INTRODUÇÃO
Os movimentos sociais e os movimentos coletivos apresentam graus de diferença que se baseiam não somente em elementos derivados da experiência subjetiva (participação ou não), mas, fundamentalmente, em seus resultados objetivos, quais sejam: a formação ou não de novas identidades e de entidades representacionais.
A existência de um movimento social requer uma organização bem desenvolvida, o que demanda a mobilização de recursos e de pessoas muito engajadas. Os movimentos sociais não se limitam a manifestações públicas esporádicas, pois tratam de organizações que sistematicamente atuam para alcançar seus objetivos políticos, o que significa haver uma luta constante e de longo prazo, dependendo da natureza da causa. Em outras palavras, os movimentos sociais possuem uma ação organizada de caráter permanente em defesa de determinada bandeira. Já os movimentos coletivos se caracterizam por seu caráter processual e emergencial (Pasquino, 1986). Nesse contexto, as entidades acadêmico-científicas se identificam pela forte vinculação a uma identidade representacional no campo das lutas de um setor do conhecimento, não apenas em suas relações com o avanço da ciência em determinada área de saber, mas também com a dimensão política entre o poder, o saber, a ética e as práticas sociais (Carvalho, 2015b).
Desse modo, há uma relação em rede entre os movimentos sociais e as entidades acadêmico-científicas para além dos debates que se estabelecem em eventos da área e em pesquisas com temáticas de cunho social envolvendo também problemas socioeconômicos e políticos no país, visto que tanto os movimentos sociais em seu protagonismo interferem na pauta e nas articulações de luta das entidades acadêmico-científicas, assim como essas entidades em sua relação com os movimentos sociais e seu próprio âmbito de atuação ensejam movimentos coletivos de luta por educação, ciência e garantia de direitos das populações (Gohn, 2011).
Partimos, então, do pressuposto da necessária composição entre movimentos sociais, entidades acadêmico-científicas e movimentos coletivos, advogando sua inter-relação, pontuando uma vinculação direta e necessária entre os movimentos sociais e as entidades como movimentos coletivos, visto que, conforme defende Spinoza (1988), na base da formação democrática de um corpo social encontra-se a multidão (Carvalho, 2015a).
O conceito de multitude, de Spinoza (1988), discutido por Hardt e Negri na obra Multidão (2005),1 ajuda-nos a pensar o potencial educativo desses laços sociais, dessa força-invenção para a formação e o exercício da cidadania no corpo das entidades acadêmico-científicas e, portanto, para o fomento de uma ciência ético-política.
Nesse sentido, este artigo busca refletir sobre o papel das entidades acadêmico-científicas nas relações que estabelecem entre si e com movimentos coletivos e/ou movimentos sociais. Com essa perspectiva, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd) é aqui situada como entidade acadêmico-científica presente no cenário brasileiro, cujo campo de lutas ocorre em dupla dimensão: a de propor uma organização aberta e democrática voltada para o desenvolvimento de uma ciência ético-política e um referencial ético para a pesquisa em educação; e a de opor-se às estruturas político-organizacionais da ordem verticalmente orientada.
Assim, serão debatidos alguns pressupostos derivados da filosofia de Spinoza, intencionando estimular o campo de possibilidades propositivas para que a ANPEd se constitua cada vez mais como entidade democrática instaurada no plano de imanência de uma prática social concreta, ética e politicamente orientada.
Nesse escopo, o texto problematiza: Como esse corpo da multidão pode intercruzar os movimentos sociais e os movimentos das entidades científicas? Quais as potências desse movimento? Em quais espaços-tempos um campo comum e também singular pode ser criado? Qual a necessidade de um documento de referência ética para as ciências humanas e sociais e, especificamente, por que a produção de um documento de referência para a pesquisa em educação?
Trata-se de indagar em que medida é possível a ANPEd manter-se movente e ainda estabelecer lugares, verificando se, justamente no movimento, poderiam ser criados novos espaços-tempos. Pensa-se que, em vez de permanecer em território fechado, esses novos espaços-tempos poderiam ser expandidos para além das entidades científicas, gerando no seio da impotência máxima provocada pela hierarquização de poderes e saberes a potência maior da inteligência coletiva para inventar outros modos éticos de a ciência estar na vida.
POR QUE UM DOCUMENTO DE REFERÊNCIA ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS?
No Brasil, a preocupação com um documento de referência ética para a pesquisa surge inicialmente nas áreas das ciências da vida, mas acaba estendendo-se para todo o campo das ciências humanas e sociais.
Em 1996, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão voltado para as atividades na área médica, instituiu a resolução n. 196 (Brasil, 1996) fixando diretrizes para procedimento científico relacionado à investigação com sujeitos humanos. Essa resolução estabeleceu normas e exigências para pesquisas envolvendo seres humanos, determinando que instituições científicas criassem e mantivessem um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e que todos os projetos de pesquisa nesse âmbito fossem, antes de serem executados, examinados e aprovados por essa perspectiva ética (Severino, 2014).
Em dezembro de 2012, o CNS aprovou uma nova versão da resolução n. 196, a resolução n. 466 (Brasil, 2013), alegando atender às novas necessidades nas áreas tecnológico-científica e ética. Entretanto, voltada para a área da saúde, o complexo de dispositivos constantes dessa resolução suscitou muitas dúvidas e inquietações, particularmente entre os pesquisadores da área das ciências humanas, considerando a distinção entre as diversas áreas/campos de pesquisa e a necessidade de distinguir a pesquisa com seres vivos de modo geral, que é a que se realiza nas ciências biomédicas, da pesquisa com seres humanos, que é a que ocorre nas ciências humanas (CNPq, 2011).
Após essas resoluções, a revisão ética das pesquisas que envolvem seres humanos passou a ser realizada no sistema CEP/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).2
Segundo Severino (2014), desde o ano de 2001, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem apresentando críticas e reclamações contrárias ao sistema uniforme de revisão ética, o qual se fundamenta em princípios da área da saúde, não contemplando especificidades das ciências humanas e sociais. Ao longo dos anos, outras associações de ciências humanas e sociais passaram a debater questões de ética em pesquisa de forma mais sistemática, posicionando-se contrárias ao sistema CEP/CONEP. No período anterior a 2013, algumas associações já haviam se manifestado quanto a esse sistema. Assim, em 2013 foi criado o Fórum das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, congregando diversas associações das referidas áreas. Esse fórum incorporou a demanda da criação de um sistema próprio para as ciências humanas e sociais (Duarte, 2017).
Em 2013, a ABA e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) apresentaram, pela primeira vez, ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) uma proposta de criação de outro sistema de avaliação de ética nas ciências humanas e sociais, a ser abrigado nesse Ministério, visto a pertinência de que a revisão ética de pesquisa em ciências humanas e sociais fosse realizada fora da área da saúde. Embora a proposta tenha sido bem recebida na época, ela foi inviabilizada pela resistência do Ministério da Saúde (Duarte, 2017).
Em 2016, ainda vinculando a pesquisa em ciências humanas e sociais ao CNS, mas com resolução própria para a área, o plenário do CNS aprovou a resolução n. 510/2016 (Brasil, 2016), na qual reconhece e destaca a especificidade das ciências humanas e sociais. Entre as considerações preliminares que introduzem a resolução n. 510/2016, destaca-se como exemplificação desse reconhecimento:3
O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, pela Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990, pelo Decreto n. 5.839, de 11 de julho de 2006, e [...] Considerando que as Ciências Humanas e Sociais têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência da qual decorre a adoção de múltiplas perspectivas teoricometodológicas, bem como lidam com atribuições de significado, práticas e representações, sem intervenção direta no corpo humano, com natureza e grau de risco específico; [...] Considerando a existência do sistema dos Comitês de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa; Considerando que a Resolução 466/12, no artigo XIII.3, reconhece as especificidades éticas das pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas, dadas suas particularidades; [...]; e Considerando a importância de se construir um marco normativo claro, preciso e plenamente compreensível por todos os envolvidos nas atividades de pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, resolve: [...]
Entretanto, cumpre frisar que a resolução n. 510/2016, por mais que buscasse atender às demandas das ciências humanas e sociais, é complementar à resolução n. 466/2012 e, portanto, não autônoma. Ou seja, a luta política das ciências humanas e sociais para sair da tutela das ciências biomédicas acabou por não obter o êxito desejado.
Recentemente, em 2017, o Fórum das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas propôs a criação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, no âmbito do atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTICC). Esse conselho seria um órgão balizador geral, com a atribuição de elaborar as diretrizes nacionais e de controle do credenciamento das comissões locais nas universidades e centros de pesquisa, sem o aparato de controle centralizado construído no sistema CEP/CONEP (ANPEd, 2017). De 2015 a 2017, a ANPEd fez circular, solicitando contribuições de seus associados e visando incorporar massa crítica às discussões, a proposta de construção de um documento de referência para a ética na pesquisa em educação, com base no pressuposto da necessidade de uma normatização específica para a área educação.
DA ESPECIFICIDADE DA ÁREA DE EDUCAÇÃO NO CAMPO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
O movimento político da educação protagonizado pela ANPEd para a criação de um documento de referência para a área, assim, caminha. Após a conclusão da primeira versão do texto Ética na pesquisa em educação, elaborado pelos membros da Comissão de Ética na Pesquisa da ANPEd,4 estes se reuniram em junho de 2017, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o objetivo de estruturarem uma primeira versão do documento que viria a servir de referência ao texto inicial a ser discutido, posteriormente, pelos diferentes coletivos que integram a ANPEd. Esse texto foi baseado em discussões estabelecidas no Seminário “Ética e Pesquisa em Educação: entre a norma e o compromisso”, realizado em setembro de 2016 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Com base em sugestões produzidas nos debates dos Grupos de Trabalho (GTs) da ANPEd, tanto no Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação da ANPEd (FORPRED) quanto no Fórum de Editores de Periódicos da Área de Educação (FEPAE), a comissão divulgou a versão Ética na pesquisa em educação: documento preliminar, apresentada e debatida na 38ª Reunião Nacional da ANPEd em São Luís, Maranhão, em outubro 2017. Esse movimento volta-se para um deslocamento das questões técnicas e vai ao encontro da dimensão ético-política como proposta para a construção de um referencial no qual a ética não se funcionalize, tornando-se mera aplicação de procedimentos e instrumentos, mas se efetive em conexão com a multitude e a vida, buscando a emergência de outra concepção de coletivo e de produção científica.
Desse modo, a ANPEd (2017), retomando as ações realizadas pela entidade de 2007 a 2016, coloca em debate uma problematização e a proposição relativas à ética na pesquisa em educação e o desafio que representa a produção de um documento de referência específico para a área.
Argumentando que, em alguns países, como Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Inglaterra e Escócia, as orientações sobre ética e/ou “códigos de ética” na pesquisa são definidas pelas associações científicas da área de educação, sendo a revisão ética dos projetos feita por comitês de ética de cada instituição, o documento da ANPEd (2017) sinaliza que tais códigos e/ou orientações éticas, produzidos pelas associações, apresentam diretrizes gerais sobre diversos aspectos associados à ética na prática da pesquisa. Essas orientações servem de subsídio para a formação de futuros pesquisadores, bem como agilizam o processo de revisão ética.
O fato de a revisão ética, naqueles países, ser realizada por Comitês de Ética das próprias instituições, a partir do documento da Associação, enfatiza a reflexão do pesquisador sobre as questões éticas envolvidas em suas pesquisas e o compromisso com os princípios e procedimentos éticos. (ANPEd, 2017, p. 8-9)
Considerando a dificuldade da tarefa de elaboração de um documento com diretrizes éticas para a área de educação, em virtude da grande diversidade de perspectivas epistemológicas e metodológicas que atravessam a formação discursiva dessa área, o documento, ao final, apresenta posicionamentos e propostas sobre os procedimentos éticos na pesquisa:
a ética na pesquisa é uma questão essencial e necessita de ser contemplada nas diferentes instâncias da associação, nas reuniões científicas da ANPEd e no processo de formação de pesquisadores. Na condição de uma associação científica, a ANPEd propõe-se a desenvolver ações que promovam o debate permanente das questões sobre ética na pesquisa nas reuniões científicas nacionais e regionais e em outros espaços;
é importante a elaboração de um documento de referência da área de educação, tendo em vista a diversidade de perspectivas epistemológicas e as metodologias empregadas, bem como o fortalecimento da autonomia da área no campo da política científica;
a ANPEd apoia o Fórum das Ciências Humanas e Sociais e Sociais Aplicadas pela criação de um Conselho Nacional de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, no âmbito do MCTIC, que seria um órgão balizador geral, com a atribuição de elaborar diretrizes nacionais e de controle do credenciamento das comissões locais nas universidades e centros de pesquisa, sem o aparato de controle centralizado construído no sistema CEP/CONEP;
a ANPEd recomenda aos pesquisadores da área que busquem participar dos Comitês de Ética em Pesquisa existentes, de forma que possam aumentar a representação qualificada da área de ciências humanas e sociais e sociais aplicadas nos referidos comitês;
a ANPEd entende que a exigência de protocolos do sistema CEP/CONEP por periódicos e por agências de fomento deve ser evitada, enquanto a resolução CNS n. 510/2016 não estiver em plena vigência, com a finalização do formulário próprio de ciências humanas e sociais e da definição da tipificação de risco e tramitação dos protocolos, de acordo com o nível de risco ou, ainda, com a criação de um sistema próprio de revisão ética de ciências humanas e sociais e sociais aplicadas, fora da área da saúde (ANPEd, 2017).
DA CIÊNCIA COMO PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NEUTRO E OBJETIVO PARA UMA CIÊNCIA ÉTICO-POLÍTICA
O referido documento da ANPEd (2017) parte do pressuposto de que a constituição de redes compartilhadas das entidades acadêmico-científicas pode estar na origem de uma nova racionalidade, assim como do desejo de que essa constituição possa avançar à medida que, pelo entrosamento e composição plural, se introduzam experimentações e exercícios de compartilhamento de saberes e experiências cada vez mais vastos.
Um corpo institucional como a ANPEd é constituído por vários corpos, cada um deles composto e complexo, mas capaz de, como o corpo humano, produzir bons encontros e composições plurais. Assim, pensar a ANPEd como entidade baseada em relações horizontais e plurais, implica pensar um referencial de ciência para a educação distinto da ciência moderna, pois, segundo o paradigma moderno de ciência, conhecer é apreender a composição elementar que explica o comportamento observável dos fenômenos. Nessa perspectiva, o conhecimento é neutro e objetivo, pertence a um modelo de racionalidade de tipo formal-instrumental que tem em vista calcular a composição quantitativa dos fenômenos de modo que possa intervir sobre seu comportamento. Assim, conhecer é poder.
Na sociedade global, o conhecimento originado do saber científico consiste no principal valor de troca, o que converte o cientista em produtor/agenciador de informações e o sistema educacional em um gigantesco banco processador de dados a serviço das demandas do mercado.
Assim sendo, o sistema científico-tecnológico-industrial perfaz uma totalidade autorreferente de sentido que lhe confere a impressão de onipotência. Em seu totalitarismo epistemológico, a ciência técnica se fecha em si mesma e transforma tudo o mais em objeto de representação e controle, de modo que ignora o contexto que se encontre além de seu sistema. Doravante, só faz sentido o que pode ser conhecido/produzido pela ciência técnica e, por extensão, o que pode ser valorado pelo mercado (Santos, 2017).
A história da ciência, nas épocas moderna e contemporânea, representa, pelo caminho adotado e percorrido, uma queda de potência do ser. E contra a plenitude do ser, o pensamento assume níveis atendendo a interesses privados e a perspectivas formais, abstratas, afastando-se da vida concreta ético-política, invertendo o postulado spinozano de que “[...] quanto mais coisas um ente pensante pode pensar, mais realidade ou perfeição concebemos que ele contém” (Spinoza, 2007, p. 83). Portanto, ao afastar o fundamento ético pela assunção do pensamento lógico fundado em si mesmo, é produzido um desenraizamento sempre mais profundo, visto que tal ciência procura o universal tomado em um movimento em que o ser e o real estão distantes, o que condena a fundação lógica do ser a níveis sempre mais formais.
Ocorre, assim, uma separação entre o pensar, o fazer e o agir, degradando-se a ética à mera execução de regras preestabelecidas nos códigos institucionais. A ética se funcionaliza, vira aplicação de procedimentos sem conexão com a vida.
A ciência então colabora para o controle lógico do mundo, constituindo-se a lógica em um ato de dominação pelo qual o mundo, o ser, a vida podem ser destruídos.
Em nível epistemológico, isso significa a necessária relação entre ciência e vida cotidiana, entre ética e lógica e, consequentemente, entre ética e formação do cientista como tal. Sob os guizos das destruições que ajuda a consumar, a ciência técnica é assim destituída do centro absoluto em que fora posta e passa a relacionar-se com a realidade considerando sua dignidade, vulnerabilidade e compromissos que esta lhe impõe. Enfim, a ciência vê-se convocada a encontrar a realidade e com ela dialogar (Santos, 2017).
Desse modo, concorda-se aqui com Spinoza (apudNegri, 2016) quando o filósofo defende que, se se pode destruir o ser, também se pode construí-lo integralmente. Spinoza nos ensina que o mundo é ético apenas na medida em que e por que nós o vivemos. Nesse nível de desenvolvimento da realidade humana, a alternativa ética atinge sua mais alta significância: entre a vida e a morte, entre o construir e o destruir. Assim, a articulação da potência ética com a contingência do ser não é um movimento indeterminado, pois há um critério fundante: as razões da vida contra as razões da morte. “Não há nada em que o homem livre pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da morte, mas da vida” (Spinoza, 2007, p. 343). O ato ético será, então, um ato de recomposição do ser na tensão entre o singular e o coletivo.
Portanto, a ética se faz política pela intensidade das escolhas da vida e do coletivo, rumo à imaginação produtiva de um mundo que se opõe àquele da morte, “Porque a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela que procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte” (Spinoza, 1994, p. 59).
Spinoza descreve a imaginação produtiva como uma potência ética, uma faculdade que comanda a construção e o desenvolvimento da liberdade, da construção da razão coletiva e de sua articulação interna. Para o filósofo, não são as palavras, mas as realidades ontológicas que desenvolvem a imaginação produtiva. Assim, a ciência, o trabalho, o mundo da linguagem e da informação são reconduzidos à ética e estudados/pesquisados no momento em que se formam, em sua genealogia.
As palavras e as coisas se instauram em um horizonte operativo em uma dinâmica constitutiva. A ética descobre e reconhece a qualidade da existência, a tendência do existir em direção à vida ou em direção à morte, como determinação fundamental não de um tempo-medida, mas de um tempo-vida. Desse modo, “[...] a mente esforça-se por imaginar apenas aquilo que põe sua própria potência de agir” (Spinoza, 2007, p. 179). Afirma-se, portanto, a potência do ser como instância ético-política, assim como a existência como uma realidade operativa que é cotidianamente construída pelo ser coletivo. Ser coletivo em construção permanente de uma coletividade, visto que a sua expressão é um grande ato sensível que compreende o corpo e a multiplicidade dos corpos. Ser partícipe da multiplicidade em uma proliferação contínua de relações e de conflitos que não conhecem outro limite que o da destruição.
É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. (Spinoza, 2007, p. 311)
Para Spinoza, coletivamente, e a todo momento, esse milagre do novo ser nos é ofertado em mil e uma ações singulares de cada um dos seres, pois a nossa existência é sempre em si mesma coletiva. Assim, a independência da razão não se constitui por meio de preceitos científicos e morais, mas pela ética que abomina o controle pela dominação e exploração, pelo ser coletivo que proclama a afirmação da vida e, portanto, uma ciência ético-política enraizada em seu plano de imanência e, desse modo, consoante suas orientações ao platô do real social em que atua - no caso, a área de educação.
ÉTICA, VIDA POLÍTICA E REFERENCIAL ÉTICO PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO
O corpo humano, segundo Spinoza (2007), é extremamente complexo, constituído de vários corpos, cada um deles também muito composto. Graças a essa complexidade, ele é apto a afetar e ser afetado de diversas maneiras por corpos exteriores, sendo capaz de reter afecções, isto é, modificações nele causadas por essas interações.
Spinoza (1994) aborda a problemática dos afetos na ética humana e suas consequências no desenvolvimento da ação ético-política observando de que maneira os afetos tristes tornam-se mecanismo de controle das massas manipuladas por governos opressores, no caso os sistemas de referência ética para a pesquisa em educação, constituídos de modo hierárquico e/ou dogmático.
Pensando de acordo com os conceitos da filosofia de Spinoza, pode-se considerar que desenvolvemos, ao longo de nossa vida cotidiana, uma gama de interações com outros corpos. Tais eventos, mediante as circunstâncias pelas quais nos afetam, podem ampliar ou diminuir nossa capacidade de agir, pois uma interação, quando impressiona extensivamente nosso próprio corpo, faz com que decorra desse evento um dado afeto. Nessas condições, se porventura essa interação for adequada, ou seja, pautada no desenvolvimento de afetos que ampliem a nossa capacidade de agir, adquirimos o saudável acréscimo de nossa força intrínseca, tal como ocorre no caso da alegria, definida por Spinoza (2007, p. 332) como “[...] a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior”.
Em uma situação diametralmente oposta, quando sofremos uma diminuição da intensidade de nossa potência intrínseca (mais precisamente na ocorrência de vivências que motivam a formação de afetos tristes, como o ódio, o ciúme, o rancor, entre outros), ocorre o enfraquecimento da nossa capacidade de agir, uma vez que tais afetos decorrem de uma ideia inadequada que fazemos da realidade.
Desse modo, o conatus - esforço para perseverar na existência - define nossa potência de agir e os obstáculos enfrentados que podem reduzi-la à passividade. Será bom tudo que aumenta a potência de agir do conatus, e mau tudo o que a diminui. Assim, bom e mau exprimem apenas a qualidade atual do movimento interno de uma essência singular na busca de sua realização. São relações.
É imprescindível, então, o desenvolvimento de uma rede de interações com os demais homens, pretendendo o aproveitamento mútuo daquilo que existe de excelente no potencial criativo de ambas as partes que interagem entre si. Pode-se considerar que de tal circunstância decorreria a tese spinozana da utilidade de ocorrer um relacionamento harmônico entre os indivíduos em prol da realização de um objetivo comum que favoreça o aprimoramento e o benefício social da coletividade.
Para Spinoza (1994, parte II, § 13):
Se duas pessoas concordam entre si e unem suas forças, terão mais poder conjuntamente e, consequentemente, um direito superior sobre a natureza que cada uma delas não possui sozinha e, quanto mais numerosos forem os homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direito terão eles todos.
É, portanto, pela noção do desenvolvimento das redes de interações que estabelecem possíveis “bons encontros” que, no plano da imanência de uma ontologia do presente, se efetiva o comum.
Sendo assim, é valendo-se da perspectiva spinozana e da leitura deleuziana da obra de Spinoza (Deleuze, 2002) que se pontua aqui a aproximação entre ética, pesquisa e educação, considerando essa correlação como plano privilegiado da ocorrência das lutas micropolíticas.
Para Spinoza, as noções comuns não são assim nomeadas por serem comuns a todos os espíritos, mas porque representam algo de comum aos corpos: quer a todos os corpos (a extensão, o movimento e o repouso), quer a alguns corpos (no mínimo dois, o meu e o outro) - um comum que se estabelece por meio de bons encontros (Deleuze, 2002).5
Interessam, em especial, nesta discussão, as ideias relativas à potência de agir, ao conatus, que significa o esforço para perseverar e produzir uma vida ativa, no caso o desenvolvimento da pesquisa em educação não alienada de uma vida comum coletiva.
“Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser” (Spinoza, 2007, p. 173). Essa proposição (proposição 6, parte III) formula o cerne da teoria do conatus e significa que todas as coisas são dotadas de uma potência de agir.
Segundo o enunciado da citada proposição 6, esse esforço constitutivo de cada coisa é para perseverar no seu ser e não para se manter estaticamente no mesmo estado. O conatus humano, portanto, não é apenas um princípio de autoconservação, mas também de autoexpansão e realização de tudo o que está contido em sua essência singular.
A própria essência do homem é determinada a realizar os atos que servem à sua conservação, entretanto a autoconservação e a autoexpansão, como móbil fundamental da conduta humana, não são gratuitas, pois envolvem toda uma concepção e/ou princípio dinâmico fundamental que rege a vida afetiva e política.
Todo problema ético consiste, então, em determinar as condições nas quais os afetos ativos podem tornar-se mais fortes que as paixões, invertendo as relações de força que favorecem as últimas em detrimento dos primeiros. Não se trata, como visto, de suprimir as paixões, mas de alterar a dosagem entre passividade e atividade.
Os bons encontros aumentam a nossa potência de agir. Desse ponto de vista, a posse formal dessa potência de agir e igualmente de conhecer emerge como finalidade principal, e a razão, em vez de flutuar ao acaso dos encontros, deve procurar unir as coisas e os seres cuja relação se compõe diretamente com a nossa. “A Razão busca, então, o soberano bem ou ‘o útil próprio’, proprium utile, comum a todos os homens (V, 24-28)” (Spinoza apudDeleuze, 2002, p. 61).
É preciso não comparar órgãos ou corpos individualizados, mas colocar elementos ou materiais em uma relação em que separem o órgão, o corpo e a sua especificidade para fazê-lo devir outro. A liberdade não é o poder da vontade para extirpar os afetos, nem para escolher entre alternativas contrárias, mas a aptidão do corpo e da mente para o plural simultâneo (Spinoza, 1994). Assim, com Spinoza, ousa-se dizer que são equivalentes os infinitos atos intelectuais, a civitas e a inteligência como modo de expressão coletiva.
A carne social viva que não é um corpo unitário pode facilmente parecer monstruosa (Hardt e Negri, 2005). Mais uma vez Spinoza (1988) é quem claramente prevê essa natureza monstruosa da multitude (multidão), concebendo a vida como uma tapeçaria na qual as paixões singulares tecem uma capacidade incomum de transformação. Spinoza mostra as metamorfoses da carne não como um perigo, mas como a possibilidade de criarmos uma sociedade alternativa (Hardt e Negri, 2005).
Dito de outro modo: Como constituir e construir um horizonte de democracia radical? Como constituir as entidades acadêmico-científicas, além das torres das catedrais dos saberespoderes, de modo que envolvam em suas praticaspensantes as populações e os grupos potencialmente interessados, agenciando movimentos coletivos?
Nessa perspectiva, o sujeito é definido por sua relação com o conjunto, o que significa dizer que ele só tem subsistência na relação e que as qualificações políticas podem chegar-lhe somente do jogo da interação. Dessa forma, o comum vem a ser o reconhecimento de que, por trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum”, isto é, “um comum” sempre que ele seja entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes (Carvalho, 2016a).
Para tanto, a comunidade científica, aqui representada pela ANPEd, necessita buscar estabelecer, em relações horizontalmente democráticas, conexões e/ou modos de associação que possibilitem o compartilhamento de ideias e de experiências agenciando a potência máxima de realização (considerando a necessária superação dos fatores que induzem à passividade e/ou à potência mínima), além de estimular uma produção científica ético-política que enfoque o comum não como o consenso, ou seja, adesão e alienação e/ou identificação com um representante “porta-voz” de uma posição comum ou de uma posição metafísica universal, mas que procure na e pelas relações e/ou pelos encontros a potência de desejo coletivo de criação de conhecimentos científicos enraizados no plano de contingência e imanência da vida, e não em uma metafísica abstrata universal (Carvalho, 2015a).
Assim sendo, apostar na multiplicidade da organização contra a multiplicidade da ordem, nos agenciamentos de potência contra os dispositivos do poder torna-se urgente para uma entidade acadêmico-científica como a ANPEd incentivar e desenvolver uma concepção dinâmica de pesquisa democrática aberta e coletiva, diferenciando-se, como organização aberta de sociedade, das estruturas verticais da ordem.
Considerando que qualquer organização deve ser um processo contínuo de composição e decomposição, por meio de encontros sociais em um campo imanente de forças, deve-se ter clareza de que o horizonte da sociedade democrática deve ser horizontal e plural.
Os dispositivos, ou desdobramentos, estruturam uma ordem social DESDE CIMA. Os agenciamentos constituem os mecanismos de organização DESDE BAIXO, com base em um plano social inerente e, então, “Uma política prática de corpos sociais libera as forças imanentes das estruturas e formas predeterminadas, para descobrir seus próprios fins, inventar a sua própria constituição” (Hardt, 1996, p. 184). Desse modo, uma entidade acadêmico-científica, no caso, a ANPEd, deve constituir-se como sociedade horizontal e plural, como lugar aberto que alimenta a criação e a composição prática (tanto quanto a destruição e a decomposição), devendo atuar como movimento coletivo (Carvalho, 2015b), e esses pressupostos devem estar explicitamente contidos na proposição de um referencial ético-político.
Isso porque as fronteiras dos corpos sociais estão sujeitas, continuamente, a mudanças, na medida em que a prática do agenciamento decompõe certas relações e compõe outras. Logo, as praticaspensantes das entidades devem ser uma política dirigida para a criação de corpos sociais ou planos de composição que são sempre poderosos, enquanto permanecem, ao mesmo tempo, abertos aos antagonismos internos, às forças reais de destruição e decomposição, especialmente as forças DESDE CIMA (Carvalho, 2015b).
Certamente, o arranjo político é uma arte, visto que precisa ser constantemente reinventado, e essa arte da reinvenção necessita ser visualizada nos entremeios do documento de referência ética para a pesquisa em educação, dando corpo aos seus mecanismos constitutivos como práticas sociais concretas, e não somente representacionais. A ANPEd, pensada como carne da multidão, dá-se a dançar em suas figuras, buscando modos de dar-se a falar, de dar-se a escutar, a escrever e a inscrever-se em movimentos coletivos das forças DESDE BAIXO com as forças DESDE CIMA.
É pela singularidade que se explica o comum. Buscar o comum, entretanto, não significa buscar realidades pressupostas. Ao considerarmos o mundo como feito de singularidades que consistem em relações e, portanto, existem na medida em que estão em relações, aumentamos nossa capacidade de ação em redes que se convertam em reais e produtivas, nas quais a ligação entre singularidade e cooperação torna-se fundamental.
Desse modo, ao focar-se as práticas educativas e políticas, entende-se que elas estão inseridas em todo um esforço coletivo, envolvendo a participação de múltiplos agentes sociais que, direta ou indiretamente, contribuem para a melhoria das condições de vida de indivíduos e populações. No caso, para o desenvolvimento da ciência, da política e das práticas sociais concernentes ao campo da pesquisa científica no Brasil.
CONCLUSÃO
Entende-se e postula-se que as dimensões ético-políticas se efetivam em redes de trabalho informativo, linguístico e afetivo que devem ocorrer entre a ANPEd e todos aqueles potencialmente interessados nas questões da pesquisa científica, em suas variadas interfaces, dimensões e populações, buscando a emergência de outra concepção de coletivo e de produção científica.
Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isso a ciência, a cultura, a educação, a vida. Mas essa dinâmica assim descrita só parcialmente corresponde ao que de fato acontece, já que ela se faz acompanhar pela apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do comum, empreendida pelas diversas instâncias científicas, com finalidades que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas.
A carne social viva não é um corpo unitário, e como corpo múltiplo pode compor com outros corpos outros modos de produção científica que contribuam para a melhoria das possibilidades de vida dos indivíduos e populações.
Essa parece ser a luta da ANPEd, em união com outras entidades científicas, pela proposição de um documento de referência ética para as ciências humanas e sociais e, especificamente, para a área da educação, visto que o comum é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade.
Spinoza (1994) chamou essa realidade de multitude (multidão), porque, quando se fala de multitude (multidão), de fato se fala de toda uma série de elementos de (re)existência que objetivamente estão ali e constituem o comum. Mas o problema não é simplesmente ser comum ou ser multidão; o problema é fazer multidão, construir multidão, construir comum, construir comumente, no comum, o referencial ético para a ciência do país, considerando que o comum não exclui a singularidade, a especificidade, mas principalmente a diversidade de dimensões e enfoques teórico-metodológicos que apresenta a pesquisa no campo dos estudos educacionais.