Introdução
A análise do território de Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) revela uma contradição característica do padrão de desenvolvimento capitalista dependente. Município com uma das maiores dinâmicas econômicas do estado do Rio de Janeiro que, simultaneamente, apresenta grande precariedade nas condições de existência de sua população e graves injustiças socioambientais. O município tem participação destacada na composição da economia estadual em setores como a indústria da transformação e os serviços, estando entre os municípios de maior Produto Interno Bruto (PIB) do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020). Por outro lado, os indicadores das condições de existência de sua população refletem concentração de renda e desigualdades sociais. Tomando-se como exemplo os números referentes à educação, veremos que, em 2010, a taxa de escolarização de pessoas de seis a 14 anos de idade era de 61%. Na comparação com o total de municípios do Brasil (5570), Duque de Caxias ocupava a posição 4499º. Já em relação ao Estado do Rio de Janeiro (ERJ), a posição era de 85º dentre 92 municípios. Na RMRJ, que à época contava com 16 municípios, ocupava a 15ª posição. Em 2015, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das séries iniciais de Duque de Caxias era de 4,5. Na comparação nacional, ocupava a posição 3910º. No ERJ, 83º, e na RMRJ (ainda com 16 municípios), 10º. Na análise do Ideb dos anos finais do ensino fundamental, em 2015, em relação ao total de municípios do país, a posição era 4273º; no ERJ, 86º e na RMRJ, 12º.
Esse descompasso entre desempenho econômico e bem-estar social pode ser explicado pelo modo como seu espaço econômico foi construído sob as mesmas premissas que Marini (1990) destaca em relação à inserção da América Latina no mercado mundial. Em outras palavras, a economia de Caxias é perpassada pela superexploração da força de trabalho e pela separação entre a produção e as reais necessidades da população.
Nesse contexto, o trabalho ora apresentado objetivou analisar o processo de inserção dos projetos de investimento social privado e Educação Ambiental em escolas públicas no segundo distrito de Caxias - Campos Elíseos. Procurou-se responder a três questões centrais no âmbito da investigação: I) qual é a lógica dos projetos de Educação Ambiental Empresarial que se tem inserido nas escolas municipais em Duque de Caxias? II) a chegada de tais projetos empresariais colabora na precarização da escola e do trabalho docente? III) a prática da Educação Ambiental Empresarial no interior de escolas municipais fortalece o enfrentamento das questões socioambientais da região?
Quadro Teórico
O quadro teórico pelo qual orientou-se a investigação ancorou-se no materialismo histórico-dialético. A materialidade atual das relações de produção capitalista, consubstanciada por uma miríade de políticas de cunho neoliberal em diversos aspectos da sociedade como a Educação, reafirma a relevância desse instrumental teórico na leitura da realidade e na busca de outra hegemonia.
A Educação Ambiental Crítica (EAC), inserida no campo marxista, pensa o entorno da escola como campo de construção de uma atuação questionadora e participativa dos alunos na gestão ambiental de seu território e ajuíza a Educação enquanto dimensão radical na busca por outra hegemonia. Superar abordagens de Educação Ambiental, apropriadas por interesses das classes dominantes (ou suas frações), não é tarefa trivial. A redução da Educação Ambiental a aspectos instrumentais e comportamentais (LOUREIRO, 2008) leva à despolitização da Educação Ambiental e a um senso moral de responsabilização individual que dissocia os sujeitos de seu contexto histórico. A Educação Ambiental sob a égide das empresas reforça conceitos conservadores em que a sustentabilidade contida em seus projetos não contesta o modelo societário hegemônico (LOUREIRO, 2012).
Nesse sentido, ressalta-se também a importância das formulações e conceitos oriundos da interseção entre os campos da EAC e a Ecologia Política. A Ecologia Política constrói uma crítica fundada nas classes subalternas e suas lutas contra-hegemônicas e advoga a construção de outra sociedade como única forma de garantir condições de existência dignas a toda a humanidade. Dessa forma, Layrargues e Loureiro (2013) destacam que esta aproximação possibilita a análise de como sujeitos políticos, dotados de desigual capacidade de apropriação do território, se organizam para disputar recursos naturais e para produzir e reproduzir sua existência (ACSELRAD, 2004).
As situações de injustiças socioambientais encontradas no entorno do Polo Petroquímico de Campos Elíseos (PPCE)2 remetem ao conceito de “zona de sacrifício”. A degradação socioambiental, à qual parte significativa da população do entorno está submetida, com precárias condições de acesso a água tratada, baixíssimo índice de saneamento, caótico esquema de coleta de resíduos sólidos e enchentes recorrentes, faz com que se possa definir a região como uma zona de sacrifício, ocupada por grupos marginalizados economicamente e vulnerabilizados socioambientalmente.
As discussões envolvendo o conceito de Justiça Ambiental e Educação têm sido alvo de diversos estudos acadêmicos, sobretudo nessas duas primeiras décadas do século XXI. Angeli e Carvalho (2019) desenvolveram uma pesquisa, a partir de metodologia qualitativa baseada na análise documental, envolvendo 23 teses e dissertações escritas no período de 1981 a 2014, que analisou as relações entre Educação e Justiça Ambiental. Entre as conclusões está a de que o traço comum à maioria desses trabalhos acadêmicos é sua criticidade, na medida em que buscam - dentro e fora da escola - a superação do modelo de produção causador das questões socioambientais. Contudo, nenhum dos trabalhos analisados abordou especificamente a atuação de empresas promovendo Educação Ambiental no interior de escolas. Fato esse que reforça a relevância do trabalho aqui exposto.
Em Rios (2011), encontra-se uma investigação baseada nos preceitos da Educação Ambiental Crítica e suas imbricações com o campo da Justiça Ambiental, que abarcou duas escolas municipais situadas no entorno da Reduc (ambas as unidades escolares também foram locus de pesquisa do presente trabalho. Embora não tenha analisado especificamente projetos de empresas ligadas ao Polo Petroquímico no interior das escolas, a autora produziu importantes inferências sobre o objeto: i) nos PPPs das unidades, a Educação Ambiental não aparece de forma sistematizada, tangenciando atividades; ii) existe uma disputa, evidenciada nas respostas dos professores, no âmbito da escola entre os conteúdos programáticos “obrigatórios” e a Educação Ambiental III) o caráter conservador e individualista das atividades citadas pelos docentes, como sendo Educação Ambiental, abarca aspectos comportamentalistas, negligenciando as questões socioambientais do entorno das escolas.
Oliveira (2013), em dissertação, abordou o modo como o refino de petróleo e seus impactos socioambientais são explorados no ensino de química em três escolas públicas no entorno da Reduc. A pesquisa faz emergir em suas considerações aspectos relevantes sobre o ensino de Ciências e a Educação Ambiental praticado nas escolas no entorno da refinaria: i) os professores de ciências, quando abordam o conteúdo de Química, pouco ou nada se referem à atividade de refino de petróleo existente na região; ii) as atividades de EA nas unidades escolares são desenvolvidas de forma pouco sistematizada e, via de regra, atêm-se a aspectos comportamentais; iii) o pouco contato que os alunos têm com questões ambientais referentes ao refino de petróleo vem de atividades desenvolvidas no âmbito das próprias empresas de forma superficial e pouco crítica; iv) a abordagem da EA no ensino de Química na região é bastante escassa entre os professores do ensino de Ciências.
Os trabalhos supracitados se revestiram de importância e se consubstanciaram em importantes colaborações acerca de nosso horizonte teórico, uma vez que trazem como fio condutor dois aspectos relevantes: a) a análise do território que compõe nosso objeto de pesquisa e b) a utilização do conceito de Justiça Ambiental como importante instrumento de mensuração da realidade socioambiental e de superação das relações sociais assimétricas ali existentes. Visto que nenhum grupo social deveria arcar de modo desproporcional com o ônus socioambiental decorrente do modelo de desenvolvimento vigente (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004) e esse tem sido o caso dos grupos sociais que ocupam a vizinhança da Reduc.
Metodologia
No que concerne aos aspectos metodológicos, a opção escolhida foi a da pesquisa qualitativa (MINAYO, 2013), buscando garantir uma abordagem relacional dos fenômenos observados (GIL, 1999), compatível com a perspectiva teórica adotada. Assim, optou-se pelas seguintes estratégias de coleta de dados: a) análise documental, envolvendo os projetos de duas empresas que compõem o Polo Petroquímico de Campos Elíseos (PPCE) - Reduc e Arlanxeo - a partir de relatórios produzidos durante as ações de Educação Ambiental desenvolvidas no interior das escolas e dados coletados nos sites das empresas; b) observação participante envolvendo as atividades de Educação Ambiental desenvolvidas pelas empresas diretamente em três escolas municipais existentes no entorno do PPCE; c) entrevistas semiestruturadas com 11 professoras lotadas nas referidas unidades escolares.
Ressalta-se que a escolha das unidades escolares, objeto de nosso estudo, se deu a partir de um critério que conjugou a exposição das escolas ao risco oriundo das atividades do PPCE (SILVA, 2007) com a existência de projetos de empresas, envolvendo Educação Ambiental, que se desenvolviam nas mesmas. Assim, as unidades eleitas3 conjugaram, simultaneamente, a proximidade com o PPCE e a presença de elementos das empresas no seu cotidiano. Assim, na pesquisa de campo, identificou-se três escolas que se encaixam nos critérios escolhidos, as quais foram designadas, ficticiamente como Alfa, Beta e Gama. Já para a escolha das empresas, percorreu-se o caminho inverso. Ou seja, realizada a escolha das escolas, decidiu-se investigar os projetos das empresas que estavam desenvolvendo Educação Ambiental nas mesmas. Dessa forma, chegou-se à Arlanxeo e Reduc.
Resultados e Discussões
A primeira empresa do polo petroquímico que nossa investigação mostrou desenvolver projeto de Educação Ambiental em escola do entorno foi a Arlanxeo. Trata-se de uma das líderes mundiais na produção de borracha sintética. Com sede na Holanda, possui filiais em nove países (Alemanha, Bélgica, Brasil, Canadá, China, França, Singapura, Suíça e Estados Unidos), com vinte unidades de produção (ARLANXEO, 2018 a; 2018 b). No Brasil, sua principal unidade fabril fica em Campos Elíseos, porém possui outras unidades em Cabo de Santo Agostinho (PE), Montenegro (RS), Nova Santa Rita (RS) e Triunfo (RS). A empresa mantém um relacionamento com as populações circunvizinhas, fortemente marcado pelos preceitos das novas sociabilidades do capital, com promoção de atividades voltadas para o voluntariado, empreendedorismo e com programas de Educação Ambiental mormente desenvolvido em escolas públicas. A empresa desenvolveu, no escopo de suas atividades de Investimento Social Privado (ISP), um programa denominado Ciclo Verde, que teve como uma de suas intervenções o projeto “Um cantinho verde para chamar de nosso”, conjunto de ações desenvolvidas em uma das escolas investigadas na pesquisa. Trata-se da confecção de horta vertical, em tubos de PVC, com a participação dos alunos e professores com o objetivo de “aproximar as crianças do trato com os alimentos, buscando uma mudança de hábitos alimentares e consequente melhora na saúde”.
Além da confecção das hortas, os “educadores ambientais” da empresa proferiram algumas palestras que, embora fossem relevantes do ponto de vista da saúde dos alunos, se mostram generalistas e desconsideram a realidade socioambiental do entorno da escola (alimentação saudável, reutilização de alimentos e Educação Alimentar). Nessas palestras, estavam ausentes questionamentos sobre a dificuldade das condições de existência material dos alunos e suas famílias, bem como as desigualdades socioambientais das comunidades. Outros aspectos, como a precariedade das instalações da escola e a falta de material para o ensino, também não compuseram o “cardápio” das discussões suscitadas por tais palestras.
A entrevista de uma das professoras da escola trouxe elementos para a constatação de que a EA desenvolvida pela Arlanxeo no interior da escola foi perpassada por questões alheias à dinâmica socioambiental do território onde a unidades escolar está inserida.
Pesquisador: E quanto ao projeto da Arlanxeo?
Professora: Sim, foi muito rico. Esse foi a própria escola que mandou o projeto e a empresa abraçou. Nós participamos do planejamento das atividades, e a horta foi um mote, uma coisa central que organizou as atividades e chamou os alunos. Tivemos diversas turmas desenvolvendo atividades como guardiões da horta, o que desenvolveu neles o gosto pela natureza e o espírito de grupo. Foi muito educativo. Trabalhamos reaproveitamento de alimentos e reeducação alimentar [grifo nosso] (Entrevista da Prof.ª. Gama 3)
Entretanto, é a Reduc4 que possui o maior, mais abrangente e sistematizado programa de ISP. A análise do Relatório de Sustentabilidade (RS) da Petrobras do ano de 2017 indicou a existência do Projeto Ações Integradas de Conscientização e Capacitação de Jovens e Lideranças para a disseminação de conceitos e de práticas socioambientais (Educ). O Educ é um projeto que possui intensa capilaridade nas comunidades do entorno da Reduc e atua em duas frentes: i) atividades socioambientais nas comunidades e ii) atividades de Educação Ambiental em escolas municipais da região e entrevistas com docentes nas escolas.
As atividades do Educ pressupõem uma Educação Ambiental cujas ações giram em torno de temas “ecologizados”, que não buscam problematizar a realidade dos alunos ou questionar que tipo de sociedade é geradora de desigualdade e degradação do ambiente, colocando todo o foco nas formas pessoais de mitigação dos problemas socioambientais vivenciados pelos alunos e seus familiares. A entrevista de uma das professoras que leciona em escola onde o Educ era desenvolvido expõe a percepção que tais docentes tem dos efeitos da poluição atmosférica na região, contudo não conseguem problematizar ou questionar a realidade socioambiental do entorno.
Pesquisador: Sobre essas questões ambientais, a gente trabalha numa região onde essas questões são bem latentes, devido ao polo industrial. De alguma forma essas questões perpassam as suas aulas? O seu planejamento anual?
Prof.ª. É muito engraçado porque a gente vê muitas crianças com problemas respiratórios e sempre se leva para outro lado (as causas das doenças). É claro que esse fator ambiental interfere muito por conta da poluição do ar. Então, a gente começa a trabalhar essas questões, a poluição, o que fazer? Eu tenho alguma coisa a fazer? Porque a Reduc já está aqui. E praticamente Campos Elíseos cresceu ao redor dela. Então, eu acho que eles não têm essa consciência (Entrevista da Profª. Beta 1).
Módulo | Tema | Conceitos | Atividades |
---|---|---|---|
Água no Planeta | Natureza e Meio Ambiente | Orgânico e Inorgânico (o meio natural e o meio artificial) | Plantio de Mudas (agroflorestinha) |
Poluição no Ambiente | Solo, Água e Ar | Resíduos Sólidos | Troca de resíduos sólidos por dinheiro de mentira - educoin (Moeda Verde) para a feirinha de livros, jogos e brinquedos. |
FONTE: Elaboração dos autores a partir de comunicação do Projeto Educ em redes sociais.
Depreende-se que o Projeto Educ assume uma opção teórico-metodológica que negligencia as questões socioambientais do entorno da escola. O tratamento fundado em aspectos fenomênicos da crise ambiental, sem relacioná-los à crise estrutural do modo de produção capitalista, é característica marcante desse modelo empresarial conservador de Educação Ambiental. Durante a observação das atividades nas escolas, esses aspectos ficaram evidenciados. Ainda que apontados nas entrevistas por quase a totalidade das professoras como atividades que consideravam as questões socioambientais do entorno, as atividades não se desdobraram para esses aspectos, ficando restritas a aspectos comportamentais e individualizados da questão ambiental.
O olhar das professoras sobre os projetos de Educação Ambiental Empresarial
Na Escola Municipal Alfa, estavam sendo realizadas ações do projeto Educ5. No que se refere à autonomia, as três docentes responderam que não vislumbram perda de autonomia com a chegada dos projetos das empresas.
Pesquisador: O que acha do projeto Educ?
Profª.: O projeto é importante, pois ajuda na conscientização dos alunos sobre as questões ambientais
Pesquisador: Como a senhora vê a questão da autonomia da escola e dos professores frente a projetos vindos “de fora da escola” como o Educ?
Profª.: Não vejo problemas. Inclusive participei do planejamento do Educ.
Pesquisador: Qual foi sua participação nesse planejamento?
Profª.: Nos apresentaram as atividades propostas para os alunos
Pesquisador: A senhora sugeriu atividades? Questionou alguma delas? Interferiu de algum modo?
Profª.: Não, porque achei tudo muito bom. Um conteúdo muito rico para os alunos. (Entrevista da Profª. Gama 2).
Contudo, nenhuma das três participou da elaboração ou do planejamento das atividades. Com relação à precarização, as três entrevistadas afirmam que os projetos não precarizam ou expropriam o trabalho docente, uma vez que trazem “algo novo” para o interior da escola. Já o quesito “aproveitamento de questões socioambientais como temas geradores” foi apontado por todas como existente no bojo das ações, uma vez que trabalham a consciência dos alunos e temas como aquecimento global, desmatamento e reciclagem.
O Educ também estava sendo empreendido na Escola Municipal Beta no mesmo período das demais. No que se refere à autonomia docente, as entrevistas revelaram que a escola não mantém qualquer ingerência sobre o planejamento ou conteúdo executado no projeto.
Pesquisador: Como a senhora vê a questão da autonomia da escola e dos professores frente a projetos vindos “de fora da escola” como o Educ?
Profª.: A escola não mantém, nem nunca manteve nenhuma autonomia em relação aos projetos e ações das empresas aqui.
Pesquisador: Qual foi sua participação nesse planejamento?
Profª.: Nenhuma.
Pesquisador: A senhora sugeriu atividades? Questionou alguma delas? Interferiu de algum modo?
Profª.: Não, não fui solicitada. (Entrevista da Profª. Beta 2).
No tocante à precarização, uma professora não soube responder; uma professora não vê aumento de precarização ou expropriação do conhecimento do professor e três professoras apontam que os projetos colaboram para a precarização da escola, criando “ilhas de estrutura” no interior da unidade. Duas dessas professoras também salientaram que não é dada qualquer relevância ao conhecimento que os professores constroem no cotidiano da escola e que muitas vezes esses projetos são tocados por ONGs que só utilizam o espaço e desconsideram completamente o conhecimento do professor.
Pesquisador: Conhece o Projeto Educ?
Beta 3: Muito pouco, mas me parece “mais do mesmo”.
Pesquisador: Estando há tanto tempo na escola, o que você pode falar sobre os projetos e ações de empresas dos quais participou ou presenciou?
Beta 3: A Petrobras já foi muito mais atuante nas escolas; atualmente os projetos são focais e diminuíram muito.
Beta 3: O número de alunos com doenças respiratórias é enorme, sobretudo no inverno.
Pesquisador: E quanto à autonomia da escola e dos professores frente aos projetos, o que você pode dizer?
Beta 3: Autonomia muito restrita. Projetos chegam prontos.
Beta 3: Projetos não consideram a dinâmica da escola, não conhecem a rotina e a autonomia pedagógica.
Beta 3: É visível que houve uma diminuição nos projetos e nas atividades, antigamente tínhamos dois, três por ano, Dia do Livro, Dia do Folclore, do Índio, do Meio Ambiente.
Sandra: Agora chegam aqui, de vez em quando, com essas ONGs que trazem projetos prontos, não conhecem a escola, com atividades completamente descontextualizadas. Economia de água para crianças que nem abastecimento têm em casa, não aproveitam uma linha do conhecimento dos professores construídos no dia a dia com os alunos e a comunidade (Entrevista com Profª. Beta 3).
Relativo à utilização de questões socioambientais como temas nesses projetos, duas professoras afirmaram que “sim, eles inserem”. Apontando o tema aquecimento global como exemplo, as outras três professoras afirmam que “não há” nenhuma referência a temas relevantes para a população, como a dificuldade de acesso à água e a quantidade significativa de alunos que se afasta periodicamente da escola por problemas respiratórios. Uma dessas afirma que o Educ é totalmente descontextualizado e trabalha questões estranhas aos alunos.
Na Escola Municipal Gama, três professoras foram entrevistadas. A unidade contava à época com as atividades do Projeto Ciclo Verde: Horta Vertical da empresa Arlanxeo. A escolha da escola por parte da empresa tem a peculiaridade de se desdobrar em um processo robusto de estreitamento das relações dessa empresa com a unidade escolar, o que se reflete no “financiamento” pela empresa da construção/reforma de novas salas no prédio da unidade escolar.
No que se refere à autonomia, as três professoras afirmaram que tiveram total autonomia, uma vez que foi a própria escola que elaborou o projeto. Afirmaram também que a empresa só enviou seus educadores ambientais para trabalhar temas ligados ao meio ambiente. Quanto à precarização, as três professoras apontam que existe, tanto da escola, quanto do trabalho do professor.
Pesquisador: E quanto ao projeto da Arlanxeo?
Professora: Ah, esse é completamente diferente. Nesse projeto, tivemos liberdade para integrar o planejamento. Inclusive integrando ao nosso planejamento anual. Minha turma participou com “Os contos que a floresta conta”, falando sobre alimentação saudável e famílias que têm tradição de trabalhar com ervas medicinais. Foi muito bom e enriqueceu muito minhas aulas. A empresa foi muito parceira e gostou tanto do resultado que voltou e está ajudando a escola nas reformas de algumas salas de aula (Entrevista da Profª. Gama 2).
Contudo, afirmam que a empresa foi parceira, revitalizando alguns espaços e construindo outros para as atividades escolares. As três professoras reiteraram que a precarização maior veio da Secretaria Municipal de Educação (SME), que “não fez nada”. Por fim, ao referirem-se às questões socioambientais abordadas pelo projeto, as três professoras afirmam que elas estavam contidas nas ações. Segundo elas, temas como o aquecimento global, a reciclagem de materiais, o reaproveitamento de alimentos e a reeducação alimentar foram preferenciais no projeto e lhe conferiram uma vertente socioambiental.
O espaço da Educação Ambiental no interior da escola: precarização do trabalho docente e apagamento das questões socioambientais no processo educacional
A precarização das condições de trabalho, aliada à própria precarização que vem sendo imposta às classes trabalhadoras no atual movimento de reconfiguração burguesa, ficou bastante caracterizada nas unidades escolares pesquisadas. Destaca-se a falta de autonomia docente frente aos projetos empresariais. Não obstante a maioria das professoras entrevistadas afiançar a autonomia permitida pelos projetos, ficou evidente que raramente essas professoras participaram da elaboração ou planejamento das ações. Ainda assim, quando o fizeram, foi de forma limitada e parcial.
Tal fato se deve ao projeto ter sido elaborado na escola. Contudo, pode-se perceber na análise que a participação dos técnicos e educadores ambientais enviados pela empresa direcionou as atividades para a construção de valores caros à empresa,como a responsabilização individual pelos danos ambientais e uma invisibilização das questões socioambientais, retirando a atividade industrial da região da condição de agente da degradação ambiental e socioeconômica que afeta a população local.
A aceitação de uma “autonomia relativa” se relaciona diretamente com a questão da precarização das condições materiais da escola. Mesmo na unidade escolar Gama, onde o projeto de Educação ambiental foi elaborado pelos docentes, o planejamento bimestral das turmas que participaram das ações foi adaptado às atividades formuladas pelos educadores ligados à empresa. Até mesmo atividades de formação para os professores. Por outro lado, percebeu-se uma adesão “pouco crítica” dos profissionais às ideias apregoadas pela empresa, que passam pela conciliação, voluntarismo e empreendedorismo.
Outro aspecto relevante que emergiu da investigação foi a precarização do trabalho docente, acrescida da expropriação do conhecimento que essas professoras acumularam no cotidiano e na interação com os alunos e as comunidades onde estão inseridas as escolas. O escopo do projeto Educ evidencia essa precarização/expropriação. São os educadores designados pela coordenação do projeto que desenvolvem as atividades com os alunos, restando aos regentes das turmas a condição de expectadores e de eventuais “fortalecedores” das ideias e conceitos trabalhados em tais atividades. Tal situação expõe o não reconhecimento da centralidade do professor no processo educativo. Esse processo não é percebido da mesma forma entre todas as entrevistadas.
A atuação da SME, no que tange as questões dos projetos de Educação Ambiental nas escolas, foi criticada em algumas das entrevistas das professoras. Nesse sentido, observaram-se duas “linhas de atuação” da SME: a) sua ausência na articulação desses projetos com o processo educativo desenvolvido no interior das escolas; b) sua conivência com a atuação de ONGs na operacionalização de tais projetos nas unidades escolares.
Nota-se também que a delegação de parte das funções do Estado a organizações da sociedade civil tonifica, no âmbito da escola, uma “pedagogia do mercado” (SANTOS, 2012), que redunda no sucateamento das escolas, na precarização do trabalho dos profissionais da Educação (terceirizações, contratações e outros) e que afirma o discurso da eficiência, da racionalização de recursos e da competência empresarial.
O arranjo que articula a chegada dos projetos de Educação Ambiental das empresas às escolas formata uma esfera de aceitação das populações diante do projeto de desenvolvimento em curso, como se não houvesse alternativa, conformando o território em torno de um projeto classista que materializa as desigualdades e as injustiças ambientais. As atividades efetuadas tanto pelo projeto Educ quanto pelo Ciclo Verde apresentaram uma visão ideologizada6 da escola, com uma abordagem fenomênica da questão ambiental, sem tratar dos conteúdos que permitem compreender as determinações sociais dos problemas ambientais e a importância das lutas sociais e do debate público para uma gestão democrática do ambiente.
Tal aspecto se evidencia na tipificação das atividades dos projetos: reciclagem, reeducação alimentar, economia de água, entre outras. Decorre dessa visão hegemônica da Educação Ambiental a ausência entre as atividades de conflitos e problemas socioambientais existentes no entorno das escolas. As entrevistas com professores de escolas municipais em Duque de Caxias apontam para a importância dada por esses docentes à sustentabilidade no cotidiano escolar. Entretanto, também deixam transparecer uma instrumentalização da Educação e da Educação Ambiental, à medida que resumem o processo educacional à “transmissão de conhecimentos”, e a dimensão ambiental a um “adestramento” comportamental, sem discutir criticamente esses conhecimentos e comportamentos.
Sob o pretexto da baixa escolaridade e a falta de profissionalização, poucos moradores do entorno trabalham na Reduc ou em suas terceirizadas, o que constitui outra injustiça social, já que são estes que suportam a maior carga de rejeitos desse modelo de desenvolvimento. Desse modo, a ausência das questões ambientais do entorno das escolas (Tabela 2) confirma que os projetos das empresas adentram as escolas lastreados por concepções de Educação Ambiental de cunho conservacionista e ecoeficiente (ALIER, 2017), alinhados com o modelo de produção vigente.
Problema Socioambiental | Consequências |
---|---|
Poluição do ar | Elevada incidência de doenças respiratórias na população. |
Dificuldades de acesso a água potável | Prejuízo à saúde da população em geral, com incidência de diversas doenças. |
Poluição dos rios | Degradação dos corpos hídricos, disseminação de doenças na população, degradação da Baía de Guanabara. |
FONTE: elaboração dos autores a partir de dados obtidos em PUGGIAN & RAULINO, 2015; VILLAÇA, 2011 e FIOCRUZ, 2019.
Dessa forma, ao compararem-se as atividades de Educação ambiental efetivamente desenvolvidas nas escolas com as questões socioambientais que existem no território duquecaxiense, eclodem contradições e questionamentos quanto à prática da Educação Ambiental no interior das unidades escolares. Há uma evidente dissociação entre as ações implementadas pelas empresas e o entendimento das intrincadas relações entre os aspectos ecológicos e político-econômicos da questão ambiental (LAYRARGUES, 1999). Assim, considera-se que é nas relações entre a Educação Ambiental e os conhecimentos surgidos nas lutas sociais cotidianas, mormente aquelas ligadas à busca por justiça ambiental, que a práxis educativa pode se construir sobre bases transformadoras.
Considerações Finais
Duque de Caxias abriga uma série de problemas socioambientais que contribuem sobremaneira para a deterioração das condições de vida dos trabalhadores. Historicamente, o seu território tem sido ocupado por atividades que não priorizam a garantia de direitos sociais de sua população. Nesse sentido, a presente investigação revelou que o cenário da Educação Ambiental nas escolas do entorno da Reduc é dominado por uma dupla determinação: i) ações de cunho pontual, voltadas para estímulo à adoção de comportamentos individuais, levadas a cabo em datas específicas, como o Dia da Árvore ou o Dia do Meio Ambiente; ii) projetos de Educação Ambiental concebidos e operacionalizados por algumas empresas, como a Reduc e a Arlanxeo.
Destaca-se que parte significativa da população de Duque de Caxias é submetida a um processo de deterioração das condições materiais de vida, inclusive quanto ao direito a um ambiente sadio e equilibrado. Ainda assim, a ênfase das atividades de Educação Ambiental, levada a cabo pelas empresas no interior das unidades escolares, desconsidera o cotidiano de negação do direito constitucional da população a um ambiente saudável. As atividades de educação ambiental desenvolvidas por empresas nas escolas obedecem a uma lógica mercadológica que entende tais atividades como “ativos”, elencando as mesmas em seus Relatórios de Sustentabilidade sob a rubrica “Investimento Social Privado”, que agrega maior valor de mercado aos seus produtos e serviços. Por outro lado, foi possível inferir que a introdução de tais projetos nas escolas colabora para escamotear a precarização estrutural e pedagógica das unidades, uma vez que se utilizam de recursos fornecidos pelas empresas exclusivamente para suas atividades e não consideram o conhecimento produzido no cotidiano da escola por professores e alunos.
Outro aspecto importante, revelado sobretudo durante a observação, foi a prevalência entre as professoras, de concepções enraizadas na Educação Ambiental conservadora, hegemônica no arcabouço teórico e metodológico dos projetos empresariais.
Por certo, as questões objetivas do cotidiano das escolas dificultam a construção de uma práxis de Educação Ambiental Crítica. Uma vez que, diante de dificuldades materiais, inadequação de carga horária e perda gradual da autonomia, este (a) professor (a) submetido (a) a processos de gerenciamento de suas atividades (muitas vezes reduzido(a) a um (a) executor (a) de tarefas preestabelecidas) acaba por se filiar a uma visão conservadora de EA.
Tal constatação remete à importância de uma Educação Ambiental articulada às lutas por Justiça Ambiental. A partir da premissa de que nenhum grupo social deve arcar de modo desproporcional com o ônus socioambiental, reproduzindo espacialmente as desigualdades, cria-se a possibilidade de construir uma práxis educativa questionadora das relações sociais de produção e que aponte em direção à edificação de uma outra hegemonia. E, para tanto, a luta em defesa da escola pública, autônoma e laica, e da valorização da carreira e do trabalho docente são condições para a materialização de uma Educação Ambiental crítica que possa contribuir para a superação das formas alienadas de relações sociais e com a natureza que se estruturam no marco da sociedade capitalista.