Introdução
Neste artigo focalizamos a qualidade da educação a partir de um recorte micropolítico de pesquisa que analisou a prática social do Conselho Tutelar como sujeito responsabilizado pela sociedade por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990). Utilizamos dados coletados em pesquisa de doutorado em educação e problematizamos o gozo dos direitos à educação com qualidade, como efetivação da proteção integral de crianças e adolescentes.
Na perspectiva do ECA, a qualidade e o direito educacional são indissociáveis, em vista dessa proteção pretendida, sendo ambos condicionantes para que haja o pleno desenvolvimento dos aprendentes e lhes sejam assegurados os outros direitos fundamentais. Nessa acepção, Nascimento e Cury (2020, p. 691) enfatizam:
comumente confundida apenas com a obtenção de notas altas em testes de larga escala, a qualidade é sobretudo alcançada por meio da imersão do sujeito educando na própria sociedade (comunitária ou global) e pela prática social, vivenciando novas experiências de ampliação da democracia e do exercício efetivo da cidadania, como conquistas de todos. Configura-se, então, como condição fundante para a realização e o usufruto de todos os direitos, sejam estes civis, políticos, sociais, econômicos, ambientais ou de qualquer outra natureza.
Esse estatuto, como primeira lei infraconstitucional a ordenar os direitos da educação, apontou o modo como deveriam operar as políticas educacionais e deu-lhes um caráter de absoluta prioridade. Embora haja prescrição de cumprimentos e normas ao abordar a execução da política de educação, de forma direta ou insinuativa, em outros artigos assim se definem os direitos da educação:
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;
III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;
IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica.
Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais. (BRASIL, 1990).
Por se tratar de um direito social, a educação tem a sua realização imputada pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) como dever do Estado. Na prática, no entanto, não é assim que a educação se efetiva; tal como Weber (1999) distingue a validade formal e a validade empírica do direito, a validade formal garantida pela aprovação não significa aplicação na prática. Isso pode ser demonstrado pelos indicadores de violação anotados por várias bases de dados, entre as quais o Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA). No entanto, o estabelecimento de fundamentos legais não implica a transformação das realidades de maneira automática, sequer a isenção de conflitos. A materialização de tal interesse pressupõe que Estado e sociedade ajam estruturalmente em disposição de mútua colaboração, imbuídos de condições sociais e culturais, políticas e institucionais.
Por esse viés, a Carta Magna de 1988 (Art. 227) determinou um arranjo de corresponsabilização entre Estado, família e sociedade para a garantia da proteção integral, mais tarde estruturado por força de deliberação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e denominado Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). Essa ação articulada visa a garantir que todas as crianças e adolescentes estejam a salvo de qualquer ameaça ou violação dos seus direitos.
O ECA, como norma regulamentadora do artigo 227 da Carta Magna, não se configura como uma declaração de direitos para as infâncias que vislumbra um modelo utópico de sociedade. Seus dispositivos constituem direito cogente, de maneira desburocratizada e com validade imediata, sem que dependam de outras regulamentações. É nessa perspectiva que o Conselho Tutelar assume centralidade programática para a garantia da proteção integral de crianças e adolescentes, pelo que o ECA delineou como atribuições e como definição: “Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.” (BRASIL, 1990).
O protocolo de criação desse órgão está amparado na ideia de “desjudicialização do atendimento, conferindo maior agilidade e objetivando o estímulo a soluções simples, ágeis, imediatas” (FONSECA, 2015, p. 252). Isso significa que esse órgão tem o dever, entre outros, de interferir em qualquer questão, sempre que os direitos da criança e do adolescente sejam ameaçados ou violados, incluindo aí o direito humano a uma educação ensejada de qualidade. Para isso, possui completa autonomia funcional em relação ao Poder Judiciário ou ao Poder Executivo, ou seja, no cumprimento de suas atribuições, goza de poder determinatório.
Por suas atribuições, o Conselho Tutelar tem a capacidade de restaurar os direitos violados, por meio da requisição dos serviços dos programas públicos, podendo inclusive representar o descumprimento de suas deliberações à autoridade judiciária, seja por órgão governamental ou não governamental. Isso se aplica categoricamente à garantia dos direitos à educação, demandados por crianças, adolescentes ou seus legítimos responsáveis, à cessação não apenas de violências ou violações e ameaças aos direitos, mas também de não oferta do ensino obrigatório ou sua irregularidade.
Para além das dimensões objetivas do direito à educação, a qualidade tem sido vislumbrada como “nova dimensão da luta pelo direito à educação” (OLIVEIRA e ARAÚJO, 2005), e é nesse sentido que procuramos analisar se cabe demandar qualidade da educação ao Conselho Tutelar. Para tanto, o artigo apresenta dados coletados junto ao SIPIA, lugar de registro obrigatório de atendimentos às demandas por direito ou sua reparação, bem como de indicação das providências tomadas para sua resolução. Em seguida, analisa como esses dados revelam os sentidos e os significados de qualidade da educação postulados pelo ECA. Por fim, apresentamos considerações sobre os aspectos analisados, buscando responder à pergunta originária deste artigo.
A interface do Conselho Tutelar na efetivação do direito à qualidade da educação
Os dados coletados nesta pesquisa são de acesso público, disponibilizados pelo portal do Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA), sendo possível fazer vários recortes de natureza geográfica, de gênero ou tipologias de violação, genericamente. Esse sistema foi criado para que os conselheiros tutelares de todo o Brasil informassem sobre os atendimentos realizados em âmbito local, de modo a produzir informações confiáveis e uma radiografia da real situação de violação de direitos humanos infanto-adolescentes no país.
Tomamos os dados referentes aos registros de Pernambuco, sintetizados no Gráfico 1, referentes à violação dos direitos da criança e do adolescente no Estado, cujo registro alude ao período de 01/01/2009 a 12/11/2020. Destacamos inicialmente que o direito à educação responde ao terceiro lugar no ranking das violações, como indicado a seguir.
O Gráfico 1 aponta que 62% dos casos notificados referiam-se a violações na oferta de condições de convivência familiar e comunitária adequadas, a exemplo do impedimento ao exercício da cidadania, da ausência de programas de atendimentos diversos de proteção, da inadequação da vivência no espaço familiar e da negligência familiar. Os fatos notificados no sistema local só são disponibilizados ao grande público, no portal SIPIA, quando considerados encerrados, o que se dá por meio da confirmação pelo conselheiro tutelar de que as medidas de proteção previstas pelo ECA foram aplicadas.
Os dados disponíveis no portal SIPIA são genéricos, pois se referem ao registro das violações de direitos por grandes grupos. Nesse sentido, cabe destacar que o conhecimento sobre o detalhamento das variáveis por violação específica de cada direito é acessível apenas aos conselheiros tutelares locais que recebem as denúncias e alimentam o sistema.
Esclarecemos que os registros do SIPIA não podem simplesmente ser comparados aos indicadores educacionais do Estado, porque há subnotificação nessa ferramenta. Os dados servem como amostra, já que não são absolutos. Isso ocorre porque um dos grandes desafios à prática dos conselheiros tutelares situa-se na adoção de mecanismos eficazes de registro dos casos atendidos. O letramento insuficiente, em muitos casos, a falta de clareza a respeito do valor do registro, os problemas de infraestrutura das sedes dos conselhos tutelares, a inabilidade no uso das ferramentas online são alguns dos problemas listados para a ausência de notificação sistêmica dos casos de violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. O livro e/ou a ficha ainda tem sido o instrumento mais usual e, às vezes, o único modo de registro dos atendimentos nos conselhos tutelares.
A informação exerce um papel fundamental para o processo de conhecimento de um determinado fato ou situação sobre a qual se deseja incidir, sobretudo por tratar-se de um órgão público. Além disso, sendo função do Conselho Tutelar assessorar o poder público no planejamento de políticas, a informação sobre os atendimentos e suas características torna-se imprescindível para o planejamento do Estado, reverberando nas políticas públicas sociais.
Os dados numéricos registrados com os quais elaboramos o Gráfico 1 mostram que, apesar de o Conselho Tutelar ser a porta de entrada para o reconhecimento das demandas de proteção, elas frequentemente deixam de ser registradas, o que significa, na prática, uma desproteção, já que o uso da informação no diagnóstico situacional da violação dos direitos humanos infanto-adolescentes possibilitaria a identificação e a priorização de problemas que, além de orientarem a consignação de ações planejadas ao seu enfrentamento, potencializariam o seu acompanhamento e avaliação.
O legislador calçou o direito à educação escolar de mecanismos legais que permitissem sua realização, mas, ao mesmo tempo, a efetividade desse direito depende do comprometimento da sociedade em geral, com a colaboração do Conselho Tutelar. Na possibilidade de falta ou na falha de um, deve agir o outro, bem como ambos, escola e Conselho Tutelar, podem atuar concomitantemente. É nesse sentido que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), no artigo 12, recorre à capacidade determinatória do Conselho Tutelar, incumbindo aos estabelecimentos de ensino a notificação a esse órgão da relação dos estudantes que apresentem quantitativo de faltas acima de trinta por cento daquilo que é permitido em lei. Assim,
pode-se perceber a intenção do legislador de situar legalmente a escola como instituição privilegiada na rede de proteção social, articulada com outras instâncias também protetivas, como o conselho tutelar. Ou seja, constitui dever legal dos estabelecimentos de ensino zelar pela permanência com sucesso das crianças nas escolas e, para isso, devem se relacionar de forma intersetorial com as demais instâncias educativas. (SANTOS, 2019, p. 9).
Portanto, ambos devem atuar em colaboração. Igualmente, não há como conceber a atuação do Conselho Tutelar nas demandas escolares, sem a atuação integrada com os diversos sujeitos do SGDCA e a parceria especialmente entre os dirigentes do sistema e da instituição de ensino.
O SGDCA, como é popularmente chamado, combina a atuação de diversos setores do Estado e da sociedade civil, com vistas a assegurar a proteção integral da criança e do adolescente, tendo sido efetivado recentemente. Oficialmente, é a partir de 2006, quando da instituição da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2006), que determina o papel de cada órgão na execução das políticas públicas para as infâncias, que se pode contar com a atuação integrada. Nesse contexto, cabe à escola demandar respostas da rede de proteção social que compõe o SGDCA, em situações de ameaças ou violações de direitos dos estudantes, bem como cabe ao Conselho Tutelar agir para a restauração desse direito:
Possui a Escola, portanto, ao lado do Conselho Tutelar, a missão de desencadear o processo concreto das providências destinadas à reversão das dificuldades. Não podem, nesse momento, a instituição de ensino e o Conselho Tutelar e em assunto de tamanha envergadura, prescindir da mútua colaboração. (KONZEN, 2000, p. 186).
O extrato permite afunilar, de maneira clara, a demanda chegada ao Conselho Tutelar, no que se refere à garantia do ensino. Para tal fim, o Conselho Tutelar dispõe de autoridade legal e procedimentos administrativos (extrajudiciais) para a materialização da restauração do direito, ou seja, a sua garantia na prática. Isso significa que suas decisões têm tal poder determinatório que somente poderão ser revistas pelo juiz de direitos, se tal revisão for pedida pelo legítimo interessado (BRASIL, 1990). Os atos administrativos ocorrem por meio dos encaminhamentos (requisições de serviços) aos órgãos e instituições componentes do SGDCA do qual a escola faz parte.
Tais encaminhamentos devem ser registrados no Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) ou outros instrumentos. Mas, dos aspectos que já levantamos, a educação fica em terceiro lugar no ranking dos direitos ameaçados ou negados, e o registro não ocorre a contento. Os dados disponibilizados para acesso público estão catalogados por grupos de violações, conforme é possível observar no Gráfico 2.
Os registros disponibilizados pelo SIPIA (Gráfico 2) mostram que há grande concentração das violações dos direitos da educação em três dos seis grupos. Pela ordem de valor, a inexistência de ensino fundamental (37%) ocupa o primeiro lugar, e o impedimento de permanência no sistema escolar (22%), o segundo. Na sequência, consta a ausência de educação infantil ou o impedimento de seu usufruto (19%).
Tais números apontam que 56,4 milhões de pessoas frequentavam escola ou creche no país, em 2019. Isso significa uma taxa de matrícula de 99,7% entre as pessoas dos 6 aos 14 anos, o que representa um percentual próximo à universalização. Também
significa, em grande medida, que familiares do contingente marginalizado têm considerado a escola como o lugar privilegiado de proteção, de modo especial aqueles que têm o próprio direito à vida sob ameaça, como categorizou Miguel Arroyo (2015, p. 42):
A insegurança sobre seu direito à vida torna inseguros, ameaçados e negados todos seus direitos humanos e seu direito à educação, à formação humana. Dados mostram milhares desses adolescentes e jovens submetidos a essas violências homicidas que teimam em frequentar as escolas. Lutando pela escola como lugar de proteção de seu direito primeiro a viver. As lutas das famílias pobres e negras pelo direito à escola de seus filhos adquire uma nova radicalidade política, na medida em que a escola é associada ao direito à vida ameaçada.
Entende-se que os sujeitos que demandaram a restauração dos direitos educacionais ao Conselho Tutelar passam a ter seu direito adquirido, ingressando no contingente de matriculados. No entanto, de modo geral, as informações coletadas ainda apontam para a permanência da estrutura excludente da escola, sobretudo em razão da lógica da estandardização e da ranquerização educacional, que incorpora um modelo de qualidade que lhe dê visibilidade por meio de resultados crescentes no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), mas também em decorrência das tensões vividas pelas políticas compensatórias no campo educacional, que promovem um desvelamento das contradições latentes da nossa sociedade, a partir de reafirmações persecutórias por condição de classe, raça ou origem geoespacial - o que deveria ter sido superado com a proclamação do ECA.
Em tempos em que os jovens-adolescentes e até as crianças pobres, negras estão sob o olhar condenatório da justiça, é urgente rever valores e rituais que os mantêm sob o olhar condenatório da justiça-injustiça escolar. Dados vêm mostrando que esses educandos estão entre os condenados por rituais injustos e antiéticos de reprovação, retenção e defasagem idade-série. Quanto mais essa infância-adolescência popular luta por escola e suas famílias mais lutam pelo direito à educação de seus filhos/as, mais se sofisticam avaliações escolares e institucionais, refinando as formas antiéticas de segregação social e racial no próprio sistema escolar. (ARROYO, 2015, p. 43).
Outras pesquisas recentes (SILVA, SILVA e SANTOS, 2019; MELLO e BERTAGNA, 2020) também têm demonstrado que focalizar esse critério universalizante de qualidade tem produzido situações de exclusão, transferências compulsórias ou até negação de acesso às vagas. E, à medida que adentramos os dados de violações e ameaças aos direitos educacionais subcategorizados pelo SIPIA, somos capazes de perceber outras nuances que atentam contra esses direitos, como começamos a demonstrar a partir da Tabela 1.
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Atos atentatórios ao direito a educação | 109 | 69 | 40 | 0 | 0 |
Ausência ou impedimento de acesso aos meios de transporte | 04 | 01 | 03 | 0 | 0 |
Impedir o acesso da criança ou do adolescente a escola | 95 | 62 | 33 | 0 | 0 |
Impedir o acesso do aluno ou dos pais aos critérios avaliativos | 05 | 03 | 02 | 0 | 0 |
Não comunicar maus tratos | 05 | 03 | 02 | 0 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
Na Tabela 1, dois dos fatores incidem sobre o impedimento de acesso à escola, o que se contrapõe ao já antigo debate filosoficamente vinculado aos primeiros movimentos que pautam a qualidade, desde as ideias escola-novistas até meados dos anos 1990. Esse debate entendia a qualidade vinculada ao acesso universalizado e à permanência dos estudantes, especialmente de classes populares, na escola. Apesar de o número absoluto (95 casos de impedimento de acesso à escola + 4 casos de impedimento de acesso ao transporte) parecer baixo, comparativamente ao universo de pessoas em idade escolar em Pernambuco, considera-se que, em cerca de cem anos, esse indicador deveria ter desaparecido, mas persiste. Portanto, esse elemento não perdeu sua atualidade e é basilar em qualquer discurso sobre política educacional ou qualidade de ensino.
Destacamos, em contraponto, a emergência do valor democrático, quando observamos os outros dois elementos para pensarmos a qualidade como proteção integral da criança e do adolescente (NASCIMENTO, 2020), já que o acesso aos critérios avaliativos e a comunicação de maus tratos representam novidade em termos de demanda por direito de proteção. É direito do estudante ter acesso não apenas à escola, mas aos critérios avaliativos. Esse aspecto realocou o poder absoluto do ato avaliativo consubstanciado na vontade única do professor, que se utilizou tradicionalmente dessa prerrogativa como uma prática comum de punição daqueles tidos como não adequados à escola. Aponta para mecanismos de exigibilidade de um direito, forçando a escola a adotar critérios mais democráticos e justos, não apenas no processo avaliativo, mas em todas as suas instâncias de gestão.
Da mesma forma, a proteção integral é a vigilância atenta de todas as pessoas para a detecção de situações de maus-tratos contra crianças e adolescentes e a demanda por combatê-las. No caso do profissional da educação, é de caráter obrigatório a comunicação ao Conselho Tutelar, mesmo que se trate apenas de uma suspeita. Já o impedimento do acesso à escola ocorre notadamente em maior quantitativo no caso de violação das regras institucionais mais palpáveis de observância (acesso exclusivo com uso de uniformes, fixação de horários de entrada, uso de acessórios), o que tem gerado várias formas de conflitos, muitos deles mediados pelo Conselho Tutelar.
A Tabela 2 mostra que, apesar de a ampliação do atendimento obrigatório na faixa etária de 0 a 4 anos de idade atendida datar de 2009, com o FUNDEB, que é relativamente recente em termos de nossa história da educação, esse público ainda não foi totalmente contemplado, o que justifica a centralidade das violações situadas na ausência de vagas em creche (46%), na pré-escola (22%) e na falta de pré-escola (21%).
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Ausência de Educação Infantil ou impedimento | 250 | 143 | 107 | 0 | 0 |
Distância física entre casa/creche ou empresa/creche | 01 | 0 | 01 | 0 | 0 |
Distância física entre casa/pré-escola ou empresa/pré-escola | 04 | 03 | 01 | 0 | 0 |
Falta de equipe especializada para atendimento de 0 a 3 anos | 02 | 0 | 02 | 0 | 0 |
Falta de equipe especializada para atendimento de 3 a 6 anos | 04 | 04 | 0 | 0 | 0 |
Falta de pré-escola | 52 | 23 | 23 | 0 | 0 |
Falta de vaga creche ou entidade equivalente | 114 | 69 | 45 | 0 | 0 |
Falta de vaga em pré-escola ou entidade equivalente | 55 | 34 | 21 | 0 | 0 |
Não cumprimento pela empresa de obrigação legal de creche | 01 | 0 | 01 | 0 | 0 |
Outros | 17 | 10 | 07 | 0 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
eurocêntrica, é fundamental. Nela, a colonização das mentes produz o desejo de alcance do padrão ocidental e branco, os ideais de Ego do sujeito branco dominantes, levando à recusa, negação e anulação do corpo negro (COSTA, 1990). A desconsideração das experiências sociais dos sujeitos invisibiliza, assim, comunidades étnicas, sujeitos marcados pela cor da pele, pobres, faveladas(os), mulheres e LGBTQIA+ inviabilizando a autoafirmação como sujeitos de direitos.
A Tabela 4 agrupa o segundo maior bloco de violações dos direitos educacionais, e o que nos parece inadmissível são os dados referentes ao impedimento de permanência no sistema escolar, que ainda incluem, por exemplo, a evasão escolar (49%) e a transferência compulsória (11,5%), que também têm a ver com o deslocamento escolar, que já viola o direito de matrícula próximo à residência. Tal aspecto remete a uma política de avaliação que confronta o direito de acesso, já que a bonificação atribuída aos profissionais do ensino, bem como o ranqueamento da escola levam muitas vezes à estigmatização do aluno com baixo rendimento, quando este deveria ser alvo de priorização.
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Falta de condições educacionais adequadas | 136 | 94 | 42 | 0 | 0 |
Altos índices de repetência | 10 | 09 | 01 | 0 | 0 |
Excesso de faltas injustificadas | 75 | 48 | 27 | 0 | 0 |
Falta de informações aos pais sobre a frequência do aluno | 05 | 04 | 01 | 0 | 0 |
Falta de material didático | 02 | 02 | 0 | 0 | 0 |
Falta de serviços especializados | 19 | 13 | 06 | 0 | 0 |
Falta ou insuficiência de educadores | 05 | 03 | 02 | 0 | 0 |
Interrupção sistemática do processo de ensino | 03 | 03 | 0 | 0 | 0 |
Outros | 17 | 12 | 05 | 0 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Impedimento de permanência no sistema escolar | 286 | 184 | 95 | 06 | 01 |
Auto exclusão | 27 | 15 | 12 | 0 | 0 |
Constrangimento de qualquer espécie | 33 | 17 | 15 | 01 | 0 |
Critérios avaliativos discriminatórios | 07 | 05 | 02 | 0 | 0 |
Evasão escolar | 139 | 81 | 55 | 02 | 01 |
Expulsão indevida | 30 | 25 | 5 | 0 | 0 |
Punições abusivas | 17 | 15 | 01 | 01 | 0 |
Transferência Compulsória | 33 | 26 | 05 | 02 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
O constrangimento (11,5%) é claro indicativo das intolerâncias, seja por cor, credo, orientação sexual ou classe, que assolam a sociedade e repercutem na ambiência escolar. Verdadeiras violências simbólicas nascem dessas discriminações. Tais violências poderiam ser preventivamente objeto de atenção na escola, de maneira que o ambiente não reproduzisse tais estereótipos e marginalizações, mas, ao contrário, pudesse potencializar o debate multicultural, de forma a buscar a transformação social. Apesar de não se consubstanciar em dados da Tabela 4, tal fato nos faz pensar nos aspectos pedagógicos, já que o percurso do estudante é repleto de resistências a múltiplas formas de ser e existir, como práticas religiosas e orientações sexuais diversas, que se revelam por meio dos dados acima apontados.
É nestes termos que Torres e Carril (2021, p. 9) consideram:
Pensar paradigmas pedagógicos que venham modificar o modelo educacional vigente no Brasil, marcadamente impregnado pela estrutura social racista e
As autoras ainda destacam que, no que tange às questões de gênero e sexualidade, “46% da população trans no Brasil não finalizou o Ensino Fundamental” (Op. Cit.). Tais violências são muitas vezes motivadoras de respostas agressivas por parte dos alunos, que se sentem excluídos ainda estando na escola e terminam sendo expulsos dela por indisciplina e afronta ao status quo. Daí derivam também as punições abusivas e a autoexclusão. Destacamos, inclusive, o fato de a maioria das anotações de ameaças ou violações aos direitos educacionais serem praticadas em desfavor de estudantes do sexo masculino.
Ainda em relação ao recorte de gênero, chamamos especial atenção às colunas indicativas de gênero “Masculino”, “Feminino”, “Transmasculino” e “Transfeminino”: os últimos dois aparecem exclusivamente na indicação dos impedimentos de permanência no sistema escolar, ou seja, esses sujeitos têm negado seu direito de permanência no ambiente escolar, seja por constrangimento, evasão, punições abusivas ou transferência compulsória. Apesar do pequeno quantitativo, esse aspecto não pode ser desprezado.
A inclusão de crianças e adolescentes na escola, em decorrência da Declaração dos Direitos da Educação, possibilitou que enxergássemos com clareza as violências praticadas por essa instituição. Se anteriormente foi negado o acesso, a chegada das crianças e adolescentes à escola pública culminou em conflitos decorrentes dos choques de costumes e de experiências culturais, assegurados os critérios de razoabilidade da permanência desses grupos na unidade educacional, bem como um conjunto de medidas que lhes restringiram os efeitos de abusos e discriminações. Nesse sentido, inclui-se o cumprimento do que está estabelecido pelo ECA (BRASIL, 1990):
Art. 57. O poder público estimulará pesquisas, experiências e novas propostas relativas a calendário, seriação, currículo, metodologia, didática e avaliação, com vistas à inserção de crianças e adolescentes excluídos do ensino fundamental obrigatório.
Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.
Em que pese ao fato de a regulamentação do recorte de gênero ser recente na educação (BRASIL, 2018), com a inclusão do direito ao uso do nome social, a demanda já sinaliza certo respeito ao direito como um construto cultural, o que categoricamente diz respeito à multiculturalidade.
As Tabelas 5 e 6 indicam a falta de vagas nos ensinos fundamental e médio e mesmo a falta de escolas. Sabemos dos altos investimentos que foram feitos ao longo da última década, bem como os retrocessos experimentados no período mais recente. A política educacional inclui tal dinâmica, de altos e baixos, mas faltar vagas não é mais concebível. No nível fundamental, nota-se a persistência da diferença entre os gêneros.
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Inexistência de Ensino Fundamental ou dificuldade | 481 | 259 | 221 | 1 | 0 |
Falta de escola | 66 | 38 | 27 | 01 | 0 |
Falta de oferta ou falta de vaga no ensino noturno regular | 05 | 03 | 02 | 0 | 0 |
Falta de vaga | 331 | 191 | 140 | 0 | 0 |
Inexistência de ensino fundamental completo | 13 | 04 | 09 | 0 | 0 |
Outros | 66 | 23 | 43 | 0 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
Categoria de Direitos violados | Total | M | F | TM | TF |
---|---|---|---|---|---|
Inexistência de Ensino Médio ou dificuldade | 25 | 12 | 13 | 0 | 0 |
Falta de escola | 02 | 01 | 01 | 0 | 0 |
Falta de oferta ou falta de vaga no ensino noturno regular | 03 | 01 | 02 | 0 | 0 |
Falta de vaga | 19 | 10 | 09 | 0 | 0 |
Inexistência de ensino médio completo | 01 | 0 | 01 | 0 | 0 |
FONTE: Dados dos autores com respaldo nas informações disponíveis na base de dados do SIPIA, 2020.
Os dados apresentados e analisados nesse item nos auxiliam a refletir a respeito da interface do Conselho Tutelar na efetivação do direito à qualidade da educação. Discutimos os direitos negados, do ponto de vista institucional do Estado, sem deixar de perceber a existência daqueles que são negados pela dinâmica social em que o aluno se insere. Tais dados denotam a persistente limitação de direitos educacionais que, apesar de assegurados no ECA, precisam ser focalizados com seriedade por políticas educacionais e sociais e demais sujeitos.
Nesses termos, a escola requer maior intervenção política mobilizadora dos sujeitos responsáveis pela concretização de demandas de proteção integral. Requer também novas formas de relação com o SGDCA, o que nos remete ao questionamento a respeito de que conceito de qualidade está presente no ECA, conforme o que segue.
Conceito de qualidade da educação
Na introdução deste trabalho, anunciamos certo conceito de qualidade presente no ECA, que remete a uma educação capaz de formar o sujeito na sua integralidade, o que inclui os indicadores educacionais (cognição), mas não se restringe a eles, abrangendo cidadania ativa, autocompreensão de si.
Esse conceito de qualidade, apresentado em 1990, agrega a disputa presente na sociedade, relativa à política educacional e sua qualidade. Dois polos encontram-se delineados: por um lado, a chamada “qualidade total”, alinhada aos ditames do mercado, e, por outro, aquela relacionada à “qualidade social”, vinculada aos movimentos demandantes de direitos. No centro da disputa, uma sociedade dividida entre extremos desiguais, cujos excluídos dos sistemas educacionais passam a ser contemplados como sujeitos de direitos no ECA.
Nesse documento, o conceito de qualidade só se efetiva se houver a garantia da proteção integral, que é o propósito originário de todo o arcabouço jurídico inscrito nessa legislação, que tem como base o que foi preconizado no artigo 227 da Constituição Federal e reafirmado quase literalmente no quarto artigo do ECA:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Dessa forma, para a implantação de instrumentos jurídicos, políticos e administrativos capazes de garantir todos os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, sem as distinções de outrora, faz-se necessária a ação colaborativa do Conselho Tutelar junto aos demais sujeitos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. O objetivo do artigo em tela é a proteção integral, que “representa a nova concepção da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da ONU e da Declaração Universal sobre os Direitos da Criança” (FERREIRA, 2011, p. 16).
A Doutrina de Proteção Integral afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie; e o reconhecimento da sua vulnerabilidade (NASCIMENTO e GAMEIRO, 2013, p. 50).
Essa doutrina encontra seu fundamento expresso no ECA (BRASIL,1990), principalmente no artigo terceiro, o qual garante que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”, rompendo com a concepção menorista e elevando-os à categoria de sujeitos dos direitos, sem distinção entre pessoas, classes e/ou condições sociais; no artigo quarto, que lhes destina a absoluta prioridade, ou seja, dá uma ordem de preferência sobre os direitos assegurados frente aos demais grupos etários; e, no artigo sexto, que considera a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
A ideia da proteção integral dos direitos aponta para a garantia de todos os direitos, universalmente, sem violá-los nem os restringir, com prioridade absoluta. Trata-se de um desdobramento do sentimento médio de justiça social (razoabilidade) da população. “Esse sentimento médio é o que está equidistante de dois extremos: de um lado, o que quer impedir a mudança necessária; de outro, o que pretende a mudança impossível” (SÊDA, 1995, p. 18).
Nesse caminho, para entender o que significa a qualidade educacional prescrita no ECA, é preciso reconstituí-la no discurso da luta pela efetivação da proteção integral. Assim, a concepção do direito à educação contida nesse estatuto é afetada discursivamente por essa pretensão, bem como a condição sem a qual não haveria o pleno desenvolvimento dos outros direitos e, portanto, o desenvolvimento da própria humanização dos sujeitos educandos.
A educação e os outros direitos sociais estão intrinsecamente imbricados, o que nos leva a afirmar que os indicadores de qualidade apontados pelo ECA correspondem à própria qualidade do funcionamento do SGDCA e à efetiva qualificação da vida dos sujeitos aprendentes. Por isso, no ECA (BRASIL, 1990), a educação figura como uma das medidas especiais de proteção, bem como de cumprimento das medidas socioeducativas. No primeiro caso, aplicável diretamente à criança ou ao adolescente a determinação de “Art. 101. [...] matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino” e/ou aos seus responsáveis, como no “Art. 129. [...] obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar”; no segundo, como uma das garantias exigidas para a aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto ou de semiliberdade, tal como no “Art. 120 [...] § 1º São obrigatórias a escolarização e a profissionalização”.
Note-se que a matrícula supõe a permanência e os resultados auferidos pelas avaliações escolares. Nesses termos, a proteção integral não se fixa apenas por meio da execução dessa medida especial, mas dá-se através da execução das políticas sociais, bem como pelo cumprimento dos dispositivos reguladores dos direitos da educação, com qualidade; isto é, o ECA destinou capítulos próprios para tratar da proteção anunciada desde a Constituição Federal. No caso dos direitos educacionais, essas prerrogativas estão regulamentadas nos incisos do artigo 53 do ECA, como já afirmado na introdução deste artigo.
O que queremos destacar neste debate é a concepção de qualidade da educação, conforme disposto no ECA, com vistas a reafirmar a proteção integral, num espectro que ultrapassa o limite da formalidade do acesso à leitura e escrita e associa tal proteção às práticas políticas e sociais, à capacidade crítica e autonomia do sujeito aprendente. Sob tais termos, a proteção remete ao enfrentamento, ao menos à consciência, do conjunto de determinantes que interferem no campo das relações sociais mais amplas, tais como: as questões macroestruturais, como a concentração de renda e a desigualdade social, a compreensão da educação como direito humano e social, autodeterminação, entre outras. Embora esta pesquisa não enfoque as questões próprias do ECA, consideramos a caracterização de qualidade social da educação apresentada por Dourado e Oliveira (2009, p. 205) apropriada ao que postulam as normas estatutárias sobre qualidade:
envolve dimensões extra e intraescolares e, nessa ótica, devem se considerar os diferentes atores, a dinâmica pedagógica, ou seja, os processos de ensino-aprendizagem, os currículos, as expectativas de aprendizagem, bem como os diferentes fatores extraescolares que interferem direta ou indiretamente nos resultados educativos.
Isto é, a qualidade da educação abrange aspectos relacionados à análise e à avaliação de sistemas e unidades escolares, mas também aos processos de organização e gestão do trabalho escolar, o que articula a democracia, a interculturalidade e a multiculturalidade às múltiplas questões e dimensões da vida em sociedade. A qualidade da educação, portanto, é transpassada pelos limites e pelas possibilidades das dinâmicas pedagógica, econômica, social, cultural e política de um dado grupo da sociedade, o que implica uma imersão nas realidades locais, transformando-as. Desse modo, à medida que crianças e adolescentes são introduzidos e iniciados num mundo preexistente, imbricados nos processos de escolarização, são também capazes de “iniciar algo novo” e imprevisto (ARENDT, 2009).
Essa percepção decorre da ideia do protagonismo infanto-adolescente subjacente aos princípios singulares do ECA, não apenas ao que toca às (micro)políticas educacionais, mas relacionado intrinsecamente à proteção integral. Desse modo, consoante o que afirma, a escolarização e igualmente o sentido de qualidade são categorias centrais do pensamento político que almeje a transformação do mundo que recebemos.
Nessa possibilidade de constante renovação e transformação do mundo, reside um aspecto fundamental da condição humana e do próprio sentido de uma escolarização pública: a especificidade de uma ação política exercida numa esfera pública, muito diferente do mero fazer ou da técnica, como preconiza a concepção pedagógica orientada pelo ensino de “competências e habilidades” alegadamente requeridas pela difusa esfera social (SILVA, 2009, p. 564).
Portanto, como condição de potencializar uma ação-no-mundo, a qualidade - como adjetivo da educação, adquire um significado para uma formação humana, não limitada às necessidades de sobrevivência e do consumo (sua relação com o trabalho), mas, sobretudo e especialmente, para o que promove a própria humanização (relação dos sujeitos consigo e construção de uma cognição ecossocialmente responsável) e o exercício de uma cidadania ativa (relação dos sujeitos com o outro e com o mundo).
Considerações finais
Este artigo analisou a qualidade da educação com base nos registros de direitos da criança e do adolescente ameaçados ou violados, anotados pelos conselhos tutelares do Estado de Pernambuco no Sistema de Informação para Infância e Adolescência. A funcionalidade do SIPIA encontra ressonância no Estatuto da Criança e do Adolescente, que confere ao Conselho Tutelar a função de atender às demandas infanto-adolescentes por direito e requisitar serviços ou representar a autoridade competente para atuar diante de situações de ameaça ou violação de direitos.
Em que pese aos dados levantados junto ao SIPIA, apontamos os motivos que têm levado os estudantes ou seus legítimos representantes a procurarem o Conselho Tutelar, com vistas a encontrarem soluções para os problemas vividos. Tal questão nos conduziu à reflexão a respeito do papel desse órgão no universo das demandas escolares sobre direitos e justiça para crianças e adolescentes, mas também nos levou a procurar saber se cabe a esses sujeitos demandar qualidade de educação ao Conselho Tutelar. Por esse motivo, fomos levados a analisar aspectos relativos aos âmbitos microssocial e micropolítico, que terminam por configurar as práticas de violação.
Os dados analisados de Pernambuco esclarecem que o que pesa é o alto indicador de violações de direitos nos estudantes, especialmente masculinos, que não são respeitados, já que são secundarizados, em termos de escuta, e pressionados culturalmente, em termos de comportamento, ou seja, não só nos aspectos sociais, mas também culturais. E a negação do direito à educação quase nunca ocorre de forma desarticulada da violação de outros direitos.
Do mesmo modo, o ECA estabeleceu que a superação das violações requer uma articulação autogestionada, já que nem a escola (Estado), nem a sociedade (Conselho Tutelar), nem a família cumprem o papel de defensores dos direitos com autossuficiência. A cultura política das gestões municipais mantém a lógica da fragmentação na execução dos serviços, em contraposição ao arranjo em rede que deveria ter, o que representa uma contradição, além do que potencializa a violação de direitos.
O Conselho Tutelar, portanto, se consolida como excelente instrumento formal para delimitar a ação do SGDCA com fins à proteção integral, além de mobilizar esforços para assegurar a qualidade da educação, num espectro mais amplo. Apesar disso, nenhuma regulamentação incide sobre aspectos culturais e relativos às práticas de execução dos serviços, inclusive da forma de atuação do Conselho Tutelar e seus registros, o que desencadeia uma diversidade de formas de notificação ou subnotificação.
Por fim, em busca de respondermos à questão central que origina o presente debate, concluímos que, sim, cabe demandar qualidade da educação ao Conselho Tutelar, já que a compreendemos como aquela que inclui o acesso à escola, bem como o acesso aos critérios avaliativos (potencializando autonomia, cidadania ativa) e a redução das intolerâncias (promoção da autocompreensão, do pluralismo intercultural). Os dados apresentados indicam que tal demanda se materializa como exigência de outra democratização da educação e da escola, com justiça social.