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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub 06-Mayo-2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p220-234 

Corpos, gêneros e sexualidades

“EU ME FIZ PESQUISADOR ANTES DE ME FAZER TRANS”: (RE)EXISTÊNCIAS NO CAMPO CIENTÍFICO

“I MADE MYSELF A RESEARCHER BEFORE I BECAME TRANS”: (RE)EXISTENCES IN THE SCIENTIFIC FIELD

“ME HICE INVESTIGADOR ANTES DE QUE ME HAGAS TRANS”: (RE) EXISTENCIAS EN EL CAMPO CIENTÍFICO

Yasmin Teixeira Mello1  *
http://orcid.org/0000-0002-7281-6864

Joanalira Corpes Magalhães2  **
http://orcid.org/0000-0002-9785-6854

1Universidade Federal do Rio Grande

2Universidade Federal do Rio Grande


RESUMO

Historicamente, as pessoas trans têm sua presença inviabilizada nos mais variados espaços, como é caso do campo científico. Partindo desta constatação, o presente Corpos, gêneros e sexualidades apresenta um recorte de uma pesquisa de mestrado, que objetiva tecer interlocuções com a narrativa de um pesquisador trans, relacionada à sua trajetória de constituição enquanto pesquisador. Para isso, realizou-se uma entrevista on-line, com auxílio de um roteiro semiestruturado, em que as narrativas foram entendidas enquanto uma modalidade discursiva. As narrativas foram organizadas em: Eixo narrativo 1: Produção do gênero e a constituição como pesquisador; e Eixo narrativo 2: Dificuldades, preconceitos e resistências. Ao dialogar com a narrativa do pesquisador, foi possível pensar em relação às marcas que o processo de transição de gênero promoveu na sua constituição no campo da pesquisa, assim como as dificuldades, preconceitos e resistências presentes ao longo da sua trajetória profissional e acadêmica.

Palavras-chave: Pesquisa; Gênero; Trajetória; Campo-científico.

ABSTRACT

Historically, trans people have had their presence made impossible in the most varied spaces, as is the case of the scientific field. Based on this finding, the present article presents an excerpt from a master’s research, which aims to weave interlocutions with the narrative of a trans researcher, related to his trajectory of constitution as a researcher. For this, an online interview was conducted, with the aid of a semi-structured script, in which the narratives were understood as a discursive modality. The narratives were organized into: Narrative axis 1: Production of gender and constitution as a researcher; and Narrative axis 2: Difficulties, prejudices, and resistances. By dialoguing with the researcher’s narrative, it was possible to think about the marks that the gender transition process promoted in its constitution in the field of research, as well as the difficulties, prejudices and resistances present throughout its professional and academic trajectory.

Keywords: Research; Gender; Trajectory; Field-scientific.

RESUMEN

Históricamente, las personas trans han visto imposible su presencia en los más variados espacios, como es el caso del campo científico. A partir de este hallazgo, el presente artículo presenta un extracto de una investigación de maestría, que tiene como objetivo tejer interlocuciones con la narrativa de un investigador trans, relacionada con su trayectoria de constitución como investigador. Para ello, se realizó una entrevista en línea, con la ayuda de un guion semiestructurado, en el que las narrativas se entendieron como una modalidad discursiva. Las narrativas se organizaron en: Eje narrativo 1: Producción de género y constitución como investigador; y Eje narrativo 2: Dificultades, prejuicios y resistencias. Al dialogar con la narrativa de la investigadora, fue posible pensar en las marcas que el proceso de transición de género promovió en su constitución en el campo de la investigación, así como las dificultades, prejuicios y resistencias presentes a lo largo de su trayectoria profesional y académica.

Palabras-clave: Investigación; Género; Trayectoria; Campo-científico.

Problematizações iniciais

Em um texto escrito para a revista Carta Capital, em 2019, a pesquisadora Sara Wagner York1 problematiza as dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans ao se colocarem no campo científico enquanto pesquisadoras/res, em que ela afirma: “por ter sido retirada várias vezes de muitas discussões que me atingiam, venho me vestindo com as roupas adequadas, instrumentalizando minhas falas e subvertendo minhas escutas” (n.p).

A partir dessa reportagem, somos mobilizadas a refletir sobre três questões centrais, quando pensamos na questão das possibilidades de existência das pessoas trans no campo científico, sendo elas: Quando discutimos gênero e ciência de quem estamos falando? Quem está no centro do debate? Quem está fora?

De acordo com a pesquisadora Megg Rayara Gomes de Oliveira (2018), os discursos produzidos e reproduzidos sobre as pessoas trans na nossa sociedade são geralmente aqueles que as associam à prostituição, naturalizando este como um dos poucos espaços possíveis para essas/es sujeitas/os. Quanto a esta questão, uma reportagem do site Gente Globo expõe dados sobre a ocupação do mercado de trabalho por pessoas trans, em que salienta que “90% das mulheres trans e travestis se declaram como profissionais do sexo, acompanhantes ou garotas de programa como principal ocupação, sendo 46% travestis e 34% mulheres trans” (n. p).

A reportagem acima também destaca que, quando essas mulheres trans não estão ocupando esses espaços da prostituição, estão em trabalhos informais, autônomos, temporais ou sem contrato, com “72% de travestis e 62% de mulheres trans vivendo a instabilidade para a garantia do sustento”. E em relação aos homens trans, os dados referentes ao mercado de trabalho destacam que 49% deles estão empregados formalmente, com carteira de trabalho assinada.

Assim, ao problematizamos as possibilidades de existências trans e seus trânsitos, é possível detectar o quanto ainda hoje elas são não reconhecidas, sendo invisibilizadas e inclusive excluídas de muitos espaços sociais, como o campo científico.

O campo científico, espaço para qual iremos olhar nesse texto, comumente não reconhece e/ou visibiliza a existência das pessoas trans enquanto produtoras/es de conhecimento científico. Geralmente reserva, a essa população o lugar de objeto de estudo, como é salientado na tese de doutorado da pesquisadora Letícia Carolina Pereira do Nascimento Nascimento (2023), intitulada “Modos de educar entre jovens transvestigeneres: cartografias desejantes na universidade”.

Todavia, ultimamente é possível observar que cada vez mais as pessoas trans têm reivindicado seu espaço no campo científico enquanto pesquisadoras/es e produtoras/es de conhecimento científico, realizando o importante movimento de visibilizar essas outras possibilidades de existência que rompem com os preconceitos normalmente reforçados na sociedade. Movimento esse que ganha força com o transfeminismo, que pode ser definido como “uma corrente teórica e política vinculada ao feminismo” (NASCIMENTO, 2021, p. 68), voltada aos diretos das mulheres trans.

Desta forma, enquanto pessoas cis que escrevem esse Corpos, gêneros e sexualidades, compreendemos a importância de nos aliar na pluralização desse debate, tecendo interlocuções com as narrativas de pesquisadoras e pesquisadores trans para pensar a temática, pensar nas múltiplas possibilidades de existências e vivências dentro do campo científico, e problematizar os processos de invisibilidade promovidos ao longo da história.

Assim, o objetivo deste Corpos, gêneros e sexualidades é tecer interlocuções com a narrativa de um pesquisador trans relacionada à sua trajetória de constituição enquanto pesquisador. O texto se configura como um recorte da pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde da Universidade Federal do Rio Grande - Furg1.

Articulações teóricas

Fundamentamos este estudo dentro do campo dos Estudos de Gênero, por meio da vertente pós-estruturalista, compreendendo o gênero enquanto uma categoria historicamente construída, em que essa construção acontece por meio das mais diversas práticas e aprendizagens, que são produzidas por um conjunto de instâncias sociais e culturais, em um processo que é sempre sutil, minucioso e inacabado.

Desta forma, de acordo com Joan Scott (1998), o gênero se configura como “um elemento constitutivo de relações sociais, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (p. 21).

Perceber os gêneros como construções sociais, permeadas por relações de poder, nos possibilita investigar a distinção entre sexo/ gênero e, em decorrência disso, entender que o gênero se configura como “um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino” (BUTLER, 2003, p. 24-25).

Desta forma, ser mulher ou ser homem não é algo relacionado a ter uma vagina ou um pênis, visto que as expressões de gênero se constituem a partir de diferentes práticas discursivas e culturais, que ultrapassam o binarismo de gênero, normalmente imposto e naturalizado na sociedade.

É importante destacar que, com a escrita deste texto, não temos o objetivo de conceituar ou definir o que é a transexualidade ou pessoas trans, mas sim tecer diálogos com estudiosas/ os da população T sobre como tem se refletido e compreendido sua atuação enquanto pesquisadoras e pesquisadores no campo científico.

Quando refletimos historicamente sobre a produção do conhecimento no campo das ciências, é possível perceber que esse tipo de produção normalmente tem sido atribuído ao homem branco, cisgênero e heterossexual (BANDEIRA, 2008), o que acarreta uma série de desigualdades com relação a outras expressões de gênero, no que se refere à visibilidade, inserção e reconhecimento enquanto pesquisadoras/ es e produtoras/es de conhecimento científico.

Dado ao fato ressaltado no parágrafo acima, de acordo com a pesquisadora Megg Rayara Gomes de Oliveira (2018), as discriminações enfrentadas pelas pessoas trans podem ser explicadas por um contexto histórico que atualmente ainda “contribui para restringir a existência de travestis e mulheres transexuais às sociedades contemporâneas ocidentais, bem como a determinados espaços” (p. 70), um desses espaços no qual a presença dessas pessoas não é normalmente reconhecida, é o campo científico.

Cabe destacar que pensar nos processos de inserção e reconhecimento das pessoas trans no campo científico nos desafia a ampliar nossos olhares, conforme nos provocam os dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) (2023). Destaca-se que a exclusão da população T tem início já nos níveis básicos de ensino, em que se estima que a evasão escolar, normalmente, acontece quando elas/es completam 13 anos de idade, sendo que 56% não chegam a completar o ensino fundamental, e 72% não completam o ensino médio.

Atrelado a essa questão, a pesquisadora Marina Reidel (2013) problematiza o fato de a presença das pessoas trans não ser naturalizada nos diferentes espaços sociais. Desta forma, podemos relacionar esse fato às dificuldades que elas possuem de se inserirem no mercado de trabalho formal, tendo em vista o déficit que possuem quando se trata de qualificação educacional e profissional, por conta das exclusões que sofrem.

Todavia, temos percebido que a cada dia mais as pessoas trans têm reivindicado seu espaço dentro do campo científico enquanto produtoras de conhecimento, em que “o deslocamento feito por travestis e mulheres transexuais em relação à prostituição encontra similitude na produção acadêmica, quando estas deixam de ser os objetos de pesquisa e passam a ocupar o lugar de pesquisadoras” (ANDRADE, 2012, p. 16).

Cabe-nos agora indagar: quais são os desafios, dificuldades e vivências que essas pesquisadoras e esses pesquisadores têm enfrentado ao ingressarem no campo científico? É esta questão que pretendemos problematizar neste Corpos, gêneros e sexualidades, a partir das interlocuções tecidas com a narrativa de um pesquisador trans brasileiro, por meio da investigação da narrativa.

Caminhos metodológicos

Como forma de produção de dados para esta pesquisa, foi realizada uma entrevista narrativa2, de forma on-line, com um pesquisador trans brasileiro. A entrevista ocorreu no dia 30 de março de 2020, mediada com o auxílio de um roteiro semiestruturado, composto por 14 perguntas, as quais abordavam diversas questões relacionadas à trajetória de vida e profissional do entrevistado, e acerca de questões relacionadas à inserção, ao reconhecimento e à visibilidade enquanto pessoa trans e pesquisador no campo científico3.

À vista disso, neste Corpos, gêneros e sexualidades, vamos tecer interlocuções com algumas narrativas relacionadas às perguntas que abordavam as questões referentes à sua trajetória enquanto pesquisador e à sua produção de gênero, em que nosso foco de debate não foi o de identificar quais as “verdades” daquilo que foi dito, mas sim dialogar e pensar com sua trajetória enquanto pesquisador.

Para isso, organizamos as discussões desse Corpos, gêneros e sexualidades em dois eixos narrativos: Eixo narrativo 1: Produção do gênero e a constituição como pesquisador; Eixo narrativo 2: Dificuldades, preconceitos e resistências.

Como forma de desenvolver os eixos narrativos, nos utilizamos da investigação narrativa, em que entendemos a narrativa enquanto uma modalidade discursiva, pois ela já está “estruturada e pré-existe ao eu que se conta a si mesmo. Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe pré-existem e em função das quais constrói e organiza, de um modo particular, sua experiência, impõe-lhe um significado” (LARROSA, 2008, p. 66).

Desta forma, nossa postura ao nos comprometermos em trabalhar com esse tipo de investigação, não é de pesquisadoras que “coletam” dados para serem submetidos ao “crivo” das análises, mas sim acreditamos que o colaborador desta pesquisa tece, nesse estudo, interlocuções e compartilha seus modos de pensar e de viver as questões aqui discutidas.

Ao longo do processo da investigação das narrativas do pesquisador, nós entendemos que o sentido que ele atribui às suas experiências “tem a ver com as palavras e o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos” (LARROSA, 2002, p. 21). Assim, ao compartilhar suas experiências e sua trajetória, podemos problematizar as marcas que as suas narrativas apresentam em relação ao modo como ele se constitui como pessoa trans e pesquisador no campo científico.

Tecendo nossas interlocuções

Com a finalidade de tecermos interlocuções com as narrativas do colaborador desta pesquisa, fomos sendo provocadas a pensar em questões relacionadas aos seus processos de constituição enquanto pesquisador. Desta forma, para melhor organização do texto, foram produzidos dois eixos narrativos, que serão discutidos a seguir.

Eixo narrativo 1: Produção do gênero e a constituição como pesquisador

Neste primeiro eixo narrativo, estabelecemos algumas interlocuções a partir das narrativas do pesquisador com relação aos seus processos de construção de gênero e ao entrelaçamento com a sua constituição como pesquisador.

Nessa direção, a primeira narrativa que destacamos nesse eixo é a que compõe o título deste Corpos, gêneros e sexualidades, em que o entrevistado compartilha como as vivências dentro do próprio campo científico vieram a se entrelaçar à sua produção de gênero:

“Eu quero deixar isso bem claro, até porque eu sempre disse assim: eu acho que eu me fiz pesquisador antes de me fazer trans. (...) Eu me fiz pesquisador antes de ser trans. E isso não significa que foi fácil me tornar pesquisador (por ter sido visto como cis durante uma fase da minha vida), nem que foi fácil me afirmar como trans (por já ser pesquisador quando revelei minha condição publicamente). Significa apenas que trans para mim é adjetivo, não substantivo”.

A narrativa nos faz pensar o quanto os processos de constituição de pesquisador ou pesquisadora são atravessados por diversas questões, como as sociais e as culturais, em que as vivências que experenciamos dentro do campo científico podem, ou não, interpelar nossas construções como sujeitas e sujeitos.

Ainda sobre o processo de constituição como sujeito e pesquisador, o entrevistado relata que:

Durante a minha graduação eu me apresentava como uma “mulher cis”. Embora não usasse esse termo, ele não existia. Eu me apresentava como uma mulher, embora não me sentisse uma. Fui desenvolvendo várias inquietações ao longo do curso. Eu fiz dois anos de ciências sociais antes de fazer serviço social, esses cursos despertam na gente uma consciência crítica diante da realidade e isso é muito legal, fazem você olhar para o mundo de uma maneira mais crítica e pra tua própria trajetória pessoal como um elemento de reflexão profunda, de análise”.

Destacamos esse trecho narrativo, pois nos faz pensar na universidade e nos debates aí tecidos no que diz respeito a possibilitar que as/os sujeitas/os reflitam sobre suas existências. A pesquisa de mestrado da autora Évelin Pellegrinotti Rodrigues (2021), em que ela investiga as narrativas de estudantes a respeito de uma disciplina que aborda as questões sobre corpos, gêneros e sexualidades, salienta a importância dessas discussões “seja por meio de uma disciplina ou de forma transversal, em articulação com diferentes campos de conhecimento. Dessa maneira, as pessoas podem refletir sobre questões importantes e ajudarem na promoção de uma sociedade com mais respeito e dignidade a todos/as” (p.96).

Ainda pensando no papel da universidade no processo de constituição do entrevistado, ele relata que, no decorrer da graduação, houve alguns momentos que foram decisivos para que ele se compreendesse enquanto uma pessoa trans:

Ainda durante a graduação eu acho que tem duas coisas que foram fundamentais pra mim. A primeira foi uma iniciação cientifica (...) nos estudos de gênero. (...) E o segundo marco foi a inserção no movimento estudantil (...) que tem uma potência de te fazer vocalizar determinadas coisas que você não vocalizava, é um treinamento para exercício da política, então eu comecei a falar e a construir o meu discurso, a me narrar e narrar os processos que eu estava vivendo”.

Percebemos o destaque com relação à importância da iniciação cientifica, a qual “possibilita uma visualização relativa a qualquer campo de saber, fundamentada teórica e metodologicamente, complementando a formação acadêmica dos estudantes de qualquer nível” (BIANCHETTI et al., 2012, p. 581), e da inserção no movimento estudantil, que “impacta a formação e a prática dos sujeitos por meio de diferentes tipos de aprendizagem” (VILLELA; GIORGI, 2021, p. 88) para refletir sobre sua produção enquanto sujeito, e assim apresentar e reconhecer outras possibilidades de existências.

Atrelado à questão do seu processo de formação, uma das narrativas do pesquisador aponta como os questionamentos com relação ao seu gênero influíram em seu interesse de produção acadêmica:

“Eu estava terminando o mestrado na área de saúde do trabalhador na Fiocruz. O meu orientador me adorava e eu também o adorava, eu terminei em 2000, a dissertação foi muito bem recebida e ele me convidou pra continuar, pra entrar imediatamente no doutorado e continuar com ele na área da saúde do trabalhador, só que aí, a minha tribo já tinha me perdido. A discussão de diversidade sexual e de gênero já tinha me ganho e eu não conseguia mais me interessar, naquele momento, por discussões de saúde, trabalho e ambiente em geral, que era o que ele estava me propondo”.

Com base na narrativa acima, podemos problematizar o quanto nossas vivências influenciam nas nossas escolhas de temáticas de estudos, pois a pesquisa “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002, p. 21); assim somos mobilizadas/ os a realizar pesquisas de acordo com aquilo que nos interpela enquanto sujeitas/os. Tal debate e modo de pensar a pesquisa faz romper com os modos de produção de conhecimentos na ciência pautados no universalismo e na neutralidade.

A pesquisadora Letícia Carolina Pereira do Nascimento (2023) ainda salienta que, ao voltar suas pesquisas para as temáticas de gênero, “era difícil ler inúmeros compêndios de pesquisas que orientavam para uma escrita impessoal, higiênica, asséptica. A necessidade de se evitar a primeira pessoa na escrita, o desprezo pelo senso comum, essas orientações eram aterrorizantes para mim” (p. 27) e salienta que pesquisava e ainda pesquisa aquilo que “grita dentro de mim, pulsa de maneira frenética” (p. 27).

Nesse diálogo, entendemos que somos mobilizadas/os e interpeladas/os por determinadas questões quando pensamos sobre as temáticas de pesquisa e vice-versa. O entrevistado destaca que, durante a realização do doutorado, foi o momento em que de fato ele começou a questionar sua vivência de gênero e refletir sobre uma outra possibilidade de existência:

“A minha tese começou a sair e foi também um momento dialético muito intenso, porque junto com as transformações e absorção do campo, veio a minha transformação pessoal: ali começou a nascer o (nome do pesquisador). (...) No começo, eu não entendi o que estava acontecendo, minhas questões identitárias tinham sido ocultadas no final da juventude (eu já estava com 30 anos), era um sentimento de estranhamento muito profundo, eu tinha extrema solidariedade com as narrativas de sofrimento que eu ouvia das lésbicas, das mulheres que eram minhas interlocutoras de pesquisa, mas eu não conseguia me identificar com elas. Eu não conseguia me ver satisfeito naquela identidade, eu comecei a ver muitos mais pontos de dissidência do que de identificação propriamente dita com elas”.

Conforme discutimos anteriormente, entendemos que os nossos gêneros estão sempre em construção, assim de acordo com a pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus (2013) essa construção acontece de forma individual, em que a/o sujeita/o passa a se perceber como pertencente ou não a determinada expressão de gênero. Com isso, podemos problematizar acerca desta questão na narrativa do pesquisador, visto que ele menciona como a expressão de gênero que se reconhecia já não lhe cabia, passando a se questionar e reconstruir seu gênero.

Ao narrar seu processo de reconhecimento enquanto um homem trans e suas possibilidades de existência, o pesquisador tenciona:

“Bom, eu preciso primeiro achar um jeito de me proteger, embora em um primeiro momento eu dissesse assim: “’eu acho que eu vou ter que pagar o preço, se for o caso eu vou largar a profissão, vou abandonar a carreira pra poder viver o que eu preciso viver”’ Eu dizia para mim mesmo que eu ia vender laranja na feira... eu vou arrumar uma outra forma de viver, mas eu preciso seguir adiante”.

A narrativa do pesquisador nos remete à problematização que tecemos na nossa introdução sobre quais as possibilidades de existências que são oferecidas em nossa sociedade às pessoas trans, quando pensamos nas questões relacionadas ao mercado de trabalho, visto que os dados apontam a baixa inserção dessas pessoas em empregos formais.

Entretanto, para que existam mudanças em relação às possibilidades de existência que normalmente são apresentadas para as pessoas trans, é necessário visibilizar as múltiplas possibilidades de existência e vivência de gênero. Quanto a essa questão, o pesquisador salienta na entrevista a importância dos artefatos culturais para que ele compreendesse melhor suas possibilidades de existência:

“Eu ganhei de presente de um casal de amigas o primeiro livro do João, que era o Erro de Pessoa, que elas acharam num sebo. Só que o livro não deixava claro se esse cara estava vivo, estava morto, era um livro de 1983, de onde era o cara, não estava claro. Eu sabia que tinha existido um homem trans no Brasil da década de 80 e ponto”.

Os artefatos culturais, como o livro citado pelo entrevistado, têm se apresentado como potentes aliados para elucidar outras possibilidades de existência e de vivências de gênero, como citado pelas pesquisadoras Yasmin Teixeira Mello e Joanalira Corpes Magalhães (2021) ao analisarem as narrativas de pesquisadoras transexuais e travestis em cinco reportagens de sites na internet, a fim de problematizar a inserção, reconhecimento e visibilidade dessas pesquisadoras do Brasil. A partir desta pesquisa, foi possível problematizar o quanto essas reportagens são potentes para visibilizar outras possibilidades de existência e de resistência no campo científico que essas pesquisadoras vêm realizando.

Para além do espaço do campo científico e dos artefatos culturais, o entrevistado relata a importância da convivência com outros homens trans:

“Naquele momento, a principal forma de socialização dos homens trans era o ambulatório e começaram a surgir as comunidades do Orkut, que eram grupos fechados em que você pedia a inscrição e começava a falar e conversar com outros homens trans, mas não tinha vídeo, não tinha nada disso, eram conversas que você mantinha com outras pessoas”.

Sobre esse aspecto narrado, o pesquisador Guilherme Almeida (2012) salienta a importância da socialização com os pares para a autoidentificação enquanto um homem trans, dizendo que:

O processo de autoidentificação dos homens tem ocorrido por contatos pela internet em comunidades virtuais de pares (blogs, sites, Orkut, Facebook), ambientes hospitalares ligados ao processo transexualizador, universidades e espaços políticos do movimento LGBT, além de redes pessoais e do contato com matérias jornalísticas e programas de TV (p. 519).

Por conta dos contatos que o entrevistado possuía com outros homens trans que não vivenciavam a mesma profissão que a sua, ou seja, como professor e pesquisador, e as referências que os artefatos culturais apresentavam sobre as possibilidades de existência dessas pessoas, o entrevistado estava com receio de assumir sua identidade de gênero e isso proporcionar a ele dificuldades no exercício da sua profissão. Assim, ele organizou modos para que pudesse realizar essa transição, a fim de se proteger das possíveis adversidades que poderia enfrentar:

“Eu comecei a montar um plano e o primeiro ponto do meu plano era passar para uma universidade pública, em um concurso público. Isso aconteceu no início do ano de 2009. (...) Eu entrei em março e em junho eu me licenciei e fiz a mamoplastia masculinizadora e comecei a hormonização. Só que de março a junho, eu usei também o tempo para ir conversando com meus colegas (um a um), tanto do serviço social como de outras áreas, trabalhando a cabeça deles para o que ia acontecer na virada do semestre”.

Quanto à questão de esperar ter alguma estabilidade para realizar o processo de transição de gênero, a pesquisadora Letícia Carolina Pereira do Nascimento (2023) salienta:

havia mais em mim do que o sonho de ser doutora ou professora efetiva, eu havia tramado comigo mesma que iria batalhar para chegar nesses lugares e, após isso, assumiria uma identidade de gênero feminina, a minha travestilidade. Eu tinha muito medo de não ser aceita como travesti, afinal quantas travestis são doutoras ou professoras em universidades públicas? Naquela época, eu não conhecia nenhuma, eu nunca tive referência, e na ausência destas eu me agarrei ao medo (p. 22).

Apesar dos medos que essas pessoas trans enfrentam em relação à questão de qual o momento para realizar a transição, o entrevistado sempre teve claro para si que mesmo que não pudesse exercer mais sua profissão, por conta da sua expressão de gênero, ele aceitaria este fato para ser quem ele realmente era.

Após esse processo inicial, o entrevistado relata que:

“Bom, isso acabou indo e 2010 então começou a aparecer o (nome do entrevistado) como pesquisador das questões trans. Eu não escolhi isso, não foi uma escolha pesquisar as questões trans, eu vinha até então me dedicando à homossexualidade feminina. (...) a trajetória de trabalho, inclusive, pode fortalecer (como aconteceu comigo) o desenvolvimento, a constituição da sua identidade”.

Nesse processo de interlocução com a narrativa do pesquisador entrevistado, acionamos o excerto da pesquisadora Sara Wagner York (2020), em que destaca:

A discussão da pauta trans é fundamental para os espaços de produção do conhecimento, como a universidade, visto que são: 1) os corpos trans e suas experiências, impõem uma desnaturalização das normas de gênero, tão necessária em nossa sociedade; 2) a discussão trans, traz para ciência e seus espaços o questionamento de hierarquizações historicamente constituídas. Quem pode falar e quem é ouvido?; 3) é necessário que a ciência se comprometa com a afirmação e garantia dos direitos de todos os segmentos sociais, com a voz e suas experiências, rompendo assim as estruturas de subalternização (p. 151).

Assim, ao possibilitarmos que essas discussões sejam tecidas dentro do espaço da universidade, podemos problematizar questões como as normas binárias de gênero, que são normalmente impostas na sociedade, tencionar o fato de que a população trans normalmente aparece no espaço do campo científico enquanto objeto de estudo, e que quando essas pessoas passam a ocupar este espaço enquanto quem também produz conhecimento, elas são percebidas com desconfianças quanto à qualidade do conteúdo das suas produções.

Outro ponto interessante destacado pelo pesquisador é que, durante seu doutoramento, ele se entendia como uma mulher lésbica e pesquisou sobre HIV/AIDS em mulheres lésbicas, mas, ao contrário do reconhecimento que ele vem recebendo enquanto um homem trans que pesquisa as questões trans, no doutorado foi diferente:

“Terminei a tese, mas ela não foi valorizada até hoje adequadamente: não é porque eu fiz, eu acho que esse é um padecimento dos estudos sobre homossexualidade feminina, de um modo geral, não há interesse neles. Eles não ganham a notoriedade que outros estudos ganham. Mas, rapidamente, quando eu vi, eu estava sendo colocado no lugar de um “pesquisador trans” e comecei a ganhar espaços de fala que nunca tinha ganho como pesquisadora lésbica. Comecei a ser convidado para ir a mesas a debates, eu me sentia muito pressionado, porque em muito pouco tempo tive que ler e processar uma bibliografia que estava começando e que eu não tinha muito contato”.

O fato de o entrevistado ter alcançado tanta visibilidade enquanto pesquisador das temáticas trans, fato que não aconteceu quando pesquisava sobre HIV/AIDS em mulheres lésbicas, pode ter acontecido dada a necessidade que a academia tinha/tem por tecer discussões sobre essa temática, por causa da defasagem de estudos que abordem as vivências e existências das pessoas trans para além da materialidade biológica de seus corpos. Mas também podemos tencionar o quanto ainda os estudos relacionados à lesbianidade são invisibilizados.

Apesar do reconhecimento que o pesquisador conquistou ao longo da sua trajetória, ele destaca:

“Eu não gosto de ser lembrado só pela trajetória trans, eu tive que estudar muito, trabalhar muito pra me fazer pesquisador, em uma época em que não tinha cota, em uma época em que eu tinha que saber outras tantas coisas para poder competir: todos as vagas que eu competi, exceto na UFRJ, eu tive que concorrer discutindo uma bibliografia que não tinha nada a ver com gênero e sexualidade”.

A narrativa acima nos faz pensar que, apesar da visibilidade que o entrevistado passou a ter como pesquisador, no decorrer da sua trajetória, ele enfrentou uma série de dificuldades e preconceitos, e, para superar esses obstáculos, teve que resistir a essas outras questões que atravessam o campo científico que a seguir iremos abordar.

Eixo narrativo 2: Dificuldades, preconceitos e resistências

No segundo eixo de análise, com as narrativas do pesquisador, iremos discutir as questões referentes às dificuldades e preconceitos que o entrevistado enfrentou, bem como as resistências por ele realizadas no decorrer da sua trajetória como pesquisador.

O pesquisador relata que, quando deu início à sua trajetória enquanto professor universitário, em uma instituição particular, ele passava por uma série de imposições por parte da instituição:

“E aí quando eu estava trabalhando nessa universidade privada, ela tinha uma série de restrições ao comportamento dos/as professores/as, como acontece em muitas empresas privadas. Estas restrições eram, inclusive, do uso de roupas, você não podia usar determinados calçados, determinadas roupas, porque era a imagem da instituição que estava em jogo. Então eu sabia que se ficasse lá ou fosse para uma outra universidade privada, eu ia sofrer muitos constrangimentos quando eu resolvesse assumir a minha identidade como homem e realizar as modificações no meu corpo”.

O medo que o pesquisador relata em realizar a transição enquanto professor também é abordado na dissertação de mestrado escrita pela pesquisadora Marina Reidel (2015), em que, através de entrevistas com um grupo de professoras transexuais e travestis do Brasil, problematiza as questões referentes às dificuldades e preconceitos que elas enfrentam no decorrer da sua trajetória de formação e profissional.

Durante a entrevista, o pesquisador narra que tinha certeza que, embora soubesse dos possíveis preconceitos e dificuldades que poderia passar ao realizar a transição, ele faria o que fosse necessário para resistir e vivenciar sua expressão de gênero. Porém, na narrativa a seguir, ele destaca que não sabia como realizar esse processo:

“Eu não sabia como eu ia fazer para me assumir publicamente como um homem. A coisa mais próxima disso que eu encontrei, foi a carta em inglês de um professor de uma universidade em Nova York. Ele escreveu uma carta para o chefe de departamento dele, falando das intenções, de como ia ser o processo de transformação dele e pedindo compreensão, mas eu não conhecia ninguém de carne e osso, nem de entrevista, no Brasil eu não conhecia”.

O medo das adversidades que poderiam ser enfrentadas durante a sua trajetória profissional abriu caminho para os processos de resistência que o entrevistado começou a realizar para vivenciar seu gênero. De acordo com Marlucy Paraíso (2016), resistir é algo que “possibilita criar espaços de combates, de lutas, de insubordinação, de insurreição. A resistência é a criação de possíveis. Ela é força agenciadora que transforma e funda outras e novas relações” (p. 408).

Com relação a esses processos de resistir, a pesquisadora Luma Nogueira Andrade fala, na entrevista concedida à Gabriela Alves (2012) e disponível no site do G1, que esses são: “combater todo o preconceito. Cada passo que eu dou, cada degrau que eu subo, sei que estou contribuindo para mudar pessoas e não posso deixar de buscar novos espaços” (n.p.).

Ainda sobre os processos de resistência, no eixo narrativo 1, apresentamos uma narrativa do entrevistado em que ele traça um plano para que pudesse vivenciar seu gênero. Nesta narrativa, ele relata que optou por ingressar em uma universidade federal por conta desse espaço possibilitar a ele uma maior segurança. Porém, ao ingressar neste espaço e realizar a transição de gênero, outros questionamentos emergiram:

“A gente tinha questões naquele momento que eram assim: como é que a gente põe um processo seletivo no mural assinado por você? Como é que vai aparecer o seu nome na lista de chamada dos teus alunos? Como que a gente faz uma banca de avaliação de TCC e você dá uma declaração com os nomes dos componentes da banca para o/a aluno/a que defendeu ou para os/as outros/as professores/as que compõem? Não existia essa coisa de nome social, não era divulgado ainda e tal”.

Esses aspectos que o entrevistado enfrentou no início do seu processo de transição, já estando dentro do campo científico enquanto pesquisador, tornaram-se de forma coletiva possibilidades para movimentação de estruturas e mudanças no que diz respeito à desnaturalização dessas questões burocráticas que permeavam sua existência dentro deste espaço.

Outro problema que o pesquisador relata ter enfrentado enquanto pesquisador trans foi a Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), em que ele narra que:

Uma das primeiras coisas que a gente teve que lutar foi com a Plataforma Lattes. O CNPQ, num primeiro momento, ele me disse que a variável sexo era uma variável imutável. Eu recebi a primeira resposta do CNPQ quando eu já estava com um mandado judicial de retificação na mão (não estava pedindo o uso do nome social e sim do meu novo nome civil), foi que sexo era uma variável imutável. Foram seis meses recebendo e-mails evasivos até que houve uma reunião que tomou a decisão de “abrir” a variável. (...) quando eu tenho que apresentar a minha produção acadêmica dos anos de 1990, eu tenho sempre que colocar junto uma cartinha acompanhando o meu currículo lattes e sinalizando para a mudança do nome e dizendo que essa produção é minha também”.

Com essa narrativa do entrevistado, podemos problematizar o fato de os espaços e agências referentes ao campo científico não terem sido pensados e organizados de forma a incluir a pluralidade de pessoas, quando pensamos acerca das expressões de gênero. Assim como, potencializa o fato de que as primeiras pessoas trans a ingressarem nesse espaço tiveram que passar por vários embates como os que foram pontuados pelo entrevistado.

Ainda sobre a questão do recente acesso das pessoas trans enquanto pesquisadores e pesquisadoras, ele completa:

“Eram poucos naquele momento que vinham com graduação, que estavam com o nível superior completo. Isso só foi acontecer no momento posterior, naquele momento, a maioria dos homens trans que eu conhecia eram pessoas muito simples, tinha cuidadores de cães, barbeiros, normalmente assim: na informalidade. As profissões e as ocupações eram informais, eu acho que era uma forma de se proteger mesmo na transição e, também, porque ser homem trans não era chique, porque era ainda associado à mulher lésbica de camadas populares bem masculinizada”.

O entrevistado problematiza as possibilidades de empregos que são oferecidos às pessoas trans no mercado por conta do baixo nível de escolarização. Em relação a essa questão, em entrevista a Muka Oliveira (2012) para o Observatório G, a mulher trans Ana Luiza fala que “a maioria das empresas quando colocam vagas para trans querem qualificações quase impossíveis para pessoas trans terem, pois a maioria não consegue nem terminar o ensino médio, então é muito injusto empresas criarem vagas com tantas exigências” (n.p.). Com isso, essas pessoas são direcionadas para os empregos informais.

Para além das dificuldades de ordem burocrática enfrentadas pelo pesquisador, ele fala sobre os obstáculos de trabalhar com as questões de gênero:

“Nas questões de pesquisa especificamente, você muitas vezes sofre preconceito por trabalhar com essas questões, sendo uma pessoa trans ou não até hoje. Se você como pesquisador, muitas vezes, apresenta o seu trabalho e o seu projeto, para o seu departamento ou para um edital, para uma agência de fomento... imagina agora que tão cortando as bolsas neste cenário de horror, de obscurantismo conservador que estamos vivendo. Se você tiver que escolher entre dar uma bolsa para alguém que está discutindo, sei lá... não corona vírus não, alguém que está discutindo trabalho ou desemprego e alguém que tá discutindo as questões trans, a maioria dos pareceristas das agências vai priorizar o primeiro trabalho”.

Atrelado à questão dos preconceitos acerca das vivências de gênero, muitas/os pesquisadoras/es ainda enfrentam questionamentos quanto às temáticas das suas pesquisas, como a narrativa do entrevistado acima aborda. Os preconceitos que as/os pesquisadoras/es que tencionam as temáticas relacionadas às questões de gênero enfrentam se tornaram ainda mais presentes devido a um movimento que tem ganhado força, ou seja, a ofensiva antigênero (JUNQUEIRA, 2018). Tal movimento tem como objetivo “catalisar estratégias de poder que investem na mobilização da ordem moral e no revigoramento de visões de mundo tradicionalistas” (p. 452).

Quanto a essa questão, em uma entrevista concedida aos Cadernos de Gênero e Tecnologia, a pesquisadora Megg Rayara Gomes de Oliveira (2019) destaca que “durante meu processo de doutoramento, minha pesquisa foi questionada várias vezes por professoras e professores brancos, cisgêneros, heterossexuais que não acreditam na existência do racismo e da LGBTfobia” (p. 10).

Apesar dos desafios e preconceitos que o entrevistado expõe no decorrer da entrevista, ele também destacou em sua trajetória profissional algumas conquistas quanto à sua visibilidade e reconhecimento enquanto pesquisador.

Sobre essas questões, o entrevistado narra que, com o maior reconhecimento enquanto pesquisador, houve uma maior demanda de trabalho, e com isso ele se sentiu em alguns momentos sobrecarregado:

Vamos falar do lado não tão glamouroso e tão divertido: primeiro esse ônus, como eu era um dos poucos que estava discutindo esse tema, muitas vezes, as pessoas achavam que eu tinha por obrigação estar em todos os espaços. (...) Eu tinha que equilibrar com todas as outras atividades e sobrava muito pouco tempo para a elaboração mesmo, para o trabalho de pesquisa, para a escrita de textos. Eu deixei de publicar muita coisa porque eu não conseguia fazer a revisão final dos textos, mas eu achava que esse trabalho político era mais importante naquele momento. E que era minha principal tarefa de professor e de pesquisador”.

Por ser um dos primeiros quando se trata de pesquisadores trans a trabalhar com as temáticas de gênero no campo científico, o entrevistado relata as dificuldades enfrentadas por conta da sobrecarga de trabalho devido à alta demanda em discutir esses assuntos e o baixo número de pessoas para realizar tais debates.

Durante a entrevista, o pesquisador relata que normalmente recebe convites para participar de seminários e outros eventos acadêmicos para falar principalmente sobre as temáticas trans, e completa:

Normalmente, são convites focados no tema trans. Embora nos últimos anos também tem rolado convites que não são específicos sobre isso. Às vezes tem convites, por exemplo para a área da saúde, para uma mesa para discutir pessoas trans e saúde, então aí eu sou chamado. Então, nesse momento especialmente, em um evento maior, você tem um foco nisso”.

Apesar do pesquisador trabalhar com as temáticas de gênero, ele desenvolve outros trabalhos voltados à área da saúde; desta forma, com a narrativa, ele nos provoca a pensar no fato de que o reconhecimento que recebe como pesquisador ainda está muito atrelado às temáticas trans, por ser um pesquisador trans.

Ao ser questionado sobre o que espera quanto à questão do reconhecimento e visibilidade de futuros pesquisadores e pesquisadoras trans, o entrevistado fala que:

“Eu quero acreditar que o efeito dessa crise vai ser uma mudança para melhor mundialmente e no cenário nacional e que isso vai ocorrer na gestão pública, porque pra falar da produção de pessoas trans, para falar sobre o lugar dos pesquisadores e das pesquisadoras trans, a gente precisa falar de um Estado democrático em primeiro lugar, nós estamos em um momento que a gente não tem nem garantia de que esse Estado vai continuar democrático, um momento de incerteza mesmo”.

Tal narrativa nos mobiliza a pensar que, para que mudanças ocorram, é necessário uma série de ações como políticas de ações afirmativas; porém, em uma reportagem realizada por Caio Delcolli (2018), a diretora da ANTRA, Keila Simpson, destacou que se deve “pensar para além de apoiar cotas, nossas ações devem ser para que pessoas trans entrem na escola, permaneçam e façam sua formação básica. Cotas são parte do processo e apenas quase no final da formação educacional” (n.p.).

Parágrafos finais: algumas considerações

Com a narrativa que apresentamos neste texto, foi possível problematizar algumas questões referentes ao processo de constituição pessoal e profissional de um pesquisador trans brasileiro, assim como as dificuldades e preconceitos enfrentados, seus atos de resistência realizados ao longo da sua trajetória. Tecer interlocuções com essa narrativa nos possibilitou tencionar as possibilidades de existências trans dentro do campo científico, discutindo o fato de que existem lugares onde suas existências ainda não são normalizadas.

Quanto à questão da constituição, enquanto pessoa trans e pesquisador, a partir da narrativa do entrevistado, é possível problematizar o fato de como essas duas trajetórias andam de forma imbricada e realizam tensionamentos uma à outra. O processo de constituição, enquanto pesquisador, do nosso entrevistado foi atravessado por diversas marcas e significados, que foram importantes para a sua constituição como profissional pesquisador, como a participação em eventos como seminários, iniciação científica e os movimentos estudantis.

A narrativa também possibilita pensar com relação à discussão das questões que perpassam as existências trans em espaços em que elas ainda não são geralmente reconhecidas, como o campo científico, questões essas relacionadas às dificuldades, preconceitos e atos de resistência que este pesquisador teve de realizar no decorrer da sua trajetória. Apesar de estarem começando a acontecer mudanças quanto a essa questão, a partir das narrativas do pesquisador entrevistado, podemos problematizar uma série de embates que ele enfrentou e ainda enfrenta, como, por exemplo, problemas burocráticos que envolvem o uso do seu nome em documentos oficiais, convites para eventos majoritariamente relacionados à sua expressão de gênero e a sobrecarga de trabalho.

Por fim, com a narrativa do entrevistado, nos sentimos provocadas, desestabilizadas, tocadas e afetadas, sendo, assim possível refletir sobre a emergência no que diz respeito a rupturas e aberturas de brechas no sistema heteronormativo em que ainda somos educadas/os e que (re)produzem preconceitos quanto à existência das pessoas trans no campo científico.

1 Apesar de compreendermos o ato político e identitário de resistência presente nos termos travesti e transexual, optamos por utilizar, neste texto, o termo trans como uma forma de abranger diferentes possibilidades de existências de gêneros.

2O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

3As entrevistas foram gravadas para que não se perdesse nenhuma informação durante o processo. Depois, foram transcritas e enviadas as/aos pesquisadoras/es para que elas/es fizessem modificações nos textos caso achassem necessário.

4A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande (CEPAS-FURG), possuindo o número do certificado de apresentação de apreciação ética (CAAE): 19945219.9.0000.5324.

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Recebido: 31 de Agosto de 2023; Aceito: 03 de Outubro de 2023

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A pesquisadora é Mestra em Educação (GENI/ProPEd / UERJ - com bolsa CNPq), Especialista em Gênero e Sexualidades (CLAM / Instituto de Medicina Social - UERJ - com bolsa da própria instituição). Jornalismo (UNESA/2021-2023); é considerada a primeira âncora do jornalismo brasileiro através da mídia (pós TV) Brasil 247. Atualmente é doutoranda em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - (GESDI/FFP/UERJ). Pesquisa: desigualdades e a diferença, a laicidade e o backlash e a bio/necropolítica e as identidades como estruturas determinantes para a EXCLUSÃO/inclusão travesti/trans no contexto homo-conversador-nacionalista brasileiro. Interessa-se pelos feminismos interseccionais, QUEER e CRIP. Pesquisa, traduz e escreve sobre TRANSEPISTEMOLOGIAS (e o corpo Intersexo) na Edu(comuni)cação. E-mail: yasmin.mello22@gmail.com

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Doutora em Ciências Química da Vida e Saúde (Associação Ampla FURG, UFRGS E UFSM) (2012). Mestre em Educação em Ciências pela UFRGS (2009) e graduada em Ciências Biológicas- Licenciatura e Bacharelado na FURG (2006). Pós-doutorado em Educação, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2017). Atualmente é Professora Associada do Instituto de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora do PPG Educação em Ciências: química da vida e da saúde (FURG). E-mail: joanaliramagalhaes@gmail.com

Corpos, gêneros e sexualidades revisado por Janer Cristina Machado

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