada por séculos. E, então, será possível remover o véu que a encobre.
24E aconteceu que no caminho, numa hospedaria, Javé foi ao encontro dele e procurava matá-lo. 25Séfora [Zípora] pegou uma pedra afiada, cortou o prepúcio do filho, e com ele tocou os órgãos sexuais dele. E disse: “Você é para mim um esposo de sangue”. 26E Javé desistiu quando ela disse “esposo de sangue”, por causa da circuncisão (Êxodo 4.24-26 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014).
Segundo a tradição, esta narrativa descreve um momento singular na vida de Moisés, quando YHWH (Deus) quis matá-lo. Apesar de causar espanto o fato de Deus se projetar para matar seu escolhido Moisés, o fato é que o nome Moisés sequer é citado na narrativa, o que nos leva a considerar o protagonismo de Zípora, que, ao praticar a circuncisão - de seu filho [Gerson] -, livra “o esposo de sangue” da morte.
Sem pretender fazer uma análise exegética da narrativa, o nosso interesse hermenêutico recai sobre essa ação ritual e simbólica de Zípora. É a primeira e única vez em toda a Bíblia que uma mulher pratica a circuncisão, a ação cultual distintiva da aliança de Deus com Abraão (cf. Gn 17.9-13 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014). Para além das dificuldades textuais, essa narrativa “ajuda a compreender o papel da mulher em todo o processo de libertação dos filhos de Israel do Egito e ao longo da história religiosa do antigo Israel” (Leonardo Agostini FERNANDES, 2015, p. 60-61).
Zípora, de fato, não é a única mulher africana que figura como protagonista nas tradições sobre o êxodo. Entre as protagonistas como as parteiras Sifrá e Fuá (cf. Êx. 1.15-22 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014), a irmã [Miriam] e a mãe de Moisés e a filha do Faraó (cf. Êx. 2. 1-10 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014), provavelmente três delas são negras africanas. Sifrá, Fuá e a filha do Faraó são egípcias e, provavelmente, são africanas negras. E sabemos que tanto a mãe de Moisés quanto a sua irmã [Miriam] não eram caucasianas.
Quem é, pois, Zípora para realizar um ato cultual tão importante, que nem mesmo a redação androcêntrica e patriarcal pôde deixá-la de fora do cânon bíblico? Pela interpretação tradicional, pouco sabemos de Zípora, além de ser esposa de Moisés, filha de Jetro, o sacerdote de Madiã, e mãe de Gerson e Eliezer, filhos de Moisés, segundo a tradição. Temos notícias de Zípora por meio da macronarrativa sobre o êxodo, que ocupa os últimos quatro livros do Pentateuco. Ela aparece em quatro micronarrativas (Êx. 2.15 e 22; 4.18-20 e 24-26; 18.1-7 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014). Porém, seu nome é mencionado apenas três vezes (Êx. 2.21; 4.25; 18.2 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) (GRENZER; Francisca Cirlene Cunha SUZUKI, 2016, p. 159-178).
Qual é a origem de Zípora? É uma estrangeira? Madianita ou cuchita? As pesquisas divergem sobre essa questão, pois em Êx 4.24-26 (In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) afirma-se que Zípora vem de Madiã (cf. Êx. 18 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014), enquanto em Nm. 12.1 (In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014), a esposa de Moisés vem das terras de Cuch. Essa aparente contradição leva alguns pesquisadores a afirmar que Moisés tinha duas esposas, o que era perfeitamente possível na cultura poligâmica da época. Mas não há outros elementos textuais que comprovem que Moisés teve outras esposas e filhos. Por outro lado, assumir que se trata de uma única pessoa pode contribuir para mostrar a força subversiva de ambas as narrativas. E isso é legítimo, visto que ser de Madiã e, ao mesmo tempo, cuchita, não é uma contradição em si. Mena López (2006), depois de recuperar um pouco da geografia e genealogia do mundo afro-asiático, afirma a possibilidade de “entender que Madiã é extensão de Cuch, já que em Madiã estão os cuchitas e Jetro e Zípora podem ser cuchitas” (p. 43).
Depois de vincular a narrativa de Zípora à narrativa da esposa cuchita de Moisés, perguntamos pelo protagonismo sociorreligioso desta mulher negra que foi, pela tradição, totalmente despolitizado. E foram os redatores, sob influência dos babilônicos e dos assírios cuja tendência é marcadamente androcêntrica, que removeram a força política das mulheres, ocultando-lhes o poder religioso no período do pós-exílio. Precisamos, porém, reconhecer que:
As histórias bíblicas, portanto, não falam de esposas ou concubinas banais, mas, em parte, sobre sacerdotisas ou visionárias que reconheceram as divindades femininas da terra e receberam autoridade para profetizar e prever o futuro por meio da inspiração divina. Além disso, estas matriarcas receberam autoridade, ou deram a si mesmas a autoridade, para mudar a ordem social (Savina June TEUBAL, 2000, p. 273-274).
Diante disso, partimos do pressuposto de que a narrativa em Êx. 4.24-26 (In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) pode ser o testemunho de uma matriarca cuchita que exercia de forma proeminente o seu poder religioso. E, provavelmente, a imagem de uma sacerdotisa negra fazia parte do imaginário sociorreligioso do mundo antigo, que era transmitido por meio das tradições orais.
Zípora, portanto, não é a única mulher negra que se tornou um mito no mundo antigo.7 A partir da instrumentalidade da hermenêutica negra feminista, outras mulheres negras têm tido o seu protagonismo recuperado. A matriarca egípcia Hagar, mãe dos povos árabes (cf. Gn. 16.1-5; 21. 8-21 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) - segundo a tradição bíblica - e a Rainha de Sabá (cf. 1 Rs. 10.1-13; 2 Cr. 9.1-12 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014) constituem outros dois testemunhos do poder e influência da mulher negra no mundo antigo. Mais especificamente, são vestígios da influência africana em Israel antigo.
Conscientes disso, temos de perguntar em que medida as narrativas que descrevem o protagonismo destas mulheres negras dotadas de poder espiritual e político dão testemunho da memória do culto a YHWH distinto daquele que se estabeleceu depois do exílio babilônio. E mais, o protagonismo espiritual das mulheres negras teria ligação com divindades femininas? Em relação à Rainha de Sabá, há indícios de sua ligação com Lilith, a deusa da noite.
No Targum a rainha de Sabá tem sido identificada com Lilith, a primeira Eva ou a mulher que tentou Adão com a maçã da árvore do conhecimento, e é uma figura presente nas mitologias suméria, babilônica, assíria, cananeia, hebraica, árabe e teutônica [...]. Durante o terceiro milênio a. C., na Suméria, ela foi, a princípio, Lil, uma tempestade destruidora ou espírito de vento. Entre os semitas da Mesopotâmia, ela foi conhecida como Lilith, que mais tarde, ao confabular com layil (palavra hebraica para noite), tornou-se Lilith, um demônio noturno que agarra os homens e as mulheres que dormem sozinhos (MENA LÓPEZ, 2003, p. 30).
Longe de prefigurar o mal, Lilith é a divindade com capacidade regeneradora. O nome Lilith está vinculado com as Deusas-Mães, com seu matiz de escuridão ligado ao aspecto da morte e vida, no qual os oximoros berço e sepultura, princípio e fim, sombra e luz encontram morada. Com Lilith se desvela a existência de um “arquétipo lunar”, isto é, uma ligação entre mudança e sabedoria ligadas ao ciclo lunar. Por outro lado, Lilith revela uma divindade ligada ao poder do sangue menstrual, o poder da Lua Escura, a Lua que sangra, que marca o tempo da interiorização das mulheres, o tempo fértil de crescimento místico e espiritual por meio da “força em si mesma” (Maria Soave BUSCEMI, 2005, p. 13). Diante destas informações, podemos recuperar a experiência multicultural e multirreligiosa que havia no Israel antigo, que depois do exílio babilônico, com a consolidação do monoteísmo javista absolutizado - implantado em Judá -, foi suprimida, junto com outras práticas religiosas da comunidade, especialmente das mulheres e povos estrangeiros.
Retornando à Zípora, encontramos alguns biblistas que reconhecem a participação ativa de Zípora na ação de circuncidar seu filho e até certa influência religiosa dos madianitas sobre Moisés.
O protagonismo de Séfora [Zípora] pode advogar a favor da formação de Moisés que regressa ao seu povo com a experiência religiosa que fez junto aos madianitas. Séfora [Zípora] fez justiça à família que pertencia, pois Jetro seu pai era sacerdote de Madiã [...]. É possível aceitar que, pelo contexto, Séfora [Zípora] era quem sabia como executar com êxito um ritual de proteção contra o ataque noturno da divindade (FERNANDES, 2015, p. 77).
Entretanto, mesmo reconhecendo que naquele momento crucial da história Zípora era a única que “sabia como executar com êxito o ritual”, não conseguem conceber que tal protagonismo lhe foi possível por ser ela uma sacerdotisa com reconhecida influência na comunidade. Sua ação cultual de circuncidar seu filho Gerson, diante da ameaça de YHWH a “seu esposo” fica relegada a algo esporádico, sem grandes implicações para a fé israelita.
Enfim, sem questionar os projetos imperialistas e colonialistas implícitos no processo de redação da história oficial de Israel, tais intérpretes afirmam que “este gesto de Séfora [Zípora] fez da esposa de Moisés uma mulher com direitos junto ao antigo Israel não só pelo matrimônio, mas pelo rito do sangue, gerando, inclusive, uma garantia para os seus filhos junto aos filhos de Israel” (FERNANDES, 2015, p. 72).
Ora, é exatamente essa subordinação à Aliança e ao sacerdócio de Moisés, a afirmação de que, com esse ato cultual, Zípora adere à fé abraâmica, que precisamos questionar. Vimos acima como o projeto do Segundo Templo significou a centralidade do culto em Jerusalém e a reivindicação do aparato sacerdotal exclusivamente masculino. Este projeto de reconstrução nacional implicou a expulsão das mulheres da esfera política e a negação da religiosidade praticada pelas mulheres e, sobretudo, a expulsão das mulheres estrangeiras, bem como a sua espiritualidade, resultando numa religião judaica exclusivista e excludente. Evidentemente, tudo isso passa pela transformação da polis, de um multiculturalismo a um judaísmo identitário, no qual as múltiplas religiosidades são subordinadas à religião do templo em Jerusalém com o monoteísmo sadocista e a redação final da Torá.
Neste contexto, intuímos que o protagonismo da sacerdotisa Zípora dá testemunho de uma espiritualidade diversa e plural vivenciada pelos israelitas, sob uma cosmovisão multicultural e multirreligiosa, como temos o testemunho do culto em Elefantina, uma vez que:
A maneira de celebrar reflete, sempre, o modelo de sociedade que temos na cabeça e no coração [...]. A respeito disso [...] é interessante notar como os costumes da colônia de Elefantina se aproximam da realidade dos cultos egípcios e da Etiópia, onde ‘sacerdotisas’ tinham um papel significativo e um poder político decisivo (Sandro GALLAZZI, 2006, p. 89).
O culto no templo africano em Elefantina, que ficava entre Egito e Núbia, constitui-se no maior testemunho de uma outra espiritualidade, “não excludente e de um javismo ainda não monoteísta” (GALLAZZI, 2006, p. 85). Nessa colônia militar judaíta em Elefantina, o culto a YHWH era associado ao culto à deusa Anat e a outras divindades. E, mesmo assim, eles tinham consciência de estar prestando um culto israelita.
Este templo é memória de uma religiosidade popular mais antiga, presente em Judá e em Israel, e da qual se afastou a comunidade dos repatriados que se formou no exílio. Os defensores da antiga religiosidade foram, assim, excluídos organizativa e juridicamente do novo judaísmo criado por Esdras e Neemias na base de uma precisa Torá (GALLAZZI, 2006, p. 83).
A espiritualidade praticada em Elefantina era antissacrificial. E a introdução do sacrifício do cordeiro pascal pelos judaizantes, por meio do decreto de Dario, acirrou o conflito entre os que praticavam o culto em Elefantina e as autoridades judaítas de Jerusalém e da Babilônia. O projeto de centralização do culto em Jerusalém e o culto sacrificial tinha Elefantina como um grande obstáculo, porque este deixa “entrever e saborear uma possibilidade de uma religiosidade capaz de dialogar com outras culturas, outras religiosidades, outros povos” (GALLAZZI, 2006, p. 89).
Enfim, o culto em Elefantina, por um lado, e a narrativa da sacerdotisa Zípora, por outro lado, parece testemunhar uma espiritualidade praticada por israelitas que conviviam harmonicamente com outras espiritualidades. Diante dessas informações, acerca do poder religioso de Zípora perguntamos:
Mulheres eram sacerdotisas em Cuch, em território israelita poderia ser diferente? Ao longo da história israelita pode-se constatar que as mulheres estrangeiras eram mais emancipadas do que as israelitas, por isto Miriam reclamaria um tratamento semelhante. As práticas religiosas que as mulheres exercem são a circuncisão e o sacerdócio. Muitas dessas práticas vêm via Cuch. Estamos percebendo o conflito entre dois poderes, onde homens aparecem como melhores, mas isto nos leva também a olhar para fora de Israel e ver o javismo relacionado a Cuch. O problema não é a respeito da cor da pele, mas a respeito da liderança, do sacerdócio (MENA LÓPEZ, 2006, p. 44).
Neste sentido de uma experiência multirreligiosa e multicultural, Mena López não hesita em afirmar que “o javismo se fortaleceu em Israel ‘por causa de uma mulher cuchita’” (Nm. 12.1 In: NOVA BÍBLIA PASTORAL, 2014). E suspeita-se de “que a religião de Israel num princípio era patrimônio das mulheres, mas estas sacerdotisas foram desprezadas pelo poder dos homens” (MENA LÓPEZ, 2005, p. 186).
A memória destas ancestrais nos indica que as mulheres não foram destituídas absolutamente do poder como comumente imaginamos. Sem querer sacralizar a experiência destas mulheres em detrimento de muitas anônimas, sem voz e silenciadas pela tradição, elas são importantes não por serem as mais éticas, mas porque elas nos estão revelando que os nossos referenciais históricos e míticos também fazem parte da tradição bíblica (MENA LÓPEZ, 2005, p. 188).
Desvenda-se, assim, o rosto da sacerdotisa Zípora como uma de muitas outras mulheres negras que constituíram a vida social, religiosa e política do antigo Israel. Este rosto negro também nos revela um outro rosto divino e misericordioso, que em meio à noite escura nos liberta de nossa violência e nos regenera para uma nova vida; onde a diferença e diversidade são celebradas.
Considerações finais
Por séculos a agência colonizadora, com a participação da teologia cristã, por meio da classificação racial, reduziu uma porção considerável da humanidade à subumanidade e demonizou sua cultura e sua espiritualidade. Até hoje prevalece o senso comum da incompatibilidade das religiões de matriz africana com a fé cristã. Entretanto, da experiência espiritual de negras e negros com o Cristo da fé, somos habilitados a acolher o outrem em sua diferença irredutível, visto que somos marcados pela negação sistemática de nossa humanidade. Essa experiência espiritual engendra novos sujeitos teológicos e políticos, fazendo surgir muitos movimentos de resistência espiritual negra, como o CNNC - Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos -, o Movimento Negro Evangélico, a Pastoral Afro e a Rede de Mulheres Negras Evangélicas. A hermenêutica negra feminista surge, neste contexto, quando nós, mulheres negras dotadas de poder religioso, questionamos o status quo da teologia clássica, androcêntrica, eurocêntrica e patriarcal; questionamos toda e qualquer reflexão teológica que segue invisibilizando o outro, negando a sua humanidade e o seu direito de ter direitos.
Em função disso, este exercício hermenêutico se torna um passo indispensável para superar o imaginário sociorreligioso eurocêntrico e assumir que o mundo bíblico é bem mais negro do que vem sendo descrito pela interpretação clássica. E mais, refutando toda forma de subordinação da espiritualidade de matriz africana à religião eurocêntrica, a hermenêutica negra feminista busca recuperar a espiritualidade de matriz africana como uma fonte que alimenta a fé em uma sociedade plural e mais justa. Neste horizonte, a Bíblia se tornou para nós - a comunidade negra - fonte de alegria e esperança. Afinal, nossa ancestralidade está registrada na Bíblia como nossa história de libertação. E apropriar-se dela é um ato de resistência espiritual e epistêmica