A violência doméstica e familiar não é fenômeno novo na realidade brasileira, entretanto, a forma como vem sendo enfrentada tem se modificado ao longo dos anos. Apesar de grandes avanços, desde a construção de um projeto de Lei por organizações feministas e sua posterior promulgação em 2006, quanto à ampliação de pesquisas sobre o tema, os índices de violência continuam alarmantes no país (Miriam GROSSI; Luzinete MINELLA; Juliana LOSSO, 2006; Carmen CAMPOS, 2015; Wânia PASINATO, 2015; Cecília SOARES; Hebe GONÇALVES, 2017). Internacionalmente, tem crescido o entendimento de que, para prevenir as violências de gênero, é necessário trabalhar e envolver os homens. Principalmente porque, na maioria dos casos, são homens que perpetram essa violência, as construções de masculinidade desempenham um papel crucial nas suas formas, e os homens também têm a ganhar com a sua diminuição, tanto em relacionamentos mais saudáveis, quanto em uma maior liberdade em relação às “definições dominantes de masculinidade” (Michael FLOOD, 2011; Álvaro ANTEZANA, 2012). Nesse sentido, só conseguiremos prevenir violências se mudarmos atitudes, identidades e relações que encorajam violência, pois a linguagem relacional violenta não se modifica sem mudanças de percepção dos atores envolvidos (Heleieth SAFFIOTI, 2004; Barbara SOARES, 2012; FLOOD, 2011).
No Brasil, a Lei Maria da Penha dispõe sobre a possibilidade do desenvolvimento de intervenções com autores de violência nos seus artigos 35 e 45, que preveem “centros de educação e de reabilitação para os agressores” e “programas de recuperação e reeducação” (BRASIL, 2006), respectivamente. Essas intervenções têm se destacado como ações que, aliadas às dirigidas às mulheres, podem provocar uma maior equidade de gênero e se constituir enquanto novas possibilidades no enfrentamento à violência doméstica e familiar (Maria TONELI, 2007; Daniel LIMA; Fátima BÜCHELLE, 2011). Já se passou mais de uma década da criação da Lei Maria da Penha, contudo, a sua implementação ainda é frágil, tornando necessárias maiores discussões, estudos, ações e intervenções concretas. Isso inclui melhorar a articulação das pesquisas, diretrizes e metodologias (TONELI; Adriano BEIRAS; Juliana RIED, 2017).
Diante desse quadro, a proposta do presente artigo é aprofundar o conhecimento sobre as intervenções brasileiras com autores de violência doméstica e familiar a partir da análise e sistematização da produção acadêmica nacional sobre tema. Para desenvolver o estudo proposto, o banco de dados utilizado foi o da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), por possuir o maior acervo de teses e dissertações em âmbito nacional. As buscas foram feitas em três etapas, a partir de três expressões-chave: “AUTOR DE VIOLÊNCIA” (todos os campos), “MASCULINIDADE” (todos os campos) e “VIOLENCIA” (todos os campos), “VIOLENCIA DOMESTICA E FAMILIAR” (todos os campos), e dos registros relacionados. Os critérios de seleção foram: a) delimitação espacial: Teses e Dissertações (TeDs) provenientes de Programas de Pós-Graduação brasileiros; b) delimitação temporal: defendidas entre 2006 e 2016, tendo em vista o marco da Lei Maria da Penha; c) delimitação temática: pesquisas empíricas com foco em intervenções brasileiras com autores de violência doméstica e familiar. A primeira etapa da seleção dos textos consistiu na leitura dos resumos; a segunda, na leitura flutuante dos textos (Laurence BARDIN, 1977), na qual foi possível identificar ainda duas teses e dissertações de interesse referenciadas na bibliografia dos textos lidos; e a terceira na classificação e definição do corpus1 definitivo de análise, que restou composto de cinco teses e doze dissertações, referenciadas separadamente na bibliografia.
A sistematização e análise dos textos obedeceram aos passos propostos por Bardin (1977). Para tanto, foi utilizada a ferramenta informacional Nvivo, que permite potencializar a análise de conteúdo mediante a codificação, indexação e organização de materiais qualitativos. Esses materiais foram analisados a partir da literatura especializada na área, e os relatórios nacionais sobre o tema - “Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro”, publicado em 2014 pelo Instituto Noos, e “Violência contra as mulheres: os serviços de responsabilização dos homens autores de violência”, realizado pela CEPIA, e publicado em 2016. Buscamos, dessa forma, possibilitar avanços na conjugação de informação e contribuir para o debate de enfrentamento à violência doméstica e familiar.
O artigo está dividido em três partes além desta introdução e das considerações finais. Iniciamos com um breve histórico das experiências internacionais e nacionais de intervenções com autores de violência doméstica e familiar, analisamos os avanços e disputas geradas pela Lei Maria da Penha e, por fim, sistematizamos e analisamos a produção acadêmica nacional sobre o tema.
Breve histórico de experiências internacionais e nacionais
O primeiro programa de intervenção com homens autores de violência (Emerge) foi criado em Boston, nos Estados Unidos, em 1977, a partir dos movimentos de mulheres contra a violência de gênero e dos primeiros serviços de apoio para mulheres (ANTEZANA, 2012; Heinrich GELDSCHLÄGER, Oriol GINÉS, Álvaro PONCE, 2011). Nos anos seguintes, foi desenvolvido, em Duluth, Minnesota, o Domestic Abuse Intervention Project (Projeto para Intervenção no Abuso Doméstico - DAIP). “Um modelo de intervenção para homens agressores, cujo objetivo era melhorar a segurança das vítimas e destacar a responsabilidade dos homens, uma vez que o programa foi desenvolvido conjuntamente com o sistema judicial” (ANTEZANA, 2012, p. 10). Esse modelo se tornou referência mundial para este tipo de intervenção.
No início dos anos 80 esses programas se expandiram para o Canadá (BEIRAS, 2009). Já os programas pioneiros na Espanha datam do final dos anos 80 (GELDSCHLÄGER, GINÉS, PONCE, 2011). Nos anos 90, começaram a ser replicados em outros países da Europa. Na América Latina, o país pioneiro foi a Argentina, sendo seguido pelo México (BEIRAS, 2009). Na Argentina, Peru, México, Nicarágua e Honduras já existem, hoje, trabalhos consolidados (TONELI; BEIRAS; RIED, 2017).
Pesquisas no âmbito internacional apontam para uma diversidade de programas e abordagens (ANTEZANA, 2012; TONELI et al., 2010; FLOOD, 2011). As intervenções precursoras no Brasil começaram a ser executadas nos anos 1990. Entre elas temos a da organização não governamental paulista, PRÓ-Mulher, Família e Cidadania, que desenvolvia mediação familiar nos casos julgados no âmbito da Lei 9099/95, e em 1993 passou a desenvolver grupos de reflexão com mulheres em situação de violência e homens envolvidos nas denúncias (Susana MUSZKAT, 2006; LIMA; BÜCHELE, 2011; CEPIA, 2016), e a do Instituto Noos, que inicialmente não tinha relação com a violência doméstica, e sim com os discursos de homens em terapia (Fernando ACOSTA; Alan BRONZ, 2014), dando origem a grupos de reflexão sobre masculinidades. A metodologia do Instituto Noos foi construída a partir de grupos de gênero realizados com homens de diversos contextos, faixas etárias, etnias e camadas sociais da população da cidade do Rio de Janeiro, “dentre eles: meninos e ex-meninos de rua, estudantes da rede pública e privada, policiais militares, moradores, líderes e agentes sociais de comunidades empobrecidas, universitários, profissionais de nível superior e autores de violência doméstica e de gênero” (ACOSTA; Leandro ANDRADE FILHO; BRONZ, 2004, p. 12). No final dos anos 1990, essa metodologia passou a ser utilizada com autores de violência doméstica e familiar num projeto com a Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Outras ações pioneiras foram o NAFAVD - Núcleo de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica, criado em 2003, no Distrito Federal; o Programa de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Intrafamiliar (PPVCDI), da Prefeitura de Blumenau-SC, que iniciou as intervenções com homens em 2004, e o Instituto Albam, ONG de Belo Horizonte que começou suas intervenções em 2005 (Luiz AGUIAR, 2009; BEIRAS, 2014). No contexto pós Lei Maria da Penha, o primeiro serviço criado de acordo com seus artigos 35 e 45 foi o Serviço de Educação e Responsabilização para Homens autores de violência contra mulher (SERH) (ACOSTA; BRONZ, 2014).
O “Relatório Mapeamento de Serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro”, publicado em 2014 pelo Instituto Noos, objetivou conhecer de forma exploratória e descritiva as experiências de serviços de atenção a homens autores de violência contra mulheres no Brasil. Foram encontrados, na época, 25 programas em diferentes estados brasileiros, obtendo informações mais detalhadas sobre 19 deles (BEIRAS, 2014).
Já o Relatório de Pesquisa “Violência contra as mulheres: os serviços de responsabilização dos homens autores de violência” realizado pela CEPIA e publicado em 2016 concentrou seus esforços em mapear os serviços existentes nas capitais brasileiras. Das 272 capitais, apenas 10 apresentam algum tipo de iniciativa direcionada aos autores de violência: Belém, Belo Horizonte, Distrito Federal, Natal, Porto Alegre, Porto Velho, Rio de Janeiro, São Luís, São Paulo e Vitória (CEPIA, 2016).
Cruzando as informações desses dois relatórios com as teses e dissertações sobre o tema é possível afirmar que o número das intervenções tem crescido, contudo, ainda se constitui como prática incipiente no país (BEIRAS, 2014; CEPIA, 2016). Pelo menos 30 cidades brasileiras já tiveram alguma experiência de intervenção com autores de violência doméstica e familiar. Dentre os estados brasileiros, não foi relatada nenhuma atividade apenas no Amapá, Goiás, Mato Grosso, Paraíba e Roraima. Nenhum deles faz um estudo aprofundado das experiências. Dessa forma, a seguir sistematizamos e analisamos, a partir de diversos ângulos, as teses e dissertações brasileiras sobre o tema e comparamos com as informações trazidas nos mapeamentos. Começaremos com uma análise sobre os avanços e disputas geradas pela Lei Maria da Penha, para então nos centrarmos na sistematização e discussão de alguns resultados encontrados pelas teses e dissertações.
Avanços e disputas geradas pela Lei Maria da Penha: buscando diálogos
Dentre as intervenções estudadas nas teses e dissertações, sete (PMFC - Pró-Mulher, Família e Cidadania, São Paulo/SP; Instituto Noos, Rio de Janeiro/RJ; Movimento de Mulheres de São Gonçalo (CEOM), São Gonçalo/RJ; NAFAVD - Núcleo de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica, Paranoá e Samambaia/DF; Programa de Prevenção e Atenção à Violência Doméstica e Familiar, SC; Grupos Temáticos Reflexivos sobre violência doméstica e intrafamiliar - Instituto Albam, Belo Horizonte/MG; e a pesquisa-ação no Poder Judiciário de Porto Alegre/RS) iniciaram antes da promulgação da Lei Maria da Penha. Não estando sob esse marco legal, e sim, sob o da Lei 9.099/95, institutos como a conciliação e a suspensão condicional do processo eram utilizados como forma de ingresso e vinculação de autores de violência. O grupo de São Gonçalo/RJ tinha como característica o uso da conciliação, e o Paranoá/DF, a suspensão condicional do processo. A política do Juizado Especial Criminal de São Gonçalo era
[...] encaminhar todos os homens e mulheres envolvidos nos casos de violência conjugal para os grupos de reflexão de gênero. As mulheres, como vítimas, são convidadas a participar de um grupo de mulheres, não havendo obrigatoriedade. Tanto o acusado quanto a vítima devem concordar, na conciliação, com a participação do homem no grupo de reflexão como uma medida alternativa, caso contrário, se uma das partes não concordar, o caso é encaminhado ao juiz, que marcará uma nova audiência. O juiz também encaminhará o acusado para o grupo de reflexão, mas agora como uma pena alternativa, além de poder estabelecer outros tipos de punição (Cristiane MARQUES, 2007, p. 59).
Além destes, o Grupo Reflexivo, sediado no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, criado em 2009, após a instalação da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar em São Paulo, se utilizava da suspensão condicional do processo como forma de encaminhamento. Em 9 de fevereiro de 2012, após o julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4424, na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que não se aplica à Lei Maria da Penha nenhum dos institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), tais como a conciliação, a transação penal e a suspensão condicional do processo (CAMPOS, 2015; Raíssa NOTHAFT, 2012), esse grupo modificou seu ingresso e vinculação. Diante da impossibilidade de aplicação da suspensão condicional do processo, a juíza do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar passou a encaminhar homens processados e aguardando julgamento que se encaixavam no perfil primário e acusados de crimes considerados “leves” (ameaça e lesão corporal leve, em sua grande maioria) de forma voluntária. No entanto,
[...] apesar da não obrigatoriedade, a participação no grupo reflexivo tem sido acatada por quase 100% dos homens, tanto pelo desconhecimento da sua não obrigatoriedade quanto por esperarem que essa participação seja considerada como “atenuante”, na ocasião do julgamento de seus processos (Paula PRATES, 2013, p. 266).
Segundo o Relatório da CEPIA de 2016, atualmente, o convite para participar dos grupos do Coletivo Feminista é feito durante uma audiência coletiva que ocorre a cada dois meses, na qual são convidados cerca de 40 ou 50 homens que tenham sido denunciados pelo Ministério Público. Nessa audiência é papel do defensor público deixar claro que é optativo. Segundo o Relatório, nesse formato, “a adesão costuma ser pequena e a decisão dos homens é muito mais orientada por conveniências de dias e horários que por entenderem as oportunidades que estão sendo oferecidas” (CEPIA, 2016, p. 44).
A decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012 “finalizou um árduo debate em torno da constitucionalidade da lei, fundamentalmente sobre a aplicação da tutela penal exclusiva das mulheres e da não aplicação dos institutos previstos na lei 9.099/1995” (CAMPOS, 2015, p. 528). Contudo, os grupos do Paranoá-DF e Rio de Janeiro continuaram aplicando esses institutos (Concepcion PAZO, 2013; Anita MONTEIRO, 2014). Ao mesmo tempo em que a Promotora do Distrito Federal defende a utilização da suspensão condicional do processo, a partir da noção de proteção da vítima, o Juiz da Comarca do Rio de Janeiro aplica os institutos independentemente do encaminhamento ao Grupo de Reflexão (PAZO, 2013), e afirma que
[...] conforme a gente foi aplicando a Lei e conforme a gente foi observando a postura da mulher, a postura do casal, a postura do réu, a gente começou a perceber que, aplicando a Lei de uma maneira rígida, em muitas oportunidades, a gente estava sendo injusto. Aí, começam as flexibilizações. [...] nosso público principal é esse cara que explode. Aí, aplicando a Lei dessa maneira, a gente acaba gerando uma injustiça. Na prática, tem pouca diferença em relação a 9.099 [...] (Juiz do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Entrevista em 25 fev. 2011) (PAZO, 2013, p. 41-42).
A questão é problemática, pois, como coloca Campos (2015), “a suspensão condicional do processo nos termos da Lei 9.099/95 objetiva beneficiar o autor do fato e não a vítima, pois essa é a lógica da legislação” (p. 528). Prevista no art. 89 dessa lei, a Suspensão Condicional do Processo busca evitar o início do processo em crimes cuja pena mínima não ultrapassa 1 ano, quando o acusado não está sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime. A proposta da suspensão pode ser aceita ou não pelo autor do fato, independentemente do desejo da vítima e não implica confissão, reconhecimento de culpa ou de responsabilidade. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que esse instituto pode ser utilizado para o combate da violência a partir do encaminhamento para intervenções com autores de violência, pode ser utilizado para mera contestação da Lei, como no caso exposto acima por Pazo.
Os Juizados Especiais Criminais, estabelecidos pela Lei 9.099,
[...] permitiram publicizar a violência contra a mulher, uma vez que esta foi a principal demanda ali apresentada, porém a sua incapacidade de resolutividade das violências imprimia um alto número de conciliações realizadas em um contexto de pressão ou coação para com as mulheres, resultando em acordos centrados no pagamento de multas e cestas básicas pelos homens. Se por um lado os Juizados Especiais Criminais eram um espaço de formalização pública do fenômeno da violência contra a mulher, por outro lado, pela forma como “resolvia” os casos ali apresentados, se constituía como instrumento de legitimação e banalização da violência e desqualificação da violência ali apresentada pela mulher, visto que não se considerava a complexidade do fenômeno e não se garantia a segurança às mulheres (BRASIL, 2016, p. 14).
Essa Lei foi um importante ponto de partida para a organização de intervenções com autores de violência. Elas ocorreram nos locais em que operadores jurídicos questionaram a adequação da pena pecuniária de multas e cestas básicas aos casos de violência de gênero (CEPIA, 2016). No entanto, ao mesmo tempo em que ampliou o acesso à justiça, ressaltou o despreparo de grande parte dos operadores jurídicos em lidar com a violência doméstica e familiar, fazendo-se notar a partir do grande número de conciliações coagidas e a desqualificação das vítimas durante os processos (SOARES, 2004).
As lutas feministas e dos movimentos de mulheres pela criação da Lei Maria da Penha ocorreram devido a essas posturas deslegitimadoras da violência doméstica e familiar. Assim sendo, mesmo garantindo no texto da Lei a criação das intervenções, elas não foram, necessariamente, pensadas de forma alinhada com as metodologias já existentes. Segundo Acosta e Bronz (2014), “há pelo menos uma discrepância: o grupo de pessoas que formulou a lei define o trabalho como mais uma forma de punição” (p. 144). As primeiras intervenções no Brasil foram desenvolvidas independentemente dos movimentos feministas ou com diálogo reduzido; faz-se necessário, todavia, que os responsáveis pelo desenvolvimento das intervenções já existentes e as responsáveis pela formulação da Lei Maria da Penha estabeleçam um franco diálogo no sentido de alinhar suas expectativas (ACOSTA; BRONZ, 2014).
Nesse sentido, é necessário discutir a previsão de dois modelos de intervenções com autores de violência na Lei: o artigo 35 prevê centros de educação e reabilitação; já o artigo 45, que altera a Lei de Execuções Penais, orienta que “nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação” (BRASIL, 2006). Não só objetivos como educação, reabilitação, recuperação e reeducação são distintos, podendo dessa forma abarcar programas para diversos públicos, como algumas dessas expressões são controversas. Existe uma crítica pertinente quanto aos pressupostos que embasam esses objetivos. Por exemplo, por trás do prefixo “re” de “reabilitação”, “reeducação” e “recuperação”, está a ideia de que já existiu um momento em que homens se relacionaram em igualdade com mulheres. Se pensarmos a história de nosso país, não é possível afirmar a existência desse momento, pois, como afirma Leandro ANDRADE (2014), “a desigualdade de gênero aparece em todas as fases da socialização, primária e secundária, e, sendo assim, precisa ser conhecida e desconstruída e passar por processo de educação, e não por reabilitação e recuperação” (p. 184). Se compreendemos que essa desigualdade de gênero é fomentadora da violência, não é possível buscar voltar a um estado - a partir da reabilitação, reeducação e recuperação - que nunca existiu.
A falta de definição legal para a forma de vincular os autores de violência a essas iniciativas gerou uma diversidade de modelos na organização dos trabalhos. Em 2008, com a edição pela Secretaria de Políticas Para as Mulheres - SPM - das “Recomendações Gerais e Diretrizes da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal para a implementação dos serviços de responsabilização e educação dos agressores”, tal situação deveria ter sido superada (CEPIA, 2016). Esse documento “constitui o resultado de discussões realizadas por diferentes Ministérios e representantes da sociedade civil no workshop ‘Discutindo os Centros de Educação e Reabilitação do Agressor’, realizado no Rio de Janeiro em julho de 2008” (BRASIL, 2008, p. 1). Segundo tal proposta,
[...] O Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor é o equipamento responsável pelo acompanhamento das penas e das decisões proferidas pelo juízo competente no que tange aos agressores, conforme previsto na Lei 11.340/2006 e na Lei de Execução Penal (BRASIL, 2008, p. 1).
Ou seja, nas diretrizes se privilegiou o modelo previsto no artigo 45 da Lei, a partir do argumento de que ‘centro’, conforme previsto no artigo 35, trazia no seu bojo a ideia de um espaço de ‘atendimento’ semelhante aos Centros de Referência da Mulher e aos Centros de Referência de Assistência Social.
Dentre as intervenções estudadas, o Grupo de Reflexão do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde é dos poucos existentes no país expressamente elaborado de acordo com as diretrizes (Tales MISTURA, 2015; PRATES, 2013). Treze das dezessete teses e dissertações estudadas são posteriores à elaboração desse documento, contudo, somente seis delas fazem referência a essas diretrizes, não por acaso, as quatro teses e dissertações (PRATES, 2013; MISTURA, 2015; Isabela OLIVEIRA, 2016; Jan BILLAND, 2016) que estudam o Grupo reflexivo organizado pelo Coletivo Feminista de São Paulo e a tese que fez a comparação de quatro intervenções. Apesar de não especificar todos os pontos necessários, as recomendações e diretrizes trazem discussões pertinentes dos movimentos sociais feministas e de mulheres que devem ser conhecidas, ao menos, por aqueles que se propõem a estruturar e pesquisar as intervenções com autores de violência doméstica e familiar. Em 2016 foi lançado o “Manual de Gestão para alternativas penais: medidas protetivas de urgência e demais serviços de responsabilização para homens autores de violências contra as mulheres”, produto de uma Consultoria Nacional Especializada para Formulação de Modelo de Gestão para as Alternativas Penais, projeto BRA/011/2014 - Fortalecimento da Gestão do Sistema Prisional Brasileiro, parceria entre Departamento Penitenciário Nacional e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Esse documento apresenta o
[...] mapeamento dos atores, processos de trabalho, descrição de procedimentos, proteção social e encaminhamentos às redes de apoio especializado em álcool e drogas, assistência social e profissionalização, fluxogramas e descrição de rotinas, delimitando um modelo de gestão para as medidas protetivas de urgência e demais ações de responsabilização para homens autores de violências contra as mulheres no Brasil, considerando as boas práticas em curso, como os Grupos Reflexivos a partir da iniciativa de instituições especialistas em gênero, com o foco na responsabilização dos homens e ruptura com os ciclos de violências (BRASIL, 2016, p. 7-8).
Se partimos das Diretrizes de 2008, podemos considerar a edição desse documento um avanço em termos de sistematização das intervenções no âmbito do artigo 45 da Lei, pois ele tem como objetivo consolidar um modelo de gestão a ser implantado junto aos serviços de execução em alternativas penais, ao discutir uma metodologia que possibilite ao Departamento Penitenciário Nacional e aos “estados e municípios fomentarem a implantação, o gerenciamento e acompanhamento das medidas protetivas e demais serviços de responsabilização para homens, previstas na Lei Maria da Penha” (BRASIL, 2016, p. 8). Além disso, esse manual avança substancialmente em termos de alinhamento metodológico e político para os serviços destinados aos autores de violências doméstica e familiar. Devido ao critério temporal utilizado nas escolhas das teses e dissertações analisadas (2006-2016), nenhuma delas utilizou esse material como referência. A partir dessa discussão, passamos à sistematização e discussão da produção acadêmica nacional a partir das teses e dissertação mapeadas.
Sistematização da produção acadêmica nacional
Sem a pretensão de exaustividade, buscamos sistematizar alguns achados dos trabalhos analisados. Percebe-se uma concentração de estudos nas intervenções do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, por terem sido as primeiras cidades do país onde houve iniciativas e foi centralizado o debate teórico sobre as intervenções. Duas dissertações enfocaram intervenções diferenciadas: o texto de Welliton MACIEL (2014), que se volta para os mecanismos de vigilância eletrônica utilizados como forma de garantir o cumprimento de medidas protetivas, conjugados à obrigatoriedade em frequentar grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica contra mulheres em Belo Horizonte. E o texto de Edélvio LEANDRO (2009), que estuda os autores de violência encaminhados ao Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (CAPS AD), tendo em vista a ausência de outra política em Recife. Em sua pesquisa, mostra a “deturpação” da demanda de intervenção, pois na abordagem médico-psiquiatrizante autores de violência são alocados como “o doente, o alcoolizado”. Assim,
[...] aqueles encaminhados pela Justiça por agressão a suas companheiras e denominados de agressores, sob uma forma não-dita, são perpetuados na condição de “vítimas”, porque desresponsabilizados, ante sua dependência química. Uma vez que os sentidos produzidos sobre a violência de gênero nesses espaços o são em torno do eixo dependente-vitimário, perpetuam-se as categorias de pensamento opositivas e as práticas institucionais cotidianas que dão suporte à manutenção da ordem sexista de gênero (LEANDRO, 2009, p. 10).
Dessa forma ocorre o que Soares (2004) chama de patologização da violência, eximindo-os de qualquer responsabilidade. Como os estudos apresentam diferentes metodologias, centrando-se ora nos discursos dos autores de violências, ora nos discursos dos profissionais envolvidos, ora em ambos conjuntamente, dividiremos essa sessão que resume e discute brevemente os resultados da produção acadêmica nacional sobre o tema em quatro partes: Discursos dos autores de violência; Perspectivas das intervenções; Dificuldades de implementação e Desafios teórico-metodológicos.
Discursos dos autores de violência
Nos textos que trabalharam com entrevistas de autores de violência e com observações de grupos reflexivos foram ressaltados alguns discursos recorrentes dos participante. Entre eles, estão:
1) A consideração de que a Lei Maria da Penha é injusta, “uma benesse para as mulheres” (AGUIAR, 2009; MARQUES, 2007; MISTURA, 2015; PAZO, 2013; PRATES, 2013; OLIVEIRA, 2016).
2) A dificuldade de reconhecer seu ato enquanto violência ou minimizá-lo (MARQUES, 2007; AGUIAR, 2009; PAZO, 2013; PRATES, 2013; MISTURA, 2015; BILLAND, 2016).
3) A dificuldade em reconhecer como violência atos que diferissem da agressão física extrema (Gustavo WINCK, 2007; MISTURA, 2015). Nesse sentido, violência psicológica se encontra longe de ser aceita enquanto violência.
4) A tentativa de justificar a violência, muitas vezes conjugada com desqualificação da denúncia da mulher (MUSZKAT, 2007; PRATES, 2013; MACIEL, 2014; OLIVEIRA, 2016). Para tanto, os participantes descreviam
[...] as mulheres por meio de ideias estereotipadas e tradicionais, como pessoas de “má-fé”, dotadas de um “ardil feminino”. Nessa perspectiva masculina, a fragilidade feminina é usada em benefício das mulheres, como uma das formas de exercitarem seu poder contra os homens, sendo a denúncia considerada uma de suas manifestações. Nesse sentido, o que podemos observar é que, por um lado, os homens buscam desqualificar as mulheres e, por outro, eles são impelidos ao reconhecimento do poder exercido por elas. Isso ocorre porque, para os homens, o discurso da mulher representa poder, aqui entendido no sentido foucaultiano do termo (PRATES, 2013, p. 259).
Entretanto, durante o desenrolar dos grupos reflexivos, alguns participantes relativizam essas posturas iniciais. Dentre esses discursos, o mais complexo ainda parece ser o de reconhecimento da violência. Segundo Marco MARTÍNEZ-MORENO (2017), “eles não negavam a agressão, apesar de afirmarem que não cometeram uma violência” (p. 190-191). Os atos são considerados, por eles mesmos, como erros justificáveis diante das ações de suas companheiras (BILLAND, 2016). O relatório da CEPIA (2016) confirma essas percepções. De acordo com suas informações, os homens chegam com muitas resistências aos grupos e desconhecimento da Lei Maria Penha. A maioria não entende por que está ali, sente-se injustiçada por não reconhecer que praticou um crime. Nesse sentido, o relatório destaca a importância de as intervenções esclarecem aspectos jurídicos e processuais da situação vivida por esses homens, pois o tratamento não satisfatório de questões legais
[...] (como a gravidade do crime praticado, a existência de antecedentes criminais, a recorrência da violência presente na denúncia feita pelas mulheres, a permanência de padrões de conduta violenta contra a mulher, para citar alguns exemplos) pode contribuir para que os homens não percebam a oportunidade de reflexão e mudança trazida pelo grupo, dificultando seus processos íntimos de transformação para as relações afetivas e sociais em geral (CEPIA, 2016, p. 55).
Quando esses aspectos não são trabalhados, persiste nos homens o sentimento de angústia, injustiça e incerteza com o futuro. A metodologia do Instituto Noos também ressalta a importância de ser devidamente explicado nos encontros iniciais o objetivo e funcionamento do grupo, “uma vez que nossa experiência tem mostrado que os homens encaminhados pelos JVDMs não têm nenhum conhecimento sobre a proposta. Neste caso, também é importante diferenciá-la da função da justiça” (BEIRAS; BRONZ, 2016, p. 35). Pois, como os autores ressaltam, a inadvertida associação entre ambos pode comprometer o trabalho.
Perspectivas das intervenções
Nas pesquisas que enfocaram as considerações dos participantes como forma de avaliação dos grupos, foi constatado que:
1) Os participantes percebem melhorias no convívio familiar (WINCK, 2007; AGUIAR, 2009; ACOSTA; BRONZ, 2014; MISTURA, 2015).
2) Demandam a inclusão de suas famílias, principalmente as companheiras, em serviços semelhantes (AGUIAR, 2009; Anne SILVA, 2016).
3) Grupos são vistos como espaço de aprendizado (WINCK, 2007; AGUIAR, 2009; PRATES, 2013; OLIVEIRA, 2016; SILVA, 2016). Prates (2013) vincula o avanço reflexivo do grupo à estratégia de trabalho dos facilitadores que
[...] acolheram o processo de “catarse” dos participantes, procurando, a partir dele, criar condições para a busca de uma ressignificação do sentido do grupo. Ou seja, de mudança da ideia de punição para a de oportunidade, sentido progressivamente incorporado pela maioria dos homens (p. 261).
Ou seja, as intervenções se mostram como possibilidade para a construção de novas formas de resolver conflitos, perceber/controlar a própria agressividade (AGUIAR, 2009; PAZO, 2013; Milena SANTOS, 2012; MISTURA; ANDRADE, 2017). Os grupos reflexivos são vistos como espaço de interlocução e de ampliação de significados e sentidos sobre relações conjugais, violência e possibilidade de ser homem na atualidade (MISTURA; ANDRADE, 2017). Na troca de experiências entre homens, a escuta é incentivada como forma não violenta de resolução de conflitos (SANTOS, 2012).
Dificuldades de implementação (ou políticas)
1) Carência de recursos financeiros (SANTOS, 2012). A maior parte das organizações não governamentais que oferece tais serviços não possui recursos financeiros para estruturar os programas e manter a equipe profissional (BEIRAS, 2017). Nesse quesito, o Ministério da Justiça publicou a Portaria 216, de 27 de maio de 2011, do Departamento Penitenciário Nacional/DEPEN, que “estabelece procedimentos, critérios e prioridades para a concessão de financiamento de projetos referentes à aplicação e execução das Alternativas Penais, com recursos do Fundo Penitenciário Nacional” (BRASIL, 2011). Devido à escassez de verbas, o Ministério da Justiça decidiu apenas “investir em projetos municipais e estatais para o trabalho com homens em localidades que possuíssem Centros de Referência e Atendimento às Mulheres estruturados” (SANTOS, 2012, p. 111). Contudo, os relatórios apontam que as verbas recebidas costumam ser pontuais, o que torna grande parte das ações temporária. Dessa forma, mesmo havendo uma fonte possível de financiamento das ações, ainda falta força política para tornar tais serviços prioridades para os gestores de tais recursos.
2) Falta de coordenação com a rede de enfrentamento à violência e de institucionalização das políticas (LIMA, 2008; Anderson OLIVEIRA, 2012; SANTOS, 2012). Segundo Anderson Oliveira,
[...] os serviços de responsabilização e educação para homens autores de violência são caudatários da rede de atenção às mulheres em situação de violência e, como tal, o diálogo entre esses serviços deve ser constante. A implementação dos serviços para homens, tornando-se política pública, não pode ser pensado isolado de uma rede. As poucas referências feitas pelos profissionais do SERH nas entrevistas realizadas a instituições que compõem a rede de atendimento à mulher da Baixada Fluminense e os poucos encaminhamentos que estas realizavam para o serviço deix[aram]-me a sensação de que a interligação entre esses mecanismos ficou aquém do que se espera (OLIVEIRA, 2012, p. 109).
Os Relatórios da CEPIA e do Instituto Noos também verificaram essa falta. As intervenções com autores de violência, em geral, são políticas localizadas e pontuais, configurando o que Oliveira (2012) chama de políticas de governo, ou seja, desenvolvidas em determinado mandato, e canceladas ou substituídas quando há troca de governo. Nesse contexto, a falta continuidade se apresenta como a principal limitação dessas iniciativas (SANTOS, 2012; BEIRAS, 2014) e a carência de recursos está diretamente relacionada a essa falta. Faz-se necessário que o trabalho com homens se torne efetivamente uma política pública. A aplicação irregular de intervenções com homens pode
[...] comprometer a eficácia da lei, a credibilidade dos sistemas de segurança e jurídico, colocar em risco as mulheres, privar os homens da possibilidade de mudanças e inviabilizar um processo permanente de monitoramento e avaliação, tão necessário em um trabalho que lida com a imponderabilidade da conduta humana (ACOSTA; BRONZ, 2014, p. 145).
Tais dificuldades podem ser consideradas como apenas mais um reflexo da fragilidade das políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar e da precária implementação da Lei Maria da Penha em si.
3) Falta de capacitação e supervisões dos profissionais (LIMA, 2008; PAZO, 2013). Conforme o relatório da CEPIA (2016), a maior parte dos grupos é conduzida pelas equipes multidisciplinares que atendem nos órgãos da justiça - juizados/varas de violência doméstica e familiar ou promotorias especializadas, como uma atividade a mais. Há também uma grande parcela de profissionais voluntários e estagiários, dos quais a maior parte não passou por nenhuma atividade de formação e capacitação para o trabalho com os grupos. O conhecimento é buscado individualmente, durante o desenvolvimento dos trabalhos. Apenas nas intervenções de São Paulo e Belo Horizonte, ainda ativas, se identificou a preocupação com a qualificação acadêmica para o exercício da atividade com homens. Essa dificuldade se intensifica quando somada às constantes interrupções dos serviços, pois impede o aprofundamento do aprendizado da função de facilitador (ACOSTA; BRONZ, 2014). Além da falta de formação para as diferentes metodologias utilizadas nas intervenções estatais no país, deve se questionar o tipo de formação quando existente (ANTEZANA, 2012; BILLAND, 2016; Roberto AMADO, 2017).
4) Alta rotatividade e desistência dos participantes nos grupos não compulsórios (LIMA, 2008; Anderson OLIVEIRA, 2012; SANTOS, 2012). Há uma grande discussão sobre qual seria o melhor modelo de intervenção, o obrigatório, vinculado ao sistema de justiça, ou o voluntário. Alguns autores defendem o modelo voluntário como formato ideal para proporcionar um processo reflexivo. Contudo, as intervenções que seguem esse modelo sofrem com altas taxas de desistência (AMADO, 2017). Já nos grupos compulsórios se percebe grande resistência inicial, que, paulatinamente, vai se transformando ao longo do processo (SANTOS, 2012; BEIRAS, 2014).
Desafios teórico-metodológicos
Os desafios teórico-metodológicos não se separam das inúmeras dificuldades na implementação dessas intervenções. Em grande medida decorrem ou se agravam pelas dificuldades acima apresentadas. Cabe também destacar que os cinco desafios analisados aqui estão intimamente conectados uns com os outros:
1) Falta de instrumentos para lidar com diversidade cognitiva e para casos em que há abuso de álcool de drogas (MONTEIRO, 2014). Nesse sentido, o atendimento individual não deve ser descartado em situações específicas, particularmente quando o homem necessita de atenção psicoterapêutica ou de tratamento médico para químico-dependências. Algumas experiências internacionais preveem atendimentos individuais antes, durante e depois de experiências grupais, que podem fazer parte da metodologia, ou serem utilizados em casos em que se percebem necessidades psicoterapêuticas (Santiago BOIRA SARTO, 2010). Um acompanhamento não substitui o outro e o fundamental é que o enquadramento patologizante do comportamento violento não se sobreponha a qualquer outra abordagem (CEPIA, 2016; TONELI; BEIRAS; RIED, 2017).
2) Grupos que se centram num formato educativo tradicional ou de palestras podem impossibilitar um diálogo que gere transformações subjetivas (BILLAND, 2016).
Segundo Pazo (2013),
os homens reformulavam certas imagens de masculinidade (agressividade e controle sobre a mulher) e reiteravam outras (trabalhador/provedor/pai responsável), construindo sentidos para as violências experimentadas e suas relações com a Lei que entravam em conflito com os propostos pelas técnicas (p. 249).
Ou seja, são os participantes que produzem novos sentidos para suas próprias vivências e relações, não podendo se esperar que eles meramente adiram às posturas éticas apresentadas pelos profissionais que facilitam os grupos. Essa é uma discussão pertinente, pois tem impacto na possibilidade de reflexão dos participantes. Nesse sentido, a metodologia do Instituto Noos propõe os princípios da educação popular de Paulo Freire como importantes referentes políticos e conceituais para a concepção de atividades grupais com autores de violência doméstica e familiar pois, assim, o conhecimento é contextualizado a partir da experiência dos participantes e o facilitador procura produzir junto com eles reflexões e compreensões sobre o tema discutido, evitando uma posição autoritária do facilitador “como dono do saber” e subordinada do participante “como ser carente e incompleto” (BEIRAS; BRONZ, 2016).
3) Incorporação superficial e despolitizada do debate de gênero (OLIVEIRA, 2012; PAZO, 2013; João GONÇALVES, 2015; AMADO, 2017). É consenso entre diversos pesquisadores (ANTEZANA, 2012; ANDRADE, 2014; BEIRAS, 2014; ACOSTA; BRONZ, 2014; AMADO, 2017; MARTÍNEZ-MORENO, 2017; João BERNARDES; Cláudia MAYORGA, 2017) a necessidade de uma perspectiva de gênero para um processo reflexivo que tenha impacto nas relações violentas. Segundo o Relatório da CEPIA (2016), o termo gênero é citado na maior parte dos programas, entretanto, foi observado que muitos discursos utilizam o conceito de gênero como sinônimo de mulher, sem qualquer referência teórica a estudos feministas de gênero e de masculinidades. Assim se perde, na construção dessas intervenções, tanto a perspectiva histórico-cultural das relações de gênero quanto seus efeitos no caráter relacional (SOARES, 2012) da violência doméstica e familiar no Brasil.
A experiência analisada por Concepcion Gandara Pazo (2013), no Rio de Janeiro,
[...] operava a partir de pressupostos que pareciam espelhar percepções genéricas das técnicas sobre relações de gênero e violência contra a mulher. Pouco consistentes e dogmáticos, tais pressupostos universalizavam a relação entre masculinidade e agressividade, o que gerava intensas reações por parte dos integrantes do grupo, que, na maior parte das vezes, não se identificavam com a identidade masculina que as técnicas lhes imputavam (p. 249).
Se as intervenções com autores de violência têm como objetivo “provocar a desconstrução e a mudança dos padrões naturalizados de gênero, violência de gênero e de masculinidade hegemônica” (ANDRADE, 2014, p. 181), os e as profissionais envolvidos(as) devem iniciar, eles(as) mesmos(as), um processo reflexivo denso para desnaturalizar sua própria construção dentro de uma sociedade androcêntrica e patriarcal (BEIRAS; BRONZ, 2016), pois o trabalho de intervenção é arriscado, “sempre no limite da reprodução dos preconceitos que se pretende combater” (BILLAND, 2016, p. 123).
Esse desafio impacta diretamente a potencialidade de transformação das intervenções, podendo fazer com que aja a manutenção de discursos misóginos e culpabilização das mulheres pela violência cometida (AGUIAR, 2009; PAZO, 2013; MARTÍNEZ- MORENO, 2017). Nesse sentido, além da capacitação dos profissionais, deve se pensar em metodologias que permitam alcançar os participantes e identificar “riscos e outros sinais como a racionalização no discurso, negação e minimização de violências cometidas” (AGUIAR, 2009, p. 149). Nesse mesmo sentido, deve-se atentar para que as intervenções não recaiam em ferramentas de contenção das práticas violentas (PAZO, 2013; SANTOS, 2012). No grupo analisado por Pazo (2013),
[...] o aprendizado final dos integrantes do grupo pareceu resumir-se apenas à conscientização da necessidade de se aprimorar o autocontrole para que conseguissem “fugir”, “não esquentar”, “sair de perto”, “deixar prá lá”, “aprender a viver” e “evitar” situações promotoras de conflitos, brigas e agressões. Ao que parece, do seu ponto de vista, o que eles aprendiam era, sobretudo, como evitar cair nas armadilhas que as mulheres podiam colocar em seu caminho. Algo, portanto, muito distante dos objetivos de transformação dos sujeitos almejado pela Lei (p. 249-250).
Conforme pesquisas, esse risco é mais recorrente em grupos que não se orientam por perspectivas feministas de gênero (TONELI et al., 2010; ANTEZANA, 2012).
4) Prevalência da abordagem terapêutica nos grupos, mesmo que os modelos teóricos não prevejam isso. Segundo a análise feita por Oliveira (2012) do Serviço de Educação e Responsabilização dos Homens Autores de Violência de Gênero (SerH), apesar de se nomear um serviço de responsabilização,
[...] o modelo de intervenção que cada grupo vai desenhando pode aproximar o serviço de uma vertente muito mais terapêutica do que responsabilizante. Não entendo que o grupo assumir uma postura terapêutica seja necessariamente um vício, tampouco grave. Talvez seja, inclusive, uma forma interessante de se construir a vinculação entre serviço e usuário, indispensável para o sucesso da intervenção. Contudo, o que deve ser priorizado é seu objetivo socioeducativo e pedagógico, pois, “agir com neutralidade neste tipo de intervenção pode apresentar um risco, à medida que pode favorecer a impunidade da pessoa denunciada por violência” (ALVAREZ, 2006 apudOLIVEIRA, 2012, p. 108).
Concernente às dinâmicas narradas nas teses e dissertações analisadas, ao que tudo indica, a abordagem terapêutica se faz importante para a adesão dos autores de violência aos grupos, entretanto, em termos temporais, ela tem perdurado durante a maior parte das sessões dos grupos. Segundo Andrade (2014), “na constituição e dinâmica dos grupos, a fundamentação resvala para a ética e o olhar que vem das propostas dos grupos terapêuticos” (p. 187). Assim, a execução dos grupos acaba se distanciando de um debate feminista de gênero, perdendo em termos de reflexão e responsabilização.
Considerações finais
A partir desse estudo foi possível perceber que as pesquisas sobre intervenções com autores de violência doméstica e familiar são bastante recentes no Brasil, tendo havido um aumento significativo de teses e dissertações sobre o tema após a promulgação da Lei Maria da Penha. As intervenções têm gerado um debate legal árduo, principalmente relacionado à forma de encaminhamento e vinculação dos autores e acusados de violência doméstica e familiar, e sua estruturação - enquanto centros de atendimento, ou serviços vinculados à execução penal. Ambos os modelos existem no Brasil atualmente, e uma tarefa interessante para futuras pesquisas envolveria comparar esses aspectos e analisar suas implicações.
As perspectivas apresentadas nas teses e dissertações analisadas estavam todas vinculadas ou a entrevistas realizadas com facilitadores ou com participantes, ou seja, não há pesquisas que envolvam sistematicamente as companheiras dos autores de violência em sua análise. As teses e dissertações também demonstram a inexistência de processos avaliativos estruturados. As iniciativas nesse sentido ainda são bastante rudimentares (ANTEZANA, 2012; AMADO, 2017) e se limitam às opiniões dos homens participantes, sem atentar ao caráter relacional da violência (Cecília MacDowell SANTOS; PASINATO, 2005). Os principais desafios percebidos estão ou relacionados à implementação e manutenção das intervenções ou às teorias e metodologias por trás da sua execução. Mesmo diante de um debate teórico considerável, questões de ordem política se sobrepõem, e a dificuldade de implementação e manutenção das intervenções põem em risco a sua potencialidade no enfrentamento à violência doméstica e familiar. Nesse sentido, é preciso ter cuidado para que os inúmeros desafios expostos acima não tornem as intervenções com autores de violência novas ferramentas de conciliação, tão rechaçadas pelo movimento feminista quando da aplicação da Lei 9.099/95 (Guita DEBERT; Maria Filomena GREGORI, 2008).
Nesse sentido, é problemático que as transformações percebidas nos participantes das intervenções sejam apenas no sentido de evitar conflitos. É necessário, assim, analisar se as intervenções, da forma como estão se desenvolvendo, promovem modificações nas relações ou somente o aprendizado, pelos autores de violência, de como evitar o enquadramento nos delitos regidos pela lei. Esse tipo de “aprendizado” pode se tornar mais uma forma de invisibilização de demandas de violências pautadas em desigualdades de gênero.
As principais questões que se mostraram em aberto, e perpassam pesquisas em execução, se referem ao formato, metodologia, formação dos facilitadores e avaliação. Questões, essas, que estão diretamente relacionadas umas com as outras. Pesquisas que partam de um olhar relacional e envolvam os autores de violência e suas famílias de forma mais continuada, ou após a sua participação nos grupos, são necessárias para um olhar mais atento às implicações das intervenções. Ainda há um longo percurso até que se possa fazer avaliações aprofundadas dessas intervenções, tanto das ferramentas teóricas e metodológicas utilizadas, quanto das experiências em si. Esse artigo é apenas mais um esforço analítico nessa busca.