1 Introdução
Consideramos que a escola regular deve ser um dos espaços responsáveis por proporcionar ao aluno com surdocegueira a ampliação do conhecimento de mundo e das relações interpessoais, por meio de um trabalho com estratégias diferenciadas e sistematizadas que preconizem as suas potencialidades, independentemente de suas condições (Maia et al., 2010).
Com essa perspectiva e de modo a contribuir para a produção científica na área de Educação Especial, este estudo teve como objeto a surdocegueira, temática consideravelmente restrita, se comparada aos estudos envolvendo outras condições de desenvolvimento (Araóz & Costa, 2008; Glat et al.; 2014; Masini, 2011; Santos & Evaristo, 2015).
De acordo com Cader-Nacimento e Costa (2010), a surdocegueira é conceituada como
o comprometimento, em diferentes graus, dos sentidos receptores à distância (audição e visão). A combinação desses comprometimentos pode acarretar sérios problemas de comunicação, mobilidade, informação e, consequentemente, a necessidade de estimulação e de atendimentos educacionais específicos. (p. 18)
Em geral, concorda-se que a associação da perda auditiva e visual, independentemente do grau de privação, gera limitações nas respostas a estímulos externos, comunicação e interação social e, ainda, comprometimentos de caráter emocional, físico e educacional (Cader-Nascimento & Costa, 2010; Maia et al., 2009; McInnes, 1999; Reyes, 2004). A associação das privações em limiares mais altos, embora relativamente rara, como a surdocegueira total, acarreta maiores implicações. No entanto, essas implicações dependerão de outros fatores como: o período de surgimento da deficiência, a causa e, principalmente, as intervenções e os atendimentos específicos na área da educação (Cader-Nascimento & Costa, 2010).
Dentro dessa combinação, temos os casos de surdocegueira congênita e as condições adquiridas. Referimo-nos à condição congênita quando o indivíduo nasce ou a adquire antes da apropriação de uma linguagem simbólica; e a condição adquirida quando o indivíduo adquire a surdocegueira após a apropriação de uma linguagem simbólica, seja ela na modalidade oral e/ou visoespacial (Costa, 2014; Reyes, 2004).
A literatura especializada indica que, para as crianças com surdocegueira, especialmente a de natureza congênita, as experiências que envolvem o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem, a comunicação, a informação, a educação e a vida social são os maiores desafios (Cormedi, 2011; Miles & McLetchie, 2008). Ainda sobre esse aspecto, Cormedi (2011) enfatizou que as dificuldades de maior complexidade para uma pessoa com surdocegueira congênita seriam as de comunicação, desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, da aprendizagem.
Nesse sentido, a observação do comportamento da criança com surdocegueira e suas ações comunicativas é um ponto de extrema relevância, pois, a partir dela, o adulto pode manter consistência em suas respostas e favorecer o estabelecimento de uma comunicação efetiva e autônoma. Nessas oportunidades, as possibilidades de aquisição da linguagem serão potencializadas, quanto maior for o tempo de exposição em situações efetivas de comunicação com parceiros eficientes (Viñas, 2004).
As formas de comunicação são específicas, conforme as características de cada sujeito com surdocegueira, mas, para que haja sucesso, é fundamental a presença de parceiros que sejam sensíveis e receptíveis aos indícios que a criança oferece. Nesses casos, o processo de comunicação inicia-se com formas mais elementares como toque, expressões e movimentos corporais. À medida que a criança demonstra compreensão e fornece respostas, essa comunicação poderá ser ampliada com formas mais abstratas e simbólicas (Costa, 2014).
Diferentemente das crianças sem limitações sensoriais, nas quais o processo de aquisição de linguagem ocorre de forma natural por meio da comunicação e da interação, as crianças com surdocegueira precisam de um ensino sistematizado para o desenvolvimento da comunicação (McLetchie & Riggio, 2002; Reyes, 2004). Além disso, necessitam de demasiada motivação para estabelecer contato com o mundo exterior, já que a surdocegueira afeta de forma significativa a habilidade em interagir com o meio (Amaral, 2002). Para as crianças com essa condição, a interação e a comunicação devem ocorrer pelos sentidos proximais e pelos sentidos remanescentes visuais e/ou auditivos se tiverem (Viñas, 2004).
Desse modo, considerando que a comunicação será a chave para todo o desenvolvimento e os processos de ensino e de aprendizagem, é fundamental que os profissionais que atuam com sujeitos com surdocegueira, especialmente a congênita, busquem possibilidades e forneçam suporte para o seu desenvolvimento por meio do uso de diferentes sistemas5 que englobem ou não o uso da fala e/ou da Língua de Sinais na modalidade visual ou tátil (Amaral, 2002). Esses diferentes sistemas de comunicação podem ser considerados Comunicação Suplementar e/ou Alternativa (CSA), subárea da Tecnologia Assistiva, que engloba, também, adaptações, ferramentas e equipamentos especiais em diferentes áreas do desenvolvimento (motora: de acesso a computadores, de postura, dentre outros) e aciona diferentes possibilidades nos contextos de inclusão social e escolar (Braccialli, 2007; Deliberato, 2007).
De acordo com Von Tetzchener (2018), a CSA, uma forma de comunicar-se com o uso de recursos tais como imagens, símbolos gráficos e outros, oferece às crianças com necessidades complexas de comunicação e comprometimento motor possibilidades de expressar-se, o que é fundamental para sua participação social, aprendizagem e para o próprio desenvolvimento linguístico. Em relação ao desenvolvimento da CSA, Von Tetzchner et al. (2005) explicam que ele ocorre de maneira bastante diferente do desenvolvimento linguístico natural; contudo, o objetivo final é o de que as crianças usuárias de sistemas alternativos de comunicação consigam, assim como os falantes (orais ou em sinais), se comunicar com os seus pares e adultos sobre diferentes assuntos.
São muitos os desafios no processo de aquisição da linguagem dos sujeitos que precisam de um sistema alternativo de comunicação, especialmente voltados à diferença em relação ao input (visual e gestual, dentre outros) de linguagem com que eles recebem as informações; a necessidade de uma comunicação multimodal e a desvinculação dessa linguagem de um sistema linguístico natural. Em relação a esse último desafio, os interlocutores que favorecem esse sistema também se sentem desafiados, por não terem uma estrutura (forma, função e uso) a ser priorizada (Deliberato et al., 2014).
A comunicação multimodal ou multimodalidade, caracterizada pela combinação de diferentes formas de comunicação, de maneira simultânea ou sequencial, para veiculação de informações, é, de acordo com Nunes (2003), uma das características marcantes da CSA. Alguns estudos apontam que a multimodalidade dentro do processo de desenvolvimento da comunicação de crianças com surdocegueira é bastante adotada, já que, com a privação dos sentidos receptores a distância, deve-se recorrer, potencialmente, às formas alternativas de comunicação, por meio dos sentidos remanescentes, a fim de que consigam estabelecer laços com o meio (Maia & Araóz, 2001; Reyes, 2004). Assim, o processo de aprendizagem da comunicação para as crianças com surdocegueira exige apoio especializado e condições educacionais planejadas e de qualidade (Cader-Nascimento & Costa, 2010).
De acordo com Villas-Boas (2014), são escassas as informações sobre as formas de aprendizagem, atenção e comunicação de crianças com surdocegueira congênita e deficiência múltipla sensorial; logo, conhecer as formas de comunicação desses sujeitos e as suas características é fundamental para uma assistência profissional mais efetiva.
Hersh (2013), a partir de entrevistas realizadas com surdocegos de seis países, discutiu questões relacionadas à comunicação, à independência e ao isolamento. Os dados obtidos evidenciaram a importância do desenvolvimento de um sistema que permitisse aos sujeitos se comunicarem efetivamente com outras pessoas, pois a dificuldade na comunicação, mesmo para aqueles com um grau menor de perda visual e/ou auditiva, configurava-se como um grande obstáculo para a participação social, levando-os ao isolamento. Os dados obtidos no estudo de Hersh (2013) destacaram, ainda, o fato de, devido à necessidade de apoio para comunicação e mobilidade, muitos profissionais e/ou acompanhantes de pessoas com surdocegueira tirarem todas as possibilidades de independência e de vida ativa desses sujeitos. Maguvhe (2014) investigou as perspectivas de professores de surdocegos acerca da elaboração do currículo, a implementação e o envolvimento da família no processo de escolarização. Sobre o primeiro aspecto investigado, os participantes indicaram grande distância entre o currículo para os alunos surdocegos nas escolas especiais e o currículo nacional. Alguns fatores foram apontados como possibilidade de melhora no atendimento escolar desse público, especialmente para o desenvolvimento da comunicação e, consequentemente, para a aprendizagem dos demais conteúdos escolares, como a matemática e as ciências naturais, por exemplo. Os fatores foram: profissionais de apoio com formação na área, formação regular em serviço para os professores e provisão de recursos adequados e suficientes para o ensino dos alunos com surdocegueira.
Em relação ao envolvimento da família no processo de escolarização dos alunos com surdocegueira, Maguvhe (2014) afirmou que, embora os professores participantes do estudo destacassem conhecimento acerca da importância dessa participação, especialmente para o estabelecimento de formas de comunicação, na prática o contato era restrito. Os participantes apontaram como uma possibilidade a criação de um grupo de pais que impulsionassem a participação de outras famílias a partir de ações e de intervenções educativas apropriadas.
Na mesma perspectiva da educação escolar para alunos com surdocegueira, Charles (2014), a partir de um estudo descritivo realizado em uma escola de surdocegos no Quênia, o qual teve como objetivo investigar as características dos professores que atuavam com esse grupo, afirmou que a competência dos professores relacionada ao conhecimento e à experiência na área, interferem positivamente no apoio ao aluno surdocego e, por conseguinte, no seu desenvolvimento. O autor destacou como fundamental a habilidade do professor que atua com alunos com surdocegueira em avaliar, interpretar e responder às formas pré-simbólicas que um aluno surdocego pode utilizar para se comunicar, a fim de aumentar o seu desenvolvimento de comunicação e interação social.
Considerando a escassez de estudos nacionais com essa temática e os pontos até aqui abordados, a problematização desta pesquisa girou em torno da seguinte pergunta: Quais seriam as perspectivas de profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira total congênita, acerca do uso da comunicação multimodal em diferentes contextos de atendimento?
De modo a desenvolver parte dessa problematização e com o objetivo de traçar um panorama científico nacional de produção de teses e de dissertações sobre a surdocegueira, realizamos um levantamento das pesquisas finalizadas até o primeiro semestre de 2019. Para tanto, utilizamos, como base, estudos que recensearam as produções científicas sobre surdocegueira em períodos distintos desde a defesa da primeira dissertação da área no ano de 1999 (Araóz & Costa, 2008; Masini, 2011; Santos & Evaristo, 2015) e dados da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, no portal de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) a partir do descritor “surdocegueira”.
Os resultados obtidos foram: 27 pesquisas produzidas em programas de Pós-Graduação em nível de Mestrado e 11 em nível de Doutorado, o que evidenciou ainda mais a relevância científica do presente estudo, em relação às necessidades investigativas na área da Educação Especial. Os estudos encontrados destacaram, inclusive, a necessidade emergente dessas investigações, considerando aspectos do desenvolvimento dos sujeitos com surdocegueira, especialmente em relação ao desenvolvimento da comunicação.
Diante desse panorama, este estudo possui características que lhe conferem elementos de inovação nessa produção, com especial atenção aos aspectos de desenvolvimento da comunicação do sujeito-alvo da pesquisa desenvolvida. Para reforçar esse aspecto, mencionamos que esta pesquisa também inaugurou a temática no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Marília, São Paulo.
Não podemos conferir ou inferir traços de completo ineditismo em razão de considerarmos a produção internacional como importante alavanca para a área e, também, para esta análise, ainda que o nosso foco em relação ao estado da arte tenha sido a produção nacional, respeitando-se os aspectos socioculturais e a diversidade da pesquisa científica brasileira. Por fim, considerando que, em relação à educação, a comunicação é fundamental para o desenvolvimento e os processos de ensino e de aprendizagem (Oliveira et al., 2017) e, no caso de alunos com surdocegueira, um desafio permanente (McLetchie & Riggio, 2002), bem como a prioridade no processo educacional das pessoas com surdocegueira deve ser a potencialização das habilidades comunicativas (Reyes, 2004), este estudo, realizado com profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira congênita teve como objetivo identificar, na perspectiva desses profissionais, aspectos do uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para o estabelecimento da comunicação.
2 Método
O presente estudo configura-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, do tipo descritivo, caracterizada por Godoy (1995) como uma investigação que surge de questionamentos e focos amplos de interesse, nos quais os dados são apresentados de forma descritiva e pretendem atingir a compreensão de fenômenos, com base em diferentes perspectivas dos sujeitos envolvidos.
Participaram deste estudo sete profissionais que atuaram com um sujeito que se tornou surdocego total nos primeiros meses de vida em decorrência de complicações por prematuridade extrema, denominado ficticiamente de Mike. Esses profissionais atuavam em três instituições nas quais Mike foi atendido, formalmente, dos primeiros anos de vida até os 17 anos, a saber: Centro de Especialidades, Programa de Equoterapia e a escola regular.
O Quadro 1 apresenta a caracterização desses profissionais participantes do estudo, por ordem sequencial de atendimento ao sujeito.
Identificação | Caracterização |
---|---|
Beatriz |
Formação: Fonoaudiologia; Especialização em Linguagem; e Mestrado em Linguagem. Área de atuação: Fonoaudióloga em uma clínica e no Programa de Equoterapia. Tempo de atuação na área: 15 anos. Atuação com Mike: profissional de referência, durante o período em que Mike passou por atendimento no programa de equoterapia, aproximadamente dos 8 aos 12 anos de idade. |
Cláudia |
Formação: Magistério; Pedagogia; Especialização em Educação Especial/Inclusiva; e Especialização em Tradução/Interpretação de Libras. Área de Atuação: professora de Atendimento Educacional Especializado e Intérprete Educacional de Libras. Tempo de atuação na área: 15 anos na educação em geral e 6 anos na Educação Especial. Atuação com Mike: intérprete educacional de Libras na sala que Mike frequentava e professora do AEE de Mike no terceiro, quarto e quinto ano do Ensino Fundamental na escola regular. |
Heloá |
Formação: Educação Física; Pedagogia; Especialização em Psicopedagogia. Área de atuação: professora de Educação Física. Tempo de atuação na área: 25 anos. Atuação com Mike: professora de Educação Física de Mike na escola regular do terceiro ao quinto ano do Ensino Fundamental. |
Michele |
Formação: Magistério; Pedagogia; Especialização em Gestão Escolar. Área de atuação: professora de Educação Básica. Tempo de atuação na área: 13 anos. Atuação com Mike: professora de classe comum de Mike, durante o quarto e o quinto ano do Ensino Fundamental na Escola Regular. |
Henrique |
Formação: Letras; Pedagogia; Artes Visuais; Especialização em Alfabetização. Área de atuação: professor de artes e português. Tempo de atuação na área: 8 anos. Atuação com Mike: professor de arte de Mike na escola regular, durante o terceiro e o quinto ano do Ensino Fundamental. |
Giovana |
Formação: Magistério. Área de atuação: monitora6. Tempo de atuação na área: 5 anos. Atuação com Mike: monitora de Mike, durante o quarto e o quinto ano do Ensino Fundamental na escola regular. |
O procedimento de coleta de dados adotado nesta investigação foi o de entrevista semiestruturada, com um roteiro contendo perguntas abertas. Durante a realização da entrevista, houve alterações na ordem das perguntas e inclusão de questões complementares, visando o melhor entendimento do fenômeno estudado (Manzini, 2012). Após a elaboração, os roteiros, com o objetivo de adequação do instrumento de coleta, foram enviados para apreciação de juízes externos, reelaborados de acordo com as sugestões propostas e segunda apreciação desses juízes (Manzini, 2004).
Participaram como juízes três profissionais da área da Educação Especial – duas pedagogas e uma fonoaudióloga – todos com experiência acadêmica na realização de entrevistas. Além dos roteiros, os juízes receberam uma breve descrição da pesquisa, almejando a adequação desse roteiro em relação ao objetivo do estudo, da linguagem utilizada nele, da forma e da sequência das perguntas, conforme orientado por Manzini (2003).
As entrevistas foram realizadas em dias previamente agendados com os participantes, em seus respectivos ambientes de trabalho. Os áudios das entrevistas foram gravados e posteriormente transcritos, na íntegra. Após a transcrição, os dados passaram por adequações e ajustes ortográficos (Manzini, 2012, 2014).
Neste texto, utilizamos itálico para as falas dos relatos dos profissionais na apresentação dos resultados. Foram utilizados, nas transcrições, os seguintes sinais: reticências entre colchetes, para indicar supressões no início, meio e/ou final dos trechos; parênteses, para observações e comentários feitos pela pesquisadora; e aspas, para os momentos nos quais o participante empregou a fala de outra pessoa em sua própria fala.
Após a transcrição, os dados foram tratados a partir de seu conteúdo, com base em Bardin (2011). Adotou-se como critério para seleção dos dados a temática “comunicação” e, em seguida, foram estabelecidos subtemas. Para Bardin (2011), a expressão análise de conteúdo compreende
[u]m conjunto de técnicas de análises das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (p. 42)
Assim, para o processo de obtenção de temas, foram considerados, inicialmente, os relatos que indicavam as perspectivas dos profissionais, isoladas (um único participante) ou recorrentes (mais de um participante), sobre aspectos do desenvolvimento da comunicação, no sujeito com surdocegueira congênita. Os relatos foram classificados em subtemas, em função dos aspectos emergidos nesse primeiro momento. Em seguida, esses subtemas foram agrupados e convertidos em cinco categorias7, a saber: Primeiras tentativas de comunicação; Desenvolvimento de conceitos; Comunicação multimodal; Linguagem receptiva; e Linguagem expressiva. Todas essas categorias encontram-se detalhadas em Mata (2017), tanto em relação às suas definições quanto aos seus resultados. Para a análise deste artigo, foi priorizada a categoria de Comunicação Multimodal.
3 Resultados e discussão: comunicação multimodal
Uma das possibilidades de criação de oportunidades para as crianças com surdocegueira congênita é a integração dos diferentes caminhos sensoriais (Turiansky & Bove, 1991). Logo, nessa categoria, foram englobados os relatos dos profissionais, conforme o Quadro 2, que explicitaram o uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para favorecer o estabelecimento de uma comunicação. Foram considerados, ainda, relatos que apontaram esse uso, associado a um dos aspectos (sinais isolados8) da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Participante | Exemplos de relatos | Ideias subjacentes |
---|---|---|
Beatriz – Fonoaudióloga do Programa de Equoterapia |
[...] lá na equoterapia, a gente tem muitos estímulos, e vira e mexe a gente tinha trator por lá, e quando o trator passava, eu percebia que ele percebia a presença de som. Então, talvez, se a gente conseguisse explorar alguns sons mais intensos, talvez a gente conseguisse resgatar um pouquinho algum resíduo auditivo naquela época [...]. [...] em várias sessões, eu percebia que, quando tinha caminhão, que às vezes o caminhão passava bem, bem perto, bem alto, ou o trator, eu sentia que ele mudava um pouco o comportamento [...]. [...] não procurava o som, lógico, mas, se ele estava em algum momento no cavalo, ele mudava, então eu sentia que ele tinha percebido o som, que poderia ser só o peso, porque mexia o chão também, o trator ou o caminhão, então, poderia ser só pela vibração do chão, como poderia ser do próprio som [...]. [...] essa questão do trator, do caminhão, eu percebi que a perda auditiva não era total, não sei se era em uma orelha, se era nas duas. A gente percebeu isso, em vários momentos quando ele estava mais calminho que dava para fazer algum tipo de trabalho. Então, eu acredito realmente que a perda auditiva não seja profunda nos dois ouvidos, algum deve ter um pouco [...]. [...] a gente foi fazendo dessa forma, trabalhamos também um pouco a alimentação com o animal, também foi um trabalho bem legal de comunicação, que o feno do cavalo é uma coisa legal, então, a gente deixava ele cheirar, ele tocar, ele passava a mão, dava para o cavalo comer cenoura, maçã. A gente trabalhava a questão dos cheiros dos alimentos, uma nomeação assim, mais por objeto concreto, era isso, tudo bem vinculado ao contexto do animal, que é a proposta da equoterapia. |
Utilização de possíveis resíduos auditivos. Utilização simultânea dos sentidos olfativo e tátil. |
Cláudia – Professora do AEE |
[...] ela (monitora) faz as letras do nome em alfabeto dactilológico na mão dele, posiciona os dedos dele [...]. [...] na locomoção, indicamos os trajetos, virar para esquerda ou para direita, com toques no ombro. O sinal de maçã é distante do corpo, então, nós fizemos uma adaptação para ele. Nós realizamos o sinal bem próximo à sua boca. E a gente colocou cheiros nas duas frutas que ele mais usa, que é banana e a maçã. As atividades para ele são pensadas mais relacionadas com o tato, o sentido olfativo e gustativo [...] utilizamos muita textura diferente nas atividades dele, misturando a textura e o olfato. Em uma experiência com a sala toda sobre os cinco sentidos, utilizamos garrafas com cheiros diferentes [...]. [...] só que, ao invés de fazer o sinal de recreio ou intervalo, é dado um toquinho na barriga para ele saber que ele vai comer [...]. [...] se é, por exemplo, arroz, feijão e carne, ele vai tocar o arroz não cozido, depois ele vai sentir a diferença do arroz cozido, tanto no tato quanto no paladar [...] e faz o sinal coativo também, para o feijão a mesma coisa, para a carne a gente tentou aproximar com outros materiais e sempre associamos com o sabor. [...] ele tem que procurar os objetos de higiene no avental, fazer todo o processo, a monitora vai fazendo os sinais e ajudando pegando o objeto [...]. [...] fazemos juntos o sinal de casa na hora de ir embora [...]. [...] queremos que ele se locomova pela sala e ele vai andando, reconhecendo os amigos pelo toque, pelo cheiro [...]. |
Introdução de aspectos da Língua de Sinais com o alfabeto dactilológico. Utilização dos sentidos proprioceptivo e tátil. Introdução de aspectos da Língua de Sinais com adaptação de sinais isolados associada ao sentido olfativo. Utilização dos sentidos olfativo e tátil. Utilização do sentido olfativo de maneira isolada. Utilização dos sentidos tátil, olfativo e gustativo de maneira associada. Utilização de aspectos da Língua de Sinais por meio de sinais coativos. Utilização dos sentidos tátil e olfativo para reconhecimento de pessoas. |
Michele – Professora de classe comum |
Quando a gente vai fazer o cardápio tátil, ele toca no prato, toca no talher, exploramos tanto o paladar quanto o aroma. No cardápio e em atividades que vai usar essência ou até mesmo som, ele corresponde, se a gente está com um chocalho bem próximo ele vira, ele sorri [...]. |
Utilização dos sentidos tátil, olfativo e gustativo de maneira associada. Utilização de possíveis resíduos auditivos. |
Heloá – Professora de Educação Física |
[...] fui orientada que, quando quisesse que se sentasse, toque na perna, ele vai sentar, tocar no braço para ele virar para o lado direito, braço esquerdo [...]. [...] encostar o braço para ele perceber que tem que caminhar do meu lado, para mostrar o movimento, tocando o corpo, meu corpo no dele, encostando bem meu corpo no dele para fazer a marcha mais certinha, porque ele marcha com os pés virados para o lado de fora, a gente quer alinhar isso, então, eu encosto bem meu joelho nas pernas dele, então a gente vai marchando junto [...]. [...] se eu vou trabalhar basquete, vou jogar a bola de basquete para ele, vou rodar a bola de basquete no corpo dele, do lado para o outro, passo uma mão, então a bola, vou trabalhar vôlei, vou trabalhar com ele a bola de vôlei, é assim que eu faço com ele. Mostro o movimento antes, de perna, tocando, que tem que abaixar, que tem que levantar. Ele tocando na minha perna e depois eu tocando na perna dele [...] na cama elástica, no começo, pulávamos juntos, agora, eu seguro pelo lado de fora, só dou a mão e ele ajuda com o movimento. |
Utilização dos sentidos proprioceptivo e tátil. Utilização do sentido cinestésico. Utilização dos sentidos proprioceptivo e cinestésico. |
Henrique – Professor de Arte |
Por exemplo, em relação a sentar, dar um toque nas pernas, para levantar também [...]. Sobre o trabalho com as cores, a turma toda estava explorando e pintando com as cores quentes e frias, para ele, fizemos adaptações com essências, para associar a cor com diferentes essências. Nas cores frias, era um cheiro mais ameno, mais tranquilo; nas cores quentes, era um cheiro mais forte. Ele gosta, foi assim, bem bacana, que ele gostou de sentir os diferentes cheiros. Teve um que ele acabou, eu não lembro qual, mas que ele segurou, ficou um tempinho com ele nas mãos. |
Utilização dos sentidos proprioceptivo e tátil. Utilização do sentido olfativo. |
Giovana – Monitora |
[...] eu pego na mão dele, chego aqui no portão, eu coloco a mochila nas costas com ele e já faço o sinal de estudar. “Ele entra, eu toco no ombro dele aqui (aponta para o seu ombro), e aí ele já tira a mochila, tem dia que eu consigo... que ele fica com a mochila ali na mão, mas tem dia que ele solta. Descemos para o refeitório para comer uma maçã, por exemplo, então, a gente faz o sinal de maçã ali na sala, mostra a rotina, apresenta a rotina ali toda para ele, pego a maçã e vai para o refeitório comer a maçã. Ele se senta ali no refeitório, eu apresento a maçã de novo para ele, a maçã inteira, faço ele manusear a maçã, rodo, mostro que tem o cabinho embaixo, tem o negocinho em cima, embaixo, o cabinho em cima, cheira [...]. Me comunico com ele com toques no ombro, na perna, e ficar às vezes por detrás, quando quero fazer algum movimento com ele, por exemplo, para ele agachar, eu vou deitando meu corpo com ele, agachando com ele. |
Utilização de aspectos da Língua de Sinais por meio de sinais coativos. Utilização dos sentidos proprioceptivo e tátil. Utilização dos sentidos proprioceptivo e cinestésico. |
Observa-se que, de modo geral, as perspectivas dos participantes, nessa categoria, estiveram relacionadas à combinação nas formas de antecipação das atividades e/ou ações por meio da utilização de diferentes vias sensoriais. As participantes Beatriz e Michele apontaram percepção de possibilidade de uso de um sentido distal, a audição, mas sem indícios de uso funcional. Os sentidos gustativos e olfativos estiveram presentes na maior parte dos relatos, enquanto o proprioceptivo e o cinestésico, em menor proporção. Há relatos que revelaram tentativas de associação entre objetos concretos e sinais, buscando, assim, uma comunicação em um nível menos elementar.
Em consonância aos dados apresentados que evidenciam o emprego dos sentidos para o desenvolvimento da comunicação, Maia et al. (2009) destacaram que as experiências táteis são formas de adquirir informações sobre o mundo; a utilização do canal olfativo auxilia na interpretação do meio e na atribuição de significados; o olfato e o paladar ajudam a compreender melhor o mundo, especialmente por ser o olfato um sentido de recepção da informação à distância; e, por fim, o uso dos sentidos cinestésico e proprioceptivo favorecem a organização corporal e os movimentos.
Especificamente no caso de Mike, os relatos de Beatriz e Michele pareceram ressaltar a possibilidade de um resíduo auditivo.9 Quanto a essa questão, Amaral (2002) afirmou que o uso da audição residual é muito importante para a criança com surdocegueira complementar as informações recebidas pelos outros sentidos. A autora defende que o papel do profissional, aludindo especificamente ao professor, é fornecer todos os meios possíveis de estímulos sensoriais, tornando-os significativos e integrando-os aos outros sentidos; sublinha que o conhecimento das formas de potencialização do uso dos resíduos auditivos deve ser considerado, na formação dos profissionais que atuam com pessoas com surdocegueira (Amaral, 2002). Nota-se, ainda, nos relatos dos participantes, perspectivas positivas em relação às formas alternativas de comunicação envolvendo o uso dos sistemas gustativo, olfativo, cinestésico, proprioceptivo e tátil.
De maneira enfática, pesquisadores defendem ser primordial, na trajetória inicial do desenvolvimento da comunicação e da linguagem para crianças com surdocegueira, o uso de todas as formas possíveis e recursos para comunicação, já que somente a fala ou a língua de sinais, mesmo quando há resíduos funcionais, em muitos casos, não é suficiente (Cader-Nascimento & Costa, 2003; Turiansky & Bove, 1991). No entanto, é importante atentar para o desafio de facilitar na criança com surdocegueira o desenvolvimento da linguagem e aquisição de uma língua, geralmente a língua de sinais10 (Cormedi, 2012).
Para Cormedi (2012), a utilização de todas as formas possíveis de comunicação – objetos de referência, gestos e sinais isolados – tem como objetivo “possibilitar que surdocegos possam fazer simbolizações e representações e, se possível, apoderar-se de uma língua” (p. 180).
Em relação ao emprego da língua de sinais, os participantes mencionaram a introdução de sinais isolados da Língua Brasileira de Sinais. Sobre esse aspecto, Almeida (2008) e Cader-Nascimento e Costa (2003) realizaram estudos que demonstraram possibilidades de apropriação dessa língua. Almeida (2008) descreveu a trajetória da comunicação de “J” que, de acordo com a autora, começou a perceber e estabelecer relação entre sinal e significado, a partir da persistência da mãe. Aos cinco anos de idade, aprendeu o significado do primeiro sinal “água”, após a mãe por diversas vezes, durante o banho, jogar água em seu corpo e fazer o sinal de forma coativa. Em outro momento, apresentou o mesmo sinal, ao oferecer água para tomar (Almeida, 2008).
Cader-Nascimento e Costa (2003) trataram dessa apropriação, no contexto escolar. As autoras discutiram o desenvolvimento linguístico de uma aluna com surdocegueira que manifestava vontade de ir ao banheiro, posicionando-se na sala de aula e abaixando a calça. A profissional que a acompanhava passou a observar os movimentos que antecediam essa ação e, nesse momento, realizava o sinal de banheiro, no braço da aluna, e a guiava ao banheiro. No banheiro, repetiam o sinal de forma coativa e contextualizada e, em seguida, a incentivava a fazê-lo sozinha.
Associando os dados com os estudos descritos, foi possível notar que alguns aspectos são importantes para que o sujeito com surdocegueira consiga se apropriar de um signo: que a sua introdução e utilização sejam significativas, portanto contextualizadas; que sejam efetuadas sempre da mesma forma, deixando, por exemplo, o sujeito perceber a realização do sinal pelo interlocutor e depois ser ajudado a fazê-lo; e que o sujeito seja estimulado a realizar o sinal de maneira independente.
Ainda nessa perspectiva da utilização dos sentidos remanescentes para o estabelecimento da comunicação, a participante Heloá referiu-se a formas que abordam os sistemas tátil e proprioceptivo. Os dados apresentados pela participante assemelham-se às indicações de uso de movimentos coativos, descrito por Van Dijk (1968). Sobre esse aspecto, Cader-Nascimento e Costa (2010) destacaram o seguinte:
Sua abordagem parte do princípio de que as atividades/ações propostas precisam ser realizadas em conjunto, ou seja, o mediador (professor, cuidador, pais, parentes ou amigos) e a criança devem realizar movimentos e ações simultaneamente. (p. 43)
Ainda sobre a utilização dos sentidos tátil e proprioceptivo, a participante Heloá citou estratégias como exploração do objeto e seu movimento de forma simultânea (com a bola de basquete) e oferta de modelo de movimento (pulando na cama elástica). Turiansky e Bove (1991) salientaram que movimentos do corpo inteiro são eficazes para o fornecimento de modelos mais completos para imitação, já Andreossi et al. (2012), referindo-se à construção da consciência corporal em crianças com surdocegueira, enfatizaram que atividades lúdicas facilitam o desenvolvimento dessa consciência e a compreensão do seu corpo e dos movimentos executados por suas diferentes partes. De acordo com o autor, esse é um dos desafios para os profissionais, já que, em virtude das limitações visuais e auditivas, as habilidades de imitação dos padrões de movimentos são comprometidas.
De modo geral, compreende-se que, devido aos desafios impostos pela surdocegueira, é imprescindível para o desenvolvimento da comunicação de sujeitos com essa condição recursos adequados e parceiros comunicativos eficientes. Considera-se eficaz, nesse processo, uma abordagem de comunicação baseada na multimodalidade, ou seja, por meio de estímulos dos sentidos remanescentes como olfato, paladar, proprioceptivo, cinestésico e tátil e, à medida que o sujeito responder ou fornecer indicadores de compreensão, esses interlocutores devem priorizar padronizações nessa comunicação.
4 Conclusões
Ao longo de todo o processo de desenvolvimento e de ensino e de aprendizagem de qualquer sujeito, a comunicação é fundamental. No caso daqueles com surdocegueira, trata-se de um desafio permanente para os diferentes profissionais (McLetchie & Riggio, 2002). Dentro desse contexto, este estudo teve como objetivo identificar, na perspectiva de profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira congênita, aspectos do uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para o estabelecimento da comunicação.
Os resultados obtidos no estudo permitiram-nos considerar alguns pontos: as perspectivas dos participantes estiveram relacionadas à combinação nas formas de antecipação das atividades e/ou ações por meio da utilização de diferentes vias sensoriais; há a percepção de possibilidade de uso de um sentido distal, a audição, mas sem indícios de uso funcional; há presença dos sentidos gustativos e olfativos na maior parte dos relatos, enquanto o proprioceptivo e o cinestésico, em menor proporção; e há tentativas de associação entre objetos concretos e sinais, buscando, assim, uma comunicação em um nível menos elementar.
Consideramos que o estudo trouxe contribuições para as pesquisas voltadas à área do desenvolvimento da comunicação e da linguagem em pessoas com surdocegueira congênita. Esperamos, desse modo, que essa contribuição se estenda a investigações futuras, tendo em vista a necessidade emergente de trabalhos que abordem essa temática, especialmente no contexto das escolas de ensino regular.