Introdução
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) integrou-se, legalmente, aos diferentes níveis e modalidades da educação brasileira a partir da publicação da Lei nº 11.741, de 16 de julho de 2008. Esta lei, ao alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), definiu que a EPT contempla: (a) os cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional, (b) os cursos de educação profissional técnica de nível médio (integrado, concomitante ou subsequente ao ensino médio) e, (c) os cursos de educação profissional tecnológica de graduação e pós-graduação (BRASIL, 2008).
A partir de 29 de dezembro de 2008, com a publicação da Lei nº 11.982, que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RPECT) e criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) o país passou por um grande processo de expansão da EPT. Dados do Ministério da Educação (MEC) dão conta de que, de 1909 a 2002, foram construídas 140 escolas técnicas no país e, somente entre os anos 2003 a 2016, foram construídas outras 504 novas unidades, totalizando 644 unidades em funcionamento nos 26 estados da união e no Distrito Federal (BRASIL, 2020).
Em decorrência dessa expansão, muitas vagas para o exercício da docência na EPT foram criadas. Estas vagas foram e vêm sendo ocupadas por profissionais que possuem formação inicial em cursos de Licenciatura, Bacharelado e Cursos Superiores de Tecnologia. São graduados, especialistas, mestres e doutores nas mais diversas áreas do conhecimento que assumiram a profissão docente, por vezes, sem formação para a docência.
Neste sentido, Helmer e Reyes (2015) destacam que, dos professores da EPT, exige-se uma bagagem de conhecimentos complexa, que os permita transitar pelos diferentes níveis de ensino sem maiores dificuldades já que, em função da verticalização do ensino, própria da natureza dos IFs, ele precisa ministrar aulas desde a educação básica até a educação profissional e educação superior de graduação e pós-graduação.
É, portanto, com o olhar voltado às características próprias do trabalho docente na EPT, às particularidades que advém dos contextos das áreas específicas de atuação, à complexidade das relações/mediações humanas e, aos movimentos permanentes do mundo do trabalho, que este estudo se dedica.
Preocupa-se, especialmente, com as especificidades da docência na EPT a partir da percepção de professores licenciados e não licenciados que atuam nos IFs, buscando compreender o lugar da formação inicial na superação dos desafios inerentes (e impostos) à docência uma vez que, conforme afirma Machado (2008, p. 18):
[...] é pressuposto básico que o docente da educação profissional seja, essencialmente, um sujeito da reflexão e da pesquisa, aberto ao trabalho coletivo e à ação crítica e cooperativa, comprometido com sua atualização permanente na área de formação específica e pedagógica, que tem plena compreensão do mundo do trabalho e das redes de relações que envolvem as modalidades, níveis e instâncias educacionais, conhecimento da sua profissão, de suas técnicas, bases tecnológicas e valores do trabalho, bem como dos limites e possibilidades do trabalho docente que realiza e precisa realizar.
É diante dessas considerações que esta investigação se constrói, ou seja, dando espaço às vozes dos professores licenciados e não licenciados que atuam na EPT, buscando apresentar especificidades da docência com vistas a contribuir com a construção de referenciais teóricos sólidos e, ainda, fortalecer o debate sobre a formação de professores para a EPT no Brasil.
Como destaca Teixeira (2009, p. 32), à docência é uma construção a partir de múltiplos condicionantes, por tal razão
[...] é preciso romper com a cultura do “ensino porque sei” para “ensino porque sei e sei ensinar” e, assim, construir uma outra perspectiva que promova uma formação de professores pautada nos diferentes saberes: sólidos conhecimentos da área específica e igualmente sólidos conhecimentos da área pedagógica.
Por se tratar de um tema abrangente, para a sua produção foram demarcadas as seguintes categorias: a) desafio de construir o conhecimento pedagógico do conteúdo para a EPT e, b) desafio de constituir a identidade docente da EPT nos IFs.
Desse modo, o trabalho toma como base estudos de autores/pesquisadores nacionais e estrangeiros que tratam da temática, assim como dados empíricos que foram coletados no corpus constituído pela narrativa de 25 professores de EPT em 04 IFs das regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país, constituindo-se, portanto, num trabalho envolvido por uma abordagem narrativa-qualitativa.
Ele está organizado em três seções: inicia apontando o percurso metodológico trilhado na investigação e na segunda seção delineia os resultados e discussões, destacando as categorias demarcadas neste estudo que compreende: domínio dos conhecimentos da área de formação e advindos da experiência, formação pedagógica e a importância do “como ensinar” e características pessoais do professor. Por fim, são discorridas as considerações finais do estudo produzido.
O caminho do fazer
O estudo tratou de identificar, nas narrativas de professores licenciados e não licenciados, respostas para as seguintes questões: (a) Há diferenças entre atuar na EPT e em outras modalidades de ensino? Quais são essas diferenças? e, (b) Quais os principais desafios enfrentados na docência da EPT? Quais recursos são utilizados para enfrentá-los?
Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pela investigação pautada em uma abordagem de cunho narrativo, com base nos estudos de Connelly e Clandinin (1995) e Goodson (2004) uma vez que, em relação às narrativas, Cunha (1997, p. 186) aponta que “[...] o fato da pessoa destacar situações, suprimir episódios, reforçar influências, negar etapas, lembrar e esquecer, tem muitos significados e estas aparentes contradições podem ser exploradas com fins pedagógicos”. O relato de fatos e experiência vividos permite momentos de re-ver o percurso, reconstruir o caminho de forma reflexiva e assim implica num exercício de compreensão da prática.
Sendo assim, a partir da interpretação de narrativas é possível revelar conhecimentos mais próximo ao mundo da vida dos professores e as realidades educativas nas quais estes sujeitos estão inseridos. Busca-se, com a interpretação e a análise das narrativas dos professores, compreendê-los enquanto indivíduos e profissionais, dando valor às experiências formativas e profissionais por eles vivenciadas.
Como aponta Cunha (1997)
O professor constrói sua performance a partir de inúmeras referências. Entre elas estão sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço. Provocar que ele organize narrativas destas referências é fazê-lo viver um processo profundamente pedagógico, onde sua condição existencial é o ponto de partida para a construção de seu desempenho na vida e na profissão (CUNHA, 1997, p. 189).
Ao estimular a narrativa, estimula-se ao mesmo tempo estabelecer em diálogo o profissional e o pessoal. E Nóvoa, (1992) em “Vidas de professores” enfatiza diversas vezes essa imbricação das dimensões pessoais e profissionais, afirmando que
[...] esta profissão precisa de se dizer e de se contar: é uma maneira de a compreender em toda a sua complexidade humana e científica. É que ser professor obriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser (NÓVOA, 1992, p. 9).
E quando os sujeitos da pesquisa são os professores da EPT, cabe com pertinência as indagações de Nóvoa (1992, p. 16): “[...] como é que cada um se tornou professor que é hoje? E porquê? De que forma a acção pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor?”. Nesta direção, a partir das narrativas dos professores participantes deste estudo, foi possível compreender, algumas particularidades da docência da EPT nos IFs e o lugar da formação inicial na “superação dessas singularidades”. Arnaus (1995) considera a dinâmica entre os que contam (narram, a partir de suas interpretações individuais, suas histórias) e os que interpretam (a partir da narração/interpretação realizada pelos contadores) como um movimento de dupla direção. Desta forma, as narrativas docentes, apresentam um diálogo interdiscursivo e intersubjetivo que possibilita a compreensão mais precisa do processo de constituição docente para a EPT e dos desafios inerentes (e impostos) à profissão.
A entrevista narrativa fez uso de questionamentos guia para orientar as narrativas docentes e, para a interpretação analítica das narrativas dos professores, optou-se pela Análise Textual Discursiva (ATD). (MORAES; GALIAZZI, 2016).
Foram sujeitos da pesquisa 25 professores, nomeados como PL (professor licenciado) e PNL (professor não licenciado) seguido de um número de 1 a 25. Estes professores pertencentes ao quadro docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas Gerais (IFNMG) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS).
Acerca dos sujeitos investigados, destaca-se:
Quanto ao sexo: 14 narrativas identificaram-se como o sexo masculino e 11 com o sexo feminino, totalizando 56% de homens e 44% de mulheres.
Quanto de idade: de 21 a 30 anos, foram 12%, de 31 a 40 anos, 48%, de 41 a 50 anos, 32% e acima de 50 anos, 8%.
Quanto ao tempo docência: de 1 a 5 anos, 16%, de 6 a 10 anos 12%, de 11 a 15 anos, 32%, de 16 a 20 anos, 12 % e mais de 21 anos, 28%.
Quanto ao curso de formação inicial: Administração, Agronomia, Ciência e Tecnologia, Ciências Contábeis, Ciências Agrícolas, Ciências Sociais, Ciências Biológicas, Ecologia, Engenharia Civil, Educação Física, Enfermagem, Filosofia, Geografia, Letras, Pedagogia, Publicidade e Propaganda, Teologia.
Quanto ao nível de formação: 24% são especialistas, 40% são mestres e 26% são doutores.
Quanto aos cursos em que leciona: (a) Técnico em Administração, Edificações, Eletrotécnica, Segurança do Trabalho, Informática, Agropecuária, Cozinha, Confeitaria e Recursos Pesqueiro; (b) Técnico Integrado em Agropecuária, Sistemas de Energia Renováveis, Vendas, Informática, Agroecologia, Agroindústria, Química, Meio Ambiente e Agrimensura; (c) Bacharelado em Engenharia Civil, Engenharia Química, Ciência da Computação, Engenharia Elétrica, Administração e Agronomia; (d) Tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Gestão do Turismo, Hotelaria e Gestão Ambiental; (e) Licenciatura em Matemática, Física, Química, Pedagogia e Ciências Biológicas; (f) Pós-Graduação lato sensu em Gestão Escolar e Desenvolvimento Regional e Sustentabilidade e, (g) Pós-Graduação stricto sensu em Mestrado em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) e Mestrado em Ensino de Ciências.
Quanto à Graduação: 11 professores são bacharéis, equivalendo a 44%, 6 professores são licenciados, equivalendo a 24% e, 8 professores são licenciados e bacharéis ou tecnólogos, equivalendo a 32%.
O procedimento para a análise das entrevistas narrativas foi descrito a partir dos seguintes momentos: (a) desmontagem dos textos (unitarização), (b) estabelecimento de relações (categorização) e, (c) captação do novo emergente (construção de metatextos) (MORAES; GALIAZZI, 2016).
No primeiro momento, marcado como o caminho para o caos, ocorre a desmontagem dos textos. Chamado de unitarização, permite o exame do material coletado em seus detalhes podendo, inclusive, fragmentá-lo para alcançar as unidades que o constituem, levando em consideração os interesses da pesquisa (MORAES, 2003).
Chamado de categorização, o segundo momento é destinado ao estabelecimento de relações entre as unidades de base criando, então, categorias ou conjuntos mais complexos de dados. É a partir da comparação e do agrupamento, com a seleção de dados organizados conforme características semelhantes que é possível avançar para o terceiro momento da ATD, ou seja, a elaboração do metatexto.
Para Moraes e Galiazzi (2016), os metatextos buscam articular teoricamente as categorias emergentes num movimento recursivo que amplia a compreensão do objeto de pesquisa e são produzidos a partir da combinação da unitarização e da categorização representando um esforço para tornar explicita a compreensão que se apresenta como produto de uma nova combinação dos elementos.
Os dados foram coletados entre os meses de outubro e novembro de 2019. Na sequência, foram transcritos, unitarizados e categorizados a fim de serem analisados, à luz das teorias emergentes e, transformados em metatextos, conforme segue.
Materializando os Resultados
As narrativas foram analisadas, como já mencionado, de acordo curso de graduação realizado (Bacharelado, Licenciatura ou Tecnólogo) e numerados de 1 a 25.
Do processo de unitarização, considerando o objetivo da pesquisa, observou-se os seguintes resultados:
- Os professores licenciados (PL) destacaram que os desafios para a docência na EPT residem em: Relacionar teoria e prática. Possuir conhecimentos didáticos. Criar identidade de EPT. Cursos de licenciatura não discutem EPT. Compreender o que é a EPT. Falta capacitação para atuar na EPT. Integração curricular. Formação continuada para a EPT e não apenas capacitação para a iniciação à docência na EPT. Preparação de material direcionado para cada curso. Seleção e apresentação dos conteúdos. Saber aproveitar os conhecimentos prévios dos estudantes. Conhecer a realidade do mercado de trabalho. Descomprometimento dos estudantes. Evasão. Planos de governo vivenciados. Ausência de política de formação continuada para professores. Criar o protagonismo discente. Atuar com estudantes com deficiência. Falta de autonomia dos estudantes. Forte responsabilidade e compromisso com a formação que confere uma atribuição profissional. Utilização das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Avaliação da aprendizagem.
- Os professores não licenciados (PNL) apresentaram, como desafios da docência: Relacionar teoria e prática. Conscientizar estudantes sobre a responsabilidade técnica da profissão. Infraestrutura para aulas práticas. Adequar aulas ao mercado de trabalho. Constituir-se professor sem formação pedagógica e conhecimento da EPT. Heterogeneidade do público. Preparação de aulas para cursos técnicos sendo Engenheiro. Planejamento coletivo. Variedade de cursos e modalidades que atua para organizar as aulas. Entender a função social do professor EPT. Ausência de método de ensino. Falta de formação pedagógica. Identificar melhores metodologias. Fazer os estudantes perceber a importância da formação profissional. Adaptação às modalidades de ensino. Trato com os estudantes das diferentes modalidades.
A partir da unitarização foi possível tecer o segundo e o terceiro momento da ATD: a categorização e a construção do metatexto. Foram criadas duas categorias fundamentais e um núcleo fundante: (a) Categoria 1: desafio de construir o conhecimento pedagógico do conteúdo para a EPT, (b) Categoria 2: desafio de constituir a identidade docente da EPT e, (c) Núcleo Fundante: importância da formação para a docência em EPT.
A categoria 1, desafio de construir o conhecimento pedagógico do conteúdo para a EPT manifesta o que Shulman (1987) chama de “[...] capacidade de um professor para transformar o conhecimento do conteúdo que ele possui em formas pedagogicamente poderosas e adaptadas às variações dos estudantes levando em consideração as experiências e bagagens dos mesmos” (SHULMAN, 1987, p. 15).
Para Shulman, é essa capacidade que distingue um professor de um especialista em uma área específica. Para ele, o conhecimento pedagógico do conteúdo é aquele conhecimento que vai além do conteúdo ensinado, “as formas mais úteis de representação dessas ideias, as analogias mais poderosas, ilustrações, exemplos e demonstrações - numa palavra, os modos de representar e formular o tópico que o faz compreensível aos demais” (SHULMAN, 1986, p. 9).
Nesta direção é possível refletir sobre a metodologia de problematização do conhecimento, sobre a recontextualização enquanto conceitos importantes para a compreensão do movimento de textos e práticas de um contexto primário de produção discursiva para um contexto secundário de reprodução discursiva, como aponta Bernstein (1990) ou como aponta Chevallard naquilo que denomina de transposição didática.
Un contenido de saber que ha sido designado como saber a enseñar, sufre a partir de entonces un conjunto de transformaciones adaptativas que van a hacerlo apto para ocupar um lugar entre los objetos de enseñanza. El “trabajo” que transforma un objeto de saber a enseñar em un objeto de enseñanza, es denominado de transposición didáctica (CHEVALLARD, 2000, p. 45).
E continua Chevallard (2000, p.50) afirmando que “del objeto de saber al objeto de enseñanza, la distancia es, com mucha frecuencia, inmensa”.
Neste sentido, as narrativas docentes destacam aspectos que vão ao encontro da necessidade de que sejam construídos conhecimentos pedagógicos do conteúdo para a docência na EPT, conforme pode-se observar: “[...] há algumas dificuldades em entrar na sala de aula, estabelecer metodologias, de definir os aspectos pedagógicos do curso [...]” (PNL14). “[...] o maior desafio é preparar as atividades [...] você vem com um conhecimento, que a princípio era correto para a Engenharia [...] a visão de que o currículo do técnico não é um currículo resumido da graduação e sim totalmente outra coisa dá trabalho” (PNL7). “[...] montar um material específico diferencial que atende as necessidades do curso [...] aplicar a cada curso” (PL8). “[...] compreender qual é a melhor forma de fazer a abordagem das temáticas em cada segmento” (PL11). “[...] integrar as disciplinas de formas que as disciplinas conversem, de forma que a escola converse com esse contexto regional, político, cultural, ambiental, socioeconômico [...]” (PL16). “[...] introdução da tecnologia [...] muitos de nós professores não estão preparados” (PL24). “[...] como trazer, ao máximo, a teoria de uma maneira prática para os alunos” (PNL2). “[...] Trazer a realidade do aluno e do mundo do trabalho para os conteúdos ministrados. [...] precisa aproveitar o conhecimento dos estudantes e avançar e não passar mais do mesmo” (PL9), “As pessoas têm diferentes aptidões e a gente acaba avaliando todos da mesma maneira, mesmo que a gente diversifique as formas de avaliação, naquele momento todos estão sendo avaliados pelo mesmo critério [...] mensurar de uma forma mais justa” (PL24).
Para Marcelo (2005) toda profissão possui um corpo de conhecimentos particulares, que a delimita e identifica seus agentes como detentores desses conhecimentos e, assim, garante que possam exercê-la, com propriedade. Embora o conhecimento do conteúdo específico seja primordial para o exercício da docência, seu domínio é apenas parcela da natureza do ser professor. Assim, para Fernandez (2015, p. 504), “a competência pedagógica está atrelada a um conteúdo específico que é transformado, levando em consideração as dificuldades dos alunos com esse conteúdo, o contexto, as estratégias instrucionais, os modos de avaliação, o currículo, os objetivos, etc.”.
Nos elementos destacados nas narrativas docentes, é possível detectar elementos que permitem dialogar com Libâneo (2001) ao realçar a necessidade de uma “direção pedagógica” (intencional, consciente, organizada) para converter as bases da ciência em matéria de ensino, pois
[...] converter a ciência em matéria de ensino, é colocar parâmetros pedagógico-didáticos na docência da disciplina, ou seja, juntar os elementos 1ógico-científicos da disciplina com os político-ideológicos, éticos, psicopedagógicos e os propriamente didáticos. Isso quer dizer que para ensinar Matemática não basta ser um bom especialista em Matemática, é preciso que o professor agregue o pedagógico-didático, ou seja, que tenha em mente as seguintes indagações: que conteúdos da Matemática-ciência devem se constituir na Matemática-matéria de ensino, visando a formação dos alunos? A que objetivos sociopolíticos serve o conhecimento escolar da Matemática? Que representações, atitudes e convicções são formadas em cima do conhecimento matemático? Que habilidades, hábitos, métodos, modos de agir, ligados a essa matéria, podem auxiliar os alunos a agirem praticamente frente a situações concretas da vida? Que sequência de conteúdos é mais adequada à aprendizagem dos alunos, considerando sua idade, nível de escolarização, conceitos já disponíveis dos alunos etc.? (LIBÂNEO, 2001, p. 9).
Pesquisas analisadas (SPESSATTO; CARMINATI, 2018; URBANETZ, 2012), entre outras) enfatizam as questões didáticas e pedagógicas como fundamentais na formação de professores para a EPT dadas as especificidades de ensinar nessa modalidade de ensino, seja como formação inicial ou, no caso daqueles que já atuam na área, na formação continuada. Para o momento elegeu-se um diálogo com Barros e Dias (2016) sobre a necessidade dessa formação pedagógica para docência, pelo fato dessas autoras trazerem “um estado da questão” pesquisando Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Biblioteca Digital Brasileira de Dissertações e Teses (BDTD), no período de março a abril de 2014 e também uma busca em artigos de revistas e eventos científicos, em maio de 2014. Ao analisarem as contribuições de pesquisas brasileiras sobre formação pedagógica do professor bacharel, concluem “[...] que esse profissional deve possuir conhecimentos pedagógicos e que é necessário o aprofundamento de estudos em busca de soluções para essa situação” (BARROS; DIAS, 2016, p. 42). Como é possível perceber, há uma ênfase nos autores aqui convidados para o diálogo, na necessidade de formação pedagógica dos bacharéis para o exercício da docência e especialmente docência na EPT.
E, para finalizar estas reflexões cabe mencionar nessa caminhada a localização de apenas um único artigo (VOLPATTO, 2009) que destaca as marcas de profissionais liberais que se tornaram referência na docência no ensino superior (Direito, Engenharia Civil e Medicina). Na perspectiva dos estudantes, sujeitos da pesquisa, há um destaque para a importância da inserção profissional do docente, suas metodologias, atitudes e posturas pessoais. Para o autor “[...] 58% dos alunos apresentaram questões relacionadas à didática/metodologia de ensino como razões da escolha do professor-referência” (VOLPATTO, 2016, p. 338), utilizando várias expressões que demonstram a abrangência dos aspectos didáticos e metodológicos valorizados por eles nos professores destes cursos. Ele destaca também “características referentes a atitudes e qualidades pessoais dos professores”. Os estudantes sujeitos da pesquisa, destacam ainda a “boa didática” a capacidade do professor “relacionar teoria e prática”, trazendo “fatos concretos do campo profissional para serem pensados e analisados em sala de aula” (p. 339).
Pelo exposto nas narrativas dos professores, cruzadas com a contribuição das pesquisas é possível perceber que das dificuldades e desafios postos no exercício da docência, especialmente aqueles relacionados com as questões teórico-metodológicas, sobressaem elementos que sinalizam o anúncio de um processo de construção de identidade docente na EPT, que vai se constituindo. Como enfatiza Pimenta (1996) a identidade docente também se constrói
[...] pelo significado que cada professor enquanto autor e ator, confere à atividade docente, no seu cotidiano, a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor (PIMENTA, 1996, p. 76).
É este aspecto da constituição da identidade docente que a categoria 2 apresenta.
Como pode-se observar, o desafio de constituir a identidade docente da EPT figura de forma contundente nas narrativas: “Eu tentei esse concurso do IF sem saber o que era o IF, o que era educação tecnológica. Eu imaginava que seria um colégio […] só com propedêutica, não imaginava que tinha integrado ao ensino médio e os cursos técnicos” (PL23). Nos IFs, não há, uma identidade […] principalmente em relação ao próprio corpo docente e outros profissionais da educação. Os docentes ainda [...] não se reconhecem como professores de um processo educacional que é muito mais amplo que a formação para o vestibular ou que a preparação de um técnico para determinadas tarefas” (PL5). “[…] entender todo o projeto que é ser um professor de EPT, sua função social ao trabalhar com as classes menos favorecidas e construir um lugar de pertencimento efetivo” (PL12).
Estas narrativas assim como outras já mencionadas anteriormente vão apontando aquilo que sustenta o processo identitário dos professores mencionado por Nóvoa (1992) como os três AAA: “A de Adesão, A de Acção e A de Autoconsciência”. Adesão a princípios, valores e adoção de projetos que impliquem investimento nas potencialidades dos sujeitos com os quais se atua; a ação enquanto busca das melhores maneiras de agir que acabam por envolver decisões pessoais e profissionais e a autoconsciência que se impõe ao professor no processo de refletir sobre seu fazer. E assim, sintetiza Nóvoa (1992, p. 16):
A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. [...]. É um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças.
Do ponto de vista da docência, a EPT se difere das demais modalidades de ensino pelo perfil de seus estudantes, pelo status atribuído aos seus cursos, pela demanda para a superação da dualidade teoria e prática, pela necessidade de aproximação com os arranjos produtivos locais e regionais e, principalmente, pela necessidade de que os profissionais formados não sejam apenas meros técnicos habilidosos em determinadas tarefas, mas que construam um conhecimento mais integral, que percebam o que está por trás dos fenômenos, que consigam compreender e associar as bases da cultura, da ciência e da tecnologia e do trabalho.
Para tanto, considera-se que a constituição da docência na EPT carece de um conhecimento aprofundado acerca dos objetivos, finalidades e das características dos IFs e que este conhecimento, assim como o conhecimento pedagógico do conteúdo deveriam apresentar-se nos processos iniciais e continuados de formação para a docência.
Flores (2015) analisa a identidade profissional à luz da literatura internacional e destaca que o termo identidade encerra vários sentidos. Considerando a revisão de estudos sobre esta temática ela apresenta a categorização da identidade, em três tipos:
(i) os que se centram na formação da identidade profissional dos professores; (ii) os que investigam as características da identidade profissional e (iii) aqueles em que a identidade profissional é representada (e apresentada) através das histórias dos professores. Os mesmos autores salientam que emerge destes estudos a ideia comum de que a identidade não constitui “um atributo fixo de uma pessoa, mas um fenómeno relacional” (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004, p. 108), também entendido como “autocompreensão” (KELCHTERMANS, 2005) (FLORES, 2015, p. 139).
Emerge, por fim, o núcleo fundante desta pesquisa, denominado como importância da formação para a docência em EPT, considerado como supracategoria de análise.
Quanto a formação inicial, é possível observar pelas narrativas dos professores que os cursos de licenciatura frequentados não abordaram questões específicas da EPT e quando abordam, são periféricas e pouco aprofundadas. Um exemplo disto pode ser observado na seguinte narrativa: “Até hoje os cursos de licenciatura discutem muito pouco [...] sobre EPT. Eu nunca ouvi falar dessa modalidade na minha vida. Eu tive que aprender na marra, na minha prática profissional.” (PL5).
Por outro lado, apesar dos cursos de licenciatura apresentarem fragilidades acerca da formação para a EPT observa-se, na narrativa de um professor, a importância dos fundamentos gerais da educação para a atuação docente: “Há uma diferença muito grande entre os profissionais que são formados nas licenciaturas com os profissionais que são bacharéis […] existe toda uma reflexão sobre ensino, avaliação, currículo […] a falta disso reflete diretamente na relação com os alunos, na concepção educacional, na concepção curricular e isso interfere no trabalho docente.” (PL11).
Também, cabe destaque aos Programas Especiais de Formação Pedagógica Docente que se apresentam como uma diferencial para a prática de professores bacharéis ou tecnólogos, conforme pode ser observado: “A visão humana, e mudou mesmo, mudou muito minha visão depois de fazer a licenciatura.[…] a licenciatura te dá outra visão, mais humana do processo de ensino-aprendizagem […] com certeza sai modificado dela por ter essa visão mais ampla do ser humano, que o pessoal não se separa do profissional. (PL24).
Mas, é na necessidade de formação continuada regular que a grande maioria das narrativas recaem, como pode-se observar em: “Desenvolver estratégias de formação continuada com foco na EPT é fundamental para o desenvolvimento profissional dos docentes, incluindo os licenciados, pois a EPT apresenta especificidades que a diferencia das outras modalidades de ensino.” (PNL13).
Não é possível descartar nessa análise sobre a importância da formação docente para a EPT, o “[...] debate acerca das razões para o ingresso na profissão docente e do percurso e necessidades de formação pedagógica desses profissionais, conforme destacaram Spessatto e Carminati (2018, p. 27). Estes autores, ao analisarem as vozes dos professores da EPT sinalizam alguns aspectos que os atraíram par os IFs: “Não escolhi nada do que sou. Fui escolhido pela EPT” (p. 24). Um outro professor bacharel, na área da Engenharia afirma “que fez concurso público para o cargo que hoje ocupa ‘pensando na velhice’” (p.24). Um outro destaca que achou “uma boa oportunidade, já que as condições de trabalho em uma indústria muitas vezes são ingratas e severas e a docência tem um cenário realizador e mais tranquilo” e ainda outro que escolhe ser professor porque tinha “apenas mais dois anos de bolsa [Doutorado] e então decidi(iu) fazer concursos para adquirir experiência” (p.25). Este contexto também não pode ser ignorado quando se pensa em formação continuada. A falta de interesse em formações continuadas voltadas aos aspectos pedagógicos da docência foi identificada na pesquisa desenvolvida por Viella e Santos (2015), conforme segue:
[...] os docentes da EPT, embora reconheçam suas limitações para compreenderem os aspectos pedagógicos da docência, não demonstraram interesse em participar de programas de formação pedagógica, considerando que os saberes da experiência e suas vivências são suficientes para sua prática em sala de aula, auxiliando-o a desenvolver seus próprios métodos de ensino, desconsiderando a necessidade de uma formação complementar capaz de proporcionar uma compreensão pedagógica numa dimensão mais ampla, que permita o entendimento das singularidades da educação profissional nos seus mais diversos níveis e modalidades (VIELLA; SANTOS, 2015, p. 821).
É preciso também encarar a docência na EPT com lentes mais realistas. Como coloca Perrenoud (1993, p. 199) “[...] não é possível desconhecer que uma parte dos professores não sente necessidade de se formar. [...] estes professores protegem-se da formação” e desvalorizam os conhecimentos pedagógicos e até zombam da didática. Isto não significa colocar em dúvida sua competência docente, mas apenas realçar que qualquer proposta de formação continuada para a EPT precisa ter também em conta estes aspectos, para a partir deles pensar formas de envolver estes docentes no processo, lançando sementes para a construção da identidade profissional de professor.
Considerações Finais
Retomando as questões que orientaram esta investigação, é possível afirmar que existem diferenças notáveis entre atuar na EPT e nas outras modalidades de ensino já que, na EPT, o professor precisa atuar em cursos e programas que abrangem a formação inicial e continuada, formação profissional técnica de nível médio e formação profissional e tecnológica de graduação e pós-graduação, assim também se depara com um público de perfil muito diferenciado daquele que frequenta as universidades ou mesmo jovens que frequentam a educação básica estadual e municipal. Como afirma Arroyo (2000, p. 31), “[...] nos definimos por recortes de docência ou pelos tempos de vida que formamos”. Neste aspecto a questão identitária comparece inteira. A própria distribuição regional dos IFs imprime uma especificidade na atuação docente haja vista que o contexto de cada microrregião e dos municípios que a compõe é portador de muitas diversidades, sejam elas geográficas, populacionais, socioeconômicas, enfim especificidades que também dão seu tom à docência.
Outro aspecto que cabe considerar ao se pensar a formação pedagógica e a identidade docente, é a variedade de eixos tecnológicos (Ambiente e Saúde, Recursos Naturais, Controle e Processos Industriais, Desenvolvimento Educacional e Social, Segurança Turismo, Hospitalidade e Lazer, entre outros) que compõem os catálogos de ofertas de cursos nos IFs e as relações desses eixos com o processo produtivo, com o ser humano, com o ambiente e a sociedade como elementos que devem também ser contemplados no processo formativo. A variedade dos eixos é exatamente o espelho da diversidade da formação dos docentes e ao demandar atividades muito diversas na prática, também anunciam a possibilidade de diálogo para direcionar a formação.
Assim, as narrativas dos professores são portadoras desse intrincado contexto de atuação no qual vem a exercer a docência. O conhecimento desse contexto onde vai atuar, o conhecimento dos conteúdos, dos alunos com os quais vai relacionar, a forma de tornar esse conhecimento ensinável são elementos que também jogam na construção do processo identitário. Existe uma dinamicidade nesse processo que vai se transformando devido às formas de cada professor viver a docência e que é também permeada pela identidade coletiva. Não é definitivamente um empreendimento apenas pessoal, e no caso aqui em pauta, está intimamente atrelado à identidade, ainda em construção, dos IFs. Assim, a constituição do processo identitário e mesmo das propostas de formação de professores para os IFs, precisam ser equacionadas considerando-se estas especificidades institucionais.