1 Introdução
Dentre o sem-fim de atividades em que as/os docentes se veem compelidas/os a envolver-se nos seus quotidianos na Academia, algures entre a publicação de artigos, a candidatura à captação de verbas para participar e/ou coordenar projetos nacionais e internacionais, e a participação nos múltiplos órgãos de gestão institucional existentes no campus – entre várias outras –, é possível enxergar, acanhada e puída, a docência. Embora a Pedagogia Universitária venha sendo ocasionalmente resgatada do esquecimento pelo seu potencial de formação e transformação das/os docentes neste nível de Ensino – o qual não requer, em alguns países como Portugal, formação inicial ou contínua para o desempenho e avaliação de desempenho daquelas/es –, a conclusão natural parece ser que quem se dedica à Pedagogia Universitária e, para tal, envereda pela via da Indagação da Pedagogia, o faz “em contracorrente” (Vieira, 2009).
Tomemos o exemplo do contexto de Ensino Superior português, por proximidade: de uma forma generalizada, a participação em processos e práticas de formação docente e de desenvolvimento profissional não é requerida e, em coerência, não é reconhecida institucionalmente nos mecanismos de avaliação do desempenho e de progressão na carreira.
Partilhamos algumas dimensões do contexto português, para melhor enquadramento. O sistema educativo português é regulado pela Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de outubro) (Portugal, 1986) e inclui três níveis de Ensino: básico, secundário e superior. O Ensino Superior, concretamente, estrutura-se num sistema binário dividido entre o sistema universitário e o sistema politécnico, tendo lugar em Instituições de Ensino Superior do foro público e do foro privado. A partir de um processo iniciado em 2005, de reforma da Lei de Bases citada, para implementação do Processo de Bolonha, o Ensino Superior português passou a oferecer três ciclos de estudos (a partir de 2006, mas apenas plenamente no ano letivo de 2009/2010), conducentes a três graus académicos: licenciada/o, mestre e doutor/a. Ainda, com esta reforma foi introduzido um sistema de créditos nos três ciclos de estudos, designado de ECTS (European Credit Transfer System), com descritores de qualificação genéricos associados às competências desenvolvidas, assim como mecanismos de mobilidade, um suplemento ao diploma, entre outros. Todas as Instituições do Ensino Superior gozam de autonomia de natureza científica, pedagógica, cultural e disciplinar. Naquilo que as diferencia, em traços gerais, enquanto o sistema universitário (que inclui universidades, institutos universitários e outros estabelecimentos de Ensino universitário) se orienta para a investigação e criação de saber, pretendendo proporcionar uma formação científica, cultural e técnica que capacite as/os estudantes para o pensamento crítico e a inovação, e para o exercício de uma profissão, o sistema politécnico (que inclui institutos politécnicos e outros estabelecimentos de Ensino politécnico) orienta-se para a investigação aplicada e o desenvolvimento, pretendendo proporcionar uma formação cultural e técnica que capacite as/os estudantes para a compreensão de problemas específicos, o pensamento crítico e a inovação, para o exercício de uma profissão (Portugal, 2024).
No que à avaliação docente no Ensino Superior concerne, desta não consta a exigência de se possuir formação pedagógica inicial (Leite; Ramos, 2012; Marques; Pinto, 2012; Vieira, 2014a) ou de se realizar formação pedagógica contínua (Huet, 2012; Vieira, 2014a). A Agência de Avaliação e Acreditação no Ensino Superior (A3ES), uma entidade independente do Estado que avalia e acredita as Instituições de Ensino Superior e os ciclos de estudos em Portugal, para promoção da qualidade do Ensino, solicita na ficha curricular do docente que se elenque, para além das atividades de investigação, as atividades realizadas para o próprio desenvolvimento profissional. Mais recentemente, nesta ficha, cada docente é questionada/o acerca de “formação pedagógica relevante para a docência” (A3ES, 2022, p. 11). Contudo, tal não é uma obrigatoriedade no Ensino Superior português: “Para os professores deste nível de Ensino não existe formação inicial, muito embora estejam estabelecidos requisitos para provimento em cada categoria” (Comissão Europeia, 2023). No sistema universitário, a formação inicial que qualifica para a docência presume, no geral, estar na posse do grau académico de doutor/a ou ser uma individualidade reconhecidamente qualificada; já no sistema politécnico, fica qualificada/o para docência quem detiver um nível equiparado ao grau de doutor/a ou do título de especialista. Da mesma forma, também não é uma obrigatoriedade realizar formação contínua; como pode ler-se na mesma fonte, “Para os professores deste nível de Ensino não existe formação contínua” (Comissão Europeia, 2023).
Em coerência, dos mecanismos de avaliação docente no Ensino Superior não consta o compromisso com a formação e o desenvolvimento profissional. Segundo o Estatuto da Carreira Docente Universitária (Decreto-Lei n.º 448/79, de 13 de novembro, com a mais recente alteração pela Lei n.º 8/2010, de 13 de maio) (Portugal, 1979), o regime de avaliação do desempenho pelo qual se regem as/os docentes do Ensino Superior universitário, em Portugal, é aprovado por cada instituição, após escutadas as organizações sindicais, sendo requerida uma avaliação positiva para contratação por tempo indeterminado enquanto professor/a auxiliar e para renovação contratual a termo certo para docentes não integradas/os na carreira, com efeitos no posicionamento remuneratório na sua categoria. O mesmo se regulamenta no Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (Decreto-Lei n.º 185/81, de 1 de julho, com a mais recente alteração pela Lei n.º 7/2010, de 13 de maio) (Portugal, 1981), apenas por referência a professoras/es adjuntas/os (e não professor/a auxiliar), no caso das contratações. Tanto no sistema universitário como no sistema politécnico, como se pode ler em ambos os Estatutos citados, consta do leque de deveres genéricos do pessoal docente “a) Desenvolver permanentemente uma pedagogia dinâmica e actualizada” e, para tal, “j) Melhorar a sua formação e desempenho pedagógico” (artigo 63.º no Estatuto do sistema universitário, e artigo 30.º-A, no Estatuto do sistema politécnico). No entanto, não são identificados moldes ou métricas para essa formação pedagógica, ficando a depender das regulamentações específicas de cada Instituição do Ensino Superior.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que as/os docentes que viajam em contramão – i.e., que dedicam tempo e esforços à melhoria da sua docência – não são agraciadas/os pelo seu tempo e esforços para a sua formação e desenvolvimento profissional, as Instituições de Ensino Superior portuguesas parecem ter entrado numa fase de aclamação da Inovação Pedagógica, multiplicando-se os eventos dedicados ao assunto1. Soa confuso? Seguramente.
Será este o caso em que, de tanto se proclamar a importância da Pedagogia também no Ensino Superior, para formação e consubstanciação das práticas docentes, finalmente regressamos ao ponto de partida, e iremos ver ser dado espaço e tempo de formação e de desenvolvimento profissional para que quem pratica a docência aprenda a praticar a docência e se possa dedicar fundamentalmente à docência? Será o caso em que, por via da formação e do desenvolvimento profissional das/os docentes assente na Pedagogia, se pretende trabalhar para construir renovadas formas de profissionalidade docente e cultivar a Inovação Pedagógica? Ou será o caso que os órgãos de gestão de algumas Instituições do Ensino Superior portuguesas ajuízam que a Inovação Pedagógica se obtém com eventos desirmanados em final de ano letivo, nos quais se premeiam as/os docentes com um badge de participação, mas num cenário árido, pois sem uma política deliberada e sustentada para envolver e manter envolvidas/os estas/es profissionais neste tipo de processos, ano letivo fora, de modo que deem resultados avaliáveis e com impacto?
No presente artigo, não se pretende advogar que a docência deve ser a atividade exclusiva a que as/os docentes do Ensino Superior se dedicam. Com efeito, a docência não pode (ou melhor, não deve) existir separadamente da investigação, porque uma alimenta a outra. Convém frisar, não obstante, que falamos de investigação – não (necessariamente) de publicação, ainda que esta seja pertinente enquanto veículo de disseminação dos processos vivenciados junto de pares (ao contrário da lógica da publicação pela sobrevivência – publish or perish), para avaliação do desempenho e progressão na carreira). Pretendendo-se discutir e incluir com seriedade a Pedagogia Universitária, é imprescindível contemplar a irrevogabilidade de colocar a investigação ao serviço da docência, por intermédio da Indagação da Pedagogia. Esta vê a “pedagogia como objeto de estudo e transformação, visando uma mudança profunda da pedagogia” (Vieira, 2013, p. 148). Por outras palavras, a investigação serve um propósito: colocar-se ao serviço da docência, ganhando forma em função dela.
Face ao exposto, é objetivo central do presente artigo realizar uma análise a partir de uma revisão teórica para identificar alguns formatos que tal investigação sobre as próprias práticas docentes (i.e., a Indagação da Pedagogia) poderá adotar no contexto do Ensino Superior, sob a égide da Pedagogia Universitária. Enquanto, por exemplo no Ensino Superior português, não houver políticas institucionais deliberadas, claras, bem pensadas e sustentáveis para a formação docente e o desenvolvimento profissional das/os docentes, aquelas/es que ambicionam observar as suas práticas e refletir sobre elas, investigando-as, para transformação da sua profissionalidade docente e construção de cenários educativos onde a Inovação Pedagógica possa efetivamente florir, continuam a ter de avançar “em contracorrente” (VIEIRA, 2009). O presente artigo é para elas/eles.
2 Antes de mais: a Indagação da Pedagogia
“Quando os professores não investigam a pedagogia, alguém o faz à sua margem ou à sua custa.” (Vieira, 2014b, p. 7). Assim adverte Vieira em relação a, pelo menos, dois riscos: o referente à investigação e docência não andarem de mãos dadas para benefício da segunda e, ainda, o referente à investigação – circunscrita ao mero exercício de publicação – se arredar das necessidades reais emergentes no contexto da prática docente e da experiência educacional. Para contrariar estes (e demais) riscos, mas sobretudo para atuar na formação e transformação das práticas docentes, através da investigação das próprias práticas e disseminação dessa vivência junto de pares, encontramos a Indagação da Pedagogia (Scholarship of Teaching and Learning, em língua inglesa).
A investigação vinculada à docência pode assumir distintas vertentes, conforme cada docente e cenário educativo, que é pertinente diferenciar: por um lado, a investigação baseada na docência (teaching-based research), que tem por objeto de estudo a Pedagogia, com os resultados do processo investigativo a serem disseminados nos comuns canais científicos (e.g., congressos/seminários e publicações em revistas com revisão por pares); por outro lado, a investigação informada pela docência (teaching-informed research), que tem por objeto de estudo as questões emergentes de ensinar dada área de investigação e que suscitam o processo investigativo; por outro lado ainda, a investigação dirigida pela docência (teaching-led research), que pretende contribuir para a reflexão e renovação da própria investigação e das áreas do saber, alvo de estudo (Charles, 2018).
Segundo a literatura (Neves, 2014; Vieira, 2014b), e antes de mais, a Indagação da Pedagogia coloca o/a docente no papel de aprendiz/a, no quadro do compromisso implícito que assume com o seu desenvolvimento profissional continuado. A par, a Indagação da Pedagogia coloca o/a docente no papel de solucionador/a de problemas, pois a sua investigação sobre as próprias práticas docentes é orientada para a resolução de problemas concretos e reais que emergem na sua prática profissional quotidiana. Substancialmente, a Indagação da Pedagogia coloca o/a docente no papel de investigador/a, pois para transformar as suas práticas é necessário que, antes, as anatomize, de modo a identificar forças e fraquezas, e potencialidades por desvendar.
Concretamente, a Indagação da Pedagogia inclui práticas investigativas em que a/o docente – seja individualmente, seja colaborativamente, até possivelmente no seio de (uma) comunidade(s) de aprendizagem e prática – se abre ao questionamento, à reflexão, à recolha de evidências, à discussão, à ação transformada das suas práticas docentes e à disseminação destes processos e vivências junto das/os suas/seus pares (Huet, 2012; Kreber, 2015; Tierney, 2020; Vieira, 2009; Webb; Tierney, 2020). Tal a respeito de um sem-fim de dimensões ou áreas concernentes ao processo de Ensino e aprendizagem, tal como a aprendizagem ativa, por exemplo (Lombardi; Shipley, 2021). Sucintamente, a prática docente é catalisadora de um ambiente de questionamento e investigação, com benefícios não apenas para as/os docentes, mas também para as/os estudantes (Franco, 2023; Huet, 2018).
Importa notar que à Indagação da Pedagogia claramente subjaz a noção de “prático reflexivo” (reflective practitioner, na sua versão original, em língua inglesa) (Grant; Zeichner, 1984; Zeichner; Liston, 2013), que descreve a/o docente que constrói conhecimento na ação (knowing-in-action) e que se dedica à reflexão na ação (reflection-in-action), à reflexão sobre a ação (reflection-on-action) e, ainda, à reflexão sobre a reflexão na ação (reflection on reflection-in-action), instigando a/o docente a avançar no seu desenvolvimento profissional (Schön, 1983, 1987). Neste contexto, não pode deixar de sublinhar-se que, para uma docência verdadeiramente reflexiva, é imprescindível que haja uma formação reflexiva de docentes, pois os processos formativos são transformativos ao colocarem a/o docente num caminho de questionamento e (auto)compreensão (Alarcão, 1996; Figueiredo, 2021).
“Nenhuma estratégia formativa será produtiva se não for acompanhada de um espírito de investigação no sentido de descoberta e envolvimento pessoal e é esta uma das ideias que deve estar na base do conceito de professor-investigador” (Alarcão, 1996, p. 181). Com a Indagação da Pedagogia, dá-se a “metamorfose do professor em investigador” (Neves, 2014, p. 185), sendo que a metamorfose pode assumir feições diferenciadas. Em seguimento, apresentam-se quatro formatos para acolher a investigação sobre as próprias práticas docentes, destacados no presente artigo pela sua especial relevância.
3 Características gerais, finalidade(s) e tipologias do Autoestudo
O autoestudo (designado pela sigla S-STEP – Self-Study of Teacher Education Practices, em língua inglesa) representa um processo investigativo no qual é o próprio self da/o docente que está em estudo (Samaras et al., 2019). Com esse intuito, a/o docente investiga determinada dimensão do seu self – refletido nas suas práticas docentes – de uma forma deliberada, crítica e sistemática, no sentido de a compreender em profundidade e a aperfeiçoar, no quadro do cenário educativo envolvente, e de a partilhar com a restante comunidade docente (Morettini; Brown; Viator, 2018; Ressler; Richards, 2019; Vanassche; Kelchtermans, 2016). Uma vez que o autoestudo é um processo de compreensão das próprias práticas em interação com o outro (King; Logan; Lohan, 2019; Peercy; Sharkey, 2020), mas também pela dificuldade em conciliar docência e investigação, ou pelas simples vulnerabilidades sentidas no que respeita a conduzir um processo investigativo com o qual não se está familiarizada/o, o autoestudo é frequentemente realizado em colaboração com um/a investigador/a (Vanassche; Kelchtermans, 2016), ou então, de forma colegial entre pares (Morettini; Brown; Viator, 2018; Ressler; Richards, 2019) e, até, no seio de uma comunidade de aprendizagem e prática de amigos/as críticos/as (Appleget et al., 2020; Samaras et al., 2019).
A/O docente que implementa o autoestudo, poderá fazê-lo impelida/o por diferentes finalidades, relativas a fatores de ordem pessoal, profissional e/ou do conteúdo programático (Grant; Butler, 2018). Especificamente, a/o docente poderá pretender examinar o impacto de uma determinada prática pedagógica na aprendizagem das/os estudantes, compreender a discrepância entre os seus objetivos enquanto docente e a sua prática efetiva, e/ou conceber e construir cenários de Ensino-aprendizagem mais inovadores (King; Logan; Lohan, 2019; Peercy; Sharkey, 2020).
De modo a averiguar as diferentes tipologias de autoestudo, é relevante sublinhar que, quem o implementa, poderá fazer uso de diversos métodos, tal como a narrativa, o estudo de caso, a (auto)etnografia e a investigação-ação. Os dados são recolhidos mediante o diário, a entrevista, a captação em vídeo de aulas, e a recolha de artefactos do processo de Ensino e aprendizagem, tal como poesia, fotografias, entre vários outros. Já as técnicas de análise destes dados tendem a ser, compreensivelmente, de natureza qualitativa, tal como a análise de narrativas e a análise de discurso (Peercy; Sharkey, 2020).
4 Características gerais, finalidade(s) e tipologias do Estudo de Aula
O estudo de aula representa, na sua essência, um modelo construtivista colaborativo de formação e desenvolvimento profissional, sediado precisamente na relação de colegialidade tecida entre docentes-pares. Tal porque são reconhecidos os benefícios da participação em comunidades de aprendizagem e prática para a melhoria da docência (Soto et al., 2019), pois é na relação com o outro, ancorada na colaboração e na reciprocidade, que é possível interpretar os fenómenos educativos e crescer plenamente enquanto docente. Aqui, “Along with this desire for growth comes the desire to facilitate the growth of others” (Chenault, 2017, p. 6).
A finalidade desta prática é construir uma comunidade de pares – que até poderá ser virtual, se houver distância geográfica entre os seus elementos constituintes (Soto et al., 2019) –, íntima e construtiva, que trabalha para um objetivo comum: a conceção colaborativa e a implementação coadjuvada de um currículo adequado a todos os atores que intervêm na aula. A docência torna-se, assim, um trabalho pedagógico de equipa que dá frutos partilhados e cujos insucessos são partilhados também, requerendo somente novo ciclo de trabalho por parte da equipa (Chenault, 2017; Huang; Shimizu, 2016; Soto et al., 2019).
Ao invés de uma diversidade de tipologias, o estudo de aula segue essencialmente um mesmo formato, ainda que possa apresentar ligeiras variações consoante o contexto cultural onde é implementado (Huang; Shimizu, 2016). Fundamentalmente, uma equipa de docentes – de uma mesma unidade orgânica ou de unidades orgânicas próximas – envolve-se na reflexão e discussão profundas sobre os objetivos pretendidos para uma dada unidade curricular ou curso, para conceber e avaliar o currículo para essa unidade curricular ou curso (também em função das características das/os estudantes e institucionais), o que inclui conceber e implementar um plano de aula ideal, e depois avaliá-lo (de modo a identificar o que correu bem e o que precisa de ser melhorado) a partir da observação de aulas e do olhar crítico e construtivo dos restantes elementos da equipa. Em suma, o estudo de aula inclui um mesmo ciclo, que se repete quando necessário: conceção da aula (na base do estabelecimento de objetivos e de um planeamento minucioso), lecionação da aula por um elemento da equipa de docentes – a qual é observada por demais elementos da equipa –, análise da aula e reflexão sobre a mesma, tendo em vista identificar aspetos a mudar em aulas futuras (Chenault, 2017; Hervas; Medina, 2020; Huang; Shimizu, 2016).
5 Características gerais, finalidade(s) e tipologias do Estudo de Caso
O estudo de caso representa um plano de investigação empírico indutivo, voltado para o estudo minucioso, aprofundado e holístico de um determinado caso, nas circunstâncias naturais em que este ocorre e recolhendo dados de fontes diversificadas. Esse caso poderá ser uma pessoa, um grupo de pessoas, uma comunidade, um contexto, um fenómeno, uma política, entre tantos outros casos. No estudo de caso, o/a investigador/a está pessoalmente vinculado/a ao caso particular que pretende estudar em profundidade (Coutinho, 2021). A título de exemplo, no âmbito da sua prática docente, a/o docente poderá decidir investigar a sua prática ao realizar um estudo de caso sobre a negociação pedagógica com as/os estudantes (Silva, 2014) ou a aprendizagem autodirigida daquelas/es (Menezes, 2014).
Independentemente do caso em estudo, o objetivo central pretendido mediante o estudo de caso é “preservar e compreender o caso no seu todo e na sua unicidade” (Coutinho, 2021, p. 335, itálico da autora), o que pode ser feito mediante a descrição, a análise e/ou a explicação dos dados recolhidos. Quanto à recolha de dados, esta é feita a partir de diversas técnicas, tal como a observação, o diário de bordo, o relatório e a entrevista (Coutinho, 2021).
Dada a infinita diversidade de casos que podem ser estudados, o estudo de caso pode assumir diferentes tipologias, tal como o estudo de caso único e o estudo de caso comparativo/múltiplo (Coutinho, 2021). No entanto, o estudo de caso que utiliza a modalidade da investigação-ação parece ilustrar o formato de investigação mais próximo a uma prática reflexiva na docência, pois incorpora objetivos pedagógicos e investigativos, e presume “uma ação reflexiva sistemática, participada e colaborativa (…) [disposta a] promover o exame das implicações práticas, políticas e éticas da ação educativa” (Vieira, 2014b, p. 42). Contudo, o estudo de caso descritivo e o estudo de caso que combina a investigação-ação e a descrição são também relevantes.
6 Características gerais, finalidade(s) e tipologias da Observação Interpares de Aulas
A observação interpares de aulas representa uma vivência que procura, essencialmente, servir de inspiração para as/os docentes que pretendem conhecer realidades diferentes da sua sala de aulas, para encontrar (re)nova(da)s respostas para os desafios e as necessidades que encontram na sua sala de aulas e prática docente. Na observação interpares de aulas, de uma forma recíproca, um/a docente abre a sua aula à observação por um/a par, sendo que a observação dá o mote para o questionamento, a reflexão e a discussão entre pares, num processo que pretende alavancar a (auto)formação e a transformação das práticas pedagógicas (Franco; Vieira, 2020, 2021; Mouraz; Pêgo, 2017).
Desta forma, a observação interpares de aulas traduz “um processo de interacção profissional, de carácter essencialmente formativo, centrado no desenvolvimento individual e colectivo dos professores e na melhoria da qualidade do Ensino e das aprendizagens” (Reis, 2011, p. 11). Esta prática pode ser implementada numa multiplicidade de cenários e com uma diversidade de finalidades: identificar dimensões a melhorar/transformar na prática docente; refletir – independentemente e com pares – sobre as oportunidades e fragilidades das suas opções pedagógicas em termos de atividades, estratégias e metodologias de Ensino-aprendizagem (no fundo, o currículo praticado); recolher dados que permitam a tomada de decisão relativa aos processos de Ensino-aprendizagem; desenvolver dimensões inerentes à identidade profissional e profissionalidade docente; entre várias outras (Mouraz; Pêgo, 2017; Reis, 2011).
Devido à diversidade de finalidades que podem mover a/o docente a participar em práticas de observação de aulas, esta pode assumir diferentes tipologias, essencialmente diferenciadas de acordo com a sua índole informal (e.g., visitas de curta duração/drop-ins à aula, feitas pelo/a diretor/a da escola, sem aviso prévio) ou formal (em que há uma preparação para a observação da aula, a observação da aula e, posteriormente, a análise, reflexão e discussão sobre a aula observada) (Reis, 2011). No que se refere concretamente à observação interpares de aulas no Ensino Superior, esta enquadra-se na tipologia formal, ainda que o modelo de observação adotado possa seguir um planeamento e um procedimento mais ou menos minuciosos, recorrendo, até, a protocolos de observação (e.g., Mccance; Weston; Niemeyer, 2020) – tudo dependerá do objetivo e necessidades das/os docentes envolvidas/os que nela participam voluntariamente.
Em comum, as quatro práticas descritas acima (autoestudo, estudo de aula, estudo de caso e observação interpares de aula) encontram-se ao serviço da missão maior de Indagação da Pedagogia, com a qual o/a docente-investigador/a se envolve, de forma comprometida, com processos investigativos sobre as próprias práticas docentes, para as transformar. Essa transformação pode ser, por exemplo, no sentido de introduzir metodologias e/ou estratégias de aprendizagem ativa (e.g., aprendizagem baseada em problemas, debate, trabalho colaborativo) nas práticas pedagógicas usuais, para inovação das mesmas. Este tipo de processo revela-se fundamental, pois as/os docentes poderão até possuir um entendimento preciso de aprendizagem ativa e estarem familiarizadas/os com tais metodologias/estratégias, vindo a implementá-las frequentemente, mas poderão ver-se obrigadas/os a recorrer à autoaprendizagem para se familiarizarem com elas, na ausência de formação inicial.
Tal reforça a importância de (continuar a) criar espaços de formação contínua para o desenvolvimento profissional das/dos docentes do Enino Superior. Com efeito, os estudos em que se auscultam docentes acerca do envolvimento em processos (auto)formativos para o seu desenvolvimento profissional e para a transformação das suas práticas pedagógicas revelam que estas/estes veem vantagens em tais processos e que têm interesse em participar em formação contínua para continuarem a aprender sobre como ensinar (Franco, 2023; Franco; Vieira, 2020, 2021). As vantagens incluem, por exemplo, a aprendizagem diária, o abandono do método expositivo enquanto modelo único de aula para se passarem a adotar metodologias de aprendizagem ativa, uma maior aproximação às/aos estudantes para as/os capacitar, processos colaborativos entre docente e estudantes, a integração numa comunidade de pares envolvida nas mesmas práticas (auto)formativas, e o sentimento de validação. Estes benefícios ultrapassam as dificuldades associadas a tais práticas, que também existem, tal como o trabalho árduo envolvido, o baixo reconhecimento departamental face ao tempo e trabalho inerentes a processos (auto)formativos, a perceção de que o reconhecimento é mais facilmente acedido por docentes do género masculino e, até, a retaliação por parte de pares que não se querem envolver nestas práticas (Franco, 2023).
Apesar das vantagens, as práticas (auto)formativas para o desenvolvimento profissional de docentes do Ensino Superior continuam a ser pouco disseminadas no contexto português – referimo-nos à prática de Indagação da Pedagogia, no geral (e.g., Franco, 2023), mas igualmente às práticas exploradas neste artigo e que podem ser desencadeadas ao serviço da formação e do desenvolvimento profissional no Ensino Superior: autoestudo (e.g., Appleget et al., 2020), estudo de aula (e.g., Chenault, 2017), estudo de caso (e.g., Vieira, 2014b) e observação interpares de aula (e.g., Franco; Vieira, 2020, 2021; Mouraz; Pêgo, 2017).
7 Considerações finais
Como se pode depreender da leitura do pertinente editorial de um recente número desta mesma revista científica (Dias, 2021), a Educação enfrenta significativos desafios contemporâneos. Alguns deles são incidentais, tal como a pandemia trazida pela COVID-19 e a forçosa necessidade de, criativa e criticamente, se lhe fazer face nos quotidianos académicos – nomeadamente, mas não apenas, ao explorar as tecnologias digitais e abraçar o Ensino híbrido e, até, inteiramente à distância. Outros destes desafios contemporâneos são estruturais e talham a forma como vivemos cada era, nas diversas esferas de vida em que existimos enquanto indivíduos e enquanto comunidade, referentes, por exemplo, à vida permanentemente online, tecnológica, multitarefas, que requer um elevado desempenho e uma produtividade contínua, fazendo-se acompanhar invariavelmente de sobrecarga e stress, como proposto por Han (2015), ao descrever “a sociedade do cansaço” (the society of tiredness, na sua versão original).
Tais desafios habitam o dia a dia académico contemporâneo, sendo que o “cansaço” poderá bem representar o estado de espírito atual das/os docentes do Ensino Superior, após uma transição abrupta para o Ensino remoto de emergência e, depois, para o Ensino à distância. Sem formação inicial ou contínua que pudesse mitigar a transição e apoiar na dinamização de aulas na nova sala de aulas, muitas/os destas/es docentes viram-se desacauteladas/os na tempestade. Todavia, a falta de preparação não se restringirá à transição para o Ensino à distância, abrangendo demais áreas e dimensões que entram na profissionalidade docente de cada profissional. Em boa verdade, as Instituições do Ensino Superior têm vindo a demonstrar iniciativas voltadas para a Inovação Pedagógica; todavia, estas poderão revelar-se insuficientes e infrutíferas no longo-prazo, se não forem consubstanciadas com verdadeiras oportunidades de formação e desenvolvimento profissional das/os docentes, perenes e sustentáveis, e reconhecidas institucionalmente. Mais do que com um badge, importará incentivar as/os docentes em contramão (e, idealmente, as/os restantes) com políticas efetivas quanto à formação e ao desenvolvimento profissional e, em coerência, com mecanismos de avaliação e progressão na carreira que reconhecem e valorizam práticas de formação e desenvolvimento. Tal no cenário mais amplo de uma Pedagogia Universitária que reconhece “a agência profissional na transformação da pedagogia e a necessidade de uma resistência ativa face aos constrangimentos, numa perspetiva que coloca a tónica na interrogação do que a Educação é com vista a uma aproximação ao que ela deve ser” (Vieira, 2014b, pp. 16-17, itálico da autora). O presente artigo, no qual se partilham alguns formatos de Indagação da Pedagogia (i.e., investigação sobre as próprias práticas docentes), pretende servir de apoio às/aos docentes do Ensino Superior resistentes e que desejam seguir em contramão, sendo que para isso são convidadas/os a parar, observar as suas práticas docentes e realmente investigá-las, para as transformar – em seu benefício e em benefício das/os suas/seus estudantes.