Introdução
Na esfera cultural contemporânea, a negociação de identidades de gênero e sexuais envolve complexas interações. A ilusão de que o gênero é essencial e estável atua como uma poderosa “ficção reguladora”, legitima regimes de poder não só entre sujeitos, mas também entre identidades e modos de vivenciar a sexualidade e o gênero (Judith BUTLER, 1990). Ao amalgamar discursos, valores e símbolos dissonantes como libertação e moral, equidade e repressão, práticas de gênero e sexualidades constituem um terreno de disputas, espaço de resistências e subversão (Adriana PISCITELLI, 2005; Anoop NAYAK; Mary Jane KEHILY, 2013).
A teoria da performatividade de Butler (1990) tem referenciado análises substanciais sobre o agenciamento nas estruturas de poder relativas às identidades de gênero. Nesta perspectiva, a performance é um ato discursivo-corporal que integra um processo de naturalização e (re)produção de identidades, papéis e normas sociais. Focalizando a produção da subjetividade nos processos de significação que constroem o eu, Butler assevera que o sujeito é construído performativamente nas experiências de repetição de normas, onde o gênero é tanto construído quando desestabilizado. A agência situa-se nesse espectro de possibilidades de variação das citações iterativas. Apesar das iterações das práticas de gênero produzirem a ideia de um gênero coerente e estável, o próprio imperativo de uma repetida evocação exprime a vivência necessariamente contingente do gênero.1 O potencial para “desfazê-lo” reside precisamente no envolvimento performativo em condutas que distorcem e distanciam-se das normas de gênero.
No ambiente escolar, o processo de construção da identidade de gênero transcende a socialização promovida pelos agentes institucionais, expressando, igualmente, um contínuo trabalho de negociação de fronteiras simbólicas, sociais e materiais entre os pares (Barrie THORNE, 1997; Maria do Mar PEREIRA, 2012; Eivind FJAER et al., 2015; Sarah MILLER, 2016). Estas fronteiras são mantidas, reforçadas, contestadas e transgredidas a partir do recurso sistemático a discursos de afirmação (ou de questionamento) das diferenças entre os sexos, e de estratégias de inclusão e de exclusão sociais. Os grupos de pares estabelecem um contexto estruturado por dinâmicas de poder assentes em regimes de vigilância de condutas. Nas tramas da regulação moral, processos políticos de rivalidade e disputa produzem a caracterização e a hierarquização de sujeitos e grupos, confeccionando diferentes relacionalidades entre as/os jovens.
Essa demarcação de diferenças e semelhanças constitui uma dimensão importante do processo de construção do gênero nas interações cotidianas, tanto com a criação ativa de barreiras entre os gêneros quanto nas tentativas de transgredi-las. As disputas por poder fazem circular discursos reguladores em torno da sexualidade, aparência e comportamento, a partir dos quais são delimitados critérios de reconhecimento social (KEHILY, 2004; Shirlei SALES; Marlucy PARAÍSO, 2013). As “cenas” de conflito vão além do “motivo em si, evocando explicitamente “imagens que desenham papéis” (Maria Filomena GREGORI, 1993, p. 164) de feminilidade, adolescência, poder, conformidade, transgressão e desigualdade.
Entendemos que a difamação moral integra o complexo conjunto de pressões, expectativas e restrições sociais e institucionais que compõem a rígida estrutura reguladora do gênero, a que Butler (1990) denomina matriz heterossexual. Conversações depreciativas, fofocas e atos de rebaixamento são rituais ordinários de classificação e produção de hierarquias, que vão engendrando espaços de controle cuja pedagogia moralizante conforma um “campo minado normativo”, no qual as mulheres jovens precisam navegar sob a demanda de um “automonitoramento contínuo, [d]o gerenciamento de impressões e [de] um suplemento de manobras defensivas e ofensivas” (Laina BAY-CHENG, 2015, p. 286).
A tensão colocada pela constante ameaça de difamação moral sumariza a regulação do desempenho público do gênero. Assim como ocorre com o rótulo “bicha” entre os meninos, a estigmatização da “puta” torna-se um poderoso mecanismo disciplinar (KEHILY, 2004; PEREIRA, 2012; FJAER et al., 2015; MILLER, 2016). Atuando como um marcador de limites da feminilidade normativa, a categorização de desviantes infunde predicados normativos e comportamentos morais, que são usados para contrastar grupos e moldar o nosso ideário de gênero. Interpretamos este tipo de categorização do outro como uma prática social cujo teor coercitivo contribui para a modulação do processo de constituição de subjetividades e identidades generificadas.
Para produzir uma discussão que nos possibilite observar como meninas adolescentes significam e manejam os atributos femininos hegemônicos, neste artigo centramo-nos em duas manifestações da negociação de gênero na escola: a gestão de categorias de menina e a mobilização dessas categorias na regulação de tais posições de sujeito. O objetivo é compreender como elas reforçam e contestam comportamentos e características assentes na categoria “menina/mulher”.
Aspectos metodológicos
Este artigo resulta de um recorte temático e empírico de um estudo mais amplo sobre o papel de mecanismos de controle e disciplinamento social entre meninas na construção de identidades de gênero. Parte deste trabalho etnográfico foi realizado entre 2014 e 2015, com meninas entre 11 e 15 anos, em uma escola pública que oferta o ensino fundamental II (6º a 9° anos), em Salvador, na Bahia.2
A escola está localizada em um bairro da orla marítima da cidade, cujos residentes integram o segmento de médio e alto padrão, mas fundamentalmente atende a jovens de comunidades empobrecidas circunvizinhas. Na época da investigação, a instituição atendia a um total de 422 discentes no turno matutino, com 238 meninas em turmas de sexto, sétimo e nono ano, e no turno vespertino com 289 estudantes, sendo 154 garotas, no sexto, sétimo e oitavo anos.
A observação participante teve a frequência regular de três dias por semana, nas salas de aula, corredores, pátio e sala dos professores. A produção de dados ocorreu, sobretudo, no presenciar de diálogos e em conversas com discentes e agentes institucionais (William FOOTE WHYTE, 2005). Essas conversas e entrevistas seguiram um formato fluído, sendo conduzidas informalmente com perguntas abertas baseadas em um roteiro de tópicos relativos ao problema do estudo (Vitor Sérgio FERREIRA, 2014). Para obter uma visão ampla dos diversos discursos e práticas de gênero, procurou-se abranger as diferentes posições de sujeito menina e de lugar ocupado na hierarquia social.
Foram feitas 11 entrevistas em profundidade para melhor compreender situações ocorridas ou concepções de interesse apresentadas por algumas meninas. A fim de contemplar uma visão relacional das questões de gênero, também foram entrevistados 5 garotos. Encerradas as visitas à escola, realizou-se entrevistas semiestruturadas com o diretor, o vice-diretor (que geria a escola no vespertino) e três professores.
A leitura pormenorizada das notas de campo e das transcrições de conversas e entrevistas considerou as referências (diretas ou indiretas) a diferenças, semelhanças e desigualdades entre meninas e grupos, com base nas noções de feminino e masculino. O objetivo foi identificar as categorias que as adolescentes convocavam para falar sobre “meninas”, gênero e sexualidade, mapear as suas estratégias discursivas de gestão da apresentação de si, e caracterizar as relações que estabeleciam inter e intragêneros. Desse processo iterativo emergiram três temas relativos à construção discursiva do gênero: os usos das categorias de diferença e semelhança em termos de práticas e posições sociais de meninas; os usos das categorias de natural e social na descrição, justificativa e avaliação das causas subjacentes às diferenças e semelhanças entre elas; as formas de apresentação de si, à luz do vetor modernidade/conservadorismo.3
Re-performances cotidianas: os meandros do constituir-se menina “normal”
Para a análise da negociação de discursos e práticas de gênero pelas meninas, tomamos o conceito de “posicionamento”, introduzido por Bronwyn Davies (1989) e definido como “possíveis modos de ser”, a fim de descrever os comportamentos de gênero assumidos ou imputados nas interações cotidianas entre pares.4 Posicionamentos são formas de ser fluídas e dinâmicas, em oposição aos papéis que são estáticos e duradouros. Para além de aludir ao como as pessoas podem “ser” e ao que podem “fazer” em um determinado contexto, concebido como um jogo de disputas sociais, o posicionamento realça a subjetividade de meninas (e meninos).
Por um lado, os posicionamentos estão necessariamente relacionados com ter ou não poder e domínio em uma conformação hierárquica de gênero; por outro, trazem à baila as relações complexas de aderência, resistências e manipulação de modelos de feminilidade (e masculinidade) por meio das quais performances de gênero são constituídas.
As categorias feminino e masculino estão associadas a significados e valores que ultrapassam o contexto particular (Pierre BOURDIEU, 2012). O modelo hegemônico de gênero constitui um padrão cultural ideal pelo qual mulheres e homens balizam seus comportamentos, gostos e aspirações (Robert CONNELL, 2002). A aderência a discursos dominantes de feminilidade e masculinidade constitui uma forma particular de ser normal, de ter razão e, portanto, de ser desejável (Michel FOUCAULT, 2003).
“Menina normal” era a forma como grande parte das participantes deste estudo identificava a si própria. Essa posição de sujeito abarcava o conjunto de comportamentos e características socialmente convencionado como feminino. A menina “normal” tinha como predicado normativo basilar ser “quieta”. O alinhamento a uma conduta de recato e passividade apareceu associado à maneira como elas “devem se mostrar em público”: “é aquela [garota] que não faz nada, chega e gosta de ficar no seu lugar... senta, fica num canto, só conversando” (Paula, 11 anos). Era notável as limitações de movimentos e linguagem corporal dessas meninas em comparação aos rapazes (PEREIRA 2012; Victoria VELDING, 2017).
O senso de identificação de gênero não é estável, mas integra um processo de ser representado e re-performado cotidianamente (BUTLER, 1993). A performance carrega um dinamismo próprio de uma (re)contextualização conforme as voláteis demandas interacionais. Isso nos ajuda a compreender por que a quietude foi interpretada como um qualificativo potencialmente arriscado em um ambiente onde o conflito era um modo comum de interação social. A “grosseria” - agressão verbal - era mobilizada para que algumas se posicionassem como fortes e assertivas ante outras meninas. Por diversas vezes, à definição de seu comportamento como “normal” seguia-se um esclarecimento: “Sou quieta... até o limite” (Lili, 13 anos). Em caso de confronto, “você resolve, senão montam em você. Te tiram de besta” (Celina, 12 anos).
As garotas alinhadas ao modelo normativo colocavam-se como depositárias da capacidade de diferenciar o “errado” do “certo” em termos de práticas de gênero. A reprodução do padrão sexual materializava-se no reforço de roteiros sexuais tradicionais, considerados elementos centrais na negociação de suas identidades sexuais como “meninas normais”. Consecutivamente, a “dissimulação” (Luiz Fernando DUARTE, 1987) de ações sexualizadas lhes oferecia uma rota mais segura para preservar-se da maledicência dos pares.5 Esse ritual de atração segue a expressão popular do “quando mais difícil, melhor”. Nos relatos sobre paqueras as garotas assinalavam precisar estarem atentas às suas ações com o rapaz, mostrar atributos desejáveis (e caráter), sem cometer excessos e recair na “vulgaridade”. É nesse lapso do flerte que o policiamento dos pares torna-se mais intenso. Nas palavras de Elisa (14 anos):
Tem que ser quietinha, mas ousada... é tipo uma forma de iludir [...]. Eu não vou chegar logo “E aí? Você quer ficar comigo?”, não pode fazer isso. Tem que chegar e falar com a pessoa, você começa a ser gentil com a pessoa, a pessoa pede pra você fazer aquilo e você vai lá e faz. Foi assim que eu consegui um namorado meu na 7ª série [8º ano]... Aí a pessoa vai vendo que você é quieta, mas você também é divertida, não é oferecida. Você tem que ser quieta com as outras pessoas... Aí você vai ficar nessa até conquistar a pessoa, aí você vai mudando, mostrando seu jeito de verdade, mas tem que ir devagar.
A dissimulação exige um certo domínio e, portanto, habilidade de manipular discursos morais, conduzindo-os de modo a delinear-se como uma “menina direita”. A reputação depende do desempenho de performances de decência e do encobrimento de atos de potencial estigmatização. A assunção normalizada desse posicionamento ilustra como são limitadas as possibilidades das garotas de conjugar desejos afetivo-sexuais com os discursos normativos de feminilidade. Em contrapartida, nos possibilita vislumbrar como, dentro das restrições discursivas, as meninas manipulam os atributos femininos para desfrutar de uma boa posição entre os pares.
Exaltar a respeitabilidade e a boa conduta sexual constitui uma forma de regular não apenas a sexualidade feminina, mas também as hierarquias sociais. A falta de poder experimentada nos contextos de vida pode ser amenizada por contundentes afirmações normatizadas de gênero (Deevia BHANA, 2016). A ênfase em performances passivas certamente não denota resistência à matriz heterossexual, mas também conjuga o uso de elementos desejáveis entre os adolescentes para realizar interesses próprios (Debbie WEEKES, 2004). A agência de meninas adolescentes expressa um processo contraditório no qual a submissão às normas culturais é necessária para a articulação do poder e o reconhecimento de uma identidade particular (BUTLER, 1995).
Sob o risco do envolvimento em fofocas depreciativas, mesmo meninas que contestavam e até transgrediam certas regras de gênero - por exemplo, pedir diretamente a garotos para ficarem -, buscavam alinhar-se ao discurso da passividade feminina. O imperativo de evitar a rotulação como “puta” mobilizava um constante gerenciamento de suas autoapresentações. Com base na avaliação de outros, a “difamação” referia-se mais à regulação do desempenho público do gênero do que à regulamentação de práticas sexuais privadas. Integrar grupos de amizade mistos constituía um esquema dissimulatório comum, já que facilitava o trânsito de meninas no universo masculino. Esta fluidez relacional servia de justificativa a uma imagem mais distanciada de rótulos sexuais, à medida que conferia certa anuência para ficar com camaradas. Na entrevista com Yolanda (11 anos), ficou evidenciado o contraditório jogo de posicionamento de que lançavam mão:
Yolanda: Chamam de puta mesmo, eu que chamo de atirada porque eu consigo ver as duas formas da história... eu prefiro chamar de atirada porque eu vejo que também é uma qualidade.
Jamile: Que tipo de qualidade?
Yolanda: É pra nível social, aí chamam de atirada ou de dada a menina que fica andando atrás dos meninos, ficam esculhambando... a menina acaba sendo mal falada... são faladas porque só ficam. Eu acho que hoje os meninos querem mais as meninas românticas do que as meninas que estão sendo atiradas, que fica logo em cima e tal... Eu me considero romântica.
Esse trabalho de desidentificação com o estigma da “puta” exprime uma contínua vulnerabilidade de status, não apenas por um potencial enquadramento como imoral, mas sobretudo pela circulação de discursos de gerenciamento de riscos e prevenção de danos que evocam a responsabilidade pessoal, conformada nas estratégias de encobrimento aqui exemplificadas. Não obstante, a reiteração de diferenças entre as adolescentes é potencializada com o emprego da categorização: definições “inequívocas” de comportamento feminino apropriado são reforçadas pela identificação e produção de práticas divisivas que suscitam as regras locais a serem apreendidas (BUTLER, 1993).
Ao que parece, a oposição entre mulheres da casa (sexualidade permitida) e mulheres da rua (sexualidade proibida) permanece sendo importante organizadora dos distintos códigos morais e os contextos afetivo-sexuais de homens e mulheres (Roberto DAMATTA, 1997; Tania SALEM, 2006). Em nosso estudo, a tensão constituinte da feminilidade (pureza-corrupção) era explicitada pelas categorias “normal” e “atirada”. Nas palavras de Vera (12 anos), a “atirada é aquela menina que começa a ter aquele fogo, a querer ficar em cima dos meninos”. Elas também eram apontadas por comportarem-se como “pivetas”, circulando pelo pátio, “correndo e falando alto pra chamar atenção”. O termo “piveta” remete à assunção de características como a agressividade, vulgaridade e grosseria por meninas.
As diferenças de códigos culturais de gênero foram incorporadas nas categorias “foveira” e “plantada”. A dicotomia maturidade-infantilidade era critério basilar para a diferenciação social pela divisão etária do comportamento sexual entre as meninas. As adolescentes “mais velhas” (pertencentes aos 8º e 9º anos) costumavam afirmar que as “mais novas” (meninas do 6º e 7º anos) ainda não sabiam como lidar com a sexualidade, ao passo que elas “já” haviam “se assentado”, “tomado juízo”. Consensualmente reconhecidas pelos pares como “mais calmas e quietas” autoidentificavam-se como “plantadas”. Em posição antagônica, o termo “foveira”6 era mobilizado para (re)afirmarem seu status e poder social:
[...] é uma menina que gosta de ficar usando uma calça toda atochada... mostrando a polpa da bunda, coloca a camisa do uniforme pra aparecer a barriga, sai andando rebolando. [elas] estão namorando agora e são muito atiradas. Quer[em] pegar todo mundo... As meninas do oitavo e do nono já têm mais maturidade, já sabe[m] ficar na sua, mais discreta[s] (Bethânia, 14 anos).
A assimetria social é manifesta no domínio do enquadramento do modo de ser menina e na regulação da atividade de outros grupos pelas “plantadas”. A “gastação” era uma forma de troça que lhes servia à intimidação e ao aviltamento das “foveiras”. Configurava uma performance dramática de depreciação das “falhas” de vestimenta, modo de falar e comportar das “mais novas”. O constrangimento ocasionado pela “gastação” nos remete à ideia goffmaniana da necessidade de dominar o papel (Erving GOFFMAN, 2008; Omar LIZARDO; Jessica COLLETT, 2013). O arco do processo de aprendizagem de regras e convenções morais de gênero que ocorre ao longo da adolescência ganha feições de um corolário, através do qual as meninas se direcionam a basear seu próprio valor em relação aos tradicionais padrões femininos.
Algumas das meninas “mais velhas” comentaram que o comportamento “foveiro” associava-se ao arrebatamento da novidade da “experimentação” sexual, circunstância que elas próprias haviam passado entre os 11 e 12 anos. A mudança de mentalidade consubstanciava-se no controle social exercido pelos pares, especialmente as amigas, que recorrentemente reprimiam “coisa[s] de puta” e, por vezes, iniciavam maledicências.
Apesar do cenário de relacionamentos fugazes integrar, igualmente, a dinâmica de afirmação das identidades de gênero feminina e masculina, o “fogo” que acomete as garotas em período de puberdade era compreendido como “descontrole dos hormônios”, não um período de exploração e autorrealização juvenil (Amy SCHALET, 2011). A centralidade de um discurso que alberga a dicotomia natural/social na construção da diferenciação de gênero evidencia como se dá a reprodução da naturalização de diferenças entre mulheres e homens (CONNELL, 2002; BOURDIEU, 2012; Pedro PINTO et al., 2012). Se para os garotos a impulsividade desencadeia uma esperada transgressão das fronteiras do exercício seguro e adequado da sexualidade, para as meninas a expectativa cultural é que assumam o papel de mantenedoras dessas fronteiras, em termos físicos e morais (SALEM, 2006).
Entre permanências e mudanças culturais: contextualizando a criação de (outras) narrativas de menina
Nesta seção, salientaremos a relevância constitutiva dos referenciais contextualmente convencionados. O regime local de gênero materializa-se nas “frestas” e nas “barreiras” estruturais que condicionam o direcionamento dos processos de construção do gênero, em termos de disponibilidade (ou não) de recursos, participação, modelos de referência e exposição a uma variedade de situações de vida (Susan WILLIAMS, 2002). O cadinho de particularidades na sociabilidade entre pares e na gestão disciplinar configura um contexto onde as meninas dispunham de possibilidades tangíveis de manipular os significados imputados às categorias de menina e de negociar gradientes de sentido às ações de cada posição de sujeito, a partir da leitura - nem sempre consciente - que faziam da situação, das regras sociais, dos comportamentos e valores em voga.
A localização da escola em uma zona bem equipada da cidade oportunizava às meninas variadas opções de divertimento como lanchonetes, praças, centros comerciais e praias. A sociabilidade vivida no ambiente escolar se espraiava após as aulas nos “momento[s] de poder ser jovem”, muito valorizados por estar à vontade entre si. Elas compravam água de coco, refrigerantes ou bebidas alcoólicas e petiscos em um supermercado próximo à escola e se reuniam para conversar e/ou paquerar em alguma praça ou praia.
Na própria unidade de ensino, os estudantes gozavam de certa liberdade de ação e expressividade. A gestão disciplinar adotada pela direção fundamentava-se no diálogo, na complacência e na assunção de compromissos mútuos entre professores, discentes e pais/responsáveis. A discordância dos professores quanto ao que consideravam “falta de rigor” e de cumprimento das regras punitivas pela direção se expressava nas reprimendas regulares à indisciplina e/ou a condutas “vulgares”, no caso de garotas. As expressões de sexualidade mais “acintosas” eram encaminhadas para a diretoria, que não interpretava tais comportamentos como questão disciplinar, procurando centrar-se na prevenção à violência entre estudantes. O procedimento adotado era o aconselhamento para que buscassem desenvolver uma relação mais aberta com as mães, aprendendo com suas experiências amorosas e sexuais.
O controle sobre os comportamentos das discentes era também relativizado pelo distanciamento interpessoal mantido pelos professores. Desmotivados pela precarização das condições da função pública e descrentes do próprio alunado oriundo de comunidades afetadas pelo narcotráfico e criminalidade, vários deles faltavam ao trabalho com regularidade. Os estudantes sem aula ou faltantes de “aulas muito chatas” passavam largo tempo nos corredores e pátio. A dispersão não era objeto de controle das inspetoras, que não exerciam um monitoramento contínuo dos discentes. De fato, elas apenas os observavam a distância. Também desmotivadas, as inspetoras eram funcionárias terceirizadas, vinculadas a empresas que constantemente atrasavam pagamento, chegando a ficar meses sem receber salários.
Em síntese, a disciplina escolar oscilava entre situações de cerceamento, mas, principalmente, de desregramento e atuações mais liberais, terminando por reduzir o consagrado controle institucional sobre manifestações de prazer (mesmo brincadeiras, riso e alegria) e de interesse afetivo-sexual (Paulo Rogério NEVES, 2008). A fluência relacional entre meninas e meninos era aparente: amigos de ambos os sexos se sentavam no colo uns dos outros, abraçando-se ou fazendo carícias. Esse cenário possibilitava uma certa leveza no trato da sexualidade, que aparecia mais articulada com a sua dimensão lúdica e de poder de expressão. Interações heterossociais permeadas de “gaiatice” requeriam uma maior desinibição por parte de meninas e meninos. A aparência doce ou pura remetia a “chatice”, dificuldades em construir “boas amizades” e “curtir” o momento. Essa maneira de relacionar-se parecia afrouxar a exigência (ou os contornos) da conduta feminina idealizada, sendo demandada às garotas uma moderação sexual.
Como afirmaram alguns dos garotos, elas “deviam dar um tempo, esperar antes de ficar com outro” (Martim, 14 anos). Cabia-lhes, portanto, “se preservarem”, exercendo um refreio e controle sobre si próprias. Os rapazes indicavam estabelecer uma diferenciação entre o comportamento sexual fora de controle e uma conduta sexualmente ativa. A fala de Ernesto (15 anos) reflete a percepção de uma mudança geracional negativa acerca do exercício da sexualidade pelas meninas:
[...] aquele tipo que fica com um hoje, amanhã ela tá com outro, eu não gosto desse tipo de menina. Fica feio pra ela mesmo, não se dá valor [mas] ficar [com elas] é normal, namorar é que não. [...] antigamente as meninas queria[m] namorar sério, viver um romance, se apaixonar, mas hoje em dia [elas] não querem saber disso, não quer[em] nada sério, só quer[em] brincar.
É nessa direção que os termos “atirada” e “rodada” nos ajudam a compreender as (re)significações de gênero produzidas pelos estudantes. Usadas para representar garotas cujo comportamento sexual é dissonante das configurações convencionais de feminilidade, essas categorias exibiam diferentes “graus” de heteroglossia (Becky FRANCIS, 2010): são nuances de um continuum comportamental reprovável, trazem à baila um atenuante à conduta imoral, ou, mesmo, à semântica de um eufemismo que se mostrou relevante no trato entre os pares e nas manobras de posicionamento social.
O termo “rodada” era empregado para insultar e rebaixar colegas “muito oferecidas”, “vulgares”; um “xingamento” análogo à “puta”. Referia-se às meninas conhecidas por atribuírem-se publicamente feitos sexuais, por exemplo, ficar com um elevado número de meninos na escola ou em festas. Tendo somente valor depreciativo, a “rodada” não aparecia como uma categoria de autoidentificação. Disso decorre que algumas das garotas imputadas como “rodadas” optassem por definirem-se “atiradas”, atrelando esta posição a uma qualidade pessoal e social, um indicativo de “independência”, tal como supramencionado por Yolanda. As narrativas indicavam o desejo de “viver para si próprias”, desfrutando de uma liberdade e independência que consideravam contrastar com o envolvimento em relações amorosas estáveis (Sueli SALVA, 2008).
As meninas que “se assumiam atiradas” costumavam observar que a diferença em relação às normais se resumia ao fato de que elas “não têm vergonha de se desvalorizar. Fazem na frente o que as quietinhas fazem por trás. Eu acho que [a atirada] é mais evoluída do que as quietinhas. É uma questão de atitude”, como sentenciou Renata (14 anos). Esse discurso assinalava o intento de desvincular a categoria “atirada” da pecha de “imatura”, ao passo que comunicava sua determinação de agir de acordo com o próprio arbítrio e desejo.
A posição de sujeito “atirada” poderia converter-se em um meio-chave para expressar alteridade e poder. O papel fulcral atribuído ao direito à iniciativa e à expressão sexual manifestava-se no entendimento da relação heterossexual como domínio onde sentiam que poderiam desfrutar de poder sobre os garotos. “Usar os meninos” não era apenas uma forma de experimentar a sua sexualidade, mas, em alguma medida, ensejava um espaço para exercitar uma autonomia e explorar os próprios desejos. Mesmo com o controle social dos pares e dos adultos próximos, prevalecia entre elas um sentido de direito ao próprio corpo. Exercer o direito ao desejo e ao prazer afetivo-sexual parecia se estender a um anseio de liberdade de ser quem se quer ser, sentir que pode agir e fazer as coisas acontecer. É assim que, enquanto parte do self, a sexualidade passa a ser significada como uma trajetória de vivências relacionais incorporadas do sentir, conhecer e ser/estar (Deborah TOLMAN, 2005).
Identidades “novas” nos mostram a multiplicidade e a descontinuidade da cultura (Guacira LOURO, 2019). O questionamento de sistemas, instituições e práticas hegemônicos na contemporaneidade é manifesto na diversificação de formas de meninas vivenciar/conceber/posicionar-se [nas] relações afetivo-sexuais na contemporaneidade. A assunção de uma postura ativa (expressando atração física e o desejo de “ficar” com meninos) nos relacionamentos associa-se à valorização da conquista e da experimentação sexual, podendo ser interpretada como uma feição de “protagonismo feminino” (Cláudia GARCIA; Rosimeri da SILVA, 2011; Juliana VARGAS, 2008; 2015).
A construção de um senso de si como ser sexual é de sensível importância para a conformação de feminilidades. A tentativa de flexibilizar as normas de gênero, imprimindo uma maior equidade nas interações sexuais, aporta um certo nível de individualização de comportamentos. Contudo, convém assinalar que se trata de um processo fragmentado, em que a parcial modernização de roteiros sexuais pode implicar a permanência de relações de gênero assimétricas (Daniel JONES, 2010). Tal direcionamento pode apontar para um aprendizado de gênero no qual a percepção de si mesma é mediada pela perspectiva dos garotos (TOLMAN, 2005).
Além do exercício manifesto da sexualidade, várias das meninas “atiradas” valiam-se de agressões físicas e verbais, significadas por elas como atos de autoafirmação. “Se impor” era a sua forma de reivindicar um tratamento equitativo ante meninas e, principalmente, meninos. Nas palavras de Lilia (12 anos): “Quando uma pessoa te humilha, fica de assédio, não é brincadeira. Não tenho que aceitar porque eu sou menina... Por que tem que ter diferença entre meninos e meninas?”.
Ainda que o uso da violência como meio de contestação à dominação masculina instaure uma complexa tensão entre a reprodução e a resistência aos significados tradicionais de gênero, discordamos do argumento de autoras como Diane Reay (2001), que interpretam os atos violentos cometidos como a recusa a um determinado modo de ser menina (e feminina) e a associação da identidade feminina como necessariamente avessa à agressão. Uma perspectiva produtiva de violência pode ser vislumbrada quando levamos em conta a agência sobre ela e a maneira como opera no processo de construção da identidade de gênero (Bruna SOUZA, 2015). A rediscussão das fronteiras entre os gêneros (ou o acesso à igualdade) era pautada a partir da extensão às mulheres de um conjunto de direitos concedidos aos homens. As performances de “se impor” - ante o bullying sofrido ou em (re)ação a rivalidades emergidas em disputas sexualizadas - significavam “coragem”, símbolo de atividade e força. Como já discutido nas pesquisas de Neves (2008), Vargas (2008) e Rosineide Cordeiro et al. (2010), a violência constituía uma forma excitante de desestabilizar a hierarquia de gênero, significada como uma “atitude” com potencial redistribuição de poder e prestígio social. Entretanto, os atos de violência física e verbal sinalizavam um recurso de visibilidade, mas não de apreciação social.
O constante processo de reiteração da identidade enseja fissuras que podem confluir em subversão e desafio (BUTLER, 1993). No entanto, a subversão não se situa fora da norma; constitui uma operação ambivalente que age no interior dela própria, produzindo deslocamentos e questionamentos à concepção hegemônica de normalidade.
Essa discussão é aqui aprofundada com o grupo que se autointitulava “evoluídas”. No intento de modificar as relações de poder dominantes e a hierarquia local, essas garotas ressignificavam valores e características relacionados à feminilidade tradicional. Várias autoras têm salientado como a desassociação de mulheres jovens com práticas que produzem passividade, submissão e superficialidade tem recriado o feminino nas relações sociais de poder. A “modernização” do gênero emerge como parte de um processo cultural de reposicionamento da feminilidade idealizada a partir de atributos como assertividade, autonomia e a liberdade individual (Anita HARRIS, 2004; Angela McROBBIE, 2009; Shelley BUDGEON, 2014).
As “meninas de hoje” - tal como muitas delas se identificavam - salientavam ter “iniciativa” e “ocupar um lugar”. Para justificar a assunção de uma sexualidade ativa e de expressões de autonomia e volição que, mesmo que pontuais, flexibilizavam a ideia de atributos masculinos e femininos rigidamente separados, as “evoluídas” costumavam afirmar que “o mundo mudou e as meninas também estão mudando”. O trecho da entrevista com Lucília (12 anos) sintetiza essa concepção, interpretada por ela como “menina autoral”:
É que eu já pedi pra menino ficar comigo, eu já pedi menino em namoro, já levei fora por isso, mas eu já pedi. Eu acho bem interessante, sem aquela falsidade. Tem que ter uma iniciativa, né? Se ficar só no meio termo, se não der o primeiro passo, não vai pra lugar nenhum. E eu acho interessante essa capacidade da gente poder fazer as coisas que as meninas normalmente não fazem... Realmente eu acho injusto as meninas não ocuparem um lugar. Eu sou crítica, eu sou quem eu sou, sem ter vergonha, sem ter medo. [...] Eu acho que os meninos acham que eles ainda têm que tomar a posição, mas isso foi [há] séculos passados, a gente tá no século 21 e eu acho que tá na hora de todo mundo aceitar a atitude da mulher. Então, eu não vejo problema, não vejo diferença... [...] É uma abertura, uma oportunidade que minha mãe já teve e minha avó não, e agora eu tenho essa abertura... eu sei que tem pessoas que não aceitam, mas aí, tipo, eu sei que eu pago, mas aí eu faço... eu assumo o que eu faço, o que eu sou.
A menina “evoluída” é concebida pelo grupo como um modo de ser originado nos avanços na participação social das mulheres atestados na sociedade contemporânea e de reivindicação moral do seu direito de exercer uma liberdade de ação e de expressão dos seus desejos. Trata-se de “poder fazer as coisas que os meninos fazem” (Sofia, 12 anos). O reconhecimento das desigualdades de gênero que vivenciavam em seu cotidiano alinhavava um sistema de classificação alternativo manifesto no empenho de estabelecer distinção e reconhecimento social não por meio de caracterizações de meninas como “boas” ou “más”, mas entre “pessoas capazes” de encarnar (ou não) símbolos e capacidades socialmente valorizados como o poder, atividade, força etc.7
Em contraste com as meninas “atiradas” - que enfatizavam o desenvolvimento de uma conduta sexualmente ativa (HARRIS, 2004; BAY-CHENG, 2015) -, as “evoluídas” focalizavam as qualidades e valores sociais que pronunciavam apresentar. Adjetivos como “coragem”, “atitude”, “melhor”, “superior”, “evolução” são fundantes à afirmação social desse “novo tipo de menina” mais concatenada com uma emergente cultura de empoderamento. Esse jogo de afirmação identitária fica explicitado nas provocações e sátiras com que depreciavam a decadência dos “meninos de hoje” (“frouxos”, “imaturos”, “crianças”) mediante a comparação com elas próprias. A estratégia de “inversão de papéis” relativos à masculinidade e à feminilidade tradicionais repousa na reorganização das práticas convencionais de gênero enquanto um meio para reverter as desigualdades entre meninas e meninos. Assim, a tenacidade e iniciativa das garotas contrastam com a parvoíce dos rapazes, ainda presos a comportamentos infantis. Essa perspectiva refletiria o amadurecimento extemporâneo das meninas, que têm de lidar com as exigências para serem boa alunas, bem-comportadas e assumirem algumas tarefas de arrumação da casa, enquanto os meninos “não têm nada na cabeça, não sabem conversar”, “têm menos atitude, não são de nada”, “não assumem as responsabilidades, não faz[em] nada da vida, é só brincar”.
Pensando em uma perspectiva de direitos humanos, as intervenções discursivas das “evoluídas” formalizam um espaço de avaliação e de contestação das normas, em termos de justo ou injusto, do condizente ou não condizente, o que é em si uma composição de novos valores no contexto local. A ideia marcada de paridade de participação requer fundamentalmente o exercício dos direitos humanos elementares em igualdade de condições. Aproxima-se da concepção de Agnes Heller (1998), para quem a igualdade deve ser entendida como igualdade na liberdade e igualdade nas oportunidades, concebidas como concomitantes nos processos sociais.
A posição de sujeito “evoluída” parecia resultar, em grande parte, da difusão de ideais feministas no senso comum de seu meio social. Embora não fossem conscientemente engajadas em um discurso definido como tal, essas meninas o empregavam no microcosmo do cotidiano e, ao fazê-lo, revelam perceber que suas vivências são implicitamente estruturadas pelo gênero. Tal qual as participantes da pesquisa de Budgeon (2001), as negociações discursivas empreendidas por esse grupo visavam confrontar as maneiras pelas quais meninas são especificamente posicionadas por discursos de gênero concorrentes. Faz-nos recordar o modelo de reconhecimento proposto por Nancy Fraser (2007). Nessa perspectiva, o não reconhecimento não é explicado em termos de depreciação da identidade, mas como subordinação social: “o que requer reconhecimento não é a identidade específica do grupo, mas o status de seus membros individuais como parceiros por completo na interação social” (FRASER, 2007, p. 13). A discursividade que rompe com narrativas hegemônicas acerca da naturalidade do binário de gênero e de discursos ideológicos sobre como certos papéis ou atos sexuais seriam inerentes aos homens ou às mulheres incide justamente sobre os padrões institucionalizados de desvalorização cultural que constroem certas categorias de atores sociais como normativas e outras como inferiores, e cujo resultado é a configuração desses últimos como menos do que membros efetivos da sociedade.
No que tange à vivência da sexualidade, era prevalecente a ideia de “poder sobre si”. O desafio à noção de feminino apropriado se estabelecia com o binário de oposição passividade-coragem, a partir do qual inseriam uma gramática hierarquizante calcada nas interdições da feminilidade normativa. Nesse ponto, há confluência entre “atiradas” e “evoluídas”: ambas significam “coragem” como um símbolo de atitude e força. É esse senso moral (superior) que impulsiona a ação manifesta. Como disse Camila (15 anos): “Têm algumas meninas daqui que me acha[m] oferecida, puta. Por quê? Quando eu quero, vou lá e consigo... E quando eu quero pegar um menino eu não mando amiga, eu mesmo vou lá e pego. Tem que saber como fazer, e eu sei”.
A coragem era, consensualmente, uma qualidade deveras apreciada pelas adolescentes. Muitas delas mencionaram que “por ser quietinha, não” tinham “coragem de nada”. Por outro lado, a fala proferida por Camila indica que, embora elas se colocassem como mais distanciadas dos constrangimentos da feminilidade passiva, sua posição de sujeito se alicerçava, também, nas tramas de habilidades de conquista sexual.
O “uso” da sexualidade ativa entre as “evoluídas”, entretanto, distancia-se da corrente noção pós-feminista de uma ênfase na sexualidade emancipada para demarcar a independência entre os gêneros (VELDING, 2017). Não se trata de sintetizar (ou reduzir) o direito das mulheres à igualdade à sexualidade ativa, mas de vislumbrar uma “postura de atividade” como forma de alcançar posições de gênero mais equitativas. É uma reivindicação por paridade de participação e poder de expressão com vistas a libertar-se dos constrangimentos preexistentes que limitam suas oportunidades de vida.
A própria crença na capacidade de arbitrar e conduzir sua sexualidade constitui uma forma de protagonismo significativa em uma fase da vida em que a sexualidade é constituída como elemento essencial da sociabilidade e da construção da identidade. A manifestação de ideais de prazer sexual e de poder constitui uma resistência às práticas normativas de gênero. As narrativas de “igualdade sexual” pareciam proporcionar às garotas um maior senso de liberdade sexual, autonomia e abrir-lhes uma diversidade de opções que não estariam disponíveis de outra forma (NAYAK; KEHILY, 2013; Joni MEENAGH, 2017).
Todavia, performances subversivas costumam ser mais accessíveis para sujeitos que integram grupos privilegiados (Susan LURIE, 1999). Foi possível constatar uma maior aceitação social (ou não questionamento público) das meninas “mais velhas” que se identificavam como “evoluídas” em comparação às “atiradas”. Para além de salientar as diferenças de poder e status e, portanto, de possibilidade de ação entre as adolescentes, essa discriminação (etária) nos mostra a importância de cuidar da imagem projetada diante dos outros (BUTLER, 1993; Deborah YOUDELL, 2006; FJAER et al., 2015). Diferentemente das adolescentes menores, elas não costumavam se envolver em interações de teor sexual na escola, a maioria já estava comprometida com um “namorado sério” ou optava por relacionar-se com rapazes mais velhos (“são homens”, “maduros”) de uma escola adjacente, de nível médio. A adoção de um comportamento mais “discreto” também cerrava o envolvimento em situações de confronto ostensivo com colegas e professores.
Pensando na fragilidade das concepções aqui analisadas, podemos aventar que, em termos de expressão de disputas sociais, as categorias “normal”, “atirada”, “rodada” e “evoluída” apresentam-se como modelos discursivos constituídos em um universo de práticas e comportamentos caracteristicamente ambíguos. A ambiguidade é notada à medida que as categorias se confundem e/ou divergem a cada circuito de eventos sociais e/ou motivações pessoais que dinamizam o contexto dos pares. Ocupar a posição do sujeito “feminino” é tanto ser um sujeito quanto um objeto, e “habitar ambos os tipos de espaços ao mesmo tempo, é viver a contradição” (Teresa DE LAURETIS, 1989, p. 26).
Vários autores têm discutido a ambiguidade de valores, normas e possibilidades subjetivas que se estabelece com a coexistência discursos de liberação sexual e de controle sobre a sexualidade (DAMATTA, 1997; Anthony GIDDENS, 2003; Mirian GOLDENBERG, 2015). Em que pese as mudanças no exercício da sexualidade, é no campo do discurso que a sexualidade normativa resiste, embasando as hierarquias e diferenças de gênero8 (GOLDENBERG, 2015). De fato, tomando nosso estudo como exemplo, as ressignificações de atributos, valores e formas de relacionamento promovidas pelas “evoluídas” e “atiradas” não geraram modificações na ordem do gênero, mas constituíram rupturas com os ideais hegemônicos em nível micro (BUTLER, 1990).
A negociação de modos de conduta tem como lastro as representações polares da “boa” e da “má” menina, portanto, de modo geral, preserva uma estrutura de subjetividades disponíveis caracteristicamente inibitivas e restritivas (YOUDELL, 2006). O movimento de disjunção torna-se mais complexo quando levamos em conta que o discurso centrado na reputação sexual não fornece meramente rótulos descritivos, mas modelos de conduta que convidam as adolescentes a olhar e compreender seu mundo social de maneiras específicas. Assim, o olhar do outro é internalizado de modo que o self se torne, ao mesmo tempo, observador e visto, avaliador e objeto avaliado (Sandra BARTKY, 1991).
Considerações finais
Lançar luz sobre a discussão de discursos de gênero como prática enseja visualizar um campo de disputa em torno de modos de ser e de valores morais que vão engendrando, dialeticamente, o processo de socialização generificada que é, a um só tempo, tanto fator de reprodução das estruturas sociais, materiais e simbólicas, quanto campo de ação e de representação do sujeito.
Os discursos (modos de falar) e posições de sujeito (modos de ser/estar) expressam o cerne da adoção, distanciamento ou mesmo conjunção de variados atributos que representam uma determinada identidade de gênero. Ao explorar as construções discursivas das participantes do estudo, pudemos contextualizar resultâncias do regime de vigilância e constrangimento moral exercido pelos pares, nos planos homo e heterossocial. A apropriação do modelo social de gênero vigente insta à percepção de como são organizadas as relações estabelecidas no dado contexto. O aprendizado de gênero constitui-se nessa familiarização com práticas, valores, papéis e formas de interação presentes na cultura local.
A categorização emerge como um importante componente de construção de performances e identidades de gênero, não somente por tornar inteligíveis as expectativas culturais e normas de gênero nas interações cotidianas, como também pela negociação de performances reconhecíveis pelos pares. O embate discursivo entre categorias antagônicas mostra-se essencial para a exibição (e resistência) de identidades, destacar posturas morais, quem são e aquilo em que acreditam. Esse trabalho de fronteirização visa conferir legitimidade social para determinados modos de ser menina mediante a naturalização de certas concepções sobre o comportamento “correto/ideal/próprio”.
A identidade feminina é construída por esses jogos de diferenças e oposições que não confluem entre polos de um ‘eu’ e um ‘outro’ exterior como a masculinidade hegemônica, mas conformam, situacionalmente, polos contrários. Com efeito, o processo de feminilização edifica-se nos meandros do equilibrar-se sob os polos em tensão da normatividade tradicional: as performances femininas são produzidas no surfar entre o fazer-se respeitável e o fazer-se ousada e sexualmente (pro)ativa