Iniciamos esta resenha cumprimentando a todas as leitoras e a todos os leitores. Talvez o uso de uma saudação, na introdução a uma resenha, cause surpresa. Na verdade, essa simples frase contém toda uma problemática relacionada com as questões de gênero. No Brasil, a decisão de referir-se aos gêneros feminino e masculino foi iniciada por feministas militantes de movimentos sociais que começavam suas falas dirigindo-se às pessoas presentes cumprimentando homens e mulheres. No início dos anos 2000, usar o “Boa noite a todos e a todas” identificava a falante como militante feminista. Essa estratégia discursiva era uma forma de questionar a gramática da língua portuguesa, e de outras línguas derivadas do latim, que tem como característica o uso do gênero masculino como forma de sintetizar o uso genérico. Mas para além da questão gramatical, tal prática enunciava questionar a relação de gênero e poder, conforme discute Joan Scott (1995).
Em 2004, as vozes das feministas chegaram até os comunicadores que escreviam os discursos do então presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que começou a usar esta forma de cumprimento. Reportagens da época questionavam a novidade. Na Folha de São Paulo, em 2004, a jornalista Marta Salomon começava seu texto dizendo: “Assassinaram a gramática no governo petista” (SALOMON, 2004) e encerrava o texto questionando se ao “radicalizar a moda petista, preocupam-se alguns, o Brasil teria de reescrever seus dicionários. Opções no feminino não aparecem entre os verbetes. Nem no plural. Seriam machistas os dicionários?” (SALOMON, 2004). A jornalista lembra que, antes de Lula, o ex-presidente José Sarney começava seus discursos cumprimentando “brasileiros e brasileiras”, sem prejudicar a língua. Esta discussão tornou-se ainda mais acirrada quando a primeira mulher foi eleita para assumir a presidência da República, em 2010. Era correto utilizar presidenta Dilma Roussef? Houve divergência entre especialistas com relação à permissão de uso da palavra no gênero feminino.
Grada Kilomba, artista, teórica do feminismo negro, nascida em Lisboa, traz esta discussão no livro Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano (2019), o qual é resultado da tese de doutorado em Filosofia na Universidade Livre de Berlim, pesquisa que inicialmente tinha sido escrita em inglês. Para o volume publicado no Brasil, a pesquisadora e professora da Universidade de Humboldt conta que quando decidiu traduzir sua tese para o português precisou inserir uma “Carta da Autora À Edição Brasileira” para explicar as especificidades com relação à flexão de gênero, que não eram necessárias no idioma original.
Escrevo esta Introdução, inexistente na versão original inglesa, precisamente por causa da língua: por um lado, porque me parece obrigatório esclarecer o significado de uma série de terminologias que, quando escritas em português, revelam uma profunda falta de reflexão e teorização da história e herança coloniais e patriarcais, tão presentes na língua portuguesa. (Grada KILOMBA, 2019, p. 14)
O livro só foi publicado no Brasil e em Portugal dez anos depois de ter sido lançado em Berlim. A necessidade de traduzir conceitos e pensar termos a partir da ausência dos mesmos faz parte da evolução política da língua, processo pelo qual a língua portuguesa não teria passado ainda. Kilomba vai discutir, também, os preconceitos da língua portuguesa.
[...] pois traduz um livro inteiro apesar da ausência de termos que noutras línguas, como a inglesa ou alemã, já foram criticamente desmontados ou mesmo reinventados num novo vocabulário, mas que na língua portuguesa continuam ancorados a um discurso colonial e patriarcal, tornando-se extremamente problemáticos (KILOMBA, 2019, p. 14).
A obra traz um glossário de termos não racistas, explicados e justificados pela autora que busca uma forma de contestar o colonialismo da língua, como quando se refere à era dos descobrimentos portugueses, termo que considera colonial, motivo pelo qual faz uso da expressão expansão europeia. Kilomba permeia os capítulos com experiências pessoais de racismo e preconceito que marcaram sua formação e, a partir deste lugar social, é que escreve. Para tanto, considera desde ter sido a única negra no Departamento de Psicologia Clínica e Psicanálise, a única negra a atender no hospital onde era confundida com a senhora da limpeza, recusada por pacientes que não queriam ser atendidos por ela, entre outras experiências que só meninas e mulheres negras vivem e viveram.
Gayatri Spivak é uma das autoras que impulsionaram as discussões sobre lugar de fala ao afirmar que a violência epistêmica tende a manter a mulher invisível, uma vez que o radicalismo masculino torna o lugar do investigador transparente. Para ela, a pressuposição e a construção de uma consciência que a longo prazo irá se unir à constituição de um sujeito imperialista, mescla violência epistêmica com o avanço do conhecimento e da civilização. Nesse sentido, pondera que “a mulher subalterna continuará tão muda como sempre esteve” (Gayatri SPIVAK, 2018, p. 86). Kilomba tenta romper este ciclo com sua obra. A autora conta ter sido muitas vezes questionada por interpretar demais, por não seguir as normas da epistemologia tradicional, inclusive recebendo críticas de outras mulheres.
Nessa constelação, é a mulher branca que irracionaliza meu pensamento e, ao fazê-lo, ela define para uma mulher negra o que é conhecimento “real” e como deveria ser expressado. Isso revela as complexas dinâmicas entre “raça”, gênero e poder, e como a suposição de um mundo dividido entre homens poderosos e mulheres subordinadas não pode explicar o poder da mulher branca sobre mulheres e homens negros (KILOMBA, 2019, p. 56)
Djamila Ribeiro, em O que é lugar de fala?, discute o privilégio da visibilidade dado ao grupo universalmente valorizado, formado por homens brancos, seguidos de mulheres brancas, e que não permitem a expressão de outros grupos localizados mais abaixo na pirâmide social por ter “um discurso autorizado e único, que se pretende universal” (Djamila RIBEIRO, 2017, p. 70). Ela também quebra este ciclo ao falar de sua posição social de mulher negra. Autoras de língua portuguesa têm conquistado visibilidade por criar um movimento de pesquisadoras feministas negras brasileiras. “Dessa forma, ainda se faz necessário ter a palavra ‘negra’ depois de ‘feminista’. Essa palavra marca e reflete como somos fruto da história do Brasil, na qual a mulher negra escravizada era vista como mão de obra explorada nas lavouras ou nos espaços domésticos.” (Stephanie RIBEIRO, 2018, p. 267)
Kilomba foi ousada em sua metodologia de pesquisa, que chama de análise episódica, ao escolher a técnica de entrevista não diretiva, baseada em narrativas biográficas, que dá à entrevistada a possibilidade de falar livremente sobre sua experiência. Segundo ela, isso foi fundamental porque o racismo “atravessa a biografia do indivíduo” (KILOMBA, 2019, p. 85). Depois de entrevistar seis mulheres negras africanas ou da diáspora africana que viviam na Alemanha, duas foram selecionadas para ser analisadas em um nível fenomenológico, em vez de abstrato, seguindo o viés de autoras como bell hooks e Frantz Fanon. Alicia e Kathleen são as personagens que relatam os episódios de racismo cotidiano, apresentados na segunda parte do livro. A primeira é dedicada à contextualização, à discussão teórica, à questão gramatical e colonialista da língua.
Os episódios de racismo são descritos de forma bastante realista e propõem questionamentos e empatia a quem lê, seja pelo sentimento de soco no estômago ao conhecer histórias de violências das vítimas, seja por instigar repulsa ao acompanhar o relato dos agressores. Nos deparamos com narrativas de como mulheres negras são tratadas como exóticas no mundo branco; sobre a necessidade de se tocar os cabelos da mulher negra ou perguntar sobre a frequência com que são lavados; sobre a beleza da mulher negra ser tratada como algo exótico, sexualizado, animalesco; com experiências de racismo dentro das famílias e entre relacionamentos afetivos; com racismo direto e intencional. Há um capítulo sobre como o isolamento e o sofrimento silencioso e solitário contribuem para o suicídio de mulheres negras.
No último tópico, “Descolonizando o Eu”, Kilomba retoma o título do livro - Memórias da Plantação - e trabalha com a metáfora de plantação como símbolo do racismo cotidiano. Daí porque a materialidade da edição extrapola esse debate. Em Portugal, por exemplo, o livro foi lançado com uma capa-espelho na qual o/a leitor/a podia ver sua imagem refletida. Esta provocação faz parte da forma como Kilomba e outras autoras que combatem o racismo se posicionam: com agressividade e muita seriedade no trabalho científico, para provar, para além do lugar que conquistaram, que têm direito a estarem onde chegaram. Kilomba termina sua carta aos leitores brasileiros lembrando que a língua tem suas dimensões políticas de criar e perpetuar as relações de poder. “No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana” (KILOMBA, 2019, p. 14, grifo no original). A autora torna-se sujeito ao fim da obra.