1 Introdução
No campo da Educação, a qualidade é um anseio e uma exigência partilhada pelos diferentes atores educativos e pela sociedade em geral ( BENEDEK, 2012 ) e, por isso, não é estranho que se imponha como um dos objetivos principais das reformas educativas de muitos países ( OCDE, 2017 , 2019 ; THE STANDING INTERNATIONAL CONFERENCE OF INSPECTORATES - SICI, 2016 ; UNESCO, 2016 ). Ao mesmo tempo, adquire uma pluralidade de significados ( GUSMÃO, 2013 ), pois obriga a um juízo de valor referente ao tipo de Educação que se quer, por forma a originar um ideal de pessoa e de sociedade, características que lhe conferem o epíteto de conceito “historicamente situado” ( LEITE; FERNANDES, 2014 , p. 425).
O debate em torno da melhoria da qualidade apresenta-se como incontornável quando se assume a Educação como um fator de grande responsabilidade na transformação sociocultural ( HAAS; APARÍCIO, 2019 ), por afetar milhões de pessoas no mundo sem uma formação que lhes permita o desenvolvimento adequado no mundo do trabalho, com altas taxas de abandono precoce do Ensino obrigatório ( OCDE, 2014 ; UNESCO, 2014 ).
Pese, embora, os estudos realizados no âmbito da qualidade da Educação ( ALMEIDA, 2016 ; BALL, 2016 ; CARVALHO; CORREIA, 2018 ; SÁ, 2018 ; SOUZA; ALBANO, 2019 ; WANDERCIL; CALDERÓN; GANGA-CONTRERAS, 2019), tem-se insistido na ideia de que falar de qualidade é um tema complexo, pela ausência de uma definição unívoca e pela dificuldade em definir as características que a configuram.
Sendo a Educação um direito social fundamental, há tantas versões dela como ideologias para administrá-la (laica, religiosa, progressista, conservadora) pois, por natureza, preocupa o Estado, a Igreja, os cidadãos, os grupos políticos, os agentes sociais e os econômicos ( PRATS, 2014 ).
Assim, não é estranho que para uns a:
Educação de qualidade deve resultar na aquisição de diferentes “competências”, que capacitarão os alunos a se tornarem trabalhadores diligentes; para outros líderes sindicais contestadores, cidadãos solidários ou empreendedores de êxito, pessoas letradas ou consumidores conscientes. Ora, é evidente que, embora algumas dessas expectativas sejam compatíveis, outras são alternativas ou conflitantes, pois a prioridade dada a um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro. Uma escola que tenha como objetivo maior – e, portanto, como critério máximo de qualidade – a aprovação […] [em provas finais] pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos, o que evidentemente impede a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade. Assim, as “competências” que definiriam a “qualidade” em uma proposta educacional significariam um fracasso – ou ausência de qualidade – em outra ( CARVALHO, 2004 , p. 329).
Para a compreensão da noção de qualidade como objeto de construção social, escreve Silva (2008 , p. 17):
Dizer “essa é uma escola de qualidade” não significa ter descoberto ou comprovado as suas características reais, mas interpretá-las a partir de certas condições históricas, territoriais, culturais, de classe ou grupo social. Na medida em que o conceito de qualidade é socialmente construído, importa aqui o modo como se estabelece a relação entre os sujeitos e aquilo que é qualificado. Não se trata de uma propriedade a ser identificada e apreendida na realidade, mas de um ajuizamento de valor a partir da concepção que se tenha de qualidade.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ( Unesco) (2003) , por exemplo, usam, como paradigma, a correlação processos-resultados, de forma a conseguirem aproximar-se do que consideram ser uma Educação de qualidade, definida por meio da relação entre os recursos materiais e humanos e da relação que se estabelece na escola e na sala de aula (os currículos, os processos de Ensino/aprendizagem e as expectativas de aprendizagem). E, deste ponto de vista, só será possível falar em qualidade educativa, quando “uma instituição alia em alto grau as suas funções científico-formativas com as realidades concretas da sociedade na qual está inserida, ou seja, quando conhecimento e formação se enlaçam com os projetos pessoais e sociais de construção da cidadania pública” (DIAS SOBRINHO, 2012, p. 615).
Assim, construir dimensões e definir fatores de qualidade para a Educação exigem a identificação de condições que coordenem a natureza da instituição com os objetivos educativos e com o desenvolvimento da vida dos alunos, pois:
Uma Educação de qualidade […] é resultado de uma construção de sujeitos engajados pedagógica, técnica e politicamente no processo educativo, em que pese muitas vezes, as condições objectivas de Ensino, as desigualdades socioeconômicas e culturais dos alunos, a desvalorização profissional e a possibilidade limitada de actualização permanente dos profissionais da Educação (DOURADO; OLIVEIRA; SANTOS, 2007, p. 8).
A encruzilhada, vivida hoje pelas escolas, entre proporcionar indicadores que permitam à tutela aferir a qualidade da Educação na sua versão mercantil, e criar formas de avaliação, congruentes com as respetivas culturas organizacionais ou com um determinado ethos , é geradora de grandes tensões.
Nesta linha de pensamento, Portugal não é alheio à preocupação com uma Educação de maior qualidade sem, contudo, se distanciar de uma influência neoliberal e neoconservadora ( FERREIRA, 2015 ) observada por meio da importância que este organismo dá aos resultados dos exames padronizados e que permite constatar que o conceito de Educação de qualidade se tem reduzido aos resultados das provas, modificando a maneira de entender e conceber a Educação. Reduz-se, assim, aquilo que se entende por “bom currículo”, “boa escola” ou “bom aluno”, fazendo-os depender, essencialmente, dos resultados obtidos. O foco na qualidade da Educação é partilhado por diversas entidades e organismos, como ocorre na Inspeção da Educação, no caso português, a Inspeção-Geral da Educação e Ciência (IGEC), organismo tutelado pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC), que tem como competências acompanhar, controlar, auditar e avaliar, nas vertentes técnico-pedagógica e administrativo-financeira, as atividades educativas do sistema de Ensino português.
2 A Inspeção da Educação
O ato inspetivo não é uma prática estranha na maioria dos países do mundo. A inspeção da Educação é concomitante à criação da Educação pública e tem-se assumindo, numa perspetiva retórica, com um mecanismo ao serviço de uma Educação equitativa, consideração que só é válida se considerarmos o período posterior ao Estado Novo.
Vários sistemas educativos mundiais têm sido impelidos a desenvolver processos de melhoria que possibilitem a elevação dos padrões de qualidade da Educação e a melhoria dos resultados dos alunos, num elogio a ambientes de competição sustentados na superioridade da racionalidade econômico-empresarial que, de resto, nos parecem contrários ao ambiente propício a uma Educação humanizada. No entanto, o debate em torno da melhor maneira de alcançar este objetivo continua a ser objeto de discussão e muitos têm sido os países a introduzir, nos seus sistemas educativos, organismos inspetivos como forma de estimular a melhoria da qualidade do serviço oferecido (GAERTNER; WURSTER; PANT, 2014).
Em Portugal, o sistema inspetivo é responsável por aferir a qualidade da Educação, a partir de um conjunto de indicadores designados por um grupo de especialistas nomeados pelo Governo, que definem o que se deve considerar por Educação de qualidade (PORTUGAL, 2019). Neste sentido, os inspetores assumem um papel central nos projetos políticos governamentais por constituírem um corpo regulatório que atua como conhecedor da realidade associada às políticas educativas, numa posição de subordinação relativamente à tutela que os obriga a uma atuação mais rígida, que se distancia de uma racionalidade comunicativa e potenciadora de comportamentos mais democráticos, atuação que, no limite, pode não ser compaginável com uma atuação promotora da qualidade da Educação.
Todavia, e apesar de, tradicionalmente, poder ser caracterizada, exclusivamente, pelas funções de controlo da conformidade legal (dimensão burocrática) e da qualidade do Ensino (dimensão pedagógica) reveste-se, hoje, de uma multiplicidade de funções, alterando o foco tradicional colocado no professor, e na sala de aula, para a escola, enquanto instituição, e para os ambientes organizacionais da aprendizagem ( JUSTINO; ALMEIDA, 2016 ). Neste novo modelo inspetivo, o apoio técnico e de aconselhamento é enfatizado e, com ele, os pontos coincidentes entre o papel de supervisor e o de avaliador ( TERRASÊCA, 2011 ).
Esta multiplicidade de papeis resulta num desafio constante para todos os profissionais da inspeção, por serem obrigados a assumir atribuições e responsabilidades de naturezas distintas, ora umas mais ligadas a processos de natureza burocrática e de fiscalização, outras de natureza mais cooperativa e pedagógica, de onde resulta serem percecionados como intermediários entre a escola e a tutela.
No caso português, torna-se percetível a construção de um sistema de inspeção educativo, preocupado em acompanhar e adotar estratégias de modos de regulação oriundos de sistemas, tanto situados no campo da hard governance 1 , como dos situados no campo mais democrático e menos fiscalizador, da soft governance ; um sistema inspetivo, obrigado a responder a uma multiplicidade de solicitações relacionadas com o controlo e a fiscalização e, ao mesmo tempo, relacionadas com o acompanhamento e o apoio à melhoria.
Esta posição díptica da Inspeção da Educação pode levantar questões relacionadas, não só com a forma como a IGEC, no caso português, é percecionada e compreendida pelos demais atores educativos como, também, questões relacionadas com a dificuldade que os próprios inspetores poderão sentir ao serem obrigados a desempenhar atividades de natureza tão distinta.
Certo é que, independentemente da natureza das atividades desenvolvidas pela IGEC, o lugar institucional, a partir do qual é acionada, é sempre o mesmo – um lugar de “poder e do seu efetivo exercício” ( TERRASÊCA, 2012 , p. 117) – resultando nalguma incompatibilidade entre as finalidades e os objetivos de determinadas atividades.
3 Desenho metodológico da investigação
Neste estudo, procuramos conhecer as representações de professores, diretores e inspetores da IGEC a respeito do papel da IGEC na melhoria da qualidade da Educação do Sistema de Ensino Português, traduzida no desempenho da escola e no sucesso educativo dos alunos. Para o efeito, realizamos uma investigação de natureza qualitativa, de âmbito fenomenológico-interpretativo ( AMADO, 2017 ) com foco na compreensão dos significados que os próprios sujeitos da investigação atribuem às suas ações, procurando uma interpretação, em vez de uma quantificação, uma descoberta, mais do que uma constatação de veracidade ou falsidade, a partir da crítica de uma suposta objetividade e neutralidade do saber.
Esta investigação interpretativa de cariz qualitativo, configura um estudo de caso múltiplo ( CRESWELL, 2020 ) envolvendo os Professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico e os Diretores (D1, D2, D3, D4, D5) de 5 Agrupamentos de Escolas (AE1, AE2, AE3, AE4, AE5), e 5 inspetores da IGEC (Ia, Ib, Ic, Id e Ie), num total de 135 sujeitos. Os AE selecionados partilham a condição de terem sido intervencionados no âmbito do AAE, no ano imediatamente anterior ao da recolha de dados, e a zona geográfica (Norte de Portugal). Dos 202 professores do 1.º Ciclo que fazem parte dos AE, obteve-se uma taxa de participação traduzida em 125 docentes (61,9%). Os inspetores foram nomeados pelo Inspetor-Geral, dentre aqueles cujo trabalho tinha incidido de forma mais recorrente na atividade em estudo. A recolha de dados foi feita por meio de questionários (aplicados a todos os professores) e de entrevistas semiestruturadas, realizadas com diretores e com inspetores.
A análise de conteúdo ( AMADO, 2017 ; BARDIN, 2018 ) foi a técnica privilegiada para o tratamento das entrevistas; tendo-se recorrido ao software NVivo12, pela flexibilidade e adaptabilidade que demonstra ter e por “ser uma técnica que aposta claramente na possibilidade de fazer inferências interpretativas a partir dos conteúdos expressos, uma vez desmembrados em ‘categorias’, tendo em conta as ‘condições de produção’ desses mesmos conteúdos, com vista à explicação e compreensão dos mesmos” ( AMADO; FERREIRA, 2017 , p. 300). Os questionários foram analisados estatisticamente, com recurso do programa SPSS. Os discursos dos diretores e dos inspetores foram organizados de acordo com as seguintes dimensões, categorias e subcategorias, expostas no Quadro 1 .
4 Apresentação dos resultados
A apresentação e consequente discussão dos dados recolhidos parte das percepções mais gerais dos intervenientes sobre a adequação e pertinência de todo o trabalho da IGEC para que, de um modo gradual, se chegue às particularidades da atividade em estudo. Foi assegurado que os sujeitos participantes cumpriam com os requisitos necessários ao levantamento das informações que pretendíamos recolher, ao mesmo tempo que recorremos ao aconselhamento de especialistas no tema para que revissem todos os instrumentos de recolha de dados (entrevistas e questionários), determinando se cumpriam com os fins estabelecidos.
4.1 A construção de uma imagem sobre a IGEC
Começamos por perguntar aos professores e aos diretores se, de uma forma global, reconheciam prestígio ao trabalho desenvolvido pelos inspetores. A este propósito, do ponto de vista dos docentes, e como podemos observar por meio do Gráfico 1 , as respostas não são óbvias e as opiniões dividem-se bastante. Se 43,9% dos docentes afirmam não reconhecer prestígio aos profissionais da IGEC, 56,1% apresentam uma opinião diferente e afirmam reconhecer tal prestígio.
As perceções dos diretores não se afastam muito das dos professores. Apesar de, como afirma D5, considerarem que “a questão do prestígio é sempre muito subjetiva”, os diretores tendem a tecer uma imagem positiva acerca do trabalho desenvolvido pela inspeção. Para D5, o facto de os inspetores saberem o que estão a fazer é suficiente para o poder afirmar: “quem cá veio sabia o que estava a fazer, portanto, há que dar prestígio”. Sem arriscar generalizações nem absolutismos, D2 também reconhece “grande profissionalismo” à maioria dos inspetores com quem tem contactado. Considera que, “regra geral”, estes profissionais nos têm “ajudado imenso, […] têm sido fantásticos”.
Os inspetores, por sua vez, mostram-se conscientes quanto à divisão de opiniões, quando em causa está o reconhecimento de prestígio ao trabalho que desenvolvem, admitindo a existência de escolas onde o seu trabalho é mais valorizado e onde se sentem bem recebidos e, outras, onde isso não se verifica. A perceção de Ia “é a de que existem escolas que veem a inspeção como uma instituição ou organismo associado ao controlo ou à fiscalização, e outras que encaram a inspeção como um precioso contributo para refletir e melhorar as suas práticas”. Para Ic, também “depende muito” das escolas, “há escolas onde temos um feedback bastante positivo, mas também temos situações onde o feedback não é tão positivo”. Na mesma linha de pensamento, Id mostra como “é difícil responder” a esta questão uma vez que, como afirma, “há de tudo. Eu não tenho a noção de que os professores todos gostem ou todos desgostem” (Id).
Os dados revelam uma imagem, tendencialmente positiva, em torno do profissionalismo reconhecido aos inspetores da IGEC e confirmam a consciência real de que estes atores têm relativamente à forma como o seu profissionalismo é percecionado pelos professores e diretores.
4.2 O impacto da inspeção na melhoria da qualidade
Se as opiniões dos docentes dividem-se, quando em causa está o reconhecimento de prestígio à profissão inspetiva, divididas continuam quando o assunto é o impulso que este organismo pode trazer à melhoria da qualidade da Educação, traduzida na melhoria dos resultados dos alunos às provas padronizadas. Por um lado, como comprovam os dados do Gráfico 2 , 49,5% dos respondentes dizem não reconhecer à IGEC capacidades impulsionadoras de uma Educação de maior qualidade. Por outro, 50,4% afirmam reconhecer tais capacidades impulsionadoras.
Perante as posições apresentadas, não constituem surpresa, pois divididas que estejam também representam perceções relativas à confiança que depositam nos inspetores. Como comprova o Gráfico 3 , mais da metade dos docentes (54,2%) afirma desconfiar do trabalho que estes profissionais realizam uma vez que desconhecem a natureza da sua ação: se de cariz controlador/avaliativo, ou de apoio/acompanhamento. Os docentes reconhecem a existência de papéis múltiplos no desempenho das funções inspetivas, geradoras de sentimentos de desconfiança.
4.3 A atividade da inspeção: entre o trabalho administrativo e o trabalho pedagógico
Mais unânimes são as perceções destes sujeitos no que respeita ao tipo de trabalho que confere mais visibilidade à IGEC. Quando questionados sobre qual consideravam ser a principal área de atuação deste organismo, a posição assumida é clara: 85,4% dos respondentes concordam ou concordam totalmente com o facto do trabalho da inspeção ser, maioritariamente, administrativo/de gestão e estar afastado da ação pedagógica
Em conformidade com as posições anteriores, os professores tendem a concordar com o facto de o trabalho dos inspetores ser mais direcionado para ajudar as direções na resolução de questões administrativas do que em auxiliar os professores em questões relacionadas com a prática pedagógica. Como atestam os dados do Gráfico 5 , 78,2% dos professores concordam ou concordam totalmente com a frase: “A atividade inspetiva está mais direcionada para ajudar o diretor na resolução de questões administrativas do que os professores em questões relacionadas com a prática letiva”.
A este propósito, e corroborando a posição assumida pelos professores, Id refere que o facto de as funções inspetivas terem âmbitos e objetivos muito diferentes faz com que a forma como eles próprios são percecionados e acolhidos, nas escolas, também varie. Reconhece que as ações que os “professores apreciam mais [são] as ações de Acompanhamento” pelo “suporte ao trabalho das escolas” que proporcionam. Contudo, adverte para o facto de a missão da IGEC ser muito vasta e acolher atividades “mais complicadas”, que “geram sempre muita tensão e conflito”, sendo menos aceites pelas escolas. Ie também assume “o papel de regulador do sistema” associado à IGEC, que diz contribuir para a diminuição da popularidade deste organismo no seio da comunidade escolar. O interlocutor reforça a tensão existente em torno de atividades como as de controlo ou ação disciplinar afirmando que, no âmbito destas ações, “a tensão está sempre um pouco mais em cima da mesa”.
A posição assumida pelos docentes, corroborada por alguns inspetores, pode encontrar justificação na discrepância que existe entre o número de ações do Programa de Acompanhamento e o número de ações do Programa de Controlo programadas por ano letivo: 62% das ações são do âmbito do Programa de Controlo e 27%, do âmbito do Programa de Acompanhamento ( PORTUGAL, 2018 ). Facto que dificulta a elaboração de uma ideia precisa sobre a atuação da inspeção numa atividade específica, pois o formalismo e a postura que os inspetores adotam também variam de acordo com a natureza da intervenção.
A ambição de estudar uma atividade isolada é uma tarefa árdua, pois o número de ações e as responsabilidades associadas a este organismo são inúmeras. Como tais, devemos considerar a possibilidade de o modo como umas são percecionadas e entendidas, influenciarem o modo como são percecionadas e entendidas as restantes.
Apesar de considerarem que o foco da ação inspetiva está mais direcionado para questões administrativas, em detrimento de questões pedagógicas, como confirmam os dados do Gráfico 4 , os atores educativos não negam a importância do trabalho por eles realizado. Atestam, ainda, a importância do trabalho da inspeção na responsabilização das escolas: mais de metade (63,7%) concordam com o facto de as atividades desenvolvidas pela IGEC serem necessárias à monitorização e à responsabilização das escolas, como comprova o Gráfico 6 .
Todavia, 53,7% também afirmam que essas atividades não ajudam as escolas a melhorar de forma individual, como confirmam os dados apresentados no Gráfico 7 . A posição assumida nestas questões subentende a ideia de que, para os docentes, a ação inspetiva nas escolas é necessária num campo mais direcionado para o controlo do funcionamento e do desempenho das organizações educativas sem que, contudo, isso signifique uma influência na melhoria individual das mesmas.
À semelhança dos professores, os diretores também reconhecem as mais-valias associadas ao trabalho inspetivo. D1 considera “o trabalho da inspeção um trabalho de apoio à escola”, classificando-o de “bastante profícuo”. Para D2 é “um trabalho positivo” e “necessário” apesar de salvaguardar a existência de “pequenos problemas” associados a atividades de natureza mais controladora e avaliativa que coloca os inspetores num papel de ‘caçadores’ (“[eles] vêm à caça”). O diretor considera que o serviço prestado pela IGEC “pode ser melhorado”, no sentido de prestar um auxílio mais próximo das escolas, um “trabalho de mais colaboração em termos de orientação”. A salvaguarda deste interlocutor pode ser entendida como um pedido indireto a um maior equilíbrio e harmonia entre o número de atividades dos diferentes Programas da IGEC pois, como antes vimos, este equilíbrio não existe. D3 observa, de forma positiva, o trabalho dos inspetores e sublinha o impulso para a melhoria que o olhar externo por eles introduzido pode gerar. Para este diretor, o facto de a equipa inspetiva “trazer novas práticas, novos conhecimentos” e de “corrigir algumas coisas” que possam não estar “tão bem como se pensava” (D3) é muito significativo.
4.4 A Inspeção da Educação enquanto ‘olhar externo’ e ênfase nos documentos
Na mesma linha argumentativa, D1 e D2 assinalam a importância atribuída ao olhar externo que a inspeção propicia às escolas. D1 assume que, apesar das forças contrárias à estagnação e à paralisação da organização educativa – que afirma existirem na sua escola – pode acontecer que “fiquemos um bocadinho restringidos à nossa quinta”. Como refere, a IGEC induz “uma visão diferente” da mesma realidade, “uma visão que eles já trazem de outras escolas, de outros trabalhos, de outras soluções que foram encontradas”, uma “visão externa” (D1) daquilo que é a organização educativa. Isto porque, como também assume D2, “muitas vezes nós entramos em determinadas rotinas […] que não nos deixam ver outros caminhos que também poderão ser importantes”.
O discurso de Ic expõe, exatamente, a consciência que tem sobre o valor do olhar externo que os inspetores possuem das escolas que intervencionam. Como afirma,
Muitas vezes [as escolas] não têm a visão externa que nós temos, ou seja, nós conseguimos dar contributos muito pelo facto de vermos a escola externamente. Eles vivem os problemas no dia a dia e as situações que eventualmente são importantes, podem ser esquecidas (Ic).
Apesar do olhar externo, que pode resultar da ação dos inspetores, 83,7% dos professores são de opinião de que os julgamentos por eles produzidos dependem, excessivamente, de dados, como comprova o Gráfico 8 .
Tal como em Schweinberger et al. (2017), os diretores atestam o foco excessivo que os dados têm nos julgamentos proferidos pelos inspetores, demonstrando o desejo de verem alterada esta realidade. Como afirma D3, as equipas inspetivas “Vão muitas vezes ver as estatísticas e os resultados, mas há um contexto escolar para se chegar a esses resultados”. D5 também assinala a excessiva importância que a IGEC atribui aos dados e aos resultados escolares e a influência desse fator nos juízos valorativos tecidos, ao qual acrescenta problemas relacionados com a escassez de tempo para a organização desses dados. Pelo seu lado, os inspetores mostram-se conscientes do foco dado à análise documental no âmbito das suas intervenções. Ia alega que esta tarefa é não só “determinante para conhecer o trabalho que a escola está a desenvolver, como também para compreender as prioridades” da mesma. Para Ie a análise documental permite traçar uma “radiografia da escola” a partir da qual se vai basear todo o trabalho a desenvolver. A ênfase na documentação é, ainda, sublinhada por Ib quando refere que é importante que tudo o que é realizado na escola deva ser devidamente documentado para que “quem vem de fora, neste caso a inspeção, consiga perceber exatamente aquilo que foi feito”. Corroborando a opinião dos restantes inspetores, Id afirma: “Como é evidente, antes de iniciarmos qualquer atividade, nós temos de conhecer a escola através da consulta dos seus documentos”. Apesar de os inspetores assumirem a centralidade da análise desses documentos para a elaboração de uma ideia a respeito de cada organização escolar, a verdade é que também reconhecem que esses documentos nem sempre espelham a realidade, fazendo com que o trabalho parta de uma base pouco sólida, por não ser capaz de retratar, explícita e detalhadamente, as características das escolas, a sua cultura e o seu contexto. Ainda assim, a metodologia não confere abertura a outras ações, não concede mais tempo aos inspetores para aprofundarem o conhecimento sobre a organização onde vão intervir, obrigando-os a agir de forma rígida, de acordo com os detalhados guiões elaborados pela tutela, em jeito de harmonização de procedimentos. Obrigados a uma ação padronizada, e sem espaço para considerarem a permeabilidade destas organizações ao ambiente externo onde estão inseridas, estes atores veem limitado o desenvolvimento de uma racionalidade substantiva e democrática. Perante este cenário, os professores alegam que a inspeção está mais focada em encontrar as falhas das escolas do que em ajudá-las a melhorar ( Gráfico 9 ).
A esta posição, 78,7% dos docentes acrescentam que a visão externa proporcionada pela ação dos inspetores não é, obrigatoriamente, vantajosa. Como demonstram os dados do Gráfico 10 , a realidade repete-se e, tal como aconteceu pouco tempo após a criação deste organismo, os professores continuam a reclamar um corpo inspetivo que se identifique e conheça os problemas da vida escolar. Que seja “conhecedor das dificuldades da profissão, fale a mesma linguagem e possua saber baseado na experiência” ( CARNEIRO, 2003 , p. 396).
Esta é, aliás, uma visão reforçada por D2, para quem os inspetores “falam, chamemos-lhe assim, de cor […] falam um bocadinho, teoricamente, mas sem a prática e a prática é muito importante”.
Pese, embora, as perceções apresentadas, os docentes fazem notar uma necessidade de auxílio no campo pedagógico e didático, reiterando a importância da IGEC na identificação de soluções pedagógicas e didáticas, que concorram para a melhoria das aprendizagens dos alunos, como comprovam os dados apresentados no Gráfico 11 .
Os dados, acima apresentados, permitem a elaboração de duas conjeturas: a de que os docentes consideram que o trabalho da inspeção não cumpre com os objetivos, no que concerne ao apoio e ao acompanhamento das escolas, devendo essa responsabilidade ser transferida para outro organismo mais próximo das escolas; e a de que os inspetores não têm um efetivo conhecimento da realidade das escolas, em virtude de não ser uma realidade por eles experienciada, o que potencia a existência de um desfasamento entre o registo normativo/prescritivo e descritivo da escola.
5 Conclusão e considerações finais
A partir desta investigação, foi possível concluir que a posição assumida pelos docentes, quanto ao impulso da IGEC para uma Educação de maior qualidade, não é sólida. Consideram que ação inspetiva não ajuda as escolas a melhorar de forma individual e que os inspetores estão mais preocupados com a identificação das falhas das organizações educativas do que em as ajudar a melhorar. Acrescentam que os julgamentos tecidos pelos inspetores dependem, excessivamente, de dados e são influenciados pelas opiniões pessoais e por preconceitos individuais. Para este grupo de profissionais, a importância associada ao trabalho inspetivo prende-se às questões de âmbito administrativo e de gestão, de monitorização e de responsabilização das escolas pelo trabalho realizado, evidenciando um estilo de governação hard governance ( CLARKE; OZGA, 2011 ) comum a serviços de inspeção de outros países como a Inglaterra e a Holanda, por exemplo (ALONSO; FERNANDÉZ; LASTRA, 2003; EUROPEAN COMMISSION/EACEA/EURYDICE, 2015 ). Já para os diretores, a ação inspetiva permite um olhar externo sobre a organização educativa e possibilita a alteração de ações rotineiras que não seriam tão facilmente identificadas pela comunidade escolar, pela proximidade e familiaridade que têm para com a organização. Recuperando Nogueira, Gonçalves e Costa (2019), observamos que o valor conferido pelos diretores à ação da IGEC está diretamente ligado a aspetos relacionados com a identificação de forças e de áreas prioritárias à melhoria do trabalho das escolas, à luz dos normativos legais em vigor.
Tal como em Sousa et al . (2016), os dados revelam a existência de uma “linha de graduação descendente” (p. 53) no que refere à ação da inspeção revelando-se mais intensa na dimensão organizacional e menos acentuada na dimensão pedagógica, espelhando a primazia do modelo racional/burocrático ( WEBER, 1971 ) pela sobrevalorização da estrutura hierárquica das organizações.
A maioria dos docentes alega não confiar nos inspetores por desconhecerem a natureza e os objetivos das atividades que os levam às escolas – se de âmbito de controlo/fiscalização, se de apoio/acompanhamento. Atestam que a maioria das ações não é de âmbito pedagógico, realidade comprovada pelo número de ações planeadas por Programa/por ano letivo. Os inspetores reconhecem que estas circunstâncias influenciam a forma como são recebidos nas escolas e que o facto de atuarem, maioritariamente, no domínio de ações de controlo faz com que a sua presença nem sempre seja desejada, mesmo quando a natureza das atividades é outra. Como vimos em Landwehr (2011) , a melhoria e o desenvolvimento educativo constituem apenas uma das quatro funções que a ação inspetiva satisfaz, levando a que professores e diretores, que expectam aprender algo de novo, possam ficar desapontados (GAERTNER; WURSTER; PANT, 2014). Como tal, cremos que, independentemente, da natureza das atividades desenvolvidas pela IGEC, o lugar institucional, a partir do qual é acionada, é sempre um lugar de poder ( TERRASÊCA, 2012 ) e isso pode resultar nalguma incompatibilidade entre as finalidades e os objetivos de determinadas atividades. Ideia corroborada por Teixidó (1997) ao afirmar que as funções de acompanhamento/apoio e as de regulação do sistema não se podem congregar no mesmo organismo pela incompatibilidade da natureza de cada uma.
Pese, embora, a formação interna de que os inspetores beneficiam no âmbito desta atividade, os docentes continuam a reclamar um corpo inspetivo que os auxilie na descoberta de soluções pedagógicas e didáticas, que concorram para que os alunos aprendam melhor. Tal como em Pereira (2014) , observa-se que o acompanhamento prestado às organizações educativas ainda se encontra muito no patamar daquilo que está legislado, não respondendo às necessidades dos atores educativos. Não deixamos, contudo, de reconhecer o papel das instituições de formação inicial e dos centros de formação na capacitação dos professores para a resposta a estes desafios pedagógicos e didáticos.
Percebe-se que a imagem que os atores educativos (principalmente os professores) apresentam, relativamente à ação da IGEC, é uma imagem que ainda apresenta sinais dos propósitos para a qual foi criada: o controlo do estado da Educação.
Pela natureza das novas responsabilidades que têm vindo a assumir ao longo dos últimos anos, poderíamos estar perante uma reconfiguração da inspeção, afastada da imagem envelhecida de organismo de controlo e de regulação, todavia, o que se nos apresenta é “uma imagem de uma entidade ‘híbrida’” ( CARVALHO; COSTA, 2017 , p.702), que soma novas responsabilidades, sem nunca se afastar das anteriores.