Com mais de sete décadas de existência, o Banco Mundial (BM)1 segue despertando controvérsias. Ao longo desse período, a instituição passou por mudanças incrementais que ampliaram não apenas o seu tamanho - saltando de menos de 400 funcionários e 42 Estados-membros em 1946 para mais de 12 mil funcionários e quase 190 Estados-membros em 2020 -, mas também o seu mandato, tornando-a uma organização bastante complexa e diferente do seu formato original. O crescimento gradativo da sua carteira de empréstimos foi acompanhado pela extensão das suas áreas de atuação, que passaram a abranger, além dos setores tradicionais de infraestrutura e energia, também política econômica, educação, saúde, habitação, meio ambiente, desenvolvimento rural e urbano, administração pública, governança e leis, construção e reconstrução de Estados. A rigor, todas as atividades ligadas ao desenvolvimento se tornaram objetos das ações do BM, o que o distingue do Fundo Monetário Internacional (FMI) e das agências especializadas das Nações Unidas. No Brasil, historicamente o terceiro maior cliente da instituição (atrás apenas da Índia e da China) (Banco Mundial, 2020, p. 23-27), o BM exerce atividade intensa no âmbito da reforma da administração pública e de políticas setoriais (como a educação), não apenas junto à União, mas também a estados e municípios. Para se ter uma ideia, de 1989 até julho de 2020, o BM efetuou 324 operações financeiras para o Brasil, das quais 150 foram contratadas pela União (46%), 152 por estados (47%) e 22 por municípios (7%), o que revela a complexidade e a capilaridade das relações do BM com o poder público e as elites políticas no país.2
Este texto discute a agenda educacional do BM para pessoas com deficiência. Para tanto, organiza-se em três pontos: primeiro, apresenta e problematiza alguns aspectos relevantes da história do Banco e de sua configuração como organização multilateral, necessários à compreensão de seu modus operandi; em seguida, aborda o processo de renovação seletiva e expansão do seu programa político, a partir de meados da década de 1990, calcado na liberalização econômica, na promoção de amplas reformas institucionais e no alívio focalizado da pobreza extrema, para daí entender em que consiste a agenda educativa da entidade; por fim, com mais detalhamento, analisa as linhas centrais da agenda do Banco para a educação de pessoas com deficiência, com base no Relatório Mundial sobre a Deficiência (RMD), publicado em 2011, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), com o objetivo de avaliar em que medida essa agenda específica converge tanto com o programa político mais geral do BM, quanto com a experiência histórica brasileira recente de institucionalização de direitos sociais e educacionais das pessoas com deficiência. Toda a discussão é baseada em documentos da própria instituição e do governo brasileiro, na legislação internacional e nacional pertinente, além de ampla literatura especializada.
O BANCO MUNDIAL COMO ATOR POLÍTICO, INTELECTUAL E FINANCEIRO
Em termos teórico-metodológicos, há dois aspectos importantes na discussão sobre o BM e seu modus operandi. O primeiro tem a ver com a maneira como compreendemos a relação existente entre o BM e os seus Estados clientes. Em geral, entre os críticos à esquerda e à direita do BM, tal relação é pensada de forma linear, unidirecional, como uma mera dominação externa. Esse tipo de abordagem não apenas é insuficiente, pois desconsidera a via de mão dupla da relação entre as partes, como também equivocada, pois isenta de responsabilidades as elites dirigentes e as classes dominantes locais. A perspectiva aqui adotada entende que a relação do BM com os Estados clientes combina diferentes formas de pressão e de persuasão, tanto em escala internacional como em escala nacional, por meio das quais se constroem acordos e alianças mais programáticas ou pragmáticas (Gwin, 1997; Williams, 2008; Babb, 2009; Park e Vetterlein, 2010). Nesse sentido, para compreender tal relação, é necessário levar em conta ao menos quatro dimensões. Em primeiro lugar, todo cliente do BM tem de ser membro dele (e, assim, deter certa cota de votos), mas nem todo membro é cliente (ou seja, é elegível a empréstimos). Significa dizer que o BM nada prescreve aos países mais ricos e com maior influência dentro e sobre a instituição (como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Japão, França e Canadá); ao contrário, o Banco deles sofre inúmeras pressões, principalmente dos Estados Unidos, à medida que buscam viabilizar suas prioridades de política externa por meio de uma instituição multilateral que se apresenta como “técnica” e politicamente “neutra”. Em segundo lugar, a relação do BM com os países clientes não se limita a governos e agências estatais, mas envolve também empresas privadas e organizações da sociedade civil (como fundações empresarial-filantrópicas, organizações não governamentais, institutos de pesquisa, firmas de consultoria, sindicatos, nichos da academia etc.). Em terceiro lugar, dada a desigualdade de poder estrutural que marca a economia política internacional, os Estados clientes dispõem de condições de negociação com o BM muito assimétricas entre si. Por fim, em qualquer caso, quem executa determinado projeto ou política é sempre o Estado, por meio de agências e instrumentos do poder público, e não o BM, por mais que sua influência seja significativa.
O segundo aspecto relevante diz respeito ao papel do BM como organização da sociedade civil, em escala global e nacional. De fato, o Banco é influente porque atua, em condições privilegiadas, em meio à rede internacional de assistência ao desenvolvimento, que abarca agentes nacionais e globais públicos, privados, não governamentais, filantrópicos e empresariais. É nesse campo que se disputa o que se entende por “desenvolvimento”, como promovê-lo, o que é prioritário e o que não é, que interesses e visões devem predominar e quais devem ser secundarizados; enfim, é onde se disputam os rumos e os contornos de agendas transnacionais de desenvolvimento (Goldman, 2005; Woods, 2006; Williams, 2012). Nesse campo, os agentes, mesmo diferindo entre si em matéria de poder e prestígio, interagem com o BM no sentido de apoiar, adaptar, negociar e veicular as ideias, prescrições e iniciativas da instituição. Nessa relação, com frequência, o discurso e as práticas do BM fornecem argumentos e recursos para acomodar tensões entre atores políticos domésticos e legitimar certas tomadas de posição. Aliás, é frequente que governos utilizem as recomendações ou mesmo as condicionalidades embutidas em empréstimos do BM para respaldar a implantação de reformas impopulares,3 às vezes de maneira até mais radical do que o próprio BM preconiza. Em outras palavras, a eficácia das ações do BM depende da construção, por fora e por dentro dos espaços nacionais, de visões de mundo, alianças (mais programáticas ou mais pragmáticas) e interesses mútuos com organizações sociais, elites políticas e frações de classe, enfeixados tanto na sociedade civil quanto no aparelho de Estado.
O BM integra a infraestrutura de poder global dos Estados Unidos. Do ponto de vista político e financeiro, os Estados Unidos sempre foram o maior acionista e o mais influente da instituição. As relações com os Estados Unidos foram decisivas para o crescimento e a configuração geral das políticas e práticas do BM. Em troca, os Estados Unidos se beneficiaram largamente da ação do BM em termos econômicos e políticos, mais do que qualquer outro acionista. Contudo, isso não quer dizer que o BM seja um mero fantoche dos Estados Unidos; com uma burocracia altamente complexa e quase 200 Estados-membros, ele possui interesses organizativos próprios e meios para amortecer as pressões dos Estados Unidos. Em todo caso, os Estados Unidos usam o seu poder formal de voto, sua enorme influência informal e sua alavancagem financeira para delimitar os parâmetros gerais da ação da instituição e de sua trajetória. A partir do final da década de 1960, por conta da Guerra do Vietnã e do acúmulo de críticas à ajuda internacional ao desenvolvimento - denunciada nos Estados Unidos pela esquerda como “imperialista”, e, pela direita, como “dispendiosa e ineficaz” para a manutenção da dominação -, essa relação passou a envolver cada vez mais o Congresso americano, responsável por definir quanto o país aporta periodicamente ao BM. Até então, a política dos Estados Unidos para o BM havia sido definida entre o Tesouro e o Departamento de Estado, com o Congresso assumindo um papel passivo. O crescente ativismo do Congresso nessa matéria abriu espaços e oportunidades para que grupos políticos e organizações não governamentais (ONGs) agissem por dentro do Legislativo, com o objetivo de pautar as ações do BM em matéria social e ambiental (Wade, 1996; Gwin, 1997; Babb, 2009). Desde então, o Congresso passou a ser alvo de pressões e acordos entre agentes diversos interessados em influenciar a política dos Estados Unidos para o BM, levando-o a também se abrir a negociações e parcerias com o universo de organizações da sociedade civil, muitas das quais ligadas à educação.
O caráter financeiro do BM o distingue das agências especializadas das Nações Unidas - como é o caso da OMS e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), por exemplo -, que carecem de autonomia e estabilidade financeira. Não faltam recursos monetários ao BM, e isso potencializa enormemente a sua influência. Porém, o Banco não é apenas um emprestador de recursos, mas também, e fundamentalmente, um ator político e intelectual, combinando concessão de empréstimos com aconselhamento e assistência técnica a governos, além de vasta produção intelectual, própria ou em parceria com outras instituições, com o propósito de influenciar a tomada de decisão sobre políticas nacionais e globais de desenvolvimento. Diferentemente de um banco privado, cuja existência se volta para a maximização de lucro, o BM utiliza os empréstimos como instrumentos para difundir e institucionalizar ideias e prescrições sobre o que fazer em matéria de políticas públicas.
A dimensão intelectual tem sido encarada como a principal “vantagem comparativa” do BM, e é crucial para o seu modus operandi. Constituir-se como um “banco de conhecimento” (knowledge bank) - estratégia iniciada em meados dos anos 1990 - implica se organizar como um repositório global de experiência e saber sobre o desenvolvimento, constituindo uma instituição capaz de destilar conhecimento complexo em formatos simples e difundi-lo. Mais do que qualquer outra instituição multilateral, o BM se vê como bem posicionado para articular pesquisa, análise de políticas, experiência prática, serviços de capacitação, suporte técnico e capacidade de persuasão e convencimento (Banco Mundial, 2010, 2011b). Assim, como notaram Van Waeyenberge e Fine (2011), a atuação do BM se ampliaria para criar um sistema global de gestão do conhecimento sobre desenvolvimento, atrelado a empréstimos concedidos segundo a performance do país em “boas políticas” (controle da inflação, superávit primário, abertura comercial, “boa governança” entre os setores público e privado etc.), aferível segundo indicadores do próprio BM.
Embora, enquanto instituição, o BM cultive a aparência de neutralidade técnica, a pesquisa por ele realizada é, no essencial, altamente normativa. De modo geral, premido pela necessidade de realizar empréstimos - afinal, não apenas a instituição vive disso, como o dinheiro é o veículo preferencial de sua influência política e intelectual -, o BM promove investigações que de fato potencializem e legitimem o seu programa político e suas prioridades financeiras. Há, portanto, fatores estruturais que constrangem e enquadram a atividade de pesquisa por ele realizada. Como bem argumentaram Stern e Ferreira (1997, p. 594): “Em uma instituição orientada para operações [...] os pesquisadores não são livres para seguir inspiração intelectual. Eles estão sob o constrangimento de prioridades definidas e de uma necessidade clara de serem imediatamente úteis às operações”.
Há também o fato de que a maioria das publicações do BM tende a se basear em fontes do próprio Banco, financiadas ou promovidas por ele. Uma extensa avaliação dessa produção, coordenada por Angus Deaton e paga pelo próprio BM, concluiu que a instituição constituía um caso de narcisismo agudo, que às vezes chegava ao nível da “paródia” (Deaton et al., 2006, p. 73). Além disso, essa mesma avaliação concluiu que a pesquisa era usada para “fazer proselitismo sobre as políticas do BM, com frequência sem adotar uma visão balanceada das evidências e sem expressar o ceticismo adequado” (Deaton et al., 2006, p. 6).
Ademais, existe um viés disciplinar a favor da Economia que molda toda a pesquisa do BM. A maioria esmagadora da equipe de pesquisa é constituída por economistas que são, principalmente, oriundos dos departamentos de Economia de universidades de elite dos Estados Unidos, e, em menor grau, do Reino Unido (Wade, 1996; Stern e Ferreira, 1997; Broad, 2006). Mesmo não economistas são constrangidos a adaptar suas ideias à linguagem teórica e metodológica da monoeconomia neoclássica. Segundo essa perspectiva, o mundo social (i.e., não econômico e não individual) tende a ser reduzido ao econômico (“imperfeições de mercado”), e o econômico, por sua vez, tende a ser reduzido ao indivíduo (Van Waeyenberge e Fine, 2011). A atividade de pesquisa que o BM desenvolve aparece socialmente como uma atividade técnica, baseada nas evidências empíricas mais consistentes e na experiência acumulada. Na prática, a atividade intelectual do Banco não se submete às regras do campo científico, regido pela revisão cega por pares, pela pluralidade de enfoques, pela fundamentação em evidências e pela liberdade para se questionar epistemologicamente a própria atividade científica (Pereira, 2014).
PROGRAMA POLÍTICO E AGENDA DE REFORMAS EDUCACIONAIS
Durante a década de 1990, a agenda política do BM sofreu um processo de renovação e expansão, que manteve a centralidade da privatização, do ajuste fiscal permanente e da liberalização econômica, mas passou a abranger o conjunto da economia, a mercantilização da natureza, a (re)organização do Estado e da sociedade civil, além da construção da própria subjetividade individual, com vista a implantar a competitividade como imperativo e valor central da sociabilidade humana (Cammack, 2004; Williams, 2008; Dardot e Laval, 2016). Ao mesmo tempo, o “combate à extrema pobreza” foi incorporado como bandeira pela instituição, traduzindo-se em programas de alívio compensatório pontual (típicos do final dos anos 1980 e de toda a década de 1990, mas ainda vigentes) e em programas de transferência de renda condicionados e transitórios (difundidos durante a década de 2000), que foram acoplados como mecanismos auxiliares da liberalização das economias nacionais (Craig e Porter, 2006; Rückert, 2010; Babb, 2013). As formas pelas quais tal programa se traduziu em operações do BM negociadas com os Estados clientes variaram profundamente, conforme o caso.
Os programas de ajuste macroeconômico, impulsionados pelo BM desde 1980 nesses países, prescreviam também a reconfiguração, subordinada à austeridade fiscal, das políticas sociais, entre as quais a educacional. De fato, desde a publicação do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1980, o BM concebe a educação (assim como a saúde) como variável-chave na redução da pobreza extrema, por meio da melhora do “capital humano” (competitividade) dos indivíduos no mercado de trabalho (Banco Mundial, 1980). Assim, com variações de país para país, a agenda de reformas educativas prescrita pelo BM a partir de então se estruturou com pretensões sistêmicas e se concentrou nos seguintes pontos:
focalização do gasto público nos segmentos mais pobres da população e na educação básica, em detrimento de outros grupos sociais e níveis educacionais;
descentralização administrativa dos sistemas;
centralização da definição da matriz curricular;
centralização da avaliação, com base em indicadores de aprendizagem quantificáveis e comparáveis (nacional e internacionalmente);
exaltação do papel do setor privado (tanto lucrativo quanto filantrópico);
conversão da educação em setor de serviços competitivos (Banco Mundial, 1996, 1997, 2011a, 2018; Bonal, 2002; Robertson, 2012; Robertson e Verger, 2012).
É importante considerar que, em paralelo, tal agenda educativa se organizou, a partir de 1990, assumindo como eixo central a consigna da “educação para todos”, que propunha o compromisso multilateral (portanto, para além do BM) de universalizar o acesso à educação básica para as camadas mais pobres dos países em desenvolvimento, como anunciado na Declaração Mundial de Educação para Todos.4 Poucos anos depois, em 1994, a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais: Acesso e Qualidade introduziu no debate internacional o conceito de “educação inclusiva”, sintetizada na conhecida Declaração de Salamanca (ONU, 1994). Embora as premissas filosóficas dessa Declaração abarcassem um público amplo, como filhos de populações remotas ou nômades, crianças de rua, pessoas com deficiências e outros grupos minoritários excluídos do acesso à educação, no Brasil e em vários outros países o documento foi usado para fundamentar políticas educacionais de acesso à educação básica para pessoas com deficiência. Do ponto de vista do BM, a meta de “educação para todos” se coadunava com o programa de reformas educativas levado adiante pela instituição, centrado na melhoria do capital humano e na redução da pobreza extrema. Já outras organizações multilaterais não financeiras, como a UNESCO, mais permeáveis a críticas de organizações humanitárias e de defesa da educação pública, bem como a críticas de governos europeus de orientação social-democrata, tiveram e ainda tem de lidar com pressões que não incidem sobre o BM, ou que incidem com muito menos intensidade.
Seja como for, 20 anos após Jomtien, o BM (2011a) fez uma inflexão na sua agenda educativa e passou a advogar não mais a universalização do acesso, mas da aprendizagem. Nessa nova formulação, vigente desde então (Banco Mundial, 2018), o gap entre acesso e aprendizagem seria o grande obstáculo à redução da pobreza e ao aumento da produtividade nos países em desenvolvimento. Para superá-lo, a pauta de reforma educacional preconizada pela entidade estabelece quatro diretrizes principais.
A primeira delas consiste na promoção da complementariedade entre Estado e mercado, i.e., na ideia de que o Estado, desde que “eficiente” e “eficaz”, cumpre um papel necessário ao funcionamento pleno do mercado, e, por isso, deve atuar como “facilitador” e “parceiro” do setor privado. Daí, inclusive, o BM falar mais em “boa governança” entre agentes públicos e privados do que em “descentralização”. Note-se que tal formulação supera o enfoque hipermercadista dos anos 1980, quando o discurso dominante afirmava que “quanto mais mercado, menos Estado”. Como “parceiro”, o Estado jamais deve figurar como provedor exclusivo ou principal da educação, ao mesmo tempo em que o sistema público deve internalizar princípios de mercado em seu funcionamento, conforme os preceitos da Nova Gestão Pública (NGP) (Verger e Normand, 2015; Dardot e Laval, 2016). Em outras palavras, a neoliberalização do Estado, da qual a NGP é parte central, supõe a reconstrução do Estado não apenas a serviço de empresas, mas de si mesmo como uma empresa a serviço de empresas.
A segunda diretriz estabelece a meta de que a educação deve se converter em um setor de serviços efetivamente globalizado. Isso significa, por um lado, a necessidade de se imbricar agentes privados (filantrópicos e empresariais) na administração direta do sistema educacional (por meio de consultores privados e parcerias público-privadas); por outro lado, significa abrir o setor à competição mercantil global, mediante mudanças legais que eliminem empecilhos e garantam segurança jurídica aos investidores internacionais.
A terceira diretriz enfatiza a necessidade de se focalizar ainda mais o gasto público nos mais pobres entre os pobres, a fim de fornecer-lhes um pacote educacional mínimo.
Por fim, o BM reafirma a necessidade de se instituir o pagamento de taxas (cost-recovery) sempre que possível, sobretudo no ensino público superior.
Diversas pesquisas dentro e fora do Brasil (Laval, 2004; Mello, 2012; Verger, Novelli e Altinyelken, 2012; Ball, 2014; Verger e Normand, 2015; Mundy et al., 2016; Freitas, 2018) mostram como essas premissas têm sido incorporadas por um conjunto de redes públicas de ensino, sobretudo por meio da contratação de fundações empresariais e instituições filantrópicas. No caso da Educação Especial, historicamente, as instituições filantrópicas mais tradicionais (como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE) disputam com a educação pública a condição de lugar preferencial da escolarização de pessoas com deficiência, assim como atuam, direta e indiretamente, no desenho de políticas públicas para esse grupo social (Laplane, Caiado e Kassar, 2016; Bezerra, 2017; Paiva, 2017).
O RELATÓRIO MUNDIAL SOBRE A DEFICIÊNCIA À LUZ DO CASO BRASILEIRO
O percurso até aqui seguido foi necessário para compreendermos que a agenda educativa do BM para pessoas com deficiência não está fora desse programa político. O documento mais relevante para se discutir esse tema específico é o Relatório Mundial sobre a Deficiência (RMD). Publicado em 2011 em parceria com a OMS, constitui-se no mais ambicioso e influente documento do gênero em escala global. As cifras que o cercam impressionam. O seu processo de elaboração levou três anos e envolveu em torno de 380 editores, consultores e revisores de 74 países, pertencentes aos quadros da OMS e do BM, além de inúmeros consultores externos. Com mais de 330 páginas, os nove capítulos abordam os significados da deficiência (cap. 1), sua quantificação (cap. 2), a assistência médica em geral para pessoas com deficiência (cap. 3), reabilitação (cap. 4), serviços de assistência e suporte (cap. 5), ambientes facilitadores (cap. 6), educação (cap. 7), trabalho e emprego (cap. 8), e, por fim, recomendações às “partes interessadas” (cap. 9). Traduzido para o português em 2012 pelo governo do estado de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin),5 o relatório oferece o panorama mais abrangente sobre o tema da deficiência e reúne um conjunto de orientações às “partes interessadas” (organizações multilaterais, Estados, empresas, ONGs, pessoas com deficiência e seus familiares) no sentido de promover a saúde, a inclusão educacional e a inserção laboral de um contingente estimado, em 2010, em 1 bilhão de pessoas com alguma deficiência (15% da população mundial), das quais cerca de 200 milhões com “dificuldades funcionais bastante significativas” (OMS-BM, 2012).
O RMD adotou como diretriz a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), de 2007, da qual se originou a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, que enquadrou o tema da deficiência no marco dos direitos humanos. É importante sinalizar que a referida Declaração foi ratificada por 181 países e, dos países mais ricos, apenas os Estados Unidos não assinaram (Artiles e Kozleski, 1919).6 No Brasil, a CDPD e seu Protocolo Facultativo foram promulgados por meio do decreto federal n. 6.949/2009, passando a ter status de Emenda Constitucional por força do §3º do artigo 5º da Carta de 1988. Na mesma direção, em 2015, instituiu-se a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) - ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, como também é conhecida.
Cabe dizer que, historicamente, o BM buscou se desviar do tema dos direitos humanos, sob o argumento de que o seu estatuto (Articles of Agreement) o proíbe de interferir em assuntos políticos internos dos países. Afinal, segundo esse discurso, o BM seria uma organização econômica, técnica e imparcial (Swedberg, 1986). Por outro lado, esquivar-se do tema era fundamental para não se responsabilizar pelas violações de direitos humanos (econômicos, sociais, culturais e ambientais) atribuíveis aos programas de ajuste estrutural e aos megaprojetos de desenvolvimento historicamente financiados pela instituição (Díaz, 2013). Contudo, à medida que os direitos humanos se tornaram bens jurídicos protegidos pelo direito internacional, instituições financeiras multilaterais tiveram de tomá-los como referência em algum grau. No caso do BM, essa referência é indireta e seletiva, no sentido de que, convencionalmente, tornou-se impensável falar em desenvolvimento sem direitos humanos, e vice-versa. Por outro lado, à medida que o tema dos direitos humanos foi incorporado por tais instituições, ele também foi desidratado de seus aspectos potencialmente mais críticos ao neoliberalismo e ao capitalismo, resultando numa espécie de “novo humanitarismo” que se acomoda ao livre mercado (Gill e Schlund-Vials, 2014).
Voltando ao RMD, a deficiência não é abordada como algo puramente médico nem social. Seguindo a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) (International Classification of Functioning, Disability and Health), o relatório “compreende funcionalidade e deficiência como uma interação dinâmica entre problemas de saúde e fatores contextuais, tanto pessoais quanto ambientais”. De fato, o RMD se propõe a estabelecer um “compromisso viável entre os modelos médico e social”, o que denomina “modelo biológico-psíquico-social”. Entendendo a deficiência não como um atributo da pessoa, mas como resultado da interação social, afirma que “ambientes inacessíveis criam deficiência ao criarem barreiras à participação e inclusão” (OMS-BM, 2012, p. 4).
A compreensão do fenômeno da deficiência a partir do modelo social e de direitos significou um considerável avanço conceitual, pois tirou o foco dos impedimentos do sujeito e centrou o debate no papel social e nas possibilidades dessas pessoas. Como argumentaram Diniz, Barbosa e Santos (2009), essa perspectiva deslocou o tema da deficiência dos espaços domésticos para a vida pública, legitimando-o como uma matéria não mais restrita à vida privada ou aos cuidados familiares, e sim como uma questão de justiça.
O RMD é bastante rico em considerações metodológicas sobre as dificuldades de se construir um panorama mundial sobre o tema, dadas a insuficiência, a precariedade e a falta de padronização das estatísticas entre os países, além do fato de que não existe uma definição universalmente aceita para “deficiência”. Feitas tais ressalvas, o relatório se fundamenta em duas grandes bases de dados: a Pesquisa Mundial de Saúde (2002-2004)7 e a Carga Global de Doenças (2004), ambas da OMS. Embora não sejam pesquisas diretamente comparáveis, uma vez que adotaram metodologias distintas, são tomadas como referências, que, com as devidas ressalvas, mais se complementam do que se excluem.
Um dos aspectos mais interessantes do RMD é a discussão sobre como as desigualdades sociais causam problemas de saúde e deficiência. Com efeito, a deficiência é pensada como um misto de condição biológica e fenômeno social, que se manifesta sob imensa diversidade e abarca fatores como gênero, idade, renda, etnia, sexualidade, herança cultural e capital educacional. Ou seja, as relações de desigualdade que estruturam a vida social também estruturam a experiência social da deficiência. É por essa razão que indivíduos com a mesma deficiência podem ter experiências sociais completamente distintas. Em outras palavras, a existência biológica da deficiência não responde, por si, à maneira como a sociedade e o poder público tratam os indivíduos com deficiência, e tampouco barreiras culturais e atitudinais apagam a condição biológica. Assim, segundo o relatório, a deficiência é entendida como uma experiência social multidimensional, que se manifesta dentro de um contínuo de dificuldades menores e maiores de funcionalidade. Há também farta consideração sobre a deficiência como uma questão de desenvolvimento, em virtude de sua relação com a pobreza. Afirma-se, nesse sentido, que “a deficiência pode aumentar o risco de pobreza, e a pobreza pode aumentar o risco de deficiência” (OMS-BM, 2012, p. 10).
O RMD chama a atenção para a polissemia de termos como “necessidades educacionais especiais”, “educação inclusiva” e “educação especial” em escala internacional. Ainda assim, ressalta que há uma tendência em considerar que eles abrangem um público mais amplo do que as pessoas com deficiência, como necessidades decorrentes de desvantagens resultantes de gênero, etnia, guerra, trauma ou orfandade (OMS-BM, 2012, p. 217).
Essa polissemia também está presente nos debates brasileiros. O termo “necessidades educacionais especiais” é bastante genérico e depende das condições de acessibilidade física e curricular - eixo central do modelo social - disponibilizadas para as pessoas com deficiência. Ou seja, toda “necessidade educacional especial” está relacionada muito mais às barreiras atitudinais, físicas e curriculares impostas à pessoa com deficiência do que à sua condição orgânica, como ficou evidente na pesquisa do RMD.
No caso da “educação inclusiva”, muitos a entendem ainda como sinônimo de Educação Especial. Segundo a Política Nacional de Educação Especial numa Perspectiva Inclusiva (Brasil, 2008), a Educação Especial é uma modalidade de ensino transversal a todos os níveis, etapas e modalidades educacionais, que realiza o Atendimento Educacional Especializado (AEE),8 disponibiliza recursos e serviços específicos e orienta quanto à sua utilização no processo de ensino e aprendizagem em turmas comuns do ensino regular.9 Contudo, tal como propõe Pletsch (2020), não apenas é legítimo como é necessário considerar a Educação Especial também como uma área de produção de conhecimento interdisciplinar sobre o desenvolvimento de pessoas com deficiência. Já a proposta de educação inclusiva consiste em uma política pública que assume configurações diversas, a partir da interação entre orientações e compromissos internacionais e suas traduções institucionais locais. Nessa direção, ela assume como marco o compromisso com os direitos humanos e a plena cidadania, fundamentando-se “no reconhecimento das diferenças e na participação dos sujeitos” (Brasil, 2008, p. 6). Isso implica, na interpretação de Pletsch (2020), não apenas a garantia de acesso à educação, mas também o compromisso com o pleno desenvolvimento dos sujeitos, o respeito à pluralidade cognitiva e a valorização da convivência com a diversidade cultural.
No caso brasileiro, as políticas de educação inclusiva, especialmente aquelas implantadas a partir de 2008, ampliaram de maneira inédita e considerável o acesso das pessoas com deficiência ao sistema educacional público de ensino, o que beneficiou a aprendizagem e o desenvolvimento da maioria dessa população (Souza, 2013; Mendes, Pletsch e Hostins, 2019). De acordo com o Censo Escolar de 2019, havia 1,3 milhão de matrículas de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e/ou altas habilidades/superdotação em classes comuns (incluídos) ou em classes especiais exclusivas, o que representava um aumento de 34% em relação a 2015. Desse total, 92% dos alunos estavam matriculados em turmas comuns do ensino regular, majoritariamente no sistema público de ensino (Brasil, 2019). Por contraste, em 2001, 59% das matrículas estavam em escolas especiais, a maioria filantrópicas (Brasil, 2001).
Em termos pedagógicos, o RMD advoga a adoção de metodologias centradas no aluno, que reconheçam que os indivíduos têm capacidades e modos de aprender específicos. Não por acaso, o relatório adota a abordagem de Amartya Sen (1999) sobre as capacidades humanas, destacando o papel que a ação estatal e todas as demais “partes interessadas” podem ou devem assumir para promover a inclusão educacional, em escolas comuns da rede regular de ensino, de pessoas com deficiência. Assim, o sentido da inclusão é claro: os indivíduos devem ser educados em ambientes progressivamente “menos restritivos”, nos quais barreiras sistêmicas (responsabilidade ministerial dividida; ausência ou insuficiência de legislação e/ou políticas públicas; recursos insuficientes ou inadequados), escolares (currículo e pedagogia não adaptados; formação de professores inadequada; barreiras físicas) e atitudinais (rotulagem, estigma, violência, bullying e abusos) sejam removidas ou minimizadas.
A inclusão em escolas comuns da rede regular é vista como uma forma educacional mais barata do que a educação em instituições especializadas ou segregadas, além de estar em sintonia com os direitos ao convívio, à integração e à dignidade das pessoas com deficiência. Portanto, ao lado do argumento humanitário figura também o argumento econômico. É interessante notar que o RMD reconhece que “garantir que crianças com deficiência possam ter acesso ao mesmo padrão educacional de seus pares requer um aumento de financiamento”, ao mesmo tempo em que afirma que “cenários inclusivos são mais eficientes do ponto de vista do custo” (OMS-BM, 2012, p. 228). Ou seja, por definição, a inclusão custa menos que a segregação, e, mesmo quando há aumento do custo per capita, o gasto é mais eficiente (melhor relação custo/benefício).
No Brasil, o debate sobre o financiamento da Educação Especial e o custo da inclusão é de longa data (Arruda, Kassar e Santos, 2006). A relação entre o setor público e as instituições filantrópicas de Educação Especial nem sempre foi ou é transparente no que se refere ao gasto público em convênios com tais instituições, as quais ganham espaço à medida que a prestação universal de serviços pelo Estado se retrai (Kassar, 2001).10
Quanto ao financiamento da política de inclusão escolar, o RMD salienta que há países que financiam as escolas, as demandas específicas das instituições (material, treinamento, suporte operacional) ou diretamente os indivíduos. Segundo o relatório, a inclusão tem maiores chances de sucesso quando o financiamento escolar é descentralizado, os orçamentos são delegados em nível local e os recursos se baseiam no número total de matrículas (OMS-BM, 2012, p. 228). Note-se que, no caso brasileiro, o arranjo seguido difere das recomendações do relatório, uma vez que a matrícula de um aluno com deficiência em classe comum do ensino regular com suporte especializado do Atendimento Educacional Especializado (AEE) conta como dupla matrícula. Ou seja, o mesmo aluno tem duas matrículas, uma na classe comum e outra no AEE, o que duplica o gasto per capita. Nesse sentido, a experiência brasileira segue na direção contrária ao preconizado pelo RMD, que tem como base a primazia normativa da redução de gasto por beneficiário.
No âmbito educacional, o RMD faz uma série de recomendações genéricas aos governos e às “partes interessadas”, como:
elaborar políticas nacionais claras (com a previsão de leis, responsabilidades e recursos bem delimitados);
construir sistemas de monitoramento e avaliação, o investimento em infraestrutura e a universalização de padrões mínimos de acessibilidade e transporte;
melhorar a formação de professores, sobretudo no meio rural;
adotar planos educacionais individualizados e trabalho em equipe nas salas de aula;
prover serviços especializados e professores de apoio onde for necessário;
não construir mais escolas especiais e estabelecer a colaboração entre escolas comuns e especiais como forma de transição;
ampliar a participação de todas as “partes interessadas”.
O relatório é enfático ao afirmar que a inclusão educacional tem um papel decisivo na inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, melhorando o seu “capital humano”, entendido como o estoque de conhecimentos valorizáveis economicamente que é incorporado pelo indivíduo, um bem privado que proporciona uma remuneração ao indivíduo que o possui. Sendo assim, o capital humano é considerado importante para:
quebrar o vínculo entre deficiência e pobreza;
maximizar o uso dos recursos humanos em trabalhos produtivos;
promover a dignidade humana e a coesão social.
Segundo o relatório, o número de pessoas com deficiência na população em idade produtiva tende a aumentar - em virtude de condições crônicas de saúde, serviços de reabilitação mais estruturados e aumento da expectativa de vida -, razão pela qual é necessário um conjunto de medidas para ampliar a utilização dessa força de trabalho, e, assim, “desonerar” os sistemas públicos de proteção social do gasto com tais indivíduos, principalmente nos países onde o nível de proteção é mais alto. Nos países onde esse nível é baixo, o relatório recomenda a inclusão de pessoas com deficiência em programas de proteção social, mas com “estímulos” a que busquem trabalho no mercado (por exemplo, a redução gradativa dos benefícios, e não a sua perda, quando se consegue um emprego, com a possibilidade de retorno ao benefício caso haja perda do emprego) (OMS-BM, 2012).
Além de preconizar a revisão dos sistemas de proteção social, o RMD enfatiza bastante a necessidade de mudar a atitude predominante dos empregadores, a fim de remover preconceitos que impedem a contratação de pessoas com deficiência. Isso envolveria campanhas de esclarecimento, mas também diferentes incentivos materiais. O ponto central, aqui, é que o relatório dá mais peso a leis antidiscriminação do que a leis de cotas, argumentando que a “superproteção” nas leis trabalhistas pode levar os patrões a verem os trabalhadores com deficiência como menos produtivos e mais caros; portanto, menos desejáveis.11
Neste ponto, o caso brasileiro caminha na direção contrária àquela apregoada pelo relatório. Desde 1991, o país dispõe de uma lei de cotas (n. 8.213/1991) para pessoas com deficiência que incide sobre empresas com mais de 100 funcionários. Redig e Glat (2017) mostraram as fragilidades do cumprimento dessa legislação, sobretudo, no caso de pessoas com deficiência intelectual (que abrange mais da metade da população com deficiência no Brasil). De acordo com as autoras, o principal problema consiste em garantir a qualificação profissional das pessoas com deficiência. Já a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015, seção III, art. 37) prevê que os empregadores arquem com a “provisão de suportes individualizados que atendam a necessidades específicas da pessoa com deficiência, inclusive a disponibilização de recursos de tecnologia assistiva, de agente facilitador e de apoio no ambiente de trabalho”.
Existe também o Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Esse benefício de um salário mínimo mensal é destinado a pessoas com deficiência que comprovem não possuir meios de garantir sua subsistência ou dispor de renda familiar mensal inferior a 25% do salário mínimo. Em 2007, criou-se o programa BPC na Escola, com o objetivo de estimular a escolarização dessas pessoas. Esse Programa acompanha e monitora os seus beneficiários na escola, o que levou a totalidade dos beneficiários a frequentar o universo escolar (muitos pela primeira vez) em menos de uma década (Sobrinho, Cunha e Pantaleão, 2018). Isso representa uma importante conquista em matéria de direitos educacionais desse grupo social.
Por fim, deve-se ressaltar que o RMD reitera pontos centrais da agenda de reformas institucionais do Banco como caminho para melhorar a eficiência de recursos e a eficácia de resultados dos serviços necessários à inclusão educacional e laboral. Em seus próprios termos: “a terceirização de serviços, o incentivo a parcerias público-privadas, principalmente com organizações sem fins lucrativos, e o desenvolvimento de orçamentos de cuidados orientados ao usuário quando estes são pessoas com deficiência são fatores que contribuem para aperfeiçoar a oferta de serviços” (OMS-BM, 2012, p. 274).
É interessante observar que este ponto está contemplado no recente decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, do governo de Jair Bolsonaro, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizagem ao Longo da Vida (Brasil, 2020). Entre as inúmeras críticas ao decreto vindas de pesquisadores, associações científicas, organizações de famílias de pessoas com deficiência, congressistas e setores do Ministério Público Federal (Abrasco, 2020; Ampid, 2020; Anped-Abpee, 2020), destacam-se dois aspectos importantes. O primeiro é que essa nova legislação rompe com a anterior, vigente desde 2008, ao revalorizar a segregação por meio de escolas especiais - que são, no Brasil, majoritariamente, entidades filantrópicas privadas financiadas por recursos públicos. Desde a sua criação na década de 1950, tais entidades exerceram protagonismo político na definição do lugar preferencial de escolarização das pessoas com deficiência, disputando recursos com a educação pública por meio de lobbies bem organizados. Essa trajetória havia sofrido uma inflexão com a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008, posta em prática pelos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e ampliada pelos governos de Dilma Rousseff (2011-2016). Ou seja, como o RMD recomenda a não construção de mais escolas especiais, pode-se concluir que o posicionamento do atual governo brasileiro segue na direção contrária. O segundo aspecto diz respeito à redução do papel do Estado como fornecedor de educação às pessoas com deficiência, na medida em que a nova política federal institui o primado da família na escolha do tipo de educação a ser oferecido aos seus filhos, segundo o discurso neoliberal da soberania do consumidor em eleger livremente o melhor provedor de serviço (Silva et al., 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A agenda educacional do BM decorre do seu programa político neoliberal mais amplo, renovado e ampliado desde a década de noventa, e preconiza os seguintes aspectos:
orientação sistêmica ao mercado e difusão da forma mercadoria em todos os domínios da educação;
colonização da gestão pública educacional pela Economia e por modelos empresariais (Nova Gestão Pública, gerencialismo etc.);
diversificação dos prestadores de serviço público em educação para além do Estado;
eliminação de restrições setoriais à plena competição entre atores privados nacionais e estrangeiros;
regulação estatal fraca sobre as responsabilidades empresariais no setor educativo e forte proteção jurídico-institucional dos direitos do capital;
privatização “por dentro” do Estado mediante modalidades diversas de parcerias público-privadas educativas;
formatação da educação básica como pacote de conhecimentos mínimos focalizado nos segmentos mais pobres da população.
Fundamentalmente, tal agenda impulsiona o avanço da comercialização da educação em todos os níveis de ensino, ao mesmo tempo em que evoca a ideia de “educação inclusiva” como rótulo palatável para o desmonte da educação pública universal. Por suposto, “educação inclusiva” configura uma ideia-força politicamente disputada, e a sua tradução local em políticas públicas tem sido sempre objeto de embates e negociações entre atores com visões e interesses distintos, sendo o BM, destacadamente, um deles.
Quanto à agenda educacional para pessoas com deficiência, o RMD é estruturado por considerações econômicas, dentro da chave mais ampla da “promoção do desenvolvimento”. Assim, a deficiência é pensada dentro de um contínuo de menor até maior funcionalidade dos indivíduos, conforme o conceito de capital humano. Trata-se, portanto, de se pensar a funcionalidade dos indivíduos enquanto força de trabalho para o capital. Por outro lado, as considerações de ordem humanitária (como autonomia, dignidade, igualdade e liberdade) das pessoas com deficiência colocam a discussão sobre a sua inclusão no campo dos direitos humanos, o que, contraditoriamente, abre espaços para se questionar as premissas economicistas da própria inclusão auspiciada pelo RMD. Historicamente, o BM buscou se desviar do tema dos direitos humanos, a fim de evitar as críticas aos impactos socialmente regressivos de sua agenda econômica.
O fato de, no plano das políticas para pessoas com deficiência, o BM se articular com a OMS, mais porosa a pressões desse tipo, parece ter sido decisivo para empurrá-lo a essa temática. É fato que existe um “novo humanitarismo” que se coaduna com a liberalização econômica, mas é verdade também que a pauta dos direitos humanos é polissêmica e atravessada por disputas diversas, tanto mais num mundo de desigualdades crescentes de riqueza e poder entre e dentro das nações. Assim, em termos de concepções de desenvolvimento, existe contradição entre a metapolítica de conversão da educação em mercadoria e o ideário da educação como direito humano e atividade transformadora da vida social, assim como há contradição entre a “inclusão” de pessoas com deficiência pensada como funcionalidade e capital humano e o ideal progressista da universalização dos direitos humanos.
Podem-se observar tais contradições quando se lê o RMD à luz da experiência brasileira dos últimos 20 anos. Ao mesmo tempo em que houve a defesa da inclusão em moldes neoliberais, seguindo uma orientação economicista voltada à formação de capital humano para o mercado, houve também a orientação humanista, centrada na defesa dos direitos sociais, econômicos, culturais e civis das pessoas com deficiência. O processo acelerado e significativo de inclusão dessa população em classes comuns de ensino na educação pública talvez não tenha paralelo na realidade internacional, chegando até mesmo ao ensino superior (graduação e pós-graduação) mediante reserva de vagas (Brasil, 2016), o que é um diferencial da experiência brasileira. Igualmente, o financiamento em dobro por aluno “incluído” foi uma inovação brasileira, caminhando na direção contrária daquela apregoada pelo BM, centrada na redução do gasto por aluno com a inclusão. Os avanços realizados no país foram fundamentais para assegurar o acesso de pessoas com deficiência à educação pública, mas o direito à aprendizagem ainda é uma construção pendente. Nesse sentido, os desafios colocados para as pessoas com deficiência não diferem substancialmente daqueles colocados para a educação pública da maioria da população.