1 Introdução
Neste trabalho, buscamos apresentar e discutir elementos que a literatura (DRABACH, SOUZA, 2014; RIBEIRO, NARDI, 2018; SILVA, 2010; SILVA, SOUZA, 2017; SOUZA, 2009; SOUZA, GOUVEIA, SCHNEIDER, 2011) tem indicado como aspectos que potencialmente contribuem para a constituição, organização e gestão democrática (GD) das escolas públicas, aproximando-se assim do cumprimento do disposto no artigo 206 da Constituição Federal (CF), onde se apresentam os princípios da organização da educação nacional, destacando-se o inciso VI: “Gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (SENADO FEDERAL, 1988).
Os elementos que o artigo focaliza são a forma de provimento de diretores escolares, a existência e o funcionamento dos conselhos escolares e a existência e a forma de elaboração do projeto político-pedagógico da escola. De outro lado, também são observados aspectos sobre o ambiente democrático e de trabalho coletivo no universo escolar.
As fontes de dados para a análise desses elementos são os questionários aplicados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica aos diretores e professores das escolas e turmas avaliadas. Tomamos, para efeitos de comparação longitudinal, dados dos anos de 2003 e de 2015. Este por ser o último bloco de microdados disponíveis no sítio eletrônico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) quando da conclusão do levantamento que embasou o estudo e que permitia tal avaliação. E a escolha por 2003 tem relação com o desejo de olhar a movimentação das variáveis ao longo de pouco mais de uma década. Nesse ínterim (2003 a 2015), tivemos o transcurso de três mandatos de um governo no nível federal que informou prioridade para a formação de dirigentes escolares a partir dos marcos conceituais da gestão democrática. Assim, conviria verificar eventuais mudanças no perfil de gestão escolar democrática após esse período.
No questionário do diretor, observamos os três primeiros elementos mencionados (forma de provimento, conselho escolar e projeto político-pedagógico). Estes quesitos permaneceram nos dois questionários, mesmo com algumas variações nas alternativas de respostas em relação ao primeiro e ao terceiro deles.
A partir do questionário do professor, levantamos três perguntas que permitiam avaliar o que estamos chamando de “ambiente democrático”. Ocorre que, neste questionário, as perguntas (e alternativas de respostas) variaram mais ao longo dos doze anos em análise. Assim, tivemos que promover uma avaliação desse construto a partir das questões disponíveis em cada um dos questionários e gerar uma mensuração que permita aproximação entre os dois períodos. Na sequência, promovemos (como também no caso do questionário dos diretores) uma reconversão das variáveis. Esses aspectos metodológicos são apresentados na parte inicial do segundo tópico do artigo.
Convém também observar que trabalhamos com os dados apenas das escolas públicas municipais e estaduais de ensino fundamental. Ainda que fosse possível incluir no levantamento as escolas de ensino médio em 2003, cuja fonte é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), porém, na base de 2015, quando utilizamos somente a Prova Brasil, não foi possível incluir o ensino médio. Ademais, excluímos as escolas federais, pela quantidade desproporcional a menor desta dependência administrativa, bem como as escolas privadas, uma vez que elas não participam da Prova Brasil, mesmo tendo participado do estudo amostral em 20031. O universo alcançado foi de 3.990 escolas inquiridas em 2003 e de 53.782 em 2015.
Para dar conta do objetivo exposto e apresentar estes aspectos todos ao leitor, este artigo traz na primeira parte uma discussão conceitual sobre as condições de GD, destacando as formas de provimento de diretores escolares, os conselhos escolares (CE) e o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e, por fim, a noção de ambiente democrático. Na segunda parte, o texto apresenta os dados empíricos que permitem uma avaliação sobre a efetivação do princípio da gestão democrática no universo escolar brasileiro. Isto se dá por meio da expressão de um indicador: o índice de gestão democrática (IGD).
2 Aspectos da gestão democrática na escola pública brasileira
O uso da expressão “condições de gestão democrática” tem relação com o fato de que os usuais procedimentos adotados nas escolas e redes públicas de ensino com vistas à constituição ou incremento da GD são, ao nosso ver, ferramentas. Isso significa que não é a existência de um ou vários desses procedimentos que garante o desenvolvimento democrático das escolas públicas. Por isso, nesse texto, esses elementos são tratados como condições para a gestão democrática, vale dizer, estruturas que contribuem ou potencializam a GD, mas, per si, não são capazes de edificá-la.
De resto, a primeira consideração a ser feita sobre isso se relaciona justamente à disposição democrática que os sujeitos do universo escolar (e educacional) devem ter, sem a qual, ferramenta alguma parece possível de alcançar êxito. A questão de fundo é: a democracia demanda participação e disposição ao diálogo. As ferramentas que apresentaremos são elementos de incentivo à participação e, por isso, potencializadores do contraditório, uma vez que a participação cria as condições para a gestão democrática e potencializa o diálogo (SOUZA, 2009). Sem o diálogo, não há espaço para a contradição, para o pensamento diferente, para a diversidade de opiniões, o que significa que, sem contradição, sem diversidade, não há democracia.
Contudo, a democracia somente tem força quando penetra e transforma as relações sociais concretas. E isso demanda colocar a democracia em ação, vale dizer, para além do princípio, implica considerá-la como procedimento. Mas, se os sujeitos não estão dispostos ao diálogo, pouco espaço restará, de fato, à democracia.
No universo escolar, isso é particularmente importante, na medida em que a qualidade da gestão escolar se mensura também pelos níveis de democracia e de diálogo presentes na instituição, com vistas a se enxergar a escola como um espaço de construção da cidadania.
2.1 As formas de provimento
Há uma compreensão na literatura (MENDONÇA, 2000; PARO, 1995) de que a forma de provimento do diretor da escola pública encerra forte articulação com o perfil de gestão escolar desejado, e de GD em especial.
A tendência desta literatura aponta para a ideia de que prover diretores por meio de eleições, nas quais a comunidade escolar tenha o poder decisório sobre quem ocupará a função/cargo2 de dirigente escolar, é algo decisivamente democrático. Por outro lado, levar um profissional a ocupar o lugar de diretor escolar a partir de uma indicação (política ou técnica) é visto como um procedimento que contraria o princípio democrático.
Ainda há avaliações sobre o provimento de diretores a partir da seleção ou concurso, reconhecendo que se trata de uma forma menos controlada ou tensionada pela política (municipal ou estadual) vigente, mas que se associa a um reconhecimento de que a direção escolar é uma função dominantemente técnica (administrativo-pedagógica). De qualquer sorte, a realidade das redes e os sistemas de ensino lidam com esses três tipos e com outros derivados das combinações entre eles.
Em outra frente, a literatura (DOURADO, 2000; PARO, 1995; 2003) aponta as indicações como uma forma mais política de operação do sistema de ensino na definição da gestão escolar, pois sugere uma maior intervenção e controle do poder público na escola, de um lado, ou a utilização dos cargos de direção como moeda de troca no jogo das políticas regionais e locais.
Indicar política ou tecnicamente3 o dirigente escolar pressupõe compreender a direção da escola pública não como uma função a ser desempenhada por um especialista da carreira do magistério, mas como um cargo político de confiança do governante municipal ou estadual ou como instrumento de compensação no jogo político-eleitoral. Isso requer, antes, reconhecer na figura do diretor a expressão primeira do poder público representado pela instituição escolar, ou seja, o diretor é, neste caso, o governador ou o prefeito em menor “escala” e, como tal, tem antes de tudo a tarefa de chefiar uma repartição pública.
Com vistas à superação desse quadro, há aqueles que se mostram favoráveis à realização de concursos públicos para dirigentes escolares, alegando que o diretor concursado não é um diletante e estaria menos submisso às variantes políticas da escola e do sistema de ensino, uma vez que o concurso público parece garantir a moralidade e a transparência necessárias na lotação de qualquer cargo público e é um bom instrumento para a seleção técnica das pessoas que estariam aptas ao cargo:
O concurso público é apontado como alternativa para superação do clientelismo das indicações políticas, uma vez que, em função de critérios impessoais que devem presidir essa forma de seleção, os escolhidos o são pelos seus próprios méritos (MENDONÇA, 2000, p. 190).
A compreensão do concurso público como critério para a escolha dos dirigentes escolares pressupõe que a direção escolar é um cargo técnico, cujo ocupante o desempenhará permanentemente. Trata-se de reconhecer o diretor como um burocrata4. Isso esvazia a face política da função dirigente, especialmente porque a capacidade de liderança não parece ser um elemento passível de ser avaliado por concurso de provas e títulos.
Se a indicação não cabe porque vincula de forma imediata e até espúria o diretor ao administrador público e ao político profissional, e se o concurso público tecnifica a face política da função do diretor escolar, então as eleições poderiam ser a solução no que tange ao princípio da gestão democrática. Todavia, há posições contrárias a elas, em especial dos poderes executivo e legislativo, país afora, os quais têm argumentos que entendemos como políticos essencialmente, uma vez que sua resistência parece se voltar mais à perda do controle político do que à forma de escolha propriamente dita (OLIVEIRA, 1995).
Então, se a natureza do trabalho do diretor exigisse em especial o conhecimento técnico para o seu desempenho, assim como ocorre com a função do coordenador pedagógico e do docente em sua sala de aula e das demais funções técnicas da escola (serviços administrativos escolares, de limpeza e conservação, de segurança e vigilância, de atendimento aos alunos), o concurso público possivelmente seria a melhor forma de se escolher quem deve ser a pessoa responsável pela função. Contudo, se se entende que o trabalho do diretor de escola é essencialmente político-pedagógico, o concurso público talvez deva ceder lugar para as eleições como forma mais democrática no provimento dos dirigentes escolares (SOUZA, 2007).
Há forte presença na literatura advogando a necessidade de se escolher os diretores escolares a partir de eleições diretas e que se colocam como proposições a favor da necessidade de se democratizar as funções e as ações políticas escolares. Paro é um desses autores que, para reforçar este ponto de vista, ainda comenta contrariamente aos concursos para diretores de escola pública:
A atual sistemática de concursos tem-se prestado a esta função político-ideológica: obscurecer as profundas causas políticas da inépcia da escola, reduzindo-a a uma dimensão meramente técnica; como se, ao diretor, responsável último pelo funcionamento da unidade escolar, bastasse uma competência técnico-administrativa que o capacitasse a bem gerir os recursos a sua disposição (que recursos?), promovendo, assim, o “bom funcionamento” da escola (PARO, 1995, p. 115).
E, em favor das eleições, aponta que:
quando se pretende introduzir mudanças na escola pública, por mais certos que estejamos de seu caráter democrático (ou precisamente por isto), é preciso que essa introdução também se faça de forma democrática. Esta norma parece aplicar-se muito bem à questão da eleição de diretores (PARO, 1995, p. 120).
De qualquer sorte, há na prática dos sistemas e redes de ensino, um universo bastante grande e diverso de regras que regulamentam as formas de provimento de diretores no Brasil, nas quais os mais diferentes formatos aparecem (MENDONÇA, 2000), como inclusive indicam os dados que trataremos mais adiante. Mas, para efeitos deste estudo, compreendemos que as formas de provimento mais associadas à eleição são as que potencializam mais democracia, ainda que, na efetivação prática desses procedimentos, muitas outras questões possam ser arguidas, na direção das dificuldades reais para a democracia no universo escolar.
2.2 Colegiados e o Projeto Pedagógico como instrumentos da democracia
Os conselhos escolares e outros procedimentos mais participativos na gestão escolar, como a elaboração coletiva do projeto político-pedagógico, articulam-se, de um lado, à crescente complexidade dos problemas educacionais e escolares que exige a constituição de formas mais qualificadas de gestão escolar (TEIXEIRA, 1961, p. 84) e, de outro, aos reclames por mais democracia.
A constituição de organismos coletivos de gestão se posiciona como pretensa solucionadora desses problemas, mas incorre em outra questão. Pauta-se na ideia de que a participação das pessoas na gestão da coisa pública é suficiente ou eficiente tecnicamente. Porém, “o colegiado significa quase inevitavelmente […] um obstáculo às decisões precisas e unívocas e, sobretudo, rápidas” (WEBER, 2004, p. 222).
É mal resolvida a relação entre eficiência e eficácia com a democracia, quando esta é compreendida apenas como a constituição de espaços e momentos de participação popular nos processos de tomada de decisões:
Ora, sabendo que é característico do homem dar palpite em todo e qualquer assunto do qual tome conhecimento, ao associar-se o maior grau de participação ao maior número de pessoas interferindo no processo, entra-se numa espiral de expectativas impossível de se atender nas organizações, que pouco ou nenhum compromisso tem com qualidade e eficiência. […]. Uma decisão prejudicial ao grupo, ou simplesmente equivocada, pode ser autorizada por um número imenso de pessoas (GUTIERREZ; CATANI, 2000, p. 61).
Esse problema pode diminuir, em tese, se a ação coletiva se estende para além das tomadas de decisões, atingindo o controle das ações públicas (CAMARGO, 1997, p. 265). A democracia (inclusive na escola) se sustenta na ideia de que “todos os envolvidos no processo político têm capacidade de representar seus próprios interesses e de regular seus atos por iniciativa própria” (HABERMAS, 1986a, p. 920).
É nesse sentido que os conselhos de escola têm dinâmicas que se valem da/favorecem a ação comunicativa (PINTO, 1994, p. 98). Todavia, os estudos empíricos sobre os conselhos, mesmo que confirmem essa disposição potencial ao diálogo, reconhecem que são instituições nas quais há uma compreensão limitada sobre as suas potencialidades políticas ou técnicas. Ou, dito de outra forma, são instituições que muitas vezes operam como “cartórios” escolares (NUNES, 1999), cuja tarefa é apenas formalizar decisões já tomadas pela direção escolar ou pelo grupo dominante na política escolar.
Em qualquer dos casos, o conselho de escola é uma instituição que está presente em parte considerável das escolas brasileiras5, mas que demanda um funcionamento regular, com encontros mensais, por exemplo, para garantir-se como um espaço que favoreça o diálogo e a participação.
Quanto ao Projeto Pedagógico, é possível observar que as escolas, em geral, declaram possuí-lo6. Porém, o que pode indicar a potencialidade democrática do projeto, além da sua existência, por óbvio, são as formas como ele foi edificado, considerando o grau de envolvimento e o tipo de participação das pessoas do universo escolar neste processo.
Logo, um projeto que teve sua elaboração não apenas centralizada, mas realizada integralmente pela equipe diretiva da escola, ou ainda que apenas seguiu um modelo determinado pela secretaria de educação, será certamente menos democrático do que um PPP que foi elaborado com a efetiva participação dos sujeitos da escola. Isto representa dizer que a forma como o PPP é construído indica o quanto ele potencialmente é capaz de servir de instrumento em favor da gestão democrática na escola.
A construção coletiva do PP se constitui numa situação concreta de superação das relações hierárquicas e autoritárias. Significa incluir toda a comunidade escolar no processo de tomada de decisões importantes sobre os rumos da escola, e, sobretudo, significa caminhar na direção da superação da dualidade entre teoria e prática e entre os que elaboram e os que executam as tarefas na escola. A participação de todos na construção do PP favorece a corresponsabilidade e o controle da sua concretização (DRABACH; SOUZA, 2014, p. 233).
Ocorre, contudo e com frequência, de a escola elaborar o seu PPP apenas para dar resposta às demandas formais exaradas pelo gestor do sistema de ensino. Perde-se duplamente com este tipo de procedimento: de um lado, reforça-se a ideia de que o planejamento é apenas uma formalidade legal e não tem contribuições técnicas (de antecipação na solução de problemas) ou políticas (de tomada de decisão e de estabelecimento de prioridades) e, de outro, perde-se a potencialidade pedagógica do planejamento coletivo como uma ferramenta de construção da/pela democracia.
2.3 O ambiente democrático
Pinto (1994) observa que a escola é uma instituição que está compartimentalizada dentro de um formato sistêmico de gestão e que teve padronizados os seus processos de tomada de decisões à luz de uma razão não comunicativa, não dialogada. A conversa aberta e franca entre os sujeitos individuais e coletivos, em uma instituição voltada à formação de mulheres e homens, é pré-condição, segundo o autor, para a democratização da sua gestão, levando-nos a crer que o diálogo é condição de superação social, ou, conforme Habermas, esta condição está vinculada ao desenvolvimento de uma ação comunicativa, que está presente:
sempre que as ações dos agentes envolvidos são coordenadas, não através de cálculos egocêntricos de sucesso, mas através de atos de alcançar o entendimento. Na ação comunicativa, os participantes não estão orientados primeiramente para o seu próprio sucesso individual, eles buscam seus objetivos individuais respeitando a condição de que podem harmonizar seus planos de ação sobre as bases de uma definição comum de situação. Assim, a negociação da definição de situação é um elemento essencial do conhecimento interpretativo requerido pela ação comunicativa (1986b, p. 280).
O trabalho escolar é essencialmente coletivo. A escola é uma instituição que só se faz no coletivo. Assim, o desenvolvimento de ações que promovam maior horizontalidade nas relações de trabalho na escola contribui para o incremento da própria natureza do trabalho escolar. Ou, dito de outra forma, quão mais horizontal a escola consegue operar, mais coletiva ela se faz. Quão mais coletiva ela se produz, mais se aproxima da sua função formadora e de promoção da ação comunicativa, portanto, torna-se uma instituição com mais qualidade educacional.
O ambiente democrático é compreendido, nesse trabalho, como a existência de condições de diálogo e de trabalho coletivo ampliado no universo escolar, as quais são erigidas a partir de práticas promotoras da cooperação entre os docentes e demais pessoas da escola, bem como de procedimentos de escuta e participação na definição dos rumos do trabalho pedagógico e institucional.
3 As condições de gestão democrática da escola pública brasileira
Neste tópico do artigo, apresentamos o levantamento dos dados emersos dos questionários do SAEB/Prova Brasil 2003 e 2015. O trabalho considerou que, no que tange ao provimento dos diretores escolares, as formas que utilizam a eleição como ferramenta principal ou complementar tendem a ser as formas mais democráticas, como destacado. Após essa forma, consideramos como uma condição parcial o provimento por meio de seleção ou concurso, porque ainda que tal procedimento enfatize tecnicamente a gestão escolar, se distancia do controle político do governo vigente. Por fim, as indicações foram consideradas as piores formas de provimento no sentido democrático do processo, dado o forte controle governamental sobre elas.
Por outro lado, no que tange aos conselhos e projeto pedagógico, consideramos que, dada a variação possível das respostas a esses itens, a escola com mais condições democráticas possui o conselho que se reúne pelo menos três vezes ao ano (máxima condição disposta no questionário) e possui um PPP que foi elaborado autonomamente com a participação docente.
Finalmente, quanto ao ambiente democrático, flagrado a partir dos questionários dos docentes, reconhecemos que a melhor condição democrática está nas escolas em que os professores participam das decisões, sentem-se parte importante da instituição e da sua gestão e, juntamente com a equipe dirigente, compõem um coletivo que se percebe responsável pela qualidade do trabalho pedagógico e pela aprendizagem discente.
3.1 Elementos metodológicos
Elaboramos um indicador para expressar a mensuração desses elementos, como informado. Trata-se do IGD, que é composto por quatro variáveis: V1. Forma de provimento dos diretores escolares; V2. Existência e funcionamento dos conselhos escolares; V3. Existência e forma de elaboração do Projeto Político-Pedagógico; V4. Ambiente democrático.
Para tanto, partimos dos questionários do SAEB/Prova Brasil aplicados em 2003 e 2015. No questionário aplicado ao diretor, as três perguntas que utilizamos são as mesmas nas duas coletas (Quadro 1).
2003 | 2015 | |
---|---|---|
Provimento | Você assumiu a direção desta escola por: | Você assumiu a direção desta escola por meio de: |
CE | Neste ano, quantas vezes o Conselho de Escola se reuniu? | O conselho escolar é um colegiado geralmente constituído por representantes da escola e da comunidade que tem como objetivo acompanhar as atividades escolares. Neste ano, quantas vezes se reuniu o conselho escolar? |
PPP | Relativamente ao Projeto Pedagógico desta escola: | Neste ano e nesta escola, como se deu a elaboração do projeto pedagógico? |
Fonte: INEP, 2003; 2015.
Para a construção da noção de ambiente democrático, tomamos o questionário dos professores, uma vez que a avaliação sobre clima organizacional e condições de uma ambiência democrática pode ser mais bem expressada pelos docentes. Contudo, as perguntas a respeito deste tema têm mudado ao longo do período (Quadro 2).
2003 | 2015 | |
---|---|---|
Participação em decisões | Participo das decisões educacionais desta escola | Participo das decisões relacionadas com meu trabalho. |
Cooperação | Existe um clima de cooperação entre os professores desta escola | A equipe de professores leva em consideração minhas ideias. |
Responsabilidade coletiva | Sinto que sou parte importante desta escola | O(A) diretor(a) e os professores procuram assegurar que as questões de qualidade de ensino sejam uma responsabilidade coletiva |
Fonte: INEP, 2003; 2015.
Convertemos isto tudo em quatro variáveis. As três primeiras advêm das três perguntas elencadas do questionário do diretor. A última é produto de uma equação que considera as respostas às questões do questionário do professor. Assim, deste questionário, geramos apenas uma variável, aqui denominada de Ambiente Democrático.
Configuramos as respostas às variáveis em uma escala variando de 0 a 1, onde 0 representa as piores condições de GD e 1 representa as melhores. Priorizamos com maior pontuação os elementos que a literatura indicou como sendo potencialmente mais democráticos, para as três variáveis iniciais. Para a variável Ambiente Democrático, por se tratar de respostas do tipo Concordo/Discordo em um ano (2003) e em uma escala (Nunca, Algumas vezes, Frequentemente, Sempre ou quase sempre) no outro ano (2015), optamos em calcular atribuindo pontuação cheia (1) para a concordância em favor de mecanismos mais democráticos e atribuindo zero (0) para a discordância, em 2003; e, em 2015, atribuímos 1 para a parte alta da escala (Sempre ou quase sempre), 0,66 para o ponto seguinte (Frequentemente), 0,33 para o próximo (Algumas vezes) e 0 para Nunca.
Os dados encontrados dessa configuração foram analisados por região do país, nos dois períodos da amostra (2003 e 2015).
Após alguns testes, optamos por manter um equilíbrio nos pesos entre as variáveis, por duas razões: a primeira é que não parece haver consenso na literatura sobre a predominância de um desses elementos sobre os demais, em particular porque pesquisas que testem tais variáveis desta maneira ainda são inéditas no país. De outro lado, o olhar sobre os dados demonstra que nenhum deles tem impacto mais significativo do que os outros sobre aspectos da organização escolar ou dos resultados do trabalho pedagógico7.
Assim, a fórmula utilizada neste trabalho é:
Onde:
A = Como você assumiu a direção desta escola?
B = Há um conselho escolar, e quantas reuniões ocorreram no último ano?
C = A escola possui um projeto político-pedagógico, e como ele foi elaborado?
D = Ambiente democrático
3.2 O que dizem nossos achados
O Brasil apresenta uma condição de gestão escolar democrática ligeiramente melhor do que 12 anos antes, porque o IDG em 2015 resultou em 0,64 diante de 0,57 em 2003 (Figura). Isto significa que nossas escolas estão em 64% em uma escala de desenvolvimento democrático, com um crescimento de 7 pontos (12,8%) ao longo do período.
Em 2003, a região Norte (N) apresentava as piores condições de GD. Doze anos depois, continua na mesma posição. Todavia, houve crescimento, com uma melhora acima da média nacional, atingindo 19,9% a mais que em 2003 (Tabela 1).
Região | 2003 | 2015 | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
|
|
|||||||||
Provimento | CE | PPP | Ambiente | Total | Provimento | CE | PPP | Ambiente | Total | |
N | 0,34 | 0,63 | 0,46 | 0,46 | 0,47 | 0,24 | 0,73 | 0,66 | 0,63 | 0,56 |
NE | 0,3 | 0,75 | 0,59 | 0,46 | 0,53 | 0,24 | 0,75 | 0,68 | 0,67 | 0,59 |
SE | 0,52 | 0,83 | 0,69 | 0,47 | 0,63 | 0,45 | 0,84 | 0,74 | 0,71 | 0,69 |
S | 0,55 | 0,76 | 0,74 | 0,46 | 0,63 | 0,58 | 0,81 | 0,76 | 0,71 | 0,71 |
CO | 0,58 | 0,84 | 0,7 | 0,45 | 0,64 | 0,65 | 0,88 | 0,74 | 0,7 | 0,74 |
Brasil | 0,43 | 0,76 | 0,63 | 0,46 | 0,57 | 0,38 | 0,79 | 0,71 | 0,69 | 0,64 |
Fonte: O autor (2018).
Obs.1: Sem as escolas do Distrito Federal.
Obs.2: 3.990 escolas inquiridas em 2003; 53.782 escolas em 2015.
A região Centro-Oeste (CO) era, em 2003, e também permaneceu em 2015, na posição de melhores condições de gestão escolar democrática. O crescimento de 15,7% também reside acima da média nacional. Trata-se de uma região que reconhecidamente (DOURADO, 2000; MENDONÇA, 2000; SOUZA, 2007) apresenta experiências sólidas e institucionalizadas em larga escala de democratização da gestão escolar.
Assim, se a região com os piores resultados e a região com os melhores indicadores apresentaram, ambas, crescimento acima da média nacional, isto significa que dentre as demais regiões, houve problemas com esse indicador. De fato, afora a região sul, nas outras duas regiões, que são as maiores do país em número de escolas e alunos, a despeito do crescimento no período, o indicador foi menor que a média nacional. Na região Nordeste (NE), o aumento foi de 10,4% e no Sudeste (SE) o crescimento atingiu 8,8%.
A melhor variável, em 2003, foi o Conselho Escolar, seguida do PPP. Ambiente Democrático e Forma de Provimento apareciam mais atrás, com uma distância significativa (11 pontos para Ambiente em relação à média; 14 pontos para Forma de Provimento em relação à média).
Doze anos depois, o Conselho Escolar continua sendo a melhor variável, atingindo 0,79, com um crescimento pequeno (0,03). Em segundo lugar, aparece PPP com 0,71 e depois Ambiente, com 0,69. PPP registrou um crescimento de 0,08 ponto, enquanto que Ambiente apresentou um salto significativo de 0,23 ponto. E, por outro lado, com uma queda de 0,05 ponto, temos a forma de provimento.
A presença do Conselho Escolar na ponta significa, antes de tudo, que as escolas públicas de ensino fundamental no Brasil têm, desde a última década, um perfil de cumprimento das disposições legais, uma vez que o artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996) estabelece a articulação entre o conselho escolar e o conceito de gestão democrática, obrigando todas as instituições escolares públicas, em qualquer desenho de GD a ser definido pelos próprios sistemas de ensino, a possuírem seu conselho próprio.
O crescimento significativo da variável ambiente democrático pode advir de um problema metodológico, uma vez que as perguntas apresentaram alguma modificação no período e, especialmente, as formas de resposta, pois, em 2003, as respostas eram binárias (Concordo/Discordo), e em 2015, tínhamos uma escala para as respostas (Nunca, Algumas vezes, Frequentemente, Sempre ou Quase Sempre). Ou, por outro lado, pode mesmo ter ocorrido um incremento das condições de ambiente democrático, tendo em vista que algumas das outras variáveis também cresceram e, ainda, como resultado de pressão da população docente e esclarecimento dos quadros dirigentes escolares.
A existência do PPP e sua elaboração com maior participação docente também é um elemento que dialoga com a legislação educacional, pois a exigência mencionada no artigo 14 da LDB se estende à participação dos profissionais da educação na confecção deste documento de referência escolar. A literatura tem, como vimos, enfatizado que tanto um (CE) quanto outro (PPP), são instrumentos importantes para oportunizar a participação e a condição democrática na escola.
Por outro lado, a variável Forma de Provimento apresentou um retrocesso no período, ainda que pequeno. Isto parece advir da mudança da adoção de eleições para os modelos mistos, nos quais a eleição, por vezes, é parte do procedimento, vinculada, via de regra, a uma seleção prévia. Não há (ou não parece haver) estudos no país que avaliem a eficácia dos modelos mistos. Contudo, a prática é crescente (SOUZA, 2007; 2009), uma vez que em 2003 tivemos 15,4% dos diretores providos por este formato, e em 2015, este universo cresceu para 16,7%. A legislação inclusive a incorporou, como indica o texto da Meta 19 da Lei Federal no 13.005/2014 (BRASIL, 2014), que aprovou o Plano Nacional de Educação. Nesse texto8, o legislador determina que a gestão democrática seja associada a um modelo que inclua participação popular e avaliação de mérito e desempenho. Apesar de o texto não ser explícito, tem-se a impressão de que se trata diretamente da forma de provimento do dirigente escolar.
Mas, ainda, aquele indicador da forma de provimento, que é o pior de todos os quatro nas duas medidas (2003 e 2015), parece mesmo estar conectado com o alto índice de diretores escolares que assumiram a função por meio de algum tipo de indicação. Em 2003, 45,2% das escolas eram dirigidas por pessoas que foram indicadas. Porém, em 2015 este quadro cresceu, atingindo 51,3% das escolas cujos diretores passaram por algum processo de indicação. Considerando que esta é a forma menos democrática de provimento, conforme discutimos, o peso quantitativo sobre a variável, e sobre o quadro do IDG, no geral, é elevado.
Em outra dimensão, outro aspecto interessante que observamos na análise dos dados, complementarmente, é a correlação entre os escores estudantis no SAEB/Prova Brasil e o IDG. Utilizamos a normalização da nota fornecida pelo INEP nas provas de matemática e língua portuguesa de 2003 e 2015, para o ensino fundamental (Tabela 2).
Ano | Escore Estudantil | IDG | |
---|---|---|---|
N | 2003 | 4,1 | 0,47 |
2015 | 4,6 | 0,56 | |
NE | 2003 | 4,0 | 0,53 |
2015 | 4,4 | 0,59 | |
SE | 2003 | 4,7 | 0,63 |
2015 | 5,5 | 0,69 | |
S | 2003 | 4,9 | 0,63 |
2015 | 5,4 | 0,71 | |
CO | 2003 | 4,5 | 0,64 |
2015 | 5,3 | 0,74 | |
Brasil | 2003 | 4,4 | 0,57 |
2015 | 5,0 | 0,64 |
Fonte: O autor (2018).
Como pode ser observado há uma conexão entre os dois indicadores. Ao testar a correlação, a partir do coeficiente de Pearson, encontramos uma positividade forte entre as duas variáveis de 0,844 em 2003 e 0,894 em 2015. Isto, todavia, não quer dizer que o incremento da proficiência estudantil esteja relacionado diretamente ao IDG, mas demonstra que, nas escolas nas quais há mais condições democráticas, os alunos apresentam melhores resultados.
Ou, visto por outro lado, as escolas em que os alunos apresentam melhores resultados exibem um perfil de condições pedagógicas, materiais, estruturais, políticas e institucionais de funcionamento que oportuniza o desenvolvimento de condições de GD também. De qualquer sorte, é interessante observar que as formas e o ambiente democrático nas escolas se relacionam com um ambiente de aprendizagem estudantil.
4 Conclusões
Vimos que as condições de gestão democrática nas escolas públicas de ensino fundamental no Brasil estão em processo de desenvolvimento. O desenvolvimento do ambiente democrático foi a variável de maior crescimento, indicando que docentes e gestores escolares estão produzindo condições mais horizontais para o diálogo e para a lida com os conflitos e problemas do cotidiano escolar.
A centralidade da gestão democrática parece recair ainda sobre o Conselho Escolar, o qual aparece como uma instituição já consagrada no universo escolar, com todos os problemas que a literatura indica sobre o seu funcionamento efetivo.
Por outro lado, as formas de provimento da direção escolar, tópico que esteve no centro do debate sobre GD escolar no Brasil, parecem perder força, ou, dito de outra maneira, parece que a vitória parcial é da não utilização de modelos mais democráticos como as eleições e enfatizando-se a face técnica ou a vinculação política (e eleitoral) do dirigente escolar com o governo vigente. Trata-se de uma retomada dos modelos mais tradicionais, e com forte tom patrimonialista, de gestão pública no Brasil (MENDONÇA, 2000; SOUZA, 2007).
Não há um consenso pleno sobre o quanto as variáveis que trabalhamos aqui são pró-democracia. Mas, o panorama em geral é positivo, mesmo com os problemas nas formas de provimento dos diretores, o que permite pensar de maneira otimista, porque as mudanças no perfil de gestão democrática das escolas podem estar conectadas com o desenvolvimento de um ambiente mais propício ao ensino e à aprendizagem.