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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub 06-Mayo-2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p130-147 

Corpos, gêneros e sexualidades

“LUGAR DE INDÍGENA É ONDE ELA QUISER!”: UM ESTUDO COM MULHERES INDÍGENAS UNIVERSITÁRIAS

“INDIGENOUS PLACE IS WHERE SHE WANTS!”: A STUDY WITH UNIVERSITY INDIGENOUS WOMEN

“¡EL LUGAR INDÍGENA ES DONDE ELLA QUIERE!”: UN ESTUDIO CON ESTUDIANTES UNIVERSITARIAS INDÍGENAS

Karina Molina* 
http://orcid.org/0000-0001-8438-2517

Paula Regina Costa Ribeiro** 
http://orcid.org/0000-0001-7798-996X

1Universidade Federal do Rio Grande

2Universidade Federal do Rio Grande


RESUMO

Este Corpos, gêneros e sexualidades tem por objetivo problematizar a presença das mulheres indígenas em uma universidade federal do sul do Brasil. Por meio de uma investigação narrativa, entendida como o estudo da experiência, entrevistamos cinco acadêmicas indígenas de diferentes cursos da IFES. Propomos uma discussão acerca do papel que a educação superior tem desempenhado, enquanto aliada na luta pela visibilidade das mulheres indígenas, sujeitas marginalizadas da aldeia à academia. Para além da possibilidade de igualdade de oportunidades, as ações afirmativas resultam na qualificação universitária não apenas para a causa indígena, mas também para o retorno delas às aldeias. Ao mesmo tempo, estar na universidade implica às acadêmicas indígenas resistirem não apenas a sua realidade nas comunidades, mas na universidade também.

Palavras-chaves mulher indígena; universidade; ações afirmativas.

ABSTRACT

This article aims to problematize the presence of indigenous women in a federal university in southern Brazil. Through a narrative investigation, understood as the study of experience, we interviewed nine indigenous academics from different courses at IFES. We propose a discussion about the role that college education has played, as an ally in the struggle for the visibility of indigenous women, marginalized subjects from native village to academy. In addition to the possibility of equal opportunities, affirmative actions result in university qualification not only for the indigenous cause, but also for returning to the native villages. At the same time, being at the university implies indigenous students resist not only their reality in the native communities, but at the university as well.

Keywords indigenous woman; university; affirmative actions.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo problematizar la presencia de mujeres indígenas en una universidad federal enel sur de Brasil. A través de una investigación narrativa, entendida como el estudio de la experiencia, entrevistamos a cinco académicas indígenas de diferentes carreras de la IFES. Proponemos una discusión sobre el papel que ha jugado la educación superior, como aliada en la lucha por la visibilización de las mujeres indígenas, sujetos marginados del pueblo a la academia. Además de la posibilidad de igualdad de oportunidades, las acciones afirmativas redundanen la titulación universitaria no sólo por la causa indígena, sino también por el retorno a los pueblos. Al mismo tiempo, estaren la universidad implica que las académicas indígenas resistan no solo su realidad en las comunidades, sino también en la universidad.

Palabras clave: mujer indígena; universidad; acciones afirmativas.

Introdução

O presente Corpos, gêneros e sexualidades trata de um recorte de uma pesquisa de doutorado1, que teve como objetivo problematizar a presença das mulheres indígenas em uma Instituição Federal de Ensino Superior - IFES, por meio das ações afirmativas. Quer dizer, partimos da tese de que estar na universidade representa um importante passo na luta das mulheres indígenas pela igualdade de direitos entre homens e mulheres indígenas, enquanto sujeitas constituídas dentro das aldeias. Isso, considerando os aspectos culturais, que caracterizam as sociedades indígenas, nas quais a diferença entre o gênero masculino e o feminino marca o “papel” do homem e da mulher de forma bem mais contundente que a sociedade não indígena. Para tanto, neste Corpos, gêneros e sexualidades temos como objetivo problematizar a potência da educação superior na luta pela visibilidade das mulheres indígenas.

Isso permite compreender como esta possibilidade outra na vida das mulheres indígenas, estar na universidade, a qual se dá por meio das ações afirmativas2, veio se constituindo e ainda se constitui, bem como, os movimentos e tensões que produz, para além do espírito das leis3 que instituíram essas políticas públicas inclusivas, qual seja, a igualdade de oportunidades a minorias historicamente excluídas no Brasil. Nesse sentido, um dos eixos de análise apresentados na tese discute a presença das mulheres indígenas na universidade, evidenciando o papel que a educação superior tem desempenhado, enquanto aliada na luta pela visibilidade dessas mulheres, sobretudo a partir das narrativas das acadêmicas indígenas de uma universidade do sul do Rio Grande do Sul, Brasil.

Uma ação afirmativa busca oferecer igualdade de oportunidades a todos/as, visando, conforme Arabela Oliven (2007), remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, a universidades e a posições de liderança. Trata-se de uma medida reparatória, compensatória e que busca a correção de uma situação de discriminação e desigualdade, em que se encontram determinados grupos sociais.

De acordo com Rodrigo Simões (2018), a presença indígena no Ensino Superior brasileiro está cada vez maior. Segundo os dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, entre 2010 e 2016, o número de estudantes indígenas universitários, que se autodeclararam indígenas subiu 512%, saltando cerca de 7 mil para mais de 44 mil. Destacase a superioridade da presença feminina, que vem aumentando nos últimos anos. A partir de 2014, elas se posicionaram como maioria entre o total de ingressantes indígenas e assim se mantiveram até 2018, representando 52%. No ano de 2015, segundo dados do referido Censo, mais de 7 mil mulheres indígenas ingressaram em instituições de ensino superior, passando o número de indígenas ingressantes nos últimos anos de 2.780, em 2009, primeiro ano em que a variável cor/raça passou a ser contabilizada, para 17.269, em 2018, último ano contabilizado pelo levantamento realizado pelo INEP. Com efeito, o número de mulheres em 2018 cresceu 620% em relação a 2009 (SIMÕES, 2018).

Considerando os aspectos metodológicos, este trabalho parte da investigação narrativa, que consiste no estudo da experiência, como ela é vivida e contada, um fluxo caracterizado pela interação contínua do pensamento humano com o ambiente pessoal, social e material (MELLO; MURPHY; CLANDININ, 2016).

Nesse mesmo sentido, Jorge Larrosa (2011, p. 5) vai nos dizer que “a experiência é ‘isso que me passa’, não isso que passa”, um acontecimento que não sou eu, que não depende de mim, que não é resultado de minhas palavras, nem de minhas ideias, nem sentimentos, nem projetos, nem intenções, algo que não depende nem do meu saber, nem de meu poder, nem de minha vontade. Quer dizer, “não há experiência, portanto, sem a aparição de alguém, ou de algo, ou de um isso... que é exterior a mim, estrangeiro a mim, estranho a mim, que está fora de mim mesmo, que não pertence ao meu lugar” (Ibid., p. 6). Tal constatação vai ao encontro do que acontece a partir da experiência vivenciada pelas participantes desta pesquisa, as acadêmicas indígenas da universidade.

O ambiente universitário por si só, na vida de qualquer estudante, indígena ou não, traz significativas mudanças em seu dia a dia, novas perspectivas, quanto mais para as mulheres indígenas universitárias. Com efeito, para além de um juízo de valor acerca do que a possibilidade de ir para a Universidade pode representar à mulher indígena enquanto sujeita constituída dentro da aldeia - a vó que cuida dos/as netos/as, a mãe que também é artesã e que precisa vir pra cidade vender seus produtos, com os/as filhos/as a tira colo, dentro da universidade, a acadêmica indígena depara-se com uma vivência universitária que é completamente diversa da sua, na comunidade, com conhecimentos, práticas, costumes diferentes, tendo que sujeitar-se aos padrões estabelecidos.

Dessa forma, levando em consideração que a investigação narrativa se dá “no meio do viver e do contar, do reviver e recontar histórias de experiências que compuseram as vidas das pessoas, em ambas as perspectivas: individual e social”, e que a “investigação narrativa é uma forma de compreender a experiência”, conforme assinalam Jean Clandinin e Michel Connelly (2015, p. 51), por meio das narrativas, é possível conhecer e compreender os atravessamentos que perpassam as mulheres indígenas universitárias. Com efeito, são suas experiências em suas relações familiares, profissionais, sociais, entre outras, que constituirão estas novas sujeitas que elas irão se tornar.

Para tanto, utilizamos como instrumento para a produção dos dados a entrevista narrativa. Das 16 estudantes indígenas matriculadas nos cursos de graduação da IFES até o final do ano de 2020, nove entrevistas foram realizadas, sendo seis em 2020 e três em 2021, todas de forma on-line, por meio do aplicativo para videoconferência Google Meet, considerando que a investigação se deu em meio à pandemia da COVID-19. Destacamos que as entrevistas começaram após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, por meio do parecer nº 4.274.905, Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 34247320.6.0000.5324. Quanto às acadêmicas indígenas entrevistadas, apresentamos a caracterização4 das cinco aqui evidenciadas, na ordem cronológica em que as entrevistas ocorreram.

Niara, que significa mulher determinada, ingressou no curso de Direito, em 2018, tem 23 anos, é solteira, sem filhos e é das etnias Kaingang e Guarani. Moema, que significa aquela que adoça, ingressou na em 2017, no curso de Direito, é da etnia Kaingang, tem 24 anos, é solteira e não tem filhos. Ayra, que significa filha, ingressou em 2019 no curso de Direito, é da etnia Guarani, tem 20 anos, é solteira e não tem filhos. Maya, que significa mãe, ingressou em 2016, no curso de Direito, é da etnia Guarani, tem 41 anos, mantém uma união estável e é mãe. Aritana, que significa cacique de uma tribo, ingressou na Universidade em 2018, no curso de Direito é da etnia Guarani, tem 38 anos, é solteira e é mãe.

A partir disso, a seguir, discutimos a presença das mulheres indígenas em espaços outros que não o doméstico, em especial, o espaço da academia, evidenciando o papel que a educação superior tem desempenhado, enquanto aliada na luta pela visibilidade da mulher indígena, sobretudo a partir das narrativas das mulheres indígenas da Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

As mulheres indígenas em outro lugar: no ensino superior

Muitas profissões vêm sendo ocupadas pelas mulheres indígenas, por exemplo, na área da saúde, médica, enfermeira, ou na área da educação, professora. Mesmo dentro das comunidades indígenas, tratam-se de espaços outros que não o doméstico, no papel exclusivo de dona de casa, mãe, cozinheira, ainda que, como a maior parte das mulheres no mundo, que acumulam tais funções. Fora das aldeias, algumas dessas mulheres alcançaram cargos políticos, sendo eleitas para representar o povo. Vandreza Amante (2019) salienta que a representatividade das mulheres indígenas vem aumentando, com muitas antropólogas, advogadas, jornalistas atuando em órgãos indigenistas, além de militarem nos mais diversos movimentos indígenas e feministas. Ainda, as mulheres indígenas têm se destacado nas artes, como artistas plásticas, produtoras culturais, desenhistas, cantoras.

A gente deve sim ocupar lugares, como a notícia que eu postei, de uma indígena lá de Rondônia, se eu não me engano, que participou do “The Voice Brasil”... virou uma cadeira pra ela. Daí eu postei que o lugar de indígena é onde ele quiser, hoje em dia. Não tem mais aquela limitação, que o indígena tem que ficar na mata, que nem dizem. O lugar do indígena e da indígena é aonde eles quiserem [...], o espaço que a gente conseguir e o que a gente vem conseguindo tem dado fruto pra outra geração, não só na nossa, mas que venha ser pra outra geração, no futuro (MOEMA, 2020 - entrevista).

Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi (2018, p. 5) destacam a presença indígena na cidade de Dourados, Mato Grasso do Sul, fazendo “parte da paisagem diária da cidade. Estão presentes nas ruas: caminhando, pedalando, andando em pequenas carroças, jogando futebol, marretando e fazendo compras, nos mercados, nas lojas”, o que também podemos perceber, em certa medida, aqui, na cidade aonde se desenvolveu este estudo. Há três bairros que abrigam comunidades indígenas, dois mais afastados e um mais central, localizado no balneário da cidade, aonde os/as moradores/ as indígenas costumam circular, diariamente, pela avenida central, por exemplo, vendendo seus artesanatos. Enquanto uma cidade universitária, a Instituição abriga indígenas de outras localidades do estado, os quais estão presentes tanto em cursos de graduação, quanto de pós-graduação, nas mais diversas áreas do conhecimento.

O aspecto em comum nesses novos espaços que vem sendo ocupados pelas mulheres indígenas é a passagem pela universidade. O caminho da educação superior e da continuidade da carreira acadêmica, com muitas delas tornando-se mestras e doutoras vem destacando-se cada vez mais (AMANTE, 2019).

Interessante salientar que já passaram pela pós-graduação da Universidade locus desta investigação 27 alunos/as indígenas matriculados/as nos cursos de especialização, mestrado e doutorado, no período de 2010 a 2022. São 17 homens - um na especialização, 11 no mestrado e quatro no doutorado - e dez mulheres - três na especialização, cinco no mestrado e duas no doutorado5.

Augusto Santos (2015) apresenta algumas possibilidades que justificam a academia como este novo lugar possível aos/às indígenas, de forma geral. Além da questão das cotas ou das vagas suplementares oferecidas por várias universidades, dentre as quais a Instituição aonde se realizou este estudo, por meio de processo seletivo específico, a busca pelo ensino superior para indígenas também foi impulsionado pela conquista do direito das populações indígenas a uma educação escolar diferenciada, longe daquelas experiências voltadas ao processo de civilização e assimilação6 indígenas à sociedade brasileira que se formava, as quais foram se perpetuando ao longo do tempo.

Quer dizer, principalmente a partir dos anos 80, passou-se a questionar esse modelo educacional colonizador, em favor de uma escola que pudesse dar conta das especificidades socioculturais e da autonomia dos povos indígenas, sendo que apenas com a inclusão do direito a uma educação escolar diferenciada na Constituição Federal de 1988 foi que as experiências de escolas indígenas bilíngues e interculturais de fato se concretizaram. Esse avanço no processo de escolarização nos níveis básicos culminou num aumento do número de estudantes indígenas, que desejavam continuar seus estudos (SANTOS, 2015).

Outro aspecto trazido por esse autor (2015), que favorece a busca pelo ensino superior, é o fato de os/as acadêmicos/as indígenas contarem com toda uma geração de pioneiros/as neste engajamento no mundo não indígena da universidade. A atuação e trajetórias de vida dos/as estudantes indígenas, que vieram antes, configura-se como suporte emocional aos/às novos/as. Isso se verifica entre os/as indígenas da FURG, em especial, entre as acadêmicas entrevistadas neste estudo, conforme relato que segue.

Como eu tenho família dentro da universidade, eu me sinto mais confortável, sabe, se estou com problemas, eu vou ali falar com eles e eles me ajudam a resolver. Eu acho que quem não tem família aqui dentro, acho meio difícil né, fica segurando aquela barra, não sabe como falar, porque se falar pra mãe dele, que vive lá na aldeia, ela não vai saber o que fazer, sabe, ela vai falar “volta pra casa”. Família, aqui, foi fundamental pra mim também, sabe. Porque a Aritana que tá aqui também, quando ela entrou, não tinha ninguém, ela deixou os filhos dela, sabe, foi difícil pra ela encarar. Depois, quando a minha mãe e as irmãs dela começaram a entrar, ela começou a se sentir mais conformada, segura (AYRA, 2020 - entrevista).

Clarissa Melo e Eunice Antunes (2016) destacam que os/as acadêmicos/as indígenas valorizam estar em meio aos parentes na universidade, enquanto grupo e não apenas como indivíduos. Os/as estudantes indígenas da FURG, que, em sua grande maioria, são parentes - tios/as, sobrinhos/as, primos/as, irmãos/ãs, vêm de uma mesma região distante e, ao retornarem às suas comunidades, trazem consigo a ideia de que é possível ir “lá fora”, expandir o horizonte de relações e conquistar condições mais favoráveis de vida para si e para sua família, servindo de exemplo aos/às futuros/as universitários/as indígenas, como destaca uma das alunas indígenas da FURG: é um grande caminho, não só para gente que está agora, mas sim para as próximas que vão vir, elas vão ver esse trabalho que a gente fez e elas vão continuar (MOEMA, 2020 - entrevista).

Mais que isso, são exemplos de uma trajetória pioneira que mostra que é possível conquistar este mundo não indígena da universidade. As mulheres indígenas que estão na universidade, assim como as que já se formaram, tornam-se exemplos para as demais mulheres indígenas de sua família, de sua comunidade.

Ah, é uma conquista, né, é emocionante pra mulher indígena, porque ela era muito de dentro de casa, né. Como elas viviam dentro da aldeia e vendo elas hoje na universidade, né buscando outros objetivos, não o de ficar no fogão cozinhando pro homem, sabe. Eu vejo a minha mãe, ela sofreu bastante na vida dela, com o meu irmão, comigo e depois de anos de ter nós, eu tenho mais um irmão, né, ela criou, deixou nós crescer e daí entrou na universidade e agora tá estudando, sabe. Eu fico muito feliz por ela tá conquistando isso porque ela nunca imaginou, sabe, nunca imaginou tá numa universidade de Direito, que é uma coisa que ela sempre quis, né, e sendo exemplo para as outras, pra mim (AYRA, 2020 - entrevista).

A família e a maternidade são aspectos que se destacam neste novo lugar que ocupam os/ as indígenas. Estar longe da família, inúmeras vezes é a razão da evasão indígena da Universidade, cuja moradia estudantil oferecida quando do ingresso dos/as estudantes indígenas não contempla a presença dos filhos/as dessas acadêmicas. Cabe destacar que as alunas indígenas entrevistadas estão em média a oito horas de distância de suas famílias. Isso também as faz pensar se querem ir para a universidade.

Na aldeia, surgiu esta informação que na FURG tinha bolsa pra indígena. Foi até o meu primo que falou pra eu tentar. Aí eu me inscrevi, não sabia nem o que era universidade, mas fui, me inscrevi, comecei a procurar o site da Universidade, só que eu com medo, né, e se eu passar, será que vou ou não vou. Mas aí passei. Mesmo assim, tinha dúvida porque eu não sabia onde era, daí um dia antes fui ver aonde era cidade, pra ver pra onde que eu ia. Daí eu vi lá no finzinho do mapa... Eu tinha meu filho, né, e eu não sabia o que eu ia fazer porque era só eu e ele, e ele tinha dois aninhos. Eu sei que eu sai escondida dele, mandei ele viajar com o pai dele (ARITANA, 2020 - entrevista).

Suzana de Jesus et al (2013, p. 231) ratificam “a solidão e a falta da família como uma barreira e um motivo de evasão”, por mais que, em um contexto universitário, “características como a autonomia, a individualidade e a independência sejam valorizadas e estimuladas”. Quer dizer, para os povos indígenas, em cuja sociedade “o parentesco tem profunda influência na vida produtiva, na organização política e nas dinâmicas de produção e circulação de conhecimentos, por certo afastar-se da família e da comunidade é uma tarefa extremamente difícil” (Ibid., p. 231).

Nesse sentido, algumas alunas indígenas entrevistadas neste estudo levantam essa questão, argumentando que, ainda que o sistema de cotas e as ações afirmativas sejam fundamentais para que os/as indígenas alcancem a educação superior, tais políticas públicas ainda não voltaram seu olhar para as mulheres indígenas universitárias. Em seu relato, uma das estudantes entrevistadas evidencia a dificuldade de uma estudante indígena mãe de um bebê, que contava apenas com o apoio de parentas, estudantes de Direito, as quais podiam levar o bebê para a sala de aula, ao contrário da mãe, estudante de Enfermagem. A maternidade, com efeito, tem um significado importante na constituição das mulheres indígenas, seja na aldeia, seja na academia, muito além das questões biológicas que as diferenciam dos homens, por muito tempo, argumento contra a igualdade de gêneros, tornando-se relevante refletir sobre a potencialidade de um recorte de gênero nas ações afirmativas, no que diz respeito à permanência das mulheres mães na universidade.

O sistema de cotas veio para nos dar uma oportunidade mesmo, mas ainda tem muita coisa a se fazer aqui dentro da universidade [...]. Têm estudantes que são mães, e na maioria das vezes não tem suporte para cuidar e estudar. Uma estudante indígena grávida, que estava cursando Enfermagem, minha parente, chegou aqui e ganhou bebê e, logo, iniciou-se as aulas, ela teve que retornar para os estudos. Então, tivemos que nos ajudar, eu e minha filha levava o bebê pra dentro da sala de aula, pois a mãe não tinha como levar a criança para ela poder estudar Enfermagem, que não é permitido levar criança, o setor não é permitido, então, com dois, três meses, ele ia junto com nós pra dentro da sala da universidade mesmo, mas ainda tem muita coisa a se fazer, ainda que aqui dentro da universidade (MAYA, 2020 - entrevista).

Jesus (2020) faz um destaque interessante, no que diz respeito à maneira como muitas vezes a maternidade é enxergada. A crítica feminista dos anos 70 traz um alerta para não se reduzir simplesmente a mulher “a um organismo com útero, seios e vagina, destinada à reprodução de pessoas e do espaço doméstico”, sendo que referenciar a maternidade e as questões familiares, ambas destacadas pelas sujeitas desta pesquisa como fator importante a ser considerado no ingresso e permanências das mulheres indígenas universitárias no ensino superior, implica tomar como “fio condutor das reflexões aqui expostas a maternagem, compreendida como ato de cuidar e a condição de possibilitar desenvolvimento saudável a uma criança, bem como a sua constituição como pessoa” (Ibid., p. 61-62).

Relata a autora (2020) que durante a época em que atuou como docente da Literatura Intercultural, ainda que tivessem outros familiares matriculados/as em cursos universitários, como tios e inclusive pais, era para acompanhar as mães que as crianças se deslocavam até a universidade. Com efeito, a figura materna constitui-se como uma referência fundamental para os/as pequenos/as, de modo que eles/ as adaptaram-se à rotina de acompanhar suas mães ao ensino superior de início. “Há tempos, a antropologia da criança fala que o cuidado destinado à infância, nas sociedades indígenas, é tarefa compartilhada pelo grupo de parentesco”, no entanto, “em outros espaços, essa divisão tende a reunir mais mulheres do que homens”, de forma que “o processo de produção de pessoas passa por uma constituição feminina de corpos” (JESUS, 2020, p. 61).

Por certo, “criar crianças não é uma tarefa individual, tal como preconizou, em algum momento, a invenção do amor materno, solitário e sobrecarregado”, nas palavras de Jesus (2020, p. 67). Quer dizer, “assim como a infância foi um dia criada, também as configurações da maternagem foram culturalmente construídas” (Ibid., p. 67). O que se tem são os valores dominantes de uma sociedade determinando os respectivos “papéis” do pai, da mãe e do filho/a, de modo que o valor e o reconhecimento da mulher estão vinculados, em maior ou menor medida, enquanto boa mãe, conforme a sociedade valorize ou deprecie a maternidade. Entretanto, construções contemporâneas, como babás, espaços privados educativos, atuando também o cuidado infantil, evidenciam que habilidades em educação de crianças não se restringem à figura materna (JESUS, 2020).

Nesse sentido, cabe destacar que este novo espaço almejado pelas mulheres indígenas, a universidade, “fruto de uma tradição de pensamento eurocêntrica, foi criada para desenvolver habilidades e competências individuais”, de acordo com a referida autora (2020, p. 67), tem funcionado bem, pensando-se no indivíduo isolado, sem família, sem filhos/as, “intelectuais homens, em um período remoto [...], mulheres solteiras ou casadas que tinham a possibilidade de pagar empregadas domésticas. Contudo, é restrito demais para criar espaços e tempos democráticos no Ensino Superior”, na medida em que a empregada doméstica, que agora também estuda, não tem quem cuide de seus/ suas filhos/as (Ibid., p. 68).

A presença das mulheres indígenas e suas crianças na universidade, especialmente por meio das Licenciaturas Interculturais7, que não apenas forneceu subsídios para as escolas indígenas, mas também mostrou elementos importantes para a organização do ensino superior, evidencia a potencialidade da interculturalidade, muito maior do que aquilo que preconizava o Programa de Apoio à Formação Superior de Licenciatura Indígena - PROLIND8. “Para além de se pensar como um espaço de inclusão, a universidade necessita pensar-se como um espaço de diversidade, capaz de aprender com outras culturas e tradições de conhecimento”, perpassando, assim, o desafio da democratização do ensino superior, por certo, o pensamento crítico, mas também, o respeito às diferenças culturais e à formação integral da pessoa (JESUS, 2020, p. 68).

Assim como “a aprendizagem infantil perpassa a presença, o conselho, o afeto e as redes de parentesco e cuidado”, tornando-se evidente que “a universidade, assim como espaços de venda de artesanato, apresentações de corais, reuniões políticas na aldeia ou compras no centro da cidade”, configura como “mais um espaço de vida e aprendizagem”, conforme assinala a autora (2020, p. 69), a presença das mulheres indígenas e suas crianças na academia possibilita a comunidade universitária como um todo conhecer suas histórias, as quais contribuirão para uma atuação mais ampla da universidade, no processo de formação humana. Ainda que avanços importantes, pensar sobre mães e pais e universitários/as não implica apenas garantir espaços para crianças na biblioteca e restaurante universitário, tampouco espaços de Educação Infantil dentro da universidade, como um todo, no sentido de que, com efeito, pouco incorporam à dimensão da interculturalidade (Ibid., p. 69).

Dessa forma, podemos dizer que a democratização do ensino superior, finalidade das políticas públicas inclusivas, acontece com a concretização das ações afirmativas, em especial, daquelas voltadas a uma permanência desses grupos que se pretende incentivar, como os povos tradicionais, levando-se em conta, nos caso das mulheres indígenas universitárias, a necessidade de se compreender “as hierarquias sociais e os projetos de futuro desses grupos, pautados também por relações de gênero e geração”, bem como “pensar sobre maternagem”. Quer dizer, há que se atentar para questões práticas, como por exemplo, a organização dos calendários acadêmicos, das aulas práticas, das atividades avaliativas, por mais simples que parecem (Ibid., p. 69).

Conforme apontam Fernando Athayde e Antonio Brand (2009), pouco se discute acerca do modelo de universidade e das necessidades e possibilidades de transformação dessas instituições, no sentido de prepará-las para receber seus/suas novos/as acadêmicos/as, os/as indígenas, que vêm aprender o que a universidade tem para ensinar, mas, também, ter seus conhecimentos reconhecidos, valorizados. Torna-se fundamental que as instituições de ensino superior e seus/suas educadores/as sejam mais democráticos/as, multiculturais e voltados/as aos interesses da sociedade como um todo, para além das ações afirmativas e das cotas, dialogando com as diferenças, de modo a se debater mais as questões metodológicas e o currículo, além de projetos de pesquisas e programas que possam favorecer não só o ingresso, mas, também, a permanência efetiva dos/as acadêmicos/as indígenas no ensino superior público.

Nesse viés, mas destacando um pouco da complexidade que circunda a presença indígena nas universidades, Tassinari (2016, p. 8) destaca o entendimento da então acadêmica Guarani do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, iniciado em 2011, Eunice Antunes, de que “uma diferença fundamental entre o modo Guarani de compreensão e o modo científico é que, para o primeiro, ‘uma coisa só faz sentido quando é sentida’”. Compreender, portanto, envolve um movimento que não é somente racional: abrange os sentidos e os sentimentos, o que nos possibilita refletir acerca de todos os passos que constroem o processo de ensino e aprendizagem na universidade para os indígenas.

A rotina universitária, com um considerável número e nível de leituras, trabalhos, provas, os relacionamentos pessoais, os espaços físicos, o ambiente universitário como um todo traz significativas mudanças na vida de qualquer estudante. Acrescentando a este novo cotidiano uma nova língua, em muitos casos, totalmente desconhecida, juntamente a distância da família, dos filhos/as, aspectos constantemente apontados pelas acadêmicas indígenas universitárias entrevistadas nesta pesquisa, têm-se barreiras quase intransponíveis para se chegar a este novo lugar possível às mulheres indígenas.

Cabe salientar o caráter provisório dos incentivos, nos quais se constituem as ações afirmativas, enquanto mecanismos que buscam equilibrar os desníveis sociais, garantindo, minimamente, o acesso imediato ao ensino superior, por exemplo, até que se alcance a igualdade, e o quanto essa presença indígena na universidade contribui para isso a longo prazo também. Quer dizer, tem-se uma geração indígena que enxerga a educação superior como uma possibilidade real, concreta, como aponta Jesus (2020), destacando a potência que teve nas crianças sua presença, ao lado de suas mães, na universidade, por meio das Licenciaturas Interculturais. Talvez a formação acadêmica não seja o caminho, mas ela é uma opção.

Nesse sentido, a seguir, apresentamos algumas discussões acerca do papel que a educação superior tem desempenhado, enquanto aliada na luta pela visibilidade da mulher indígena, diante da atuação das Universidades enquanto poder público, enquanto governo, atuando para incluir os/as estudantes indígenas e tornando-os/as cidadãos/ãs. Cidadãos/ãs de direito à qualificação universitária para atuarem na própria causa indígena, seja para formarem professores/as indígenas ou outros/as profissionais, uma vez que seriam estes/as os/ as mais qualificados/as para darem aulas nas comunidades ou atuarem nas aldeias ou nos centros urbanos próximos, onde habitam, nos dias atuais.

Daí as estratégias de acesso ao ensino superior nas instituições públicas de ensino superior, principalmente federais, com cotas para estudantes indígenas. Tem-se outra racionalidade política que não mais aquela que envolvia uma educação voltada aos povos indígenas, fundamentada na catequização, sem o devido respeito às suas particularidades sociais e culturais, a qual imperou durante séculos. Apenas com a Constituição de 1988, art. 210, §2º, é “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1988), indo o Plano Nacional de Educação ao encontro da Carta Magna, dispondo, na seção que trata sobre Educação Indígena, que “a educação bilíngue, adequada às peculiaridades culturais dos diferentes grupos, é melhor atendida através de professores índios” (Id., 2001).

A qualificação universitária também contribui para a cidadania indígena na medida em que confere a esses/as sujeitos/as condições de atuarem na própria causa indígena, envolvendo a questão da luta pela demarcação das terras indígenas, bem como o retorno qualificado para as suas reservas. São os objetivos imediatos dos/as estudantes indígenas, que buscam no ensino superior, a possibilidade de suas aldeias possuírem seus/suas próprios/as profissionais, médicos/as, enfermeiros/as, advogados/as, professores/as mais qualificados, para melhorar as condições de vida das famílias e da comunidade, em geral, além de fortalecer sua competência de negociação, pressão e intervenção, segundo Gersem Baniwa (2006), dentro e fora de suas comunidades, em sua luta contínua para terem seus direitos reconhecidos e garantidos.

A educação como caminho para a visibilidade da mulher indígena

Uma mulher indígena estar na universidade representa um importante passo na luta da mulher indígena pela igualdade de direitos, uma resistência ao machismo que permeia as comunidades indígenas, colocando em evidência uma outra sujeita que não aquela que é esposa, mãe, dona de casa, artesã. Existe um outro possível a agregar-se à vida dessas mulheres, como se pode depreender de uma das primeiras narrativas produzidas a partir das entrevistas realizadas com as acadêmicas indígenas da FURG. Em sua fala, a entrevistada relata que, casada, com filhos adultos, após um longo período sem estudar, retorna a partir do exemplo da irmã.

Eu deixei de estudar, vim morar com o meu irmão na cidade, casei, tive os filhos, o rapaz tá com 21 anos e a moça tá com 19. Eu voltei a estudar depois de quase 20 anos, fiz o EJA. Minha irmã já estava na universidade, porque antes disso, eu nem sabia o que era universidade, na minha cabeça era coisa de rico, sabe, jamais nós estaríamos em uma universidade, meu pensamento foi sempre assim. Essa minha irmã fez a frente e eu voltei a estudar (MAYA, 2020 - entrevista).

Essa irmã representa uma nova realidade que motiva a mulher indígena, a qual vive na aldeia ou nas cidades ao seu redor. A narrativa de uma outra estudante entrevistada reconhece a importância dessa motivação, revelando suas perspectivas para o futuro, cuja meta é, exatamente, trazer possibilidades outras para as mulheres indígenas aldeadas, como uma liderança feminina, por exemplo, o que ainda não se encontra com frequência. A estudante expressa, assim, seu desejo de transformar a cultura machista, que se perpetua há tempos, culpando, punindo as mulheres, sem sequer ouvi-las, conforme pude constatar em outras narrativas evidenciadas nesta escrita, anteriormente. Diversas vezes, minhas interlocutoras nesta pesquisa destacaram a possibilidade de a mulher indígena, ainda que vítima de violência doméstica, ser presa junto com o agressor.

Eu pretendo lutar pelos direitos, no geral, porque a gente vê que tem muita coisa para ser trabalhada, né, mas o foco sempre vai ser a questão das mulheres, trabalhar sempre voltada para elas, pra buscar coisas, assim, motivar as mulheres, porque até isso é difícil, sabe, receber alguma ajuda das pessoas dentro da aldeia... buscar recurso pra elas, para elas trabalharem. Eu estava agora9 conversando com as assistentes sociais que tem ali na prefeitura e elas falaram ‘quando tu volta a gente vai ter muita coisa para fazer, a gente achou a pessoa certa pra trabalhar conosco’, então, vai ser sempre voltado pro bem delas. E se possível, né, eu tenho esperança que a cultura abrace as nossas ideias também, né, dê espaço para a nossa fala, e pra tentar colocar, abrir a cabeça das nossas lideranças. Uma coisa que eu quero, bah, meu sonho... tentar fazer eles compreenderem mais nós, através de conversa, para eles verem que a mulher não é culpada, sabe, porque muitas coisas assim eles punem... que eles pensem mais sobe nós. E eu tava pensando assim, né, porque tu não vê liderança mulher dentro da aldeia, é só homem, o grupo é só de homem, e quem sabe um dia a gente não possa fazer parte desse grupo de liderança pra poder lutar, dizer ‘não é assim, tem que pensar diferente’. Porque imagina só um grupo de homens pensando sobre nossas coisas e ainda machista como são... Então, eu ainda tenho esperança que um dia vai ter uma mulher fazendo parte da liderança pra tentar mudar esse pensamento deles e acolher, dar espaço pra ouvir mais a gente, sabe, como acontece nesses casos dentro das aldeias, em que, muitas vezes eles não escutam as mulheres e simplesmente vão punir. Ter uma mulher dentro do grupo de liderança já vai fazer muita diferença e acredito que vai ser muito produtivo, tanto pra eles quanto pra nós mulheres também [...] quem sabe seja eu, isso vai motivar as mulheres (ARITANA, 2020 - entrevista).

É interessante aqui apresentar o outro lado dessa troca. As narrativas das mulheres indígenas que vivem em comunidades na cidade aonde se localiza a Instituição locus desta pesquisa evidenciam um apelo às acadêmicas indígenas da FURG, um pedido de ajuda, de mulher para mulher, de mãe para mãe, a partir das discussões em torno do preconceito, evidenciadas no Encontro de Mulheres Indígenas10, ocorrido em 2019. Esse chamamento, para que as mulheres indígenas universitárias as visitem nas aldeias com mais frequência, reflete o tamanho do reconhecimento que estar na universidade representa. É possível depreender desses relatos que a mulher indígena universitária é uma guia, alguém que teria as respostas para as dúvidas daquelas que não saíram da aldeia.

A gente tá sofrendo preconceito ainda, mas a gente vai indo, né, a gente tem que enfrentar, né. Queria pedir mais o apoio de vocês, eu chorei, eu disse pro meu marido, eu não sei mais em quem confiar. Eu peço aqui na frente de vocês, vem mais vezes visitar nós, porque eu vou dizer que eu não tô bem... daí eu quero que vocês se aproximem mais de nós. Semana passada inteira a minha filha não foi na aula, daí eu perguntei pra ela, ‘filha, por que tu não tá indo na aula mais’, daí ela me disse ‘por que eu vou se os meus colegas me olham com cara feia’. Isso é muito triste pra mim, eu não falei isso pra ninguém, tô falando isso aqui pra vocês. Ela me disse ‘mãe, isso não é bom pra mim...’ Nós que somos indígenas gostamos de proteger nossos filhos, que nem uma galinha (CECI, 2019 - diário de campo).

A mulher indígena universitária representa uma vitória que conforta, que dá força para lutar, e uma luta que leva a algum lugar, lugar este almejado pelas mulheres indígenas aldeadas na figura de seus/suas filhos/as. Na narrativa que segue se percebe também resquícios da colonialidade11, que reduzem os povos indígenas a seres selvagens, refletindo o desrespeito, o preconceito, a discriminação, a violência relatados, numa inferiorização da cultura, dos costumes, dos conhecimentos, das línguas, da religião, prevalecendo a subalternização dos povos colonizados, invisibilizados/as, excluídos/as, bugres e a hegemonia da nação colonizadora branca.

Essa parte aí dói pra nós, né, preconceito com os nossos filhos. Também queremos que eles cheguem lá, que nem vocês chegaram lá, quero que um dos meus filhos, pelo, menos, chegue lá, né. É isso que eu digo quando eles chegam pra mim e dizem ‘mãe, eu sofri isso’. Eu digo pra eles ‘não é por isso que vocês têm que parar, vocês têm que ir em frente’. ‘Às vezes tem uns que chamam a gente de bugre, e eu não sei, eu não entendo isso’, eles dizem, né. Daí eu digo, não, os nossos antepassados, eles eram bugres, eles matavam pessoas pra comer. Não, eu digo pra eles, nós não somos bugres [...], não, a nossa cultura é indígena, vocês têm que falar para as pessoas que vocês são índios. Muitas vezes a gente sofre bastante coisas, mas é assim que a gente tem que viver, é a nossa vivência, mas vamos chegar lá, vamos lutar. Tenho certeza que quem já escutou a gente falar vai dizer, não, aquele lá não é bugre, é índio (INAIÊ, 2019 - diário de campo).

Para além dessa questão da motivação, Faustino, Novak e Lança (2010) destacam uma ausência de debates e de pesquisas sobre as questões de gênero e as especificidades das mulheres nas aldeias indígenas, ressaltandose que não há espaços organizados, que favoreçam a discussão de assuntos de interesse das mulheres, tampouco políticas públicas específicas com foco na questão de gênero. Daniel Domínguez e Consuelo Lozano (2015) apontam tratar-se de uma população escassamente abordada por aqueles que estudam etnia, gênero e juventude indígena, ainda que tenha havido uma crescente de estudos sobre a juventude, a partir do novo milênio, há um déficit na perspectiva de gênero.

Tais fatores tornam-se relevantes a partir do momento em que meninas, de 13/14 anos, em geral, abandonam a escola para se casarem ou assumirem maiores responsabilidades no cuidado dos/as irmãos/ãs menores, nos trabalhos domésticos, na fabricação e na venda de artesanato, atividade que representa o sustento da maioria das famílias nas comunidades indígenas. Dentre as responsabilidades das mulheres adultas estão os afazeres domésticos, o cuidado dos/as filhos/as, o plantio e a colheita, além da confecção e venda de artesanato nas cidades (FAUSTINO; NOVAK; LANÇA, 2010).

Nesse sentido, a narrativa de uma das entrevistadas relata a experiência do casamento jovem na vida da mulher indígena na aldeia, difícil em vários sentidos: não ter alguém para conversar, a depressão, o filho pequeno. Trata-se de um costume comum aos homens indígenas também.

Eu me casei bem novinha, com 13 anos. Com 12, 13, 14 anos os piá já estão casados. Eu de fora hoje fico indignada, mas faz parte da cultura. Não tenho lembrança boa dessa época, não foi legal... eu era criança e eu não tinha ninguém pra me dar um conselho, né, pra dizer ‘olha, isso aí não pode’. Isso aí, tudo que eu passei, assim, eu vejo que foi pra mim devastador [...]. Depois, com ajuda de psicólogo, psiquiatra - quando eu era nova, eu não sabia nem o que era um psicólogo, um psiquiatra, mas depois eu fui morar perto dos meus irmãos, fora da aldeia, daí, por causa da depressão quando me encaminharam para psicólogo, psiquiatra [...]. Eu já tinha o meu primeiro filho, ele tinha três anos quando eu consegui sair. Então, foi bem complicado (ARITANA, 2020 - entrevista).

Rosângela Faustino, Simone Novak e Vanessa Lança (2010) apontam que a mulher tem atuação na organização sociocultural indígena, participa das assembleias comunitárias, que tratam de assuntos de interesse da comunidade, porém seus aconselhamentos dão-se apenas em âmbito doméstico, uma vez que a chefia ocorre por meio do sistema de cacicado, no qual prepondera o papel do homem: historicamente os caciques e demais lideranças políticas costumam ser do sexo masculino. Segundo Lourdes Guala (2004, p. 5), a concepção de igualdade de gênero requer uma mudança cultural na forma de pensar e de agir dos povos indígenas, já que implica uma atribuição de “papéis” iguais a homens e mulheres, colidindo com o que ocorre de fato: esses “papéis” são determinados pelos padrões culturais da comunidade, marcados conforme o gênero, atribuídos exatamente com base na diferença sexual (masculino-feminino).

A questão da maternidade, enquanto algo que atravessa muito mais esse papel da mulher, aparece nas narrativas das minhas interlocutoras como uma dificuldade enfrentada pela mulher indígena, que se propõe a cursar uma faculdade. A estudante que tem filho/a não pode levá-lo/a consigo, pois auxílios como moradia na Casa do Estudante são apenas para o/a estudante e deixar seus/as filhos/as para virem para a Universidade configura-se como um impeditivo para as mulheres indígenas, conforme relata uma das alunas indígenas entrevistadas, argumentando a necessidade de se ter um olhar voltado para as especificidades das mulheres indígenas em si.

Esse sistema de cotas tem que ser muito bem mais trabalhado, mais efetivo, principalmente, assim, porque eles fazem em geral, nunca pensam em mulher. Eu acredito que tem que ter alguma coisa pensando nas mulheres, porque pro homem é mais fácil, tudo é mais fácil, então, teria que ter alguma coisa que ajudasse mais, efetivamente, ajudasse mais (ARITANA, 2020 - entrevista).

Isso nos leva à reflexão de que, com efeito, há muito mais a ser considerado para esta cidadania pública que estar na universidade acarreta a mulher indígena. Sua resistência começa na saída da aldeia, deixando seus/suas filhos/as para trás, o que, por certo, representa para muitas uma barreira insuperável, seja para seu ingresso, seja para sua permanência, já que há quem desista exatamente por isso, conforme demonstra a narrativa dessa mesma estudante, revivendo o início da sua caminhada acadêmica.

Eu lembro que eu deixei escrito num espelho, o meu filho nem sabia ler, mas eu peguei um batom e escrevi ‘a mamãe te ama muito, tá e sempre vai te amar’. E até hoje ele lembra, porque a minha irmã leu pra ele [...]. Tem mulheres que se inscreviam pra vir pra FURG, só que quando chegavam lá, viam que não podiam levar os filhos, não tinham apoio e acabavam voltando pra aldeia. Porque o homem não pensa muito nisso, mas pra gente é mais complicado, né, deixar os filhos (ARITANA, 2020 - entrevista).

Também, houve narrativas que associaram as ações afirmativas à visibilidade da mulher indígena, ratificando aquela questão motivacional para com as mulheres indígenas que permanecem nas aldeias. Vê-se a cidadania pública da mulher ganhando espaço, mas indo de encontro à mulher cidadã restrita ao ambiente doméstico, enquanto resultado da colonialidade de gênero, que desorganizou e desvalorizou os papeis ocupados pelas mulheres nos espaços pré-coloniais, na medida em que a privatização do espaço doméstico, resultado da captação do gênero pré-intrusão colonial pelo gênero moderno, apaga a atuação política feminina, para além das relações de esposa e mãe, conforme trouxe Rita Segato (2012), num momento anterior desta investigação.

Nós vendo as mulheres entrando e ganhando força junto é legal porque aí essa mulher indígena passa a influenciar as outras na aldeia, sabe, e é uma grande influência para as mulheres indígenas da aldeia. Elas vendo a gente estudando e buscando nossos objetivos, assim, elas veem e que querem ser assim, por que é muito ruim ficar sendo mãe, mulher ali, sabe, uma grande responsabilidade, deixando de viver o sonho dela, de ser uma enfermeira, de ter um diploma, um estudo, eu acho que agora a maioria pensa assim, sabe, não quer mais viver daquele jeito (AYRA, 2020 - entrevista).

Esse confronto entre a igualdade de direitos entre homes e mulheres e os aspectos culturais dos povos indígenas sai da aldeia e chega até a academia, como se pode constatar nas vivências relatadas pelas mulheres indígenas universitárias da FURG, as quais, para ganharem voz dentro da Instituição, frente aos homens indígenas universitários, sobretudo, criaram o Coletivo de Mulheres Indígenas Xondarias, conforme mencionado anteriormente nesta escrita. Trata-se de um preconceito contra a mulher indígena que vem do próprio homem indígena, conforme destaca uma das alunas entrevistadas: a gente resolveu fazer esse Coletivo devido aos grandes ataques que a gente tava tendo dentro da universidade, nem tanto pelos homens em geral, não, foi pelos próprios homens indígenas que estavam na Universidade, que conviviam com a gente (NIARA, 2020 - entrevista).

Na aldeia, tem indígena ainda que diz que mulher tem que ficar no canto dela quando homem tiver falando do assunto dele. Tem muito homem que pensa ainda que mulher é pra fogão, limpar a casa, isso é uma coisa que é difícil de tirar. E aqui na universidade também, né, a gente trouxe os homens pra universidade e a universidade não acabou com isso, né. Eu vejo assim, que o homem branco não tem muito preconceito [...] me senti apoiada pelo homem branco, é mais complicado trabalhar isso com os homens indígenas, né?! (ARITANA, 2020 - entrevista).

A realidade das mulheres indígenas enquanto sujeitas constituídas em suas aldeias reflete, de acordo com Faustino, Novak e Lança (2010, p. 345), uma dupla exclusão, uma dupla invisibilidade: de etnia e de gênero, tanto para com as sociedades dominantes quanto para as comunidades em que vivem, e estar na Universidade representa a possibilidade de tornarem-se visíveis. Há, por certo, segundo Maria Aparecida Bergamaschi e Andreia Kurroschi (2013), um impacto das ações governamentais no crescimento do acesso indígena ao ensino superior, mas destaca-se a atuação dos movimentos indígenas que elegeram o ensino superior, dentre outros, como um espaço de afirmação, de modo que a universidade configura como uma aliada nessa afirmação.

Conforme ratifica Antonella Tassinari (2016, p. 7),

Em parte decorrente das próprias iniciativas de indígenas em busca do ensino superior, em parte fruto de políticas recentes de formação de professores indígenas em nível superior (editais do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas - PROLIND) e de inclusão de indígenas nas universidades (iniciativas de ações afirmativas), o contingente de estudantes indígenas nas universidades cresceu consideravelmente no país, assim como vem se ampliando o número de pesquisadores, mestres e doutores indígenas, alguns ocupando cargos de docência em universidades.

Com efeito, Domínguez e Lozano (2015) apontam que o espaço escolar, especificamente o universitário, institui um espaço social do jovem que, dentro das comunidades indígenas e da sociedade em geral, distingue e define uma população. Nesse sentido, a universidade, ainda que reforce, modelos dominantes de gênero, sexualidade, corpo, ao mesmo tempo, gera reflexões críticas que tendem a transformar tais modelos. Isso indica um campo juvenil dinâmico e transformador, condicionado por múltiplas formas de ser jovem, que se posicionam e se relacionam, em termos de conflito e exclusão, mas também de consenso e identificação.

Assim, a presença das mulheres indígenas dentro da universidade, por meio das ações afirmativas, possibilita um diálogo dentro da universidade que contribui para o debate acadêmico e o refinamento teórico que se faz necessário e que não se fazia até então, com a força vem ganhando, alcançando discussões importantes que circundam contextos indígenas e não indígenas, como a questão da violência contra as mulheres, para além das especificidades que demandam cada situação. Mais que isso, um fortalecimento pessoal, que gera reflexões críticas, as quais tendem a transformar realidades, neste novo local que funciona como um espaço de afirmação, que os/as distingue em meio aos/às diferentes, mas também definir os/as sujeitos/as.

Outra coisa que eu aprendi, eu tinha vergonha, eu não conversava com as pessoas, e o Direito me proporcionou estar me desenvolvendo mais pra conversar com as pessoas, daí eu não tive mais medo. Aí ninguém mais pisou em cima de mim, a FURG abriu as portas pra mim, sabe, eu aprendi a ser mais forte. E quando, porque o nosso coletivo tem mais homens do que mulheres, daí, os homens, né, não adianta, né, já é da cultura ser machista, né, uma mulher abrir a boca, já não é legal pra eles. Então, eu comecei a falar sozinha, as questões das mulheres, o que a gente passava nas aldeias, porque ninguém abria a boca pra falar sobre mulheres indígenas dentro da Universidade e eu comecei a levar com seriedade porque é diferente nossa condição [...]. Aí eu comecei a falar na FURG como é que funcionava dentro da aldeia e as pessoas começaram a se comover. Eu fiquei uns 2, 3 anos assim, só eu, fazendo falas, saindo pra fora da Universidade, falando da nossa realidade. Daí, os homens começaram a me abafar, falando que iam levar para as lideranças, que eu tava falando mal dos homens, sabe, machismo. Daí, eu não tinha medo deles, até teve uma reunião com todos eles presentes e eles me atacaram muito, e eu falei ‘vocês não vão me calar e eu não tenho medo de ninguém’, coisa que jamais... (ARITANA, 2020 - entrevista).

Há uma ânsia em mudar a realidade da mulher indígena dentro das aldeias, em especial, no que tange à violência física, psicológica, doméstica e o alcance da Lei Maria da Penha, conforme traz uma das mulheres indígenas da FURG, sobre o curso superior que escolheu.

Eu queria Direito pra eu poder ajudar meu povo, pra eu lutar pelas questões das mulheres. Eu sempre quis isso, então, não tinha outro curso pra mim, a não ser esse [...], por tudo que a minha mãe passou, tudo o que ela representou, tudo o que ela ensinou pra mim desde pequena, isso foi crescendo na minha cabeça e eu não... ‘puxa, eu quero ajudar as mulheres, eu preciso ajudar as mulheres’. Eu sempre pensava assim [...]. Por isso eu escolhi o curso de Direito, garantir que nenhum homem vai fazer isso pra mim, que eu não vou saber o que fazer (NIARA, 2020 - entrevista).

Este novo espaço da universidade, o curso, tornam-se aliados não apenas na luta pela causa indígena, mas também na reconstrução da sua identidade, que, neste contato com o outro, tem sua realidade transformada, ao longo dos discursos, práticas e posições que passam a assumir. Ao inserir o/a cidadão/ã indígena em uma sociedade que não é a sua, a política pública passa a ser responsável também, enquanto um agente de mediação, pelo reconhecimento da identidade desses/as indivíduos, os/as estudantes indígenas, que agora estão diante da junção de dois universos, o de origem e o de destino, completamente diversos, com conhecimentos, práticas, costumes diferentes.

A experiência de estar na universidade, o próprio ambiente universitário por si só, não apenas na vida dos/as estudantes indígenas, traz significativas mudanças em seu dia a dia, traz novas perspectivas frente a um contato com outras culturas, outros/as sujeitos/as, outros modos de olhar para o mundo e para as relações sociais. Tudo isso, todo esse experienciar de algo novo diz respeito às influências externas, condições sociais, instituições, crenças ou percepções fora dos/as sujeitos/as, às quais eles/as vão reagir, conforme assinala Joan Scott (1998), subjetivando-se, ou não.

O contato com o outro, com o diferente, neste caso, o mundo dos/as não indígenas, pode ser percebido como superior e a sua própria cultura pode ser desvalorizada, passando a ser omitida, negada e, por fim, esquecida. Esse é um processo que se verifica nas relações sociais existentes dentro do ambiente universitário, por exemplo, repleto de novas perspectivas, rotinas diversas das que estão acostumados/ as qualquer estudante, indígena ou não. Na universidade, a cultura não indígena é a dominante, sendo percebida muitas vezes como única, legítima, especialmente, pela necessidade de se fazer parte do grupo, fugindo do preconceito, tentando tornar-se igual, o que se vincula fortemente à colonialidade.

Nesse sentido, cabe destacar que a relação que os/as estudantes indígenas, em especial aqueles/as que ainda residem nas aldeias, nas comunidades indígenas, estabelecem com o contexto urbano, universitário, é significativamente diferente das relações que os/as estudantes não indígenas mantêm com estes mesmos espaços, conforme argumentam Jesus et al (2013). Com efeito, “o ideal de sair de casa para estudar e alcançar autonomia financeira e independência pessoal, que geralmente motiva os estudantes universitários em busca de uma carreira profissional, não necessariamente é o que mobiliza os estudantes indígenas” (Ibid., p. 231). Ainda que “a busca indígena por profissionalização siga as mesmas trilhas dos estudantes não indígenas, não é essa a lógica que direciona os estudantes indígenas para o Ensino Superior” (Ibid., p. 231), de modo que “ingressar em um curso superior possui significados muito distintos para a maioria dos estudantes indígenas” (Ibid., p. 232).

Stuart Hall (2000) fala de uma sujeição do indivíduo, inclusive com a abstenção de suas vontades, o que revela também relações de poder, as quais definem quem exclui e quem é excluído. Essas relações de poder geram identidades concebidas como produto da marcação da diferença e da exclusão (Id., 2002). Com efeito, nas palavras de Anna de Oliveira (2013, p. 33), “o poder está entremeado por relações de diferença e seus efeitos em estruturas sociais demonstram tais diferenças”, o que se reflete na realidade acadêmica dos/as estudantes indígenas, minoria nesta relação social, imersos em uma realidade cultural que é dominante e bem diferente da sua, restando-lhes a “oportunidade” de sujeitarem-se, ao jeito de falar, de se vestir, de se comportar.

Ceres Brum e Suzana Jesus (2015, p. 202) apresentam uma discussão interessante acerca da invisibilização enquanto efeito do estereótipo indígena por muito tempo presente nos livros escolares, envolvendo a seminudez, moradias como ocas, atividades de subsistência como caça e pesca, o arco e a flecha. Quer dizer, a invisibilidade humana corresponder a uma quase inexistência, o que, socialmente, acaba por acarretar em diversas “formas de exclusão e/ou discriminação, por vezes escamoteadas que gravitam em torno de produção de percepções ‘equivocadas e interessadas’, que objetivam conduzir a negativas de reconhecimento da diferença cultural”, de modo que a sociedade produz “imaginários que idealizam e celebram determinadas formas de ser”, os quais são “percebidos e enraizados através de aprendizados partilhados, que rejeitam a dinâmica cultural e produzem assimetrias equivalentes a um não existir como correlato” (Ibid., p. 202).

Ou seja, a representação que se criou do/a indígena e que se perpetua no espaço e no tempo, distanciando-se cada vez mais do real, “empurra para o terreno dos estereótipos as reflexões sobre o outramento e seu exercício”, quando nos propomos a tal, pelo menos, num primeiro momento. Há que se reconhecer a diferença, a diversidade cultural que nos cerca, deixando para traz esse viés caricato, que não se reduz à aparência física, ao cabelo, à roupa que se usa, pois “as práticas discursivas que reiteram diversidades sem o reconhecimento da diferença, como corolário dessa exclusão, reificam uma diversidade que se plasma no processo de invisibilização”, o qual contribui, significativamente para os processos de assujeitamento e subjetivação (Ibid., p. 202).

Assim, é visível a potência das ações afirmativas no país, enquanto mecanismos que objetivam oferecer igualdade de oportunidades a todos, visando remover barreiras, formais e informais, conforme Oliven (2007), que impedem o acesso de determinados grupos ao mercado de trabalho, ao ensino superior, a posições de liderança, dentre outros. Isso por certo se reflete na busca indígena pela qualificação universitária indígena, focada na própria causa indígena, envolvendo a questão da luta pela demarcação das terras indígenas, bem como o retorno qualificado para as suas reservas. São os objetivos imediatos dos/as estudantes indígenas que buscam no ensino superior, a possibilidade de suas aldeias possuírem seus próprios profissionais: médicos/as, enfermeiros/as, advogados/as, professores/as mais qualificados/as, para melhorarem as condições de vida das famílias e da comunidade, em geral, além de fortalecerem sua competência de negociação, pressão e intervenção, segundo Baniwa (2006), dentro e fora de suas comunidades, em sua luta contínua para ter seus direitos reconhecidos e garantidos.

Apontamentos finais

As políticas públicas envolvendo ações afirmativas, como o acesso diferenciado à educação superior, por meio de reserva de vagas ou vagas suplementares para indígenas, bem como as que envolvem a permanência desses/ as estudantes na universidade, como bolsas, acompanhamento pedagógico, tem o dever de garantir-lhes o direito de se inserirem nesse ambiente educacional. Isso acaba tornando as universidades espaços mais inclusivos, valorizando-se as diferenças sociais, culturais e físicas, de modo que todos sejam tratados com igualdade e respeito.

Por outro lado, há também uma batalha dentro da Universidade a ser travada, especialmente, pelas acadêmicas indígenas para resistirem não apenas a sua realidade nas comunidades, mas também a sua realidade universitária. A constituição como sujeitas das mulheres indígenas universitárias precisa ir além daquela visão ingênua do que pode significar uma mulher indígena estar na universidade e do quanto às ações afirmativas corrigem as desigualdades.

1Pesquisa de doutorado desenvolvida no âmbito da linha de pesquisa “Discursos, Culturas e Subjetividades na Educação em Ciências”, do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências, da Universidade federal do Rio Grande - FURG.

2Hoje, vige no país o Programa Nacional de Ações Afirmativas, instituído pelo Decreto nº 4.228/2002, que trata de políticas públicas que objetivam corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos, protegendo minorias discriminadas em determinado período histórico, e a Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei das Cotas, que dispõe acerca da reserva de um percentual de vagas para determinado grupo que se pretende incentivar. No âmbito da IFES locus da pesquisa, as ações afirmativas para estudantes indígenas foram criadas pelo Programa de Ações Afirmativas - PROAAf, instituído pela Resolução nº 020/2013, com a finalidade de promover a democratização do ingresso e permanência de estudantes indígenas, dentre outros.

3Segundo Do Espírito das Leis, obra do autor francês Charles de Montesquieu, as leis são relações cujo espírito é preciso determinar, pois a letra varia de acordo com os lugares e as circunstâncias. Tratam-se de relações que envolvem a forma de governo, a religião, os costumes, o comércio, o clima etc.

4Atentando às questões éticas e ao direito à confidencialidade, as acadêmicas indígenas entrevistadas não são identificadas, optando-se por utilizar pseudônimos, os quais se referem a nomes femininos indígenas.

5Informações obtidas junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da FURG.

6 Assimilação de culturas periféricas pela cultura dominante.

7 Jesus (2020) relata sua experiência como docente em uma Licenciatura Intercultural Indígena, organizada por um regime de alternância, intercalando o chamado Tempo Universidade, com aulas concentradas, no espaço da universidade, e o Tempo Comunidade, com atividades desenvolvidas na comunidade de origem de cada estudante, o que possibilitou que, com o auxílio de cuidadoras, quando muito pequenas, as crianças acompanhassem suas mães estudantes, condição fundamental para que algumas pudessem frequentar a universidade.

8O Programa de Apoio à Formação Superior de Licenciatura Indígena - PROLIND, cujo foco esteve na formação em nível de graduação de professores para o exercício da docência nas escolas indígenas, foi lançado pelo MEC, em 2008 (JESUS, 2020).

9A estudante indígena, durante a entrevista, em razão da pandemia, encontrava-se em sua comunidade indígena.

10Para uma aproximação com o corpus deste trabalho, num primeiro movimento de pesquisa, realizamos uma observação no Encontro de Mulheres Indígenas da cidade do Rio Grande, ocorrido em 2019, organizado pelo Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Rio Grande - COMDIM, buscando a união e o compartilhamento das demandas e especificidades das mulheres indígenas na cidade, enquanto um espaço para discutir políticas públicas na saúde, educação e políticas afirmativas, entre trocas de saberes e vivências das mulheres indígenas, oportunidade que possibilitou um primeiro contato com algumas das mulheres indígenas universitárias da FURG, e também, com algumas daquelas aldeadas da região.

11Forma de dominação que se mantém viva no saber, na cultura, no senso comum, na autoimagem, no cotidiano, no comportamento, nas crenças, nas formas de relação do trabalho, nas formas de pensar, discursos, práticas e atitudes, tendo como objetivo a subalternização dos povos colonizados e a permanência da hegemonia da nação colonizadora.

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Recebido: 29 de Agosto de 2023; Aceito: 14 de Outubro de 2023

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Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Técnica Administrativa em Educação na Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (Gese). E-mail: karinamolina@furg.br

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Pós-Doutora pela Escola Superior de Educação de Coimbra/Instituto Politécnico de Coimbra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Líder do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (Gese). Pesquisadora do Grupo de Investigación en Educación y Sociedad (Gies). E-mail: Ribeiro-pribeiro. furg@gmail.com

Corpos, gêneros e sexualidades revisado por Marisa Barreto Pires

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