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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.3 Florianópolis set./dic. 2020  Epub 01-Sep-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n369914 

Resenhas

Before and after gender, o “livro perdido” de Marilyn Strathern

Before and After Gender, Marilyn Strathern’s Lost Book

1Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Campinas, SP, Brasil. 13083-896 - scpgcsoc@unicamp.br

STRATHERN, Marilyn. Before and after gender: sexual mythologies of everyday life. ., Chicago: Hau Books, 2016.


Before and after gender: sexual mythologies of everyday life é o novo/velho livro da antropóloga britânica Marilyn Strathern. Embora publicado em 2016 pela Hau Books, o texto foi escrito em 1974, em Port Moresby, sob encomenda para integrar uma série de caráter enciclopédico, a ser editada pelo Royal Anthropological Institute. Strathern recebeu como proposta o tema “homem e mulher”, título inicial do texto. Porém, a empreitada de publicar uma coletânea antropológica para um público mais amplo foi cancelada. Logo, o texto completo foi arquivado e reacessado apenas décadas depois.

Intitulado Before and After Gender, o livro interage com debates feministas da década de 1970 e pode ser considerado uma espécie de clássico extraviado do feminismo setentista, visto que mesmo com o passar do tempo, aborda com vívida relevância contemporânea questões sobre gênero e desigualdade. No entanto, apresenta diferenças significativas em relação às obras feministas coetâneas, oferecendo uma teoria mais abrangente do gênero como uma forma de relação social e cultural do que os escritos da época, interrogando como a mulher veio a ser uma questão. Através de fontes diversas - romances, manifestos feministas, poemas, etnografias e manuais de biologia - a autora constrói uma análise do conceito de gênero como um poderoso código cultural, e o sexo como uma mitologia definidora. Para isso, explora uma ampla variedade de temas: simbolismo, estereótipos, papéis sociais, casamento, família, noção de pessoa, sexualidade e divisão sexual do trabalho.

No momento em que o livro foi escrito, o conceito de gênero ainda ganhava visibilidade e corpo. Por isso, Strathern o conecta ao conceito de papéis (roles), elaborando uma discussão sobre papéis de gênero. Os termos subordinação das mulheres ou emancipação feminina eram muito mais comuns, tanto na literatura antropológica quanto na feminista da época. Lembrando-nos da movimentada cena de debates que o feminismo constituiu na década de 1970, a autora discute com textos das principais pensadoras feministas do período, incluindo Shulamith Firestone, Simone de Beauvoir, Ann Oakley e Kate Millett. As abordagens desenvolvidas após finais da década de 1960 compartilham algumas ideias centrais. Em termos políticos, consideram que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em relação aos mundos masculinos. A subordinação feminina é pensada como algo que varia em função da época histórica e do contexto social. No entanto, é concebida como universal, na medida que parece ocorrer em todas partes e em todos os períodos históricos conhecidos (Adriana PISCITELLI, 2002).

Strathern parece ensaiar um caminho distinto, afirmando que o gênero possui um papel simbólico sedutor composto por duas faces: podemos analisar como homens e mulheres são retratados e simbolizados, bem como localizar tais descrições em relação aos comportamentos cotidianos, ações, estrutura social, desigualdade etc. No entanto, o aspecto mais importante não pode ser desconsiderado: as muitas formas como as interações de gênero tornam-se um idioma para expressar outras coisas, e vice-versa. O modelo de gênero proposto pela autora, para além de substituir “mulheres” e “homens”, é visto como uma forma elementar de sociabilidade. Gênero aparece como uma das principais formas culturais de ativação da agência social, mas que é sempre repleta de tensões intimamente pessoais e inerentemente políticas. As implicações dessas observações são apresentadas descritivamente - expondo uma série de exemplos etnográficos - como também analiticamente, usando o conceito de gênero para ressaltar a dimensão relacional presente entre as noções de masculino e feminino.

O primeiro enigma do gênero apresentado por Strathern diz respeito às suas funções complexas como um símbolo: a capacidade simbólica que as relações entre homens e mulheres têm para carregar significados de outra ordem. Isso pode parecer simples e comum, mas é, ao mesmo tempo, arbitrário e ambíguo. Consequentemente, o simbolismo de gênero necessariamente envolve uma ambivalente e incerta transferência de significados. As características associadas ao gênero (homens fortes/vulneráveis/dominantes e mulheres frágeis/perigosas/subordinadas) podem variar. E como os significados pelos quais elas são expressadas podem assumir diferentes formas e produzir efeitos distintos, as incertezas se acumulam. Pensar uma relação como um símbolo, ela observa, levanta questões complexas por ser ambígua de início, e por poder tornar-se ainda mais confusa através dos processos de transferência. Nesse tipo de simbolização, tanto a característica que está sendo transferida (como um valor) quanto seus significados, permanecem arbitrários. Isso significa que o simbolismo de gênero é frequentemente tão ruidoso que borra identificações e interpretações unilaterais e simples.

O complexo argumento de Strathern é construído cuidadosamente através não apenas de conteúdo etnográfico - apresentando rituais e crenças relacionados a cerimônias de casamento em dois cenários culturais muito diferentes, o leste de Londres e o oeste da África -, mas também analisando as maneiras através das quais antropólogos interpretaram as observações de tais eventos. Em meio a esses exemplos, acrescenta ainda a crítica feminista às mitologias matrimoniais e sexuais que supostamente subordinam as mulheres. Nesse sentido, argumenta que precisamos de um tipo de etnografia que compreenda também a perspectiva feminista da questão da mulher, ou seja, afirma a necessidade de haver não só uma antropologia feminista, mas também de uma antropologia do feminismo.

Utilizando com precisão uma das habilidades que a tornaram célebre, a comparação intercultural, Strathern justapõe descrições das mulheres ganesas e das donas de casa inglesas, mostrando uma concepção de gênero que envolve a exigência de compreender realidades empíricas diversas e contextos específicos nos quais a diferença sexual operacionaliza relações de poder. A autora constrói seus argumentos apresentando e opondo exemplos uns contra os outros e, em seguida, invertendo o efeito de contraste, revelando similaridades e ligações inesperadas. Assim, sua corajosa abordagem sobre gênero serve ao estilo de tessitura do próprio texto, na medida em que o conceito é utilizado como um princípio analítico contingente e relacional. Esse contraste provocador revela um dos temas mais importantes de Before and after gender: como mito e mitologia podem ser usados no sentido de modelo ou modelagem. Assim, a noção de gênero da autora como uma relação que modela relações - no sentido de representar e intervir - reitera sua insistência em mostrar que gênero extrapola a categoria mulher.

Foi a partir da conceitualização do “sistema sexo/gênero” de Gayle Rubin (1975), que o conceito de gênero começou a difundir-se com força excepcional na antropologia. Coincidentemente, o ensaio no qual essa ideia foi formulada, O Tráfico das Mulheres: Notas sobre a Economia Política do Sexo, foi escrito em 1975, o mesmo ano em que o manuscrito de Strathern seria publicado. Talvez por partirem de uma mesma linha de questionamentos da ideia monolítica de opressão feminina universal, as obras apresentam semelhanças inusitadas. O argumento chave de Strathern é de que parte do enigma do gênero reside no fato de que tal conceito não trata simplesmente de homens e mulheres. Gênero está em toda parte e estamos em todos os momentos entrelaçados por ele: nas relações de parentesco, de poder, de interdependência e de desigualdade.

Assim como grande parte das antropólogas feministas da década de 1970, Strathern também aborda criticamente1 a questão da troca de mulheres, de Levi-Strauss. Porém, nesse aspecto, a autora não parece estar satisfeita com o argumento de que as mulheres são nada mais que objetos ou mercadorias nessas trocas e decide focar-se, justamente, na ideia de que “os objetos estão imbuídos de qualidades altamente pessoais” (STRATHERN, 2006, p. 20), borrando as fronteiras entre pessoas e objetos. Em Before and after gender a autora apresenta de forma embrionária os argumentos que desenvolveu posteriormente em O gênero da dádiva (2006), no qual analisa as trocas matrimoniais na Melanésia e critica modelos universais dessa prática. Nesse sentido, trata gênero como um mecanismo de codificação em um sistema de transações constantes; em vez de uma identidade fixa e contínua que permite que as mulheres se tornem objetos.

Em suas obras posteriores, Strathern afirma que uma pessoa acabada, unitária e coerente é um projeto ocidental, não melanésio. Da mesma forma, o pressuposto do gênero como fundador de uma identidade fixa não encontra ressonância na Melanésia. Ao contrário disso, é pelo gênero que a movimentação das pessoas entre suas distintas formas compósitas se mostra, uma vez que seu caráter relacional implica conexões e articulações entre diferenças. Nesse sentido, as noções de masculino ou feminino servem não apenas para as pessoas, mas também para os objetos que circulam entre elas. Assim, ganham uma dimensão unitária apenas pelo exercício da relação, mas somente através dessa relacionalidade tornam-se formas identificáveis. Desde Before and after Gender, vemos como em seu modelo de gênero “mulheres” não são peças sólidas, mas sinais fluidos; sendo mais um significado que uma condição. A sua visão de que “a mulher” não existe enquanto uma classe fixa de conteúdos aparece como uma motivação para sua virada primária em direção ao gênero.

Em suas formulações preliminares sobre gênero, Strathern distingue dois níveis de percepção: visões conscientes e opiniões sobre o que caracteriza homens e mulheres; e o que ela chama de operações mentais, que são enquadramentos de referência institucionalizados menos conscientes; incluindo estereótipos, convenções normativas, ideias sobre o que é natural ou tradicional, e biologicamente inato. Para aprofundar essa análise, Strathern utiliza o conceito de estereótipo. O termo faz parte de um léxico antropológico que hoje parece ultrapassado, mas que emergiu com robustez no início das discussões sobre gênero. Conforme explica a autora, o conceito adentrou nas ciências humanas na década de 1920 através do seu sentido psicológico moderno, de uma resposta adaptável a uma realidade complexa que toma a forma de simplificação.

No entanto, Strathern pretende mostrar como estereótipo é um termo complicado e não necessariamente precisa ser usado em exemplificações simplistas e não-irônicas dos processos que nomeia. Para isso, apresenta as formulações de Gregory Bateson (1958), sobre a bufonaria de gênero entre os Iatmul na Nova Guiné. Bateson interpreta rituais de imitação e ridicularização de gênero como parte de uma conversa entre mulheres e homens sobre seus respectivos papéis. Strathern, porém, deseja levar sua noção de estereótipo mais adiante, descrevendo a caricatura estereotípica como uma manipulação do gênero que funciona como uma forma rigidamente definida e, ao mesmo tempo, paradoxalmente incompleta. Tais mímicas parecem descrever uma realidade familiar, mas, em vez disso, comentam sobre ela, a avaliam e, portanto, intervêm nessa realidade de forma instrumental2. Como os exemplos Iatmul ilustram, o estereótipo, no contexto de uma paródia, não é de todo redutora: é, na verdade, uma eloquente evocação de uma gama de emoções e práticas, de uma possibilidade que a teatralidade possui de libertar a imaginação do real - não através de redução, mas de amplificação. Portanto, ironia, mímica e caricatura seriam formas complexas de comentar e atuar que desconstroem precisamente as formas generificadas que imitam.

Strathern critica as premissas de que os estereótipos de gênero funcionam como uma espécie de filtro de diversidade, a fim de facilitar a interação social ou suavizar as bordas afiadas da complexidade social. A autora defende que essa noção seria ilógica para pensar sobre gênero e constrói uma concepção de estereótipo em comparação com os mitos: sendo formas culturais que podem ser manipuladas para descrever, comentar, avaliar, divertir e zombar. Nesse sentido, o gênero pode ser, ao mesmo tempo, rigidamente descritivo e significativamente opaco, revelando uma dimensão tanto do absurdo e do ridículo quanto da ruptura. Nos exemplos retirados da obra de Bateson, vemos que o estereótipo está relacionado com uma espécie de mimetismo, que pode ser assumido pelas mulheres para seus próprios fins, e que pode servir como condição para a realização de rituais que comentam e criticam a relação entre os gêneros. Esses atos de travestimento e imitação também podem ser cheios de escárnio e desprezo.

Nesse sentido, analisar o estereótipo como uma imagem fixa não é o mesmo que considerar como ele é incorporado, quem o encarna e para quais fins. Se recorrermos à fórmula simples de que os estereótipos devem ser erradicados porque limitam as mulheres, podemos deixar de compreender a maneira pela qual os próprios estereótipos mudam no processo de serem incorporados. Segundo a autora, o estereótipo não tem um único significado - ele pode ser operacionalizado em formas que permitam que as mulheres expressem seus desejos ou alcancem seus objetivos.

Além disso, em suas antigas formulações, Strathern defende que a linha entre o que é natural e o que é cultural é desenhada em lugares diferentes, dependendo da perspectiva de quem observa. Como resultado, a questão de como delimitar essas esferas sempre faz referência implícita ao ponto de vista do observador. No entanto, esse ponto de vista não é simplesmente uma perspectiva peculiar do indivíduo, mas um modo de percepção formado e saturado por um idioma cultural específico. Nesse sentido, gênero não só nomeia homens e mulheres, mas as relações que constituem a emergência dessas categorias. Gênero não tem uma relação mimética com o sexo e, embora possa funcionar pela descrição de diferenças biológicas, não está ligado a diferenças biológicas de maneiras padronizadas e universais.

Dessa forma, a perspectiva relacional tem implicações não só para a forma como descrevemos a relação entre homens e mulheres, mas para a maneira como entendemos o gênero como a nomeação de um conjunto complexo de inter-relações, percebido e institucionalizado de maneiras distintas. A questão da relacionalidade parece ter inquietado Strathern desde cedo, visto que a autora procurou demonstrar como as vidas estão implicadas umas nas outras de forma intimamente interdependente. Portanto, a perspectiva relacional do gênero também requer um questionamento das categorias e dos contextos de constituição das relações. No entanto, o fato de que grande parte de sua argumentação sobre o gênero invoque uma noção de idioma cultural não significa que ela o conceba como imaginário ou dispensável. Pelo contrário, já que a materialidade e a ubiquidade do gênero fazem com que ele seja uma importante ferramenta de fazer e refazer mundos. Assim, as quatro décadas subsequentes à escrita dessa obra permitem apreciar os insights que o trabalho oferece, e considerar o quão importante a reflexão antropológica tem sido para a conceituação de sexo, gênero, sexualidade, relações sociais e instituições. Além disso, permite também repensar noções a respeito do que é antigo e do que é novo nos estudos de gênero.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [ Links ]

PISCITELLI, Adriana. “Recriando a (categoria) mulher?”. In: ALGRANTI, Leila (Org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, n. 48. Campinas, IFCH-Unicamp, 2002, p. 7-42. [ Links ]

RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex”. In: RAITER, Rayna (Ed.). Toward anthropology of women. Nova York: Monthly Review Press, 1975. p. 157-210. [ Links ]

STRATHERN, Marilyn. Before and after gender: sexual mythologies of everyday life. Chicago: Hau Books, 2016. [ Links ]

STRATHERN, Marilyn. O Gênero da Dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006. [ Links ]

1O manuscrito de Strathern foi elaborado justamente em uma época em que muitas das convenções da antropologia estavam em disputa: a ênfase anterior nas estruturas formais das linhagens das sociedades para entender parentesco e política foi dando lugar a um novo destaque no ritual, na performance e no símbolo. A chamada antropologia simbólica ganhou proeminência consolidando um movimento disciplinar que ficou conhecido como a virada interpretativa. Influenciada pelo antropólogo David Schneider, Strathern foi parte importante dessas mudanças, particularmente através da introdução de uma nova ênfase na noção de pessoa e da concepção de que o parentesco pode significar simplesmente as relações sociais de ajuda, intimidade e ligação duradoura.

2A noção apresentada por Strathern de que ironia, mímica e caricatura são formas complexas de comentar e atuar sobre as formas generificadas que imitam, encontra ressonância nas proposições de Judith Butler sobre gênero e paródia. Ao refletir sobre as performances de drag queens, Butler (2003) sugere que essas pessoas brincam com a lei de que de um sexo decorre um gênero, e mais do que isso, significam claramente que ser de um gênero parece inevitavelmente teatralizar a ideia original deste; suas falas e representações.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANDER, Vanessa. “Before and after gender, o ‘livro perdido’ de Marilyn Strathern”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e69914, 2020.

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 13 de Novembro de 2019; Aceito: 28 de Fevereiro de 2020

vanessasander@gmail.com

Vanessa Sander (vanessasander@gmail.com) é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, cursa o Doutorado em Ciências Sociais na mesma instituição, sob orientação de Guita Grin Debert, desenvolvendo pesquisa sobre criminalização e encarceramento de travestis e transexuais.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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