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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.3 Florianópolis set./dic. 2020  Epub 01-Sep-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n368402 

Resenhas

Uma contribuição para a teoria de gênero

A Contribution to Gender Theory

Marcos Claudio Signorelli1 
http://orcid.org/0000-0003-0677-0121

1Universidade Federal do Paraná, Câmara de Saúde Coletiva, Matinhos, PR, Brasil. 83260-000 - camara.sc@ufpr.br

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South. Cham, Switzerland: Springer, 2019.


O livro Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South, de Pedro Paulo Gomes Pereira (2019), publicado pela editora Springer, é o resultado de duas décadas de pesquisas e busca sintetizar os achados sobre gênero e sexualidade decorrentes das experiências pelas quais o autor passou no período. Conta com cinco capítulos e prefácios de Richard Miskolci e de Judith Butler.

No primeiro capítulo, “In and around life”, emerge uma reflexão sobre a etnografia que Pereira realizou, no final da década de 1990, em uma ONG que abrigava pessoas com HIV - pobres urbanos, excluídos, vidas precárias que formavam uma das paisagens originadas da relação estreita da extrema desigualdade socioeconômica do país e a epidemia de aids. Mapeando algumas das principais abordagens sobre o conceito de biopoder, o capítulo destaca uma tensão entre políticas que incentivam e buscam potencializar a vida e pessoas excluídas e deixadas para morrer.

O segundo capítulo, “Queer in the tropics”, problematiza tanto a potência da teoria queer como seus possíveis limites, formulando indagações como: estaríamos diante de mais uma teoria do centro que viaja para as periferias (e que reinscreveria, noutras cores, esse divisor centro-periferia) para ser aplicada? Haveria possibilidade de o gesto político queer abrir-se para saberes-outros ou estaríamos presos dentro de um pensamento sem que nada de novo possamos propor ou vislumbrar? Essas questões ressoam também no capítulo seguinte, “Decolonial queer”, no qual Pereira acompanha o itinerário geopolítico das teorias para delinear os contornos principais do encontro entre teoria queer e pensamento decolonial.

Em “On the Poetics of Incorporation”, talvez o capítulo mais importante do livro, o autor se volta para o corpo. Ao analisar quais as articulações construiriam corpos, indaga: se os corpos são interfaces que vão ficando descritíveis quando aprendem a ser afetados por múltiplos elementos, colocados em movimento por entidades humanas e não humanas, quais seriam esses afetos, entidades e mediadores? A análise se centra na poética de invenção dos corpos de travestis.

Por fim, em “Judith Butler and the Pomba-gira”, Pereira aborda a pressão que setores conservadores vêm exercendo contra as conquistas no campo de gênero e sexualidade. O autor coloca em xeque a oposição entre religiosidade e formas alternativas de vivência de sexualidade e de gênero. Indaga as possíveis brechas, as possibilidades de mediação e os limites de se pensar categorias fixas. Assinala que talvez o caminho seja o de aproximação à multiplicidade dos agentes e suas formas inauditas de agência, e à criatividade de suas poéticas. E, provocativamente, defende a necessidade de "torcer nosso pensamento"1 (Pedro Paulo Gomes PEREIRA, 2019, p. 97).

Pereira narra como encontrou as histórias e formulações das travestis, com suas performances e reconstruções corporais e com sua íntima vinculação com as religiões afro-brasileiras. Com as travestis, foi aprendendo que a invenção dos corpos pressupõe a sua reinvenção contínua. Encontramos então um pesquisador seduzido pelas reinvenções das travestis que o interpelaram, pela intensidade de seus interlocutores e interlocutoras e por suas conformações e multiplicidades. Afetado pelas poéticas das travestis sobre corporalidades e incorporações, Pereira se aproxima de suas filosofias, com as quais interpretam o mundo e suas próprias transformações corporais. O autor mostra também como as travestis criam sofisticadas formas de agências para lidar com a exclusão desse poder que estabelece as categorias daquilo que pode entrar no mundo dos possíveis e que coloca seus corpos e subjetividades como impensáveis.

Diante dessas formulações, gostaria de ressaltar três aspectos que considero fundamentais sobre o livro.

1. O primeiro aspecto é a disponibilidade na qual Pereira se coloca para as interpelações de seus/suas interlocutores/as. O que surge em Queer in the tropics são reflexões produzidas em afecções e afetos que produzem posicionamentos. Pereira fala dos trópicos. Aqui a metáfora designa o Sul Global, mas, o Sul não é um conceito geográfico: compreende múltiplas trilhas já abertas historicamente que permaneceram em posição subalterna. Tal construção evita uma simples e mecânica oposição Norte e Sul que pode produzir apagamentos de outros aspectos geopolíticos (como, por exemplo, as variações regionais no Brasil). O caminho escolhido, no entanto, não busca a autodeclaração identitária ou confissões fáceis, antes aposta na complexidade de sua narrativa. Butler percebeu essa densidade e assinala como as experiências moveram o autor, chegando a afirmar que o etnógrafo “cede o controle”2 (Judith BUTLER, 2019, p. xiii) e, não obstante às adversidades, “continua o acompanhamento”3 (BUTLER, 2019, p. xiii). As experiências afetam e provocam o “ceder o controle” (BUTLER, 2019, p. xiii) - a narrativa então revela as mudanças e as marcas dos afetos. Sempre partindo de suas pesquisas, o autor coloca-se no texto, deixando suas marcas; suas dúvidas contam sua história; suas posições se mostram nos movimentos conceituais. O posicionamento corpo-político do autor surge, então, nos trópicos, como quem aprende com e se transforma - encantando-se. Dessa forma, Pereira propõe que podemos, daqui dos trópicos, experimentar outros conceitos e experimentar-nos com outros conceitos.

2. No decorrer do livro, Pereira se aproxima de autoras e autores do Norte Global, dos textos da tradição anglo-saxã e francesa que dominam as ideias do social a partir da segunda metade do século XX. Por todo o percurso, busca subverter a máquina poderosa que faz com que apliquemos aqui o que fora formulado nos países centrais. Os capítulos vão ensaiando esse movimento usando termos como “romper e recuperar”4 (Ann Laura STOLER, 1995, p. 23) e “torcer as teorias”5 (PEREIRA, 2019, p. 97), e vão sugerindo que a questão não é uma simples crítica às teorias da Europa ou dos Estados Unidos. O problema é tomar essas teorias como simplesmente “aplicáveis”6 (PEREIRA, 2019, p. 7) a outras realidades. E a grande provocação, afirma o autor, é valer-se de seus conceitos, mas subvertendo-os, a partir das histórias partilhadas/entrelaçadas originadas no contexto (pós-)colonial. O esforço se direcionaria para alterar os conceitos, transformá-los de forma que possam abarcar mais, inverter e modificar os conceitos, transformando-os de tal forma e intensidade para que produzam algo novo. Claro que não basta adicionar as histórias locais e mexer, alerta o autor. É necessário que as experiências aqui dos trópicos afetem, no sentido forte do termo, o próprio quadro conceitual, e que, assim, ele possa se modificar, se transformar. O movimento de Pereira não é tecer uma crítica de fora, mas de elaborar uma forma afetiva de se aproximar. No processo de torcer, recuperar, as autoras e os autores falam de outro modo e mais e, assim, ficam maiores. Pereira se coloca, dessa maneira, distante de certa política do ressentimento que observa e esquadrinha as teorias de fora e, de forma rápida, propõe a distância e o esquecimento. Ao contrário, a proposta é de uma aproximação que se afeta e, no processo, permite as autoras e os autores dizerem mais. Essa proposta conduz ao “ceder o controle”, pois supõe uma abertura propiciada pelos afetos - a possibilidade e a potência dos encantamentos. Pereira lembra que torcer o pensamento tem vários sentidos, entre eles, o de enroscar-se em movimentos espiralados, mas, também o de mudar a direção de. Envolver-se (enroscar-se) com as teorias, para dar-lhe nova direção.

3. Por fim, o livro traz uma importante contribuição à teoria de gênero. Talvez sendo este um dos pontos que o autor deveria ter se voltado (ou que possa se voltar em trabalhos futuros) com mais tempo e cuidado, possivelmente ressaltando seus achados e explorando-os com mais detalhes. Ou seja, qual a teoria de gênero sai deste projeto? Butler, no prefácio da obra, é certeira no assunto e fala em uma “vasta contribuição para a teoria de gênero”7 (BUTLER, 2019, p. xiv) de Pereira. Não é pouca coisa uma das maiores pensadoras sobre gênero asseverar que há uma contribuição significativa para a teoria de gênero. Mas, qual seria? A resposta está na poética de invenção dos corpos das travestis nas religiões afro-brasileiras. Pereira nos conta, por exemplo, que muitas vezes as travestis têm uma Pomba-gira, que é incorporada e permanece uma característica desse gênero. No processo de incorporação alguém é afetado e transformado pela Pomba-gira, que se torna parte da própria formação e realização do gênero. O corpo que fora transformado por tecnologias, procedimentos, performances agora abre-se às entidades. Butler ressalta a dimensão dessa alteridade na qual o self não está mais fechado em si mesmo, mas sim definido por sua abertura à alteridade e pelas transformações que ocorrem como resultado dessa abertura. A contribuição de Pereira para teoria de gênero está nessa relação entre tradução e incorporação, pois o autor mostra como não são apenas entidades, corpos, práticas, instituições, tecnologias, mas que essa alteridade é em si uma característica transformadora. Não se trata de uma visão voluntarista que pressupõe que cada um pode mudar a si mesmo, nem apenas que as tecnologias atuam ou que as instituições imprimem sobre os corpos e subjetividades, mas sobretudo uma abertura aos Outros como constitutiva do próprio conceito de gênero.

Enfim, o/a leitor/a terá em mãos um livro provocativo, fruto de encantamentos de um pesquisador que vai mudando no decorrer das experiências e uma descrição encantada das formas inauditas de agência dos corpos dissidentes. Seus movimentos conceituais, suas formas de aproximação, seus afetos e interpelações talvez possam nos auxiliar a construir conversas coletivas - conversas que, como salientou Butler, talvez nos ajudem a não sermos pensáveis além das companhias.

Referências

BUTLER, Judith. “Foreword by Judith Butler: experiencing other concepts”. Foreword. In: PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South. Cham, Switzerland: Springer, 2019, p. xiii-xiv. [ Links ]

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer in the Tropics: Gender and Sexuality in the Global South. Cham, Switzerland: Springer, 2019. [ Links ]

STOLER, Ann Laura. Race and the education of desire: Foucault’s history of sexuality and the Colonial order of things. Durham: Duke University Press, 1995. [ Links ]

1 No original em inglês o autor utiliza “bending our way of thinking” (PEREIRA, 2019, p. 97).

2No original em inglês a autora utiliza “cedes control” (BUTLER, 2019, p. xiii).

3No original em inglês a autora utiliza “continues the accompaniment” (BUTLER, 2019, p. xiii).

4No original em inglês a autora utiliza “rupture/break and recover” (STOLER, 1995, p. 23).

5No original em inglês o autor utiliza “bending our way of thinking, including bending Butler’s theory” (PEREIRA, 2019, p. 97).

6No original em inglês o autor utiliza “applicable” (PEREIRA, 2019, p. 7).

7No original em inglês a autora utiliza “vast contribution to gender theory” (BUTLER, 2019, p. xiv).

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SIGNORELLI, Marcos Claudio. “Uma contribuição para a teoria de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e68402, 2020.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 03 de Novembro de 2019; Aceito: 17 de Fevereiro de 2020

signorelli.marcos@gmail.com

Marcos Claudio Signorelli (signorelli.marcos@gmail.com) é doutor em Saúde Coletiva (UNIFESP), Pós-doutor em Saúde Pública (La Trobe University, Australia), Docente da Graduação e Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Território, Diversidade e Saúde (TeDiS/CNPq). Coordenador do GT de Saúde da População LGBTI+ da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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