Introdução
A presente discussão pretende dialogar com a prática da formação educativa, em âmbito da educação social, e sua inter-relação com as oficinas de teatro e a importância da contação de histórias como ferramenta metodológica na superação das tensões sócio-históricas presentes no cotidiano escolar e abordadas na oficina de teatro. Igualmente como Gramsci (1975), entendemos que a concepção de mundo está intimamente ligada à realidade, constituição da identidade e conhecimento. Conforme Rezera e Lopes (2021), alicerçados na pedagogia histórico-crítica, a produção e a apropriação do saber se dão pela dinâmica das interações socioculturais. Argumentam esses autores que as práticas educativas carregam em si intencionalidades que devem sobrepujar o domínio do senso comum. Por esse ângulo epistemológico, foram constituídas atividades formativas de crianças matriculadas nas oficinas de teatro.
Nosso delineamento metodológico é de cunho qualitativo, nos amparamos em relatórios institucionais e em documentação pessoal sobre as atividades desenvolvidas em oficinas de teatro, buscamos através destes instrumentos relatar a experiência formativa de crianças matriculadas nas referidas oficinas, nas quais de modo majoritário empregou-se a metodologia de contação de histórias como recurso didático. As aludidas experiências são analisadas a partir da produção epistêmica gramsciana.
Breve consideração sobre o programa de atuação dos educadores sociais e crianças envolvidas
O referido programa, denominado Tempo de Escola, foi criado em 2010 e esteve amalgamado ao Plano de Metas do grupo Todos pela Educação (TPE), que direcionou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), com a finalidade de ampliar a jornada escolar, onde uma das premissas é a participação da “sociedade civil organizada”1 via programas de parcerias para a promoção de ações socioculturais e educacionais e amparado em diretrizes que acompanham as premissas de organismos internacionais, tais como o Banco Mundial.
Pelo levantamento realizado, entendemos que no mencionado programa a concepção de educação integral está direcionada para a concepção de ampliação do espaço escolar, pela lógica das Cidades educadoras; pela Pedagogia das competências e das diferenças; além de uma clara direção assistencialista combinada com a melhora do desempenho escolar, em que se sobressai o atendimento prioritário às unidades escolares com baixo índice de desenvolvimento da educação básica (IDEB), e aquelas em situação de alta vulnerabilidade social. Assim, além da proposta de valorização da diversidade cultural, que se apresenta em atividades compensatórias e não formativas, a ampliação da jornada apresentase como mote para dirimir as desigualdades e vulnerabilidades.
No programa há também a preconização de uma gestão descentralizada em que, na ampliação da jornada e atividades desenvolvidas, se articulam a escola em conjunto à participação de instituições da sociedade civil, na implementação do programa.
De tal modo os educadores sociais, que desenvolvem as atividades formativas no contraturno escolar dos estudantes selecionados, são contratados por ONGs locais. São profissionais com perfis “práticos”, tais como profissionais circenses, atletas, atores, músicos. Ou seja, apesar de o programa indicar a contratação de pessoas com ensino em nível superior em qualquer área do conhecimento, também se exige uma experiência comprovada na área formativa da oficina. Desse modo, os alunos estão envolvidos com artistas, atletas e outros profissionais que estão diretamente constituídos do fazer prático.
Sob vieses formativos não uniformes, os educadores atuam sob a premissa do desenvolvimento da cidadania, e em termos objetivos dialogam com o plano pedagógico escolar e com as demandas da escola para a formação voltada à “melhora” das competências socioemocionais, cognitivas e até mesmo estritamente disciplinares das crianças. O programa preconizava que as oficinas pudessem ser realizadas em parques, praças, quadras, salões comunitários, igrejas e até mesmo na escola, na falta de outra possibilidade.
Os educadores sociais atuavam didaticamente pelas conceituações e práticas da educação não formal e em espaços escolares e não formais. Estavam sob as disposições materiais e técnicas das instituições da sociedade civil, que geriam o programa em conjunto com a secretaria de educação do município, e também sob as demandas escolares. Portanto, sujeitados a três agentes na organização das atividades, questão que tem implicações quanto à coesão e linearidade decisória. O que, em termos concretos, exige dos educadores maior preparo para planejar e articular seu trabalho.
Importante salientar que o programa atendia crianças entre 6 e 12 anos de idade. De modo geral, eram alocadas no mesmo espaço e oficina, levando o educador a adotar estratégicas didáticas que contemplem os percursos cognitivos e afetivos que atinjam todas estas faixas etárias, além da preservação da convivência saudável, colaborativa e segura.
O educador de teatro, especialmente, desenvolvia atividades voltadas para arte-educação, mediação da cultura, formação de opinião e público. Lembramos que o educador de teatro é um interlocutor dos alunos, sua atuação reside na perspectiva de ampliar referências socioculturais e dinamizar experiências significativas para o desenvolvimento psíquico, afetivo, cognitivo, cidadão e crítico desses alunos.
Educação não formal, educadores sociais e Teatro: interfaces da contação de história como aporte didáticometodológico, na perspectiva crítica
Conforme Gohn (2009), a educação não formal está intimamente ligada aos educadores sociais. É uma modalidade desassociada da educação escolar, pois possui uma característica menos burocratizada e hierarquizada, o tempo de aprendizagem é diferente, nela se valoriza o tempo individual e as múltiplas características dos participantes. Necessariamente, uma outra relação entre educandos e educadores é constituída aí, pois permite maior integração entre os envolvidos, e a relação com o conhecimento, intimamente ligada à cultura, não é linear ou centralizada, desse modo é mais flexível.
Apreendemos, conforme essa autora, que a educação não formal envolve aprendizagens de ordem subjetiva, “relativa ao plano emocional e cognitivo das pessoas, como aprendizagem de habilidades corporais, técnicas, manuais etc., que os capacitam para o desenvolvimento de uma atividade de criação, resultando um produto como fruto do trabalho realizado” (GOHN, 2009, p. 32).
Para Gohn (2009, p. 31),
[...] a educação não-formal designa um processo com várias dimensões tais como: a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; a aprendizagem de conteúdos que possibilitem aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo do ponto de vista de compreensão do que se passa ao seu redor; a educação desenvolvida na mídia e pela mídia, em especial a eletrônica, etc. São processos de autoaprendizagem e aprendizagem coletiva adquirida a partir da experiência em ações organizadas segundo os eixos temáticos: questões étnico-raciais, gênero, geracionais e de idade etc.
Dentre as principais demandas para a formação da cidadania na área da educação não formal, estão, de acordo com Gohn (2009), a educação para justiça social; para direitos humanos, sociais, políticos, culturais etc.; para liberdade e igualdade; para democracia; contra discriminação; para exercício da cultura; para a manifestação das diferenças culturais (GOHN, 2009, p. 34).
Tendo em vista o teatro como uma área de grande atuação em projetos sociais de educação formal ou não formal, faz-se importante entender que é uma atividade que congrega diversos elementos da forma narrativa e das possibilidades de mediação do conhecimento e das realidades sociais e históricas.
Na educação não formal, os educadores sociais da área de teatro se defrontam com um público muitas vezes estigmatizado, que comumente tem seus saberes e cultura desvalorizados, situação a que estão sujeitas as crianças e jovens no seu processo formativo.
Ao compreendermos essa questão, devemos nos atentar às práticas que podem incidir em assimilação ou corroboração com práticas de conformismo, desconexão social, depressão, questões que incidem sobre as subjetividades dos sujeitos, e objetivamente podem marginalizar e excluir das oportunidades e direitos.
De modo recorrente, vemos que as escolas e entidades terceirizadas, que controlam e organizam as atividades, veem as oficinas de teatro por uma perspectiva de conformação social,2 em que o educador trabalha mediando as “desventuras” e oferecendo uma oficina de puro entretenimento, ou de disciplinarização, ou mesmo de estrita formação técnica. O teatro, no entanto, é cultura viva, é crítica e é confronto. Sua característica não é redutível simplesmente ao entretenimento, é um elemento histórico-cultural pensado e resultado de uma escolha artística, estética e política. Através do teatro se constroem relações do corpo, da sociabilidade, da vida política, da cultura como elemento amplo da vida das pessoas.
Antonio Gramsci, quando crítico de teatro nos idos de 1915-1920, dialogava com a importância do teatro como instrumento opressor ou libertador. Em crítica à indústria teatral, Gramsci (2017) entendia que o teatro não poderia ser visto como veículo de manipulação ideológica, ou simples entretenimento compensatório das adversidades a que estão sujeitos a classe operária; esse teatro “interessado” (em alusão ao termo desinteressado da educação que trataremos a seguir) é um paliativo ideológico e psicológico carregado de superficialidades.
O teatro como atividade formativa, ao contrário, fomenta meios de emancipação humana, visto que através de suas inúmeras metodologias, técnicas e procedimentos constitui um processo de tomada de consciência, de possiblidade de comunicação, que pode ultrapassar a fala decorada, para a construção de discursos próprios sobre o que se produz e vive.
Para Figueiredo (2021),
O Teatro como ação sociocultural baseia-se diretamente na produção simbólica de um grupo e permite, portanto, uma perspectiva educacional crítica e emancipatória, pois, ao se desenvolver a consciência estética, aliada ao julgamento crítico, ganha-se uma maneira especial de ver o mundo, que passa pelos sentidos, pela imaginação e pela capacidade de se criar alternativas e possibilidades da condição humana.
A função do educador social, conforme Gohn (2009), é dinamizar qualitativamente o processo participativo; o diálogo é o fio condutor da formação. A temática e metodologia de trabalho do educador social são aquelas que advém do grupo, de suas demandas e inquietações, a partir de seu cotidiano e estruturas formativas. O educador social, portanto, contribui para a construção de espaços de cidadania no território em que atua. Deve conectar os participantes a representações do futuro, buscar mudanças através de uma proposta socioeducativa de produção de saberes, em que ressignifica e reconstrói “alguns eixos valorativos, tematizados segundo o que existe, em confronto com o novo que se incorpora” (GOHN, 2009, p. 34).
No teatro de formação na educação infantil, conforme Slade (1978), existe o drama criativo, a valorização da autoexpressão e o desenvolvimento da personalidade da criança. Para esse autor, o jogo dramático é uma metodologia para refletir, analisar, relaxar, experimentar, criar, ousar etc. O educador de teatro não deve instrumentalizar o aluno com interferências que o leve ao que possa ser considerado certo ou errado em suas expressões, mas sim nutrir as possibilidades criativas e estimular sua capacidade reflexiva.
Relato de experiência: da teoria à prática com a contação de história
No relato de experiência, aqui apresentado, temos a figura da educadora de teatro que pôde articular suas práticas formativas com o colega da área de música. A partir de diversas linguagens, que perpassam as áreas citadas, buscamos uma estruturação de trabalho em comum. Por essa lógica, compreendemos que através da contação de histórias seria possível desenvolver uma rica articulação entre os conhecimentos práticos e a formação sociocultural das crianças envolvidas.
Percebemos que naquele momento, mais que acatar as demandas da escola e da ONG, deveríamos atender as demandas das crianças, como pessoas capazes de pensar suas questões, seus problemas e conflitos, e também capazes de criar soluções, apreensões críticas, senso de coletividade e solidariedade. Da mesma maneira que Bussato (2013), tínhamos certo que através da contação de história se atravessa elementos formativos do âmbito da afetividade, cognição e das sociabilidades. Contar histórias conecta realidades aparentemente distintas e fomenta significações crítico-problematizadoras, que podem levar a maior solidariedade e aprofundar os laços sociais de modo mais solidário e afetivo.
Consideramos que nesse processo os recursos simbólicos utilizados na contação de história auxiliam na percepção de mundo mais ampla, os sentidos e simbologias são apresentados e reorganizados no âmbito da fala e da escuta, proporcionando novas experiencias cognitivas e sociais. As interações são daí estimuladas no percurso reflexivo e da memória. Desse modo, a criança apreende novas categorias de conhecimento, símbolos, linguagens, modos de vida, maneiras de interação e atuação no mundo (VALSINER, 2012).
Conforme Martinez-Conde e outros (2019), contar histórias é importante na cognição e na interação humana, e quando se dá pelas artes, as narrativas tomam proporção quase mágica. As técnicas de contar histórias envolvem a imaginação e as emoções das pessoas, não apenas em relação ao intelecto, mas também a seus sentimentos. Martinez-Conde e outros (2019) indicam que a narrativa melhora o processamento da informação, a ampliação da linguagem e sentidos, aumentando a recordação e o interesse pela história. Valsiner (2012) discute que os símbolos e estruturas semióticas são processadas conforme as próprias experiências de quem participa da interação, assim, são acessados diversos mecanismos da memória, da vivência cultural e afetiva dos envolvidos.
Tomando uma experiência específica do contexto de uma das escolas em que se desenvolveram atividades na perspectiva discutida anteriormente, temos a escola que denominaremos aqui como A escola do preconceito racial. Nesta, uma das características mais evidentes no conflito entre alunos e na relação de autoestima e desempenho deles era a questão da baixa estima racial e do preconceito racial entre as crianças, em que as mais afetadas eram as meninas negras.
Tendo conhecimento sobre a comunidade escolar, vislumbramos um plano de atividades composto de levantamento das dificuldades de relacionamento no ambiente escolar, violências simbólicas e estruturais a que estavam sujeitas essas crianças, suas famílias e comunidade. Nos esteamos num processo de escuta ativa e jogos teatrais que nos possibilitavam chegar ao lume do corpus da questão. Amparados juridicamente na Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, e na Lei n. 11.645, de 10 março de 2008 (BRASIL, 2008), que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino, nos organizamos para fundamentar nossas ações. Lembrando Saviani (2013), sobre a importância do reconhecimento das práticas sociais no processo educativo e as diferenças entre conhecimento, ritmos de aprendizagem e conhecimentos necessários a serem constituídos em que:
Uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola; não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que a escola funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos. (SAVIANI, 2013, p. 232).
Por esses elementos, pensamos na relação com o conhecimento histórico-cultural das crianças e profissionais que estavam no processo; elegemos, então, atividades de resgate de memórias familiares, alimentos, canções, brincadeiras. Partindo da concepção de memória coletiva, como parte das grandes questões da sociedade, e que se apaga ou sobressai de acordo com os interesses das classes em disputa (LE GOFF, 2003), buscamos constituir nosso escopo de trabalho, entendendo que a memória, além de conservar informações, contribui para o não esquecimento do passado e também para a discussão deste.
Para Le Goff (2003), a memória é parte da história, é o locus de preservação onde a consciência humana trilha seus percursos. A memória está ligada à identidade, e a partir dela reconhecemos o mundo em que vivemos e atuamos; ela também é artífice do vínculo entre gerações e seus tempos históricos e possibilita a consciência de nós como sujeitos em construção, portanto, sujeitos da história.
Se faz importante considerar que a partir da preservação e difusão da memória e bens culturais, materiais ou imateriais temos a constituição da identidade cultural, na qual a memória e seus artefatos tornam-se coletivos, contribuindo para a construção do ethos cultural e da cidadania (LE GOFF, 2003).
Dialogando com o trabalho de Hampâté Bâ (2010), entendemos que, ao contarmos uma história, estamos testemunhando um conhecimento; na cultura africana o testemunho, seja oral ou escrito, nada mais é que a forma de um ser humano relatar sua humanidade, o que vale no testemunho humano é o próprio humano. A tradição oral nesta cultura ultrapassa narrativas históricas, lendas, mitos, e não tem guardiões e transmissores só na figura dos griots, na realidade o conhecimento é a fonte mais fiel da tradição oral, esse é o fundamento mais salutar, em vários aspectos é dele que se forma a vida e uma unidade de pensamento coletivo, carregado de ampla gama de questões da vida material, espiritual e cotidiana.
A partir da racionalização dessas premissas, para dar andamento das atividades na escola do preconceito racial, realizamos uma busca em nosso acervo epistemológico e de conhecimento histórico, e iniciamos um processo de contação de histórias sobre o período colonial. Fundamentados em bibliografias sobre a condição das mulheres negras no Brasil, como também das figuras que se destacaram na história de nossa constituição sociocultural, canções, cantigas, além de acervo iconográfico sobre profissões e também da história da migração forçada para o trabalho em situação de escravidão, construímos um repertório de informações baseadas no acervo do patrimônio material e imaterial, que constituímos pela tradição da oralidade, e que se reproduz, ao longo de gerações, possibilitando a criação de histórias.
Assim, nos empenhamos no propósito de dar início às atividades formativas, baseadas no processo de “encantamento” suscitado pela contação de história e sua capacidade de chegar a quem a escuta de modo múltiplo, isto é, ser acessível e, ainda mais, ser instigante.
Conforme Benjamin (1987), a arte de narrar histórias tem em si uma natureza utilitária, em que as experiências são comunicáveis e carregadas de saberes que permitem interlocução. O contador de história incorpora o ouvinte à sua narrativa, não o segrega. Por isso que ao contar história estamos dialogando de modo que possamos construir um conhecimento, uma troca de valores, de símbolos e capacidades de diálogo e troca de experiências. A narrativa visa incentivar o ouvinte, é centrada na figura do que está sendo discutido; essa é função do narrador, do bom contador de histórias, fazer da história e do ouvinte os principais elementos do processo.
A crítica de Walter Benjamim (1987) sobre o tema nos permite ver as lacunas que o processo produtivo cria na constituição dos sujeitos e sua possibilidade de reconhecimento da realidade e significações sociais e econômicas, quando na modernidade há a introdução da short history, em que pouco temos espaço para o pensar elaborado de questionamentos, o pensar fundamentado. Fomos, segundo esse autor, pouco a pouco destituídos do adensamento de questões que carregam uma história, e introduzidos na mercantilização do conhecimento.
Em verdade, estamos expropriados do direito ao reconhecimento de nós mesmos, questão que Gramsci (1971), em 1916, discute em seus escritos políticos, nos quais a cultura é vista como um saber que ultrapassa pedantismos, o saber puramente interessado3 e “enciclopédia”. Cultura, para Gramsci (1975, p. 1376), “é organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior pela qual se consegue compreender o próprio valor histórico, a própria função na vida, os próprios direitos e os próprios deveres”.
Para o autor sardo, a escola como ambiente de difusão cultural, que na sua face “interesseira” impõe a hegemonia dominante, na verdade deveria ser uma escola desinteressada, onde nem cultura nem educação sejam um privilégio:
Uma escola na qual seja dada a possibilidade de ter uma formação, de tornar-se homem, de adquirir aqueles critérios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter [...] Uma escola que não hipoteque o futuro da criança e não constrinja sua vontade, sua inteligência, sua consciência em formação a mover-se por uma via prefixada. Uma escola de liberdade e de livre iniciativa, não uma escola de escravidão e de orientação mecânica. Também os filhos do proletariado devem ter diante de si todas as possibilidades, todos os terrenos livres para poder realizar sua própria individualidade do melhor modo possível e, por isso, do modo mais produtivo para eles mesmos e para a coletividade (GRAMSCI, 1971, p. 82-83, tradução nossa).4
Conforme Jacomini (2020, p. 5), em compreensão da concepção de educação ampliada em Gramsci:
Gramsci considera que a educação, não apenas a escolar, cumpre papel fundamental na reforma intelectual e moral da sociedade. Assim, ao analisar como o folclore deveria ser discutido e ensinado, destaca a importância de se ampliar e aprofundar as pesquisas, de maneira que ele pudesse ser compreendido no sentido de uma concepção desagregada de mundo, e não como uma bizarrice. Acreditava que isso tornaria o ensino mais eficiente e poderia efetivamente determinar ‘o nascimento de uma nova cultura entre as grandes massas’, o que levaria ao desaparecimento da separação ‘entre cultura moderna e cultura popular ou folclore’.
A cultura é expressão de nossa concepção do mundo, nossa linguagem e modo de vida estão intrinsicamente ligados. Para Gramsci (1975), a linguagem é a cultura, a filosofia é a política que se expressa em narrativas e práticas sociais. A consciência de nossa concepção de mundo passa pela crítica do senso comum, e este, como produto e processo histórico, manifesta-se em diversos âmbitos de nossa vida, de modo objetivo e subjetivo. Conforme Rezera (2022), Gramsci elucida que no processo de subalternização das classes, a composição hegemônica que se dá no Estado Integral não só é dominante, mas também dirigente. Instaura-se, então, “um novo tipo de ideologia, um senso comum como prática sociocultural, uma nova forma de interpretação de participação social para a organização da hegemonia em disputa ou em vigência” (REZERA, 2022, p. 17).
Por essa interpretação, Gramsci explicita que o Estado não está fragmentado, muito menos se restringe a um aparelho coercitivo ou político-burocrático, apenas. Nele estão contidos e interligados, como já observamos, a sociedade política, instância onde há o predomínio da coerção; e a esfera da sociedade civil, em que o consenso tem primazia. Neste sentido, Rezera e Lopes (2021) chamam a atenção para a intrínseca relação entre hegemonia e intelectuais na formulação e implementação de consensos na construção de hegemonias ou contra-hegemonias. Portanto, o Estado Integral não expressa uma relação mecanicista de poder das classes hegemônicas sobre as classes subalternas, mas sim uma articulada composição sociocultural de interesses ideológico-políticos antagônicos em disputa.
Conforme Gramsci (1975), através da filosofia (senso crítico) podemos superar o senso comum e, ao ultrapassá-lo, chegamos ao bom senso. Essas categorias que Gramsci elege são fundamentais para organizarmos nossa relação com o conhecimento e com nossa posição no processo de subalternização e conformismos a que estamos sujeitos. Para Gramsci (1975, p. 1376, tradução nossa):5
Criticar a própria concepção do mundo é, portanto, torná-la unitária e coerente ao ponto em que o mais avançado pensamento mundial já alcançou. Portanto, significa também criticar toda a filosofia que existiu até agora, uma vez que que tem existido até hoje, na medida em que deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início de elaboração crítica é a consciência do que realmente é, ou seja, um ‘conheça a ti mesmo’ como um produto do processo histórico até agora desenvolvido, e que deixou um número infinito de traços em você, aceitos mesmo ‘sem o benefício do inventário’. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário.
Destarte, embrenhados na constituição desse inventário, iniciamos o percurso formativo em que as crianças foram atores (não somente no sentido estrito da atuação artística), mas, sobretudo, participantes ativos da construção do conhecimento e saberes de si e de seu mundo. Por esse viés, a educadora de teatro, em conjunto com os demais colegas, construiu suas formas de intervenção neste processo; o educador de música resgatando cantigas e formas instrumentais e sonoras de nossa rica história cultural popular, e a educadora de teatro recriando os processos de emancipação, luta e valorização das culturas indígena e africana, através do conto autoral, fruto deste processo de pesquisa: Aqualtune, a princesa guerreira.
A partir desse conto, se ampliaram as atividades formativas das crianças; a contação de história do referido conto suscitou fóruns de debates entre os envolvidos no processo, estudo de lendas e contos de outros autores, criação de poemas e canções sobre as mulheres negras, grupos de estudos sobre personalidades negras influentes no mundo, estudo da origem de cada um deles, discussões sobre os comportamentos que vivenciam e reproduzem.
Ao final, a contação de história da Aqualtune, a princesa guerreira foi escolhida pelas turmas para desenvolver atividades mais amplas, próprias das oficinas na construção de múltiplas habilidades e formas de expressão, tais como: confecção de cenários, instrumentos musicais, danças, canções e poemas.
Os alunos criaram eleições sobre quem seriam os personagens principais, buscando entre eles padrões de melhor atuação, interpretação e justiça dos papéis. Daí surgiram alunos mais motivados a participar da “seleção interna”, através dos critérios que preconizavam transparência e justeza das seleções. Dessa maneira, muitos que antes se sentiam “desajustados” ou deslocados, estigmatizados pela forte violência racial e da condição econômica, foram se colocando como pertencentes, como capazes e como elegíveis, incentivados por seu próprio reconhecimento de valores e qualidades. A partir desses elementos, percebeu-se que a elaboração crítica defendida por Gramsci, em conjunto com um percurso formativo no qual os alunos possam ter espaço de interlocução qualitativa, amparados no conhecimento, na liberdade de expressão e reflexão, contribui para a discussão do senso comum de cada indivíduo, o que proporciona a capacidade crítica para o reconhecimento e superação das iniquidades a que estão sujeitados. Assentindo com Slade (1978), vemos que no jogo dramático cabe a valorização da reflexão e experimentação como função básica do estímulo da criatividade e da capacidade reflexiva.
A experiência na Escola do preconceito racial, portanto, nos possibilitou, em grande medida, superar as iniquidades encontradas, no sentido de suscitar novas subjetividades e formas de relacionamento entre os estudantes, fomentando através da arte e da contação de história maneiras de repensar o preconceito em suas diversas faces, e que é naturalizado e reproduzido desde a tenra infância.
Pela assimilação de seu construto sociocultural, tomando a si mesmos como fonte de conhecimento, os alunos, a partir da elaboração crítica de seu percurso histórico, social e cultural, podem apropriar-se do acervo das ações humanas. E por meio desse processo podem ter melhores capacidades para compreender e emancipar-se das armadilhas do conformismo e da ideologia aos quais estão sujeitos. A infância e a juventude são lugares de construção, não de aprisionamento ou esvaziamento de possibilidades de desenvolvimento pleno e omnilateral; essa leitura nos permite dar sentido ético às práticas formativas, no teatro ou em outras áreas.
Pela contação de histórias, seja na educação formal ou não formal, somos capazes de incitar novas leituras do mundo. Em termos didáticos, entendemos a contação como uma ferramenta que permite ampla interlocução com os participantes. No caso do estudo aqui apresentado, não só possibilitou melhor integração entre os docentes e alunos, como também incentivou um processo educativo não mecanizado, hierarquizado ou restrito ao currículo ou projeto político pedagógico da escola ou da associação que organiza o programa, mas também um lugar de construção coletiva do conhecimento.
Conforme Gramsci (1975), em observação às práticas didáticas de seu tempo, a partir da escola O’Neill, lugar onde a educação não era mecanizada ou baseada em currículos e métodos de ensino fechados e professores autocráticos, onde a educação que provinha do interesse dos estudantes e em interlocução com o professor, tal experiência suscitava melhores resultados na formação educativa, intelectual e moral. Não se trata aqui do incentivo à desconstrução da função do professor como interlocutor do que é conhecimento, mas sim uma reorganização que forma uma organicidade de ações. Gramsci (1975), sobre a observação da escola de O’Neill, assevera que as possibilidades materiais para universalizar ou popularizar esse modelo de escola e essa autonomia construtiva são um desafio.
Apesar de entendermos o desafio e os seus impeditivos, vemos essa possiblidade em algumas experiências, e sabemos que efetivamente nem sempre são tão autônomas assim, o que nos leva a refletir sobre as condições para a efetiva construção coletiva do conhecimento e os espaços em que se dão de modo realmente qualitativo, e não somente “proforma”. Entendemos que a partir da metodologia empregada na contação de histórias, exige-se um preparo substancial, com aportes teóricos e críticos para subsidiar as ações, que apesar de aparentemente simples, demandam esforços de ambos os lados do processo. Apreendemos que há a necessidade de ressignificar diariamente a qualidade participativa do aluno e educador; quando trabalhamos com crianças e jovens, o protagonismo participativo é algo que necessita ser fomentado, visto a disciplinarização a que estão sujeitos no espaço escolar.
Vimos que pela contação de história, como instrumento didático-metodológico, conseguimos desenvolver maior fluidez nesse processo. A contação de história é então um instrumental de trabalho que permite abrir o olhar, a escuta e a atenção, e também construir e dar sentido a outros panoramas, falas, histórias, realidades. E é uma forma de intervenção crítica por meio da linguagem, da cultura, da educação. Pensando com Saviani (2013), que nos lembra que há desigualdade de conhecimento no ponto de partida, entre professores e alunos, e o que se constrói no percurso formativo é a busca por uma igualdade no ponto de chegada, ou seja, nossas práticas educativas, sejam em que âmbito for, exigem uma postura ética no processo educativo e humano.
Saviani (2013), em discussão sobre os métodos pedagógicos, faz-se claro quanto aos limites das intervenções pedagógicas tradicionais, que autonomizam a pedagogia em relação à sociedade, enquanto pela pedagogia histórico-crítica há vinculação entre educação e sociedade, e interlocução entre os saberes constituídos dos professores (sintético) e de alunos (sincrético), cujo objetivo é a problematização das questões sociais.
Como problematizações, há discussões, que sob a luz de determinados significantes e aportes teórico-práticos incidem numa perspectiva de solução dos problemas na prática social, proporcionam aos educadores e alunos uma ossatura instrumental que os autonomiza na construção do conhecimento e das ferramentas culturais necessárias para emanciparem-se das práticas socioculturais que os dominam e os subalternizam. Saviani (2013) entende que na elaboração do entendimento crítico das práticas sociais e na incorporação de instrumental cultural capaz de incitar transformações sociais se dá a catarse. O que para esse autor é o ponto culminante do processo educativo, visto que “pela mediação da análise levada a cabo no processo de ensino, [ocorre] a passagem da síncrese à síntese; em consequência, manifesta-se nos alunos a capacidade de expressarem uma compreensão da prática em termos tão elaborados quanto era possível ao professor” (SAVIANI, 2013, p. 234)
A prática social é a estrutura do trabalho educativo na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, é o lócus onde a totalidade da vida social e suas diversas manifestações se fundem e interagem.
Considerando a prática social - ponto de partida e ponto de chegada do trabalho educativo para a pedagogia histórico-crítica - um conjunto de complexos articulados que constituem uma totalidade social (um complexo de complexos), exige-se do professor a apreensão consciente dos dados constitutivos dessa realidade e de suas ricas mediações e relações entre os complexos que a formam em uma totalidade única e orgânica: a totalidade da vida social. (LAVOURA; MARTINS, 2017).
Conclusão
No decurso da experiência por nós apresentada neste relato analítico, constatamos que a contação de histórias, mediada pelas artes cênica e musical, se mostrou um recurso didático-metodológico muito profícuo no processo de educação não formal. Sem embargo, nossa vivência nesse projeto evidenciou a pertinência de concatenar esse procedimento didático-metodológico com variados aportes teórico-pedagógicos críticos que possibilitem aos alunos uma aprendizagem para além do conformismo social hegemônico. Uma aprendizagem que estimule o educando a questionar a sua existência num mundo sociocultural atravessado por incontáveis e heterogêneas desigualdades e contradições que muitas vezes incidem não só dramaticamente em suas subjetividades, mas no próprio direito de existir dignamente.
Outrossim, presenciamos também que pela contação de história criou-se um ambiente reflexivo e interpretativo do âmbito escolar e social de outros espaços. Às crianças, através da contação de história, foi possibilitado o acesso a uma nova versão de fatos e personagens, o encantamento em reconhecer-se, em conectar-se com uma construção mais digna, o direito ao conhecimento das ações humanas e suas implicações no cotidiano de suas vidas, na história de suas famílias, nos seus gostos e costumes. A contação de história fomenta uma rica incursão na subjetividade e nas ações de seus ouvintes, e possibilitou, no caso apresentado, a discussão de variados pontos de interesse dos alunos (o racismo, por exemplo), ultrapassando a história contada para a história vivida no cotidiano de suas existências, atingindo questões subjetivas e objetivas, estimulando a criatividade e a crítica no modo de pensar e nos papéis que desempenham no mundo; propulsando a construírem novas formas de apreensão de si e do outro.
Com as questões expostas nesta discussão, podemos concluir assertivamente que a contação de histórias se manifestou como uma ferramenta epistemológica proficiente. Daí a nossa sugestão de que esse expediente metodológico seja amplamente explorado em espaços educacionais formais e não formais na sociedade brasileira, por apresentar uma pletora de potencialidades pedagógicas para elevar a consciência do aluno do sincrético à compreensão da realidade como síntese de múltiplas determinações.